E. P. Sanders Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus



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benéfico sem trabalhar realmente: ao sábado, uma pessoa não podia tratar de uma dor de dentes aplicando vinagre, mas podia pôr vinagre na comida e comê-la, alcançando, assim, o mesmo resultado. Se os rabis recorriam a estes caminhos para contornar a Lei, podemos muito bem imaginar que algumas pessoas pensavam que a Lei permitia que pusessem vinagre num dente dorido. Este exemplo permite-nos comparar a interpretação (d) com o evitar a Lei (e). Algumas

pessoas pensavam que o tratamento de doentes era trabalho proibido, mas que era possível alcançar os resultados do tratamento sem trabalhar no sentido técnico do termo (e). É provável que algumas pessoas discordassem da interpretação fundamental, considerando que o tratamento de doentes não era proibido (d). Isto também constitui um tema acerca do qual podia haver opiniões diversas quanto às circunstâncias atenuantes: que gravidade tem de ter a doença para justificar tratamento ao sábado (c)?

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A categoria (f), o alargamento do âmbito de aplicação da Lei, era uma categoria muito vasta. A Lei escrita é muito incompleta; na teoria, cobre todos os domínios da vida, mas é frequentemente escassa no que diz respeito a pormenores. Por conseguinte, tinha de ser alargada e concretizada de todas as formas possíveis. Mencionarei um caso no qual existia desacordo. Um dos Manuscritos do Mar Morto, a Aliança de Damasco, critica outros judeus por permitirem o casamento com sobrinhas. Moisés - como realça corretamente o documento - proibiu os casamentos entre tia e sobrinho (Lv 18, 12 e segs.). As leis do incesto foram escritas tendo em vista os homens e, por isso, ordenam explicitamente aos homens que não tenham relações sexuais com as suas tias, mas (como sustentam os autores da Aliança) estes mandamentos deveriam aplicar-se também no sentido inverso: sobrinhas e tios não deveriam casar-se (Aliança de Damasco 5, 7-11). Josefo considerava um casamento deste tipo, no mínimo, como um pouco



impróprio, ainda que não ilegal." É duvidoso que existissem muitos casamentos entre tios e sobrinhas, mas estamos perante uma discussão legal muito clara: a lei deveria ser alargada a casos análogos ou não. A Aliança de Damasco não critica diretamente Moisés mas sim outros judeus por não compreenderem que a intenção de Moisés era que a lei fosse aplicada a casamentos entre tios e sobrinhas. A crítica direta a Moisés não só teria sido pouco diplomática, como também irreverente, para a maioria dos judeus isto quase significava criticar simultaneamente Deus. No entanto, trata-se de uma crítica implícita à lei escrita.

A nossa última categoria (g), normas suplementares, também era muito vasta. Os fariseus eram conhecidos pelas suas «tradições», interpretações herdadas de fariseus anteriores e que não faziam parte da Lei escrita. No capítulo 4 (p. 70), dei um exemplo de uma das tradições dos fariseus. a utilização de umbrais e lintéis para ligar casas contíguas, transformando-as numa grande «casa», de modo a que várias famílias pudessem reunir os seus recursos e juntar-se para uma refeição festiva aos sábados, sem transgredir a proibição, proveniente de Jeremias, de transportar cargas para fora de casa aos sábados. Isto é, os fariseus criaram uma «tradição» (g) que evitava a restrição de Jeremias (e). Há uma história rabínica que mostra que os saduceus discordavam da utilização

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de «eruvin» por parte dos fariseus." Eles pensavam, provavelmente, que os fariseus estavam a transgredir a Lei, mas parece que não fizeram nada para os obrigar a seguir a sua visão mais rigorosa. É óbvio que os fariseus não criticavam os saduceus por comerem nas suas casas individuais. Fazê-lo não era contra a Lei, nem contra a tradição dos fariseus, que, neste caso, era mais permissiva do que prescritiva.



Os exegetas do Novo Testamento afirmaram frequentemente que Jesus se opôs à Lei ou a algumas partes dela. A ideia mais comum é que ele se opunha à lei relativa aos rituais, mas era favorável à lei moral. As pessoas que defendem estas ideias raramente esclarecem em que senti­

do é que Jesus se opôs à Lei. Isto é, raramente se ocupam das distinções que é necessário fazer quando se quer discutir a Lei. Querem dizer que, na opinião de Jesus, Deus não entregou a Lei a Moisés? Que Jesus não concordava com uma interpretação, em particular? Que, por vezes, ele

contornava algumas leis concretas? É com estas questões em mente que vamos agora examinar três passagens dos Evangelhos: as «antíteses» no sermão da montanha; uma coleção de histórias de conflito em Marcos 2, 1-03, 6 e os debates sobre tradições, em Marcos 7.
As «antíteses» (Mt 5, 21-48)

Já discutimos brevemente este material, quando abordámos a questão do perfeccionismo de Jesus. Aqui só nos interessa saber se Jesus se opõe à Lei nestas passagens. A resposta breve a esta questão é que não; pelo contrário, ele exige uma prática mais rigorosa da mesma. Ninguém que cumprisse as exortações que se encontram em Mt 5 transgrediria a Lei e Jesus não propôs a revogação de qualquer parte da lei de Moisés. Vou repetir um resumo das afirmações contidas nesta passagem de Mateus, juntamente com breves comentários que mostram que elas não contrariam a Lei:

Não só não matarás, como não deves irritar-te. (A proibição de matar continua a estar em vigor.)

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Não só não cometerás adultério, como não deves olhar para alguém com desejo. (O mandamento que proíbe o adultério continua a estar em vigor.) Não te divorciarás, apesar da autorização de Moisés. (A definição mosaica de um divórcio legal torna-se desnecessária, mas os seguidores de Jesus não violarão o mandamento relativo à exigência de um documento legal.)

Não deverás jurar em circunstância alguma. (É óbvio que nunca ninguém irá jurar em falso.)

A Lei diz: «olho por olho ... Eu, porém, digo-vos: Não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra,» (O mandamento «olho por olho» limita a retaliação, não a exige. A pessoa que oferece a outra face não excede o limite legal.)

Amai os vossos inimigos como o vosso próximo. (O mandamento de amar o seu próximo será cumprido.)

O editor que reuniu as várias partes de Mateus 5 compreendeu perfeitamente as antíteses. A afirmação seguinte, atribuída a Jesus, constitui um prefácio a estas antíteses:

Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição. Porque em verdade vos digo: até que passem o céu e a terra, não passará um só jota ou um só ápice da Lei. Portanto, se alguém violar um destes preceitos mais pequenos e ensinar assim aos homens será o menor no Reino do Céu. Mas aquele que os praticar e ensinar, esse será grande no Reino do Céu. Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não superar a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino do Céu. (Mt 5, 17-20)

Embora esta passagem do sermão da montanha incluída no Evangelho de Mateus não contrarie a Lei, implica uma crítica: a Lei não vai suficientemente longe. Mas é de registar a maneira como isto se exprime na passagem que se aproxima mais de uma crítica explícita: a versão longa da proibição do divórcio. Moisés permitiu o divórcio «por causa da dureza do vosso coração» (Mt 19, 8 / / Me 10,5). Isto é, Moisés era demasiado clemente, mas a culpa «é vossa» e não dele.

Na sua versão atual, a última antítese soa como se contrariasse a Lei: «Ouvistes o que foi dito: "Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo". Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos ... » (Mt 5, 43 e segs.). Isto contrariaria a Lei se esta mandasse realmente odiar os inimigos, mas ela não o faz. A comunidade de Qumran ensinava que os seus membros deviam odiar os seus inimigos e é possível que houvesse

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outras pessoas a partilharem esta opinião. Talvez fosse possível defender de forma razoável que os romanos eram os inimigos de Deus e do Seu povo e que deviam ser odiados. Mas os melhores mestres judaicos ensinavam que, mesmo numa guerra, os inimigos deveriam ser trata­



dos de forma decente e não é verdade que o judaísmo, em geral, ensinasse o ódio aos inimigos. Não podemos afirmar que, nesta passagem, Jesus se opusesse quer à visão oficial, quer à visão comum dos judeus acerca dos inimigos.

Esta parte de Mateus foi citada frequentemente como prova da «oposição» de Jesus à Lei. Mas reforçar a Lei não significa opor-se a ela, embora (como acabámos de ver) implique uma espécie de crítica. Se o reforço fosse contra a Lei, os principais grupos religiosos do judaísmo, os fariseus e os essénios teriam violado sistematicamente a Lei. Mas, na realidade, nenhum judeu da Antiguidade pensava que ser super-rigoroso era contra a Lei, nem o autor de Mateus o pensava. Só os exegetas modernos do Novo Testamento é que pensaram que parte do sermão da montanha exprime oposição à Lei mosaica, mas isso é porque não tiveram em conta os diversos níveis de concordância e discordância com a Lei.


Um conjunto de histórias de conflito (Me 2, 1-3, 6)

Vou voltar a resumir as diversas perícopes.

Jesus curou um paralítico dizendo: «os teus pecados estão perdoados», e alguns escribas murmuraram entre si que ele se arrogasse a autoridade de perdoar pecados, designando isto como «blasfémia». Jesus adivinhou a sua acusação, mas procedeu à cura. (2, 1-12)

Jesus chamou um cobrador de impostos a segui-lo; depois, sentou-se à mesa com muitos cobradores de impostos. Os escribas dos fariseus queixaram-se aos seus discípulos e Jesus defendeu o seu direito de chamar os pecadores. (2, 13-17)

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As pessoas perguntaram a Jesus porque os seus discípulos não jejuavam, enquanto os discípulos de João Baptista e dos fariseus guardavam jejum. Jesus defendeu os seus discípulos dizendo que, enquanto o esposo estivesse com eles, os convidados para a boda não deviam jejuar. (2, 18-22)



Num sábado, Jesus e os seus discípulos iam através das searas. Os discípulos ficaram com jome e começaram a colher espigas. Apareceram os fariseus e criticaram-nos. Jesus defendeu os seus discípulos recorrendo a um precedente parcial; isto é, à situação em que David e os seus homens estavam com fome e comeram os alimentos sagrados, e a dois ditos: «o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado» e «o Filho do Homem até do sábado é Senhor». (2, 23-28)

Num outro sábado, entrou numa sinagoga e curou um homem com uma mão paralisada. Dirigiu-se diretamente à audiência, antes que alguém lhe tivesse dito alguma coisa: «É permitido ao sábado jazer bem ou jazer mal; salvar uma vida ou matá-la?» Realizou a cura e os fariseus e os partidários de Herodes reuniram-se para deliberar como haviam de o matar. (3, 1-6)

Esta coleção contém vários pontos interessantes. Começamos por observar que o conflito aumenta de gravidade ao longo destas cinco histórias sucessivas. Na primeira, os adversários de Jesus apenas murmuram entre si, não dizendo nada nem a Jesus, nem aos seus discípulos, nem à multidão. Na história seguinte queixam-se de Jesus aos discípulos. Na terceira e na quarta histórias, manifestam diretamente a Jesus a sua discordância por causa dos discípulos deste. Na quinta, vão para além da queixa e da objeção e decidem matá-lo.

Em segundo lugar, a atenção concentra-se nos fariseus. Inicialmente, os adversários são simplesmente «escribas» - peritos na Lei. De seguida, são designados como «escribas dos fariseus» - peritos na Lei pertencentes ao partido dos fariseus. Depois, são «pessoas», mas, ao que parece, seguidores de João Baptista ou dos fariseus. Na quarta e na quinta histórias, são fariseus, embora, nesta última, se aconselhem com os partidários de Herodes.

Portanto, nesta passagem, existe uma dupla escalada - no que diz respeito à intensidade do conflito e aos adversários. A escalada não é totalmente uniforme, mas a tendência geral é clara.

Em terceiro lugar, registamos que as narrativas são pouco plausíveis em si mesmas. Ou são as circunstâncias que são improváveis ou

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a reação negativa em relação a Jesus é desproporcionada em relação ao seu comportamento. Na primeira história, a transgressão estaria no facto de Jesus ter anunciado o perdão dos pecados do homem, o que levou a uma acusação de blasfémia (Mc 2, 7). Mas nenhuma lei judaica, nem nenhuma interpretação conhecidas teriam considerado blasfémia uma afirmação deste tipo. O texto não apresenta Jesus a afirmar: «eu perdoo-te os teus pecados», mas sim: «os teus pecados estão perdoados», na voz passiva. Na cultura de Jesus, a voz passiva era utilizada como uma circunlocução para Deus: «os teus pecados estão perdoados» significa que estão perdoados por Deus. Jesus limita-se a anunciar o facto, não assume o lugar de Deus. Podia parecer demasiado seguro conhecer o que Deus fez ou iria fazer e é possível que parecesse arrogante. Mas esta pretensão - de conhecer a vontade de Deus - não teria sido rara nem particularmente ofensiva. Lembremo-nos de Honi, o desenhador de círculos. Ele estava seguro da sua relação com Deus, mas não era um blasfemo, nem era considerado como tal. A acusação de blasfémia na passagem de Me 2 parece uma retrojeção para o início do ministério de Jesus de uma acusação que, de facto, foi feita mais tarde (sobre retrojecção, ver pp. 272-273, 278 e segs.). Isto significa que a acusação neste contexto é improvável; se os escribas se tivessem oposto, realmente, à cura, a acusação teria sido menos séria. É surpreendente que, de acordo com o próprio texto da passagem, os escribas se tenham limitado a falar «nos seus corações». Podemos ter a certeza de que isto não constituiu uma acusação pública no início do ministério de Jesus.



A história da colheita das espigas num sábado afigura-se improvável. Os discípulos estão a colher espigas quando os fariseus aparecem subitamente. Mas o que estavam estes a fazer no meio de uma seara, ao sábado? Estavam à espera de que alguém pudesse colher espigas? Voltamos a ter aqui uma retrojeção. Houve aspetos do ministério de Jesus ou das ações dos seus seguidores que levantaram, a dada altura, a questão da lei relativa ao sábado. Não se trata de uma crónica de um acontecimento real.

Mas suponhamos que o incidente aconteceu realmente. Foi grave? Não muito, visto que Jesus argumenta que existiam circunstâncias atenuantes e cita um precedente bíblico, assim como princípios gerais, em defesa dos seus discípulos. David tinha violado a lei da pureza quando ele e os seus homens estavam com fome (Mc 2, 25 e segs.) Além disso, o princípio geral diz que o sábado deveria ser benéfico para a humanidade

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(2, 27). Os fariseus retiraram-se, aparentemente, e não aconteceu nada. O argumento bíblico que Jesus apresentou a favor de circunstâncias atenuantes não corresponde, realmente, aos padrões dos fariseus, visto que David não violou a lei do sábado. Jesus teria necessitado de uma analogia melhor em termos legais. Além disso, na história da seara, a vida humana não estava em jogo. Toda a gente aceitava que «o sábado foi feito para o homem», mas teria sido um argumento legal bastante fraco citar este princípio para justificar uma refeição leve. No entanto, o sábado não era um dia de jejum; era suposto os judeus tomarem uma refeição ao sábado." Sendo assim, o argumento da existência de circunstâncias atenuantes teria ganho força se os discípulos tivessem estado muito tempo sem comer. De qualquer modo, a história tal como a conhecemos atualmente, mostra Jesus como alguém que aceita a Lei e que defende uma transgressão singu­ lar da mesma. É igualmente de notar que não é Jesus que é acusado, mas sim os discípulos. Ele não violou o sábado - mesmo que a história seja completamente exata.



A ação que (de acordo com Me 3, 6) leva à decisão de procurar a morte de Jesus é a mais improvável de todas. Jesus cura o homem com a mão paralisada dizendo, simplesmente: «estende a mão». Não existia nenhuma interpretação da Lei relativa ao sábado que tornasse o ato de falar ilegal. Seria de esperar algum protesto se Jesus tivesse massajado ou ligado a mão, mas falar não é um trabalho. Note-se que havia um grupo que cumpria o preceito do sábado de uma forma mais rigorosa do que os fariseus: a seita do Mar Morto. Não existe nada neste preceito que se aproxime do rigor de Me 3, 1-6. É duvidoso que alguém tivesse considerado esta cura como uma transgressão deliberada da lei relativa ao sábado. Todos concordavam com o princípio fundamental referido por Jesus, segundo o qual é legal salvar uma vida, embora pudessem fazer notar que a vida do homem não estava em risco. É provável que os fariseus tivessem regressado aos seus estudos concluindo que Jesus não sabia debater a Lei, visto que tinha alargado o argumento de «salvar a vida» para cobrir uma cura de importância secundária. Mas, face ao nível geral das disputas acerca do sábado ocorridas no século I, não existe nada no relato bíblico que faça supor que talos teria levado a procurar matar Jesus.

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Portanto, algumas das histórias são improváveis. Mas, mesmo que todas constituíssem registos exatos dos acontecimentos, não existe um único caso de transgressão óbvia ou grave. As disputas legais descritas em Me 2, 1- 3, 6 são bastante triviais, em comparação com outras existentes no judaísmo do século I. O único ato que poderia constituir uma transgressão substancial é a colheita de espigas ao sábado. Colher é um ato intencional que poderia ser utilizado por qualquer um que quisesse demonstrar que a lei relativa ao sábado devia ser violada. No entanto, este é precisamente o caso em que Jesus defende que a ação dos seus discípulos se justifica com base em circunstâncias excecionais. Uma defesa baseada em circunstâncias atenuantes admite que a Lei é válida e revela que a ação não constituiu um caso de oposição à mesma. Imaginemos que os fariseus desta história, que desaparecem tão rapidamente como apareceram, tinham levado Jesus e os seus discípulos perante um magistrado e que Jesus tinha repetido o seu argumento: David fez algo semelhante; além disso, o sábado foi feito para os homens e nós estávamos com fome. O magistrado talvez tivesse castigado Jesus e os seus discípulos, exigindo que cada um deles apresentasse um sacrifício de expiação no Templo pela ofensa não intencional ­ uma ofensa, porque o argumento não era suficientemente bom para provar circunstâncias atenuantes; não intencional, porque Jesus estava convencido da qualidade do seu argumento.

No tempo de Jesus, as discussões e as diferenças de opiniões descritas em Me 2, 1-3,6 - mesmo que tivessem acontecido todas precisamente como estão registadas - não teriam levado à execução. Havia discordâncias de opinião acerca de assuntos mais sérios entre os próprios fariseus e divergências ainda mais agudas entre os fariseus e os saduceus. Eles não estavam sempre a matar-se uns aos outros por causa destes desentendimentos. É certo que havia conflitos por causa de questões legais entre os judeus na Palestina do século I, assim como alguma agitação social, de vez em quando. Se observarmos os anos que decorreram desde a revolução dos Asmoneus até ao fim da primeira revolta contra Roma (entre cerca de 167 e 74 a. C.), encontraremos vários exemplos de guerras civis bastante graves. Mas as pessoas não se matavam umas às outras por causa de questões do tipo daquelas que se encontram em Me 2, 1-3, 6. O nível de discórdia e de discussão está dentro dos limites de debate aceites no tempo de Jesus.

Se tudo isto for verdade, como podemos interpretar a existência destas passagens? O princípio de que «onde há fumo, há fogo» torna

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necessário explicar a sua origem: a descrição da hostilidade crescente dos fariseus por causa das questões da Lei tem de vir de algum lado. A questão é saber de onde. Na realidade, existem três questões diferentes: (1) Qual a origem da coleção (Mc 2, I-S, 6)? (2) Qual a origem dos seus componentes (as cinco perícopes)? (S) As perícopes individuais constituem uma unidade ou foram, elas próprias, compostas? Por outras palavras: será que os componentes de cada passagem constituem uma unidade?

(1) A impressão de que os fariseus andavam atrás de Jesus desde muito cedo e que o perseguiam implacavelmente é-nos transmitida pela própria coleção, tal como agora aparece em Marcos. No entanto, esta coleção é obra de Marcos ou de um autor anterior. A sequência de histórias, nas quais a um confronto se segue outro, sem qualquer narrativa ou debate pelo meio, e onde o nível de ataque está permanentemente a aumentar, é dramática, mas artificial. Alguém juntou várias histórias, compondo-as de forma a levar a uma decisão prematura de executar Jesus. Se as passagens forem separadas (como acontece em Mateus e Lucas), não dão a mesma impressão de uma hostilidade constante. Os acontecimentos que lhes são subjacentes devem ter acontecido em fases muito diferentes.

(2) Isto não significa que estas histórias aconteceram todas de facto. Já sugeri que elas revelam sinais de retrojeção: disputas posteriores foram transferidas para o tempo de Jesus. A igreja cristã posterior ou, pelo menos, partes dela, discordou dos fariseus e dos seus sucessores, os rabis, no que diz respeito à Lei. Note-se que há dois casos nesta coleção em que os acusados são os seguidores de Jesus e não ele próprio (colheita de espigas; jejum). Estes «discípulos» pode­ riam representar a igreja pós-ressurreição e a disputa poderia constituir uma retrojeção para o tempo de Jesus. É possível que tenha havido disputas, mas não necessariamente entre Jesus, os escribas e os fariseus.

(3) Penso que é provável que a maior parte das passagens acima referidas não constitua uma «unidade integral»; isto é, que um acontecimento ou uma afirmação tenham sido utilizados para servirem uma necessidade posterior, através da sua colocação num novo contexto. Lembremo-nos de que nunca podemos estar seguros do contexto imediato de uma perícope. Também não podemos ter a certeza de que o contexto de cada uma das afirmações foi transmitido sem alteração.

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Por exemplo: é muito possível que Jesus tenha dito que o sábado deveria servir as pessoas, em vez de serem as pessoas a servir o sábado. Esta afirmação não é necessariamente contra a lei relativa ao sábado. Ela poderia ter ocorrido numa homilia de louvor ao Criador, que prescreveu o sábado não para Seu beneficio próprio, mas para bem da Sua criação. Houve outros judeus que fizeram notar que não só as pessoas, mas também os animais e a terra, gozavam e beneficiavam do descanso ao sábado." No entanto, é possível que Jesus tenha deparado com um tratamento menos humanista do sábado, com alguma interpretação que parecia exigir que as pessoas suportassem privações. Isto poderia ter despoletado a afirmação em causa. Esta só parece ser contra o sábado quando ocorre numa história em que os discípulos de Jesus são acusados de desrespeitar o sábado.



Teria sido muito fácil alterar o contexto imediato de uma das curas de Jesus de modo a que esta se tornasse um desafio à lei do sábado. Basta inserir a expressão «no sábado» e, depois, uma reação negativa. Lucas junta mais dois casos à tradição (Lc 13, 10-17; 14, 1_6).9

Existe uma impressão geral de que Marcos e, provavelmente, a tradição anterior a ele, necessitavam de histórias em que Jesus criticava a Lei e, por seu lado, era criticado por judeus zelosos no cumprimento desta. Existe uma analogia com o desejo dos cristãos em descrever Jesus como alguém cujo relacionamento com os gentios era positivo. Os cristãos provenientes dos gentios não observavam parte da Lei e (como é óbvio) tinham uma grande consideração por estes últimos. Queriam que Jesus concordasse com eles. Contudo, não conseguiam reunir muitas provas. Não conseguiam citar muitas tradições favoráveis aos gentios, nem conseguiam encontrar qualquer disputa realmente grave entre Jesus e os escribas ou os fariseus sobre a Lei judaica. Algumas passagens foram trabalhadas de modo a transformarem-se em disputas sobre a Lei, embora insignificantes, e, no fim, há uma decisão de matar Jesus. Mas trata-se de uma construção do editor ou do autor. Se olharmos para as disputas em si mesmas, não encontramos um grande conflito. O leitor de Marcos é convidado a acreditar que uma série de boas ações levadas a cabo por Jesus levaram os


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