Miriam Cristina Rabelo, Paula Schaeppi, Sueli Mota, Juliana Rocha e Marcos Rubens



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Comparando experiências de aflição e tratamento

no candomblé, pentecostalismo e espiritismo1

(versão preliminar)



Miriam Cristina Rabelo, Paula Schaeppi, Sueli Mota, Juliana Rocha e Marcos Rubens



Introdução
A imbricação entre as temáticas da antropologia médica e antropologia da religião já tem sido reconhecida há algum tempo (B. Turner, 1984; Comaroff,1985). Para os estudiosos que se dedicam a explorar a fronteira e a lidar com os estoques conceituais provenientes de cada uma das disciplinas coloca-se a tarefa de localizar a especificidade mesma da abordagem religiosa à saúde, doença e cura. Por um lado semelhante empreendimento promete ampliar o horizonte teórico da antropologia médica na medida em que fornece bases para uma crítica aos parâmetros biomédicos que desde o surgimento dessa disciplina têm servido de critério (atualmente mais implícito que explícito) de análise. Por outro, provê a antropologia da religião com um conjunto de questões e quadros de referência que lhe permitem aproximar-se de uma dimensão central, mas por vezes bastante negligenciada, da experiência religiosa: sua ação transformadora sobre os corpos.
Em geral as análises convergem no reconhecimento de que os sistemas religiosos oferecem uma interpretação à doença que a insere em um contexto mais amplo de relações entre o humano e ao sagrado: trata-se de uma interpretação (em si mesma já parte do processo terapêutico) que organiza os estados confusos e desordenados que caracterizam a experiência da aflição em um todo ordenado e coerente (Levi-Strauss, 1967; Comaroff, 1980; 1985; Csordas, 1983). Neste sentido, difere da abordagem biomédica que se concentra em estabelecer relações causais entre fatores e que, ao fazê-lo tende a passar ao largo da dimensão existencial da doença. (Taussig, 1980). A terapêutica religiosa é vista, portanto, como uma tentativa de produzir uma reorientação mais geral do comportamento, conduzindo o doente a situar-se segundo novas formas frente aos outros e a si mesmo (Csordas, 1983).
O presente trabalho situa-se precisamente no contexto dessa problemática: propõe uma análise das abordagens terapêuticas desenvolvidas no quadro do pentecostalismo, espiritismo e candomblé2. Para tal discute casos de pessoas com problemas relativos ao campo da saúde mental que foram ou estão em tratamento em cada um desses universos religiosos, procurando comparar as diferentes possibilidades de reorientação do cotidiano abertas pela participação religiosa. Convém ressaltar que, dada a própria complexidade do tema, esse trabalho não tem a pretensão de produzir conclusões definitivas mas apenas de levantar algumas questões para a reflexão.
O artigo inicia com uma discussão mais geral que visa esclarecer a abordagem adotada e precisar alguns conceitos. Em seguida são apresentados dados relativos aos grupos religiosos estudados bem como os casos de pessoas que foram tratadas ao seu interior. Esse material é fruto de uma pesquisa mais ampla A conclusão busca delinear um quadro comparativo mais geral e levantar algumas questões para estudos posteriores.

O tratamento religioso e a reconstrução do cotidiano: algumas questões iniciais
No estudo dos processos de tratamento ao interior de grupos religiosos se sobressaem duas questões básicas: os modos pelos quais a experiência da doença é reconstruída ao interior do domínio religioso e as formas pelas quais a experiência religiosa de cura é absorvida e repercute no cotidiano.
Vejamos a primeira questão. Estudos sobre os processos terapêuticos desenrolados ao interior de grupos religiosos tendem a ressaltar o papel dos rituais na transformação da experiência da aflição (Geertz, 1978; Turner, 1967,1969,1974, 1975; Tambiah, 1979; Kapferer, 1979a, 1979b, 1991). Os rituais encerram um domínio especial de ação, que rompe com os parâmetros da vida cotidiana e demanda de seus participantes uma mudança de atitude e atenção. Ao mesmo tempo estabelecem um diálogo especial com o mundo dos dramas e aflições cotidianos, representando-o segundo ângulos e versões novas, por vezes surpreendentes e profundamente desconcertantes.
A noção de enquadre, extensamente trabalhada por Goffman (1986), mostra-se particularmente relevante ao estudo da dinâmica ritual, além de permitir a articulação das diversas contribuições de antropólogos e cientistas sociais. Goffman toma o enquadre como um esquema de interpretação que define o que é relevante em uma dada situação, provendo os atores com pistas referentes ao tipo de atitude a adotar frente a ação que desenrola. Assim mais do que um conjunto de informações sobre a situação, o enquadre opera a nível metacomunicativo, apontando para status mesmo da informação veiculada. Nos rituais enquadres são construídos mediante o uso combinado de diferentes meios: música, dança, discurso falado, luz, modos de ocupação e delineamento do espaço. Mudanças nos modos de apresentação desses meios - a substituição do canto pelo discurso falado ou de um ritmo musical acelerado por outro mais lento – por vezes são utilizadas para indicar mudança no enquadre proposto: representam o que Goffman chama de keying (construção de chaves). Essas mudanças funcionam como metamensagens que sinalizam ao ator que a situação deve ser interpretada segundo novos parâmetros. Por vezes um determinado enquadre é transformado ao ser inserido ou calçado (embedded) em outro enquadre, tomado como englobante. Em um certo tipo de ritual de exorcismo em Sri Lanka, documentado por Kapferer (1979, 1991), uma situação inicial em que vários tipos de demônios dançam ao redor da vítima e participantes aterrorizados dá lugar ao chiste e a comédia, ao ser calçada em um enquadre maior, definido pela subordinação dos demônios a entidades benfazejas poderosas. Esse tipo de transformação sistemática pode também caracterizar o modo pelo qual o ritual se apropria de enquadres característicos do mundo da vida cotidiana. Neste caso, uma atividade, relacionamento ou estado vivido e interpretado segundo certos esquemas no cotidiano – a experiência da doença, por exemplo – aparece, no ritual, sob uma nova luz.
A sucessão de enquadres em um ritual por vezes delineia uma trama narrativa complexa. Estas tramas podem constituir certos domínios ao interior do ritual (fases em que a atenção do participantes é dirigida para a história prestes a se desenrolar) ou podem conectar todas as etapas do ritual e mesmo projetá-las para trás (quando o ritual aparece como resolução pública de um drama originado em outros contextos) e para frente (quando o comportamento a ser adotado pelo doente após sua conclusão deve constituir uma resposta a demandas e compromissos aí contraídos, dando portanto continuidade a uma história formulada, ao menos em parte, no próprio ritual). O recurso à narrativa parece ser particularmente importante para a realização do trabalho terapêutico por duas razões básicas. Primeiro porque o desenrolar de uma história traz em si e anuncia logo de início a possibilidade de uma solução ou desfecho típico; toda trama caminha em determinada direção e cria a expectativa de um determinado fim. Segundo, porque no seu desenrolar mesmo a trama faz emergir o personagem (ou personagens), revelando identidades no fluxo dos eventos que se sucedem. Assim narrar a doença em um contexto de terapia religiosa é muito mais que explicá-la: implica abrir um caminho para sua resolução no curso do qual doença e doente podem ser profundamente redefinidos.
Essa conclusão encontra suporte na maioria dos trabalhos sobre tratamento religioso. Conforme já observamos há um consenso na literatura de que, ao tratar, a religião propõe um novo modo de compreender o mundo – não só a situação da aflição mas também as relações com outros e o próprio senso de identidade. O problema está em que a natureza dessa compreensão em geral não é explicitada nos estudos. Dizer que a transformação que as religiões operam na vida de seus adeptos é desencadeada pela aquisição de novos esquemas interpretativos que, uma vez internalizados, reorientam a ação, conduz a uma visão por demais intelectualizada da experiência religiosa e, o que é mais significativo, ao pressuposto – difícil de se sustentar - de que uma mudança de conteúdos mentais (esquemas, modelos, representações) implica em uma mudança de comportamento.
O mentalismo subjacente a esse tipo de abordagem reflete-se em boa parte das interpretações do processo terapêutico desenrolado no contexto de rituais religiosos em que domina a idéia de que a religião atua sobre a maneira como o doente e demais participantes vêem, percebem ou representam a doença. De fato esta idéia não parece refletir nem as expectativas dos membros que tomam parte do evento nem a dinâmica mesma dos rituais em que uma preocupação com a ação ou a performance –com a encenação correta e coordenação precisa entre movimento, música e fala - tem uma nítida prioridade sobre qualquer preocupação com a clareza, coerência ou consistência das explicações propostas (Lewis, 1980; Schieffelin, 1985; Jackson, 1989). Aqueles que participam dos rituais e, principalmente, aqueles que, no papel de doentes, são alvo direto das práticas aí desenvolvidas, não estão em busca de um bom argumento e seu engajamento no drama encenado tem muito pouco de trabalho mental.
A experiência de tratamento que se desenrola nos rituais apela diretamente ao corpo e não ao intelecto: em geral parece se desenrolar através de um envolvimento gradativo em contextos de som, movimento, cores e cheiros. Entretanto, isso não quer dizer que enquanto doentes ou meros espectadores de um ritual apenas reagimos aos vários estímulos a que somos submetidos ao longo da performance. As maneiras pelas quais respondemos a essas solicitações do meio são perpassadas por uma dimensão de sentido, i.e., já fazem parte de uma atividade interpretadora – a possibilidade de que venha a ser tocado ou movido em determinada direção pelo ritmo da música, os passos da dança, o jogo das cores, som e movimento, depende de que esses elementos já façam para mim parte de uma situação. É a essa situação – que nunca é soma de estímulos mas um certo modo de articulá-los – que respondo.
Assim ao invés de falarmos de respostas mecânicas a estímulos sensoriais para dar conta dos modos de envolvimento nos rituais é mais apropriado falarmos de processos imaginativos. Descrições densas das mais variadas composições de imagens nunca faltaram às etnografias de grupos ou movimentos religiosos; nem tampouco o reconhecimento da centralidade dessas composições na configuração da experiência religiosa dos membros (ver especialmente Fernandez, 1978, 1986). Nas performances imagens são combinadas para criar uma variedade de enquadres e inspirar na platéia uma profusão de reações: medo, terror, raiva, despreendimento, euforia, relaxamento. O sucesso do ritual, concluem muitos dos estudiosos, está em sua capacidade de “transportar” os presentes através dessa sucessão de enquadres e reações correspondentes (Levi-Strauss, 1967; Turner, 1967; Kapferer, 1979a; Fernandez, Myerhoff, 1990; E.Turner, 1992). Tratar dos processos imaginativos desenrolados durante os rituais é justamente dar conta dos modos pelos quais os participantes se envolvem e assumem enquanto seus os enquadres engendrados.
Sartre (1996) toma a imaginação como uma atividade de síntese que organiza vários elementos (um dado conjunto de formas, sombras, cores; poderíamos dizer também de movimentos, odores e/ou sons) em uma situação na qual o objeto representado se faz subitamente presente. Ao imaginar alguém, observa Sartre, imediatamente o tenho diante de mim. Não se trata de um trabalho intelectual: a imaginação não formula conceitos ou relações ideais; produz um senso de presença fundado nas qualidades sensíveis do objeto. A imagem de um ente amado que já faleceu suscita de imediato a dor da perda antes que um reconhecimento dos traços ideais do seu caráter e comportamento. Diferente da simples percepção, entretanto, a imaginação envolve uma criação contínua. Nela, diz Sartre, o elemento representativo “é atravessado de ponta a ponta por uma corrente de atividade criadora”(1996.: 30).
É, em grande medida, nesta atividade criadora que repousa a possibilidade de uma transformação da experiência. Uma das análises mais penetrantes de Sartre sobre a imaginação está em sua descrição de um espetáculo de personificação. De início, argumenta, enquanto espectadores, percebemos os elementos que compõem a cena e os tomamos como signos a ser interpretados: são elementos que remetem a categorias típicas de pessoas e ações. Como signos os traços pessoais do ator desaparecem para representar qualidades gerais. Aqui estamos no nível do pensamento abstrato; nos orientamos frente a uma situação típica e a interpretamos como uma cena de imitação, mas ainda não nos transportamos imaginativamente para o universo que ela delimita. É só quando nos vemos emocionalmente envolvidos que essa transposição se opera. No argumento de Sartre, a qualidade afetiva que ligamos ao objeto/personagem imitado logo transpõe-se para o ator: neste momento, frente a nós temos não mais um mímico que representa um personagem conhecido mas a presença mesma desse personagem invadindo a cena. É esse sentido afetivo “que realiza a união sintética dos diferentes signos, é ele que anima sua secura cristalizada, que lhe dá vida e uma certa espessura. É ele que, dando aos elementos isolados da imitação um sentido indefinível e a unidade de um objeto, pode passar pela verdadeira matéria intuitiva da consciência de imitação. Finalmente, o que contemplamos no corpo da imitadora é esse objeto como imagem: os signos reunidos por um sentido afetivo, isso é, a natureza expressiva.” (ibid.: 48-9).
Dois pontos importantes devem ser articulados ao argumento de Sartre se queremos compreender o papel da imaginação nos processos terapêuticos. Em primeiro lugar a imaginação se desenvolve em contextos que pressupõem processos de orientação mútua: repousa em um campo de significados compartilhados, abrindo nele e comunicando através dele certas possibilidades de ser. Isso só é possível – e esse é nosso segundo ponto - porque o sujeito da imaginação não é uma mente, consciência ou subjetividade soberana mas o sujeito/corpo da ação, engajado com outros em uma atividade - ritual - que é fundamentalmente pública. A imaginação é um modo de engajamento corporal no mundo e não um modo de consciência como o pretende Sartre. É uma compreensão lograda com os sentidos; de fato, com o campo unificado dos vários sentidos que é o corpo. Assim, conforme tem argumentado Csordas (1993; 1994), ainda estamos nos movendo em um universo analítico muito limitado quando associamos os processos imaginativos exclusivamente a visão (enquanto o sentido mais próximo do intelecto). A experiência daqueles que se submetem a tratamentos religiosos pode envolver imagens que não aquelas puramente visuais, em que domina qualquer um dos outros sentidos, ou mesmo combinações deles quando, por exemplo, à imagem tátil ou sensação da presença física de um personagem sagrado estão associadas, de forma solidária, imagens olfativas e auditivas (uma certa qualidade de odor e som relativos a personagem). É essa solidariedade entre os sentidos que permite que experiências imaginativas complexas sejam desencadeadas pela solicitação direta a um dos sentidos apenas. Não se trata aqui da comprovação de uma teoria empiricista da imaginação, que a reduz a experiências sensoriais, senão um caso em que tais experiências ganham uma nova dimensão a luz do contexto de significado em que emergem. Se em um ritual a sensação de uma mão pesando sobre o ombro vem acompanhada de certas sensações olfativas é porque ambas experiências sensoriais estão integradas em um contexto definido pela presença de um ente sagrado, portador de qualidades que elas ajudam a retratar.
Na imaginação produz-se um senso de sintonia entre corpo/sujeito e situação em que, por um lado, as sensações, estados de ânimo e intenções esboçadas pelo primeiro parecem emanar diretamente de uma situação preexistente, enquanto uma dada configuração de sentido, e, por outro, a própria situação parece refletir diretamente da perspectiva do sujeito. Estendendo esse argumento podemos dizer que a imaginação está bastante próxima do que Merleau Ponty (1994) descreveu como modo de compreensão em que a significação termina por devorar os signos, rompendo as fronteiras, características do pensamento intelectual, entre esses dois domínios. Ao descrever o espetáculo de personificação, que comentamos anteriormente, Sartre fala do advento de um estado híbrido em que o personagem representado e o ator ameaçam fundir-se aos olhos do espectador via a atividade imaginativa. Ao descrever como possessão este estado híbrido Sartre oferece-nos uma pista para interpretarmos, a partir do conceito de imaginação, as experiências de possessão encontradas e cultivadas em uma gama tão variada de rituais. É na possessão enquanto modalidade singular de imaginação que a fusão entre sujeito e situação, significação e signo, tende a se realizar mais plenamente. Aí a situação parece ser subitamente tragada para o domínio do corpo/sujeito - são sua voz, postura e movimento que definem e desenham o contexto da ação – ao mesmo tempo em que o domínio da subjetividade é invadido pela situação – afinal a possessão é sempre uma experiência de alheamento (total ou parcial) de si, em que o corpo confunde-se com um contexto definido (desde o exterior) pelo ser sagrado que o possui. Neste sentido, a possessão configura uma das modalidades imaginativas em que se produz de modo mais radical a reorientação do comportamento do sujeito segundo o enquadre proposto no ritual3.
O conceito de imaginação nos permite encontrar uma mediação entre os contextos coletivos de ação delimitados pelo ritual e a constituição da experiência dos participantes nesses contextos. Na tentativa de integrar a análise dos enquadres a discussão sobre imaginação podemos levantar dois pontos importantes: 1) identificar os processos de transformação dos enquadres ao longo das performances aponta para os modos pelos quais o ritual pode reorientar o comportamento dos indivíduos, guiando-os através de marcos que possuem um sentido compartilhado; 2) recuperar a noção fenomenológica de imaginação conduz a uma revisão ou pelo menos um esclarecimento da idéia de esquema interpretativo subjacente a discussão de Goffman: o engajamento dos indivíduos nos enquadres propostos em um ritual não é orientado por uma atitude de conhecimento (conforme pode indicar a noção de esquema interpretativo) mas por envolvimento ou imersão na situação que é, em grande medida, logrado com os sentidos. Assim a eficácia da história que é tecida no ritual depende de que seu público possa a um só tempo encarnar o personagem e dar continuidade no cotidiano, também como narrador, a trama que foi apenas iniciada no mundo da prática religiosa.
Neste ponto já nos encontramos frente a questão das relações entre o contexto religioso do tratamento e o mundo da vida cotidiana. De certo modo todo tratamento religioso assim como toda forma de conversão religiosa visa inculcar um novo conjunto de hábitos no paciente/membro futuro (Bourdieu, 1977; B. Turner, 1984; Csordas, 1993), de tal forma que o projeto religioso (de homem são e/ou convertido) se torne um guia permanente para a vida cotidiana, sem precisar ser colocado intelectualmente. Conforme Geertz (1978) tem apontado, de todos os subsistemas culturais, a religião é especialmente equipada para promover a constituição e manutenção de hábitos, na medida que o regime de práticas que suporta é calçado (e legitimado) na relação com um cosmo sagrado. Igualmente importante, a religião provê o indivíduo/fiel com um grupo de referência que sustenta os significados e experiências construidos no contexto ritual, funcionando como uma audiência pronta a reforçar os novos comportamentos e identidades exibidos.
Embora pudéssemos levantar algumas das principais formulações desenvolvidas no âmbito da sociologia e antropologia da religião para compreender os processos de transformação da vida cotidiana desencadeados pela participação religiosa, dificilmente produziríamos uma análise que fosse capaz de dar conta da questão em toda sua complexidade. Aqui preferimos explorar apenas um ângulo do problema: aquele que diz respeito as passagens ou saltos que os membros de uma religião devem continuamente realizar entre o mundo da vida cotidiana e o mundo da participação religiosa, enquanto distintas províncias de sentido.
A partir de uma idéia inicial de W. James, Schutz (1973) argumenta que nossas experiências se desenrolam segundo diferentes e finitos âmbitos de sentido, cada qual com um acento de realidade próprio: o mundo dos sonhos, da arte, da fantasia, da ciência, da religião, da vida cotidiana. De todas estas províncias de sentido o mundo da vida cotidiana constitui para nós a realidade última ou paramétrica: este é o mundo dos objetos que me oferecem resistência e que tomo inquestionavelmente como real, o mundo intersubjetivo da comunicação e relação com outros e principalmente o mundo da ação, dominado pelo interesse prático. Segundo Schutz e Luckmann (1973) uma vez que cada uma dessas províncias de sentido encerra um senso próprio de realidade, a passagem de uma para outra não se dá sem uma sensação de um salto. Ora acontece então que o que era um problema enfrentado em uma dada província de sentido desaparece como problema quando ingresso em outra província: no exemplo dado por Schutz um drama que me aflige em sonho se dissolve quando passo para o estado de vigília, assim como uma questão que enfrento enquanto cientista é posta de lado quando vejo-me preso a tarefas do cotidiano. Da mesma forma, a experiência vivida no contexto de um ritual inevitavelmente perde a significação da qual se revestira quando retorno para casa e passo a me ocupar de obrigações relativas ao trabalho, cuidado com as crianças, etc. Entretanto embora o problema que me ocupara seja assim “neutralizado” quando salto para outra província, deixa, em certo sentido, um oco. Isso significa que posso ainda retomá-lo mas o farei a luz das estruturas de sentido próprias da província em que venho a me encontrar. Diz Schutz ao analisar o processo de explicitação de um sonho no âmbito do mundo cotidiano: “O oco deixado pelo problema do sonho se converteu, então, por assim dizer, em um enclave de um âmbito de realidade com estrutura de sentido totalmente diferente, enquanto foi preenchido por um novo problema: ‘Que significa o sonho?’ Tais enclaves pertencem, em certo aspecto, aos dois âmbitos de realidade. Se situam em um deles e se relacionam com o outro” (Schutz e Luckmann, 1973: 134).
As experiências de ser montado por um orixá, habitado pelo Espírito Santo ou de entrar em sintonia com a energia de outros espíritos têm seu sentido definido em um âmbito de realidade bastante próprio: o âmbito da religião. Quando seus protagonistas (re)ingressam no mundo da vida cotidiana sentem que tais experiências perdem a força e profundidade da qual se revestiram quando vividas no ritual, não há como sustentá-las integralmente fora do âmbito de realidade do qual fazem parte; para muitos resta a sensação de que se tratam de experiências incomunicáveis nos termos da linguagem ordinária. Apesar disso a referência a estas experiências reaparece continuamente no cotidiano: elas são aludidas, descritas, comentadas, avaliadas; objeto de boas risadas ou matéria de discussão e disputa séria em torno do seu significado; base legitimadora para certas demandas e papéis ou fonte para a criação de novos laços. Em larga medida, todas essas ações são logradas através de narrativas – sejam histórias formais para a instrução de uma platéia silenciosa, sejam relatos elaborados coletivamente no contexto de conversas ordinárias.
Através dessas narrativas, a abertura que a experiência religiosa cava no cotidiano é preenchida por questões próprias desse domínio de realidade, interconectada com ações, projetos e interesses que comprazem a vida cotidiana. O efeito disso não é apenas remodelar a experiência religiosa segundo as estruturas de sentido do mundo do senso comum mas permitir que a experiência religiosa venha a servir de guia a ação cotidiana. Afinal as histórias contadas sobre experiências vividas no universo religioso conectam narrativas exemplares tecidas nos mitos e encenadas nos rituais a esfera dos dramas e preocupações diários, fornecendo assim pistas para um exploração ativa do contexto da vida cotidiana.
Vejamos agora como esses pontos podem ajudar-nos a entender experiências de doença e tratamento no candomblé, pentecostalismo e espiritismo.


O candomblé
O candomblé é uma religião fundamentada na busca do encontro com o sagrado via o fenômeno da possessão. É uma religião fortemente marcada por rituais. É na prática ritual que o fiel se familiariza com a cosmologia e aprende seu lugar em uma rede complexa de relações entre o divino e o profano. O ritual busca restabelecer a unidade perdida entre o aiê, o mundo físico, a terra e o e orun, o mundo sobrenatural das entidades divinas ou orixás.
Operando um movimento contrário ao do ritual – que busca reconstruir a antiga ligação entre o aiê e o orum - a doença aparece, na maioria das vezes, como sinal de uma “falta” de ligação, de uma desordem nas relações do indivíduo com o sagrado. Embora estas relações não representem necessariamente a causa direta da aflição, constituem o pano de fundo a partir do qual tanto pode se delinear um quadro de vulnerabilidade quanto pode ser (re)construído um estado de proteção, segurança ou equilíbrio.
Na perspectiva de muitos membros do candomblé as causas das doenças podem ser físicas/materiais ou espirituais – das quais se ocupam preferencialmente os terapeutas religiosos. Na prática os dois tipos de causa tendem a combinar-se. Conforme observa Teixeira, no candomblé, a doença nunca é vista como mera manifestação física mas “comporta sempre uma dimensão mágico religiosa” (1996: 11). Assim embora também tratem de sintomas físicos com o uso de um amplo receituário de ervas medicinais, pais e mães de santo nunca agem apenas sobre a dimensão física da doença. A partir de análise feita por Bárbara (1998) podemos agrupar as causas de natureza mágico-religiosa segundo cinco situações típicas:


  1. A doença pode ser um pedido da divindade para ser propriamente assentada. Conforme os relatos dos membros, as vezes aparecem doenças que a medicina oficial não logra curar e que somem com o ingresso efetivo do doente no culto, i.e. com a iniciação na religião. A loucura é uma das formas em que se dá o chamamento do santo e para alguns está diretamente relacionada a orixás específicos. Entre estes fala-se de Iemanjá, porque rege a cabeça, de Oxossi, devido a sua ligação com o mato e, portanto, com uma esfera de liminaridade4; de Iansã, (devido a sua personalidade tensa e inquieta e a qual provavelmente se associa a quentura que os loucos sentem na cabeça e no corpo) e ainda, bastante significativo, de Omulu ou Obaluaê. Este último é a divindade da varíola, das doenças de pele e enfermidades contagiosas em geral mas também relaciona-se com a epilepsia (considerada popularmente como contagiosa).

  2. A doença pode estar relacionada a um descaso do fiel para com o santo e o terreiro, a um não cumprimento das obrigações que, mediante a iniciação, ligam a pessoa ao seu orixá e ao espaço sagrado em que este está assentado. Alguns membros acreditam que quando relegado, o orixá castiga trazendo o infortúnio, outros dizem apenas que se afasta, deixando seu filho só e sem proteção.

  3. A doença pode também resultar do “assentamento do santo errado”, quando na iniciação não é assentado o orixá que de fato é dono da cabeça do noviço, mas um outro. A feitura do santo errado pode significar tanto a incompetência da mãe ou pai de santo, que não soube ver nos búzios a identidade do orixá que rege a cabeça do consulente (alguns dizem que há orixás que se escondem atrás de outros e cuja identificação, por essa razão, é bastante dificultada) quanto uma intenção por parte do especialista religioso de prejudicar o fiel. Em todo caso dá origem a um estado de desequilíbrio e conflito a nível da própria da identidade, que tem consequências desastrosas.

  4. Também os espíritos dos mortos ou eguns podem provocar a doença. Quando a pessoa é carregada da energia de um egum diz-se que está sofrendo de encosto.

  5. Em muitos casos a aflição não resulta do desígnio direto de uma entidade sagrada mas da ação maléfica de outros. A ação de outras pessoas pode envolver a manipulação de recursos sobrenaturais (com ou sem auxílio de um especialista religioso), o feitiço, ou simplesmente ser resultado de olho grosso, a capacidade que têm certas pessoas de passar influências negativas através do olhar. Embora, no caso do feitiço, ocorra a intervenção de entidades ou poderes sagrados, esta é colocada a serviço da intenção de um ser humano de fazer mal a outrem.

Na origem de toda doença – não importa qual seja sua causa mais imediata - estão situações de vulnerabilidade. Estas indicam que o corpo está aberto, podendo perder axé, energia vital, e receber energias negativas. Conforme já observado o estado de corpo aberto remonta a um desequilíbrio ou ruptura nas relações entre o indivíduo e as entidades ou forças sagradas. A revelação das causas se dá através da divinação, no encontro privado da mãe de santo com o cliente para o jogo de búzios. O tratamento pode comportar desde a utilização de remédios a base de plantas até a iniciação mesma na religião.


Compreender o contexto que conduz a doença e a saúde requer compreender as relações entre o humano e o divino estabelecidas na religião, no cotidiano do terreiro e nos contextos rituais. No candomblé considera-se que cada indivíduo pertence a um orixá que é dono da sua cabeça. Os orixás cultuados em um terreiro correspondem a modelos gerais, cada qual associado a certos elementos da natureza, a cores, dias e sacrifícios, e possuidor de certos traços de personalidade, conforme se pode ver através dos seus mitos. Este modelo geral se diferencia segundo um conjunto de qualidades específicas de orixá, que “são partes ou segmentos da sua própria biografia mítica ou representações de locais em que nessa forma foi ou é cultuado”(Prandi, 1991: 123). Além disso o orixá ou qualidade de orixá se desdobra no orixá específico da pessoa, único e intransferível e que é fixado na cabeça ou ori. O orixá é uma energia, não é visto - o que é visto é o orixá particular de cada pessoa. Este é o único a possuir um erê - qualidade infantil do orixá. O erê, diferente do orixá, é falador e brincalhão como uma criança e frequentemente apronta confusões no cotidiano do terreiro. Na iniciação os noviços são mantidos em estado de erê, que é um transe incompleto, e é assim que aprendem os toques, danças e segredos do candomblé. Além do orixá dono da sua cabeça a pessoa é composta por outros orixás que devem ser assentados em uma série rituais realizados de acordo com o tempo de iniciação na religião. Destes destacam-se o segundo, juntó e o terceiro, adjuntó.
As alianças com os orixás são construídas e reforçadas pela construção de alianças ao interior do terreiro. Aí domina uma hierarquia rígida que, em um primeiro nível, separa os recém-ingressos, ainda novos no santo, daqueles que já são antigos na seita: nas festas são muitos os momentos de reverência a mãe de santo, que para os mais novos envolve arrastar-se ao chão para pedir bênção. Essa hierarquia segue um princípio bastante conhecido de todos: aquele que opera no modelo da família. Como a família, o terreiro acolhe, protege, produz alimento e dá de comer a todos – a cozinha é de fato espaço central em qualquer casa de candomblé – mas o faz segundo uma hierarquia de respeito e subordinação, que se desdobra e segmenta em vários níveis. No cotidiano do terreiro, há sempre um vai e vem de mulheres atarefadas, roupas brancas estendidas ou a passar, trabalho duro na cozinha, preparação para festas e obrigações, tudo se desenrolando sob a vigília da mãe ou pai de santo. Não raro a pessoa em aflição é acolhida nessa dinâmica da casa, passando alguns dias no terreiro e engajando-se em um cotidiano de trabalho, conversa, fofoca, vai e vem de gente. É no contexto dessas relações na família que vão sendo assentados os laços entre o fiel e os orixás.
No candomblé o filho de santo é tido como multiplicidade construída com a ajuda dos orixás (Augras, 1983; Goldman, 1987). É no contexto de uma série de rituais que a construção da pessoa se opera. A iniciação é momento crítico e fundador desse processo; aí o fiel é retirado do mundo das ações e certezas do cotidiano, recolhido na camarinha para aprender os modos de ser da religião. A camarinha é local de sofrimento e provação, fundamentais para que o fiel possa renascer enquanto filho de um determinado orixá. Boa parte do tempo em que permanece na camarinha o noviço é mantido em estado de erê. É como criança que vai sendo introduzido aos ritmos e passos do seu santo. Alguns autores têm apontado para a importância central do som no processo de identificação com o santo, que ocorre na iniciação (Segato, 1995; Barbara, 1998). Podemos dizer que para o fiel o toque do orixá passa a delinear uma situação que é gradativamente aderida ou anexada ao seu corpo: é a esse toque que irá responder nas cerimônias sagradas, através de um engajamento imaginativo que ultrapassa os limites de uma experiência sensorial auto-contida e que, ao invés, envolve o corpo como um todo. É assim que irá vivenciar a possessão.
A possessão envolve uma mudança radical no corpo, que passa a ser ocupado pelo orixá. É principalmente através da dança que o orixá se manifesta, que a possessão o modela no corpo. Na experiência do filho(a)-de-santo a música e a dança estão intimamente ligadas. A dança expressa as características do orixá, conta elementos de sua história (Bastide, 1973; Augras, 1983; Segato, 1995): “a figura humana, tremendo, tem sua postura transformada de acordo com o orixá que toma conta dela: adquire para os orixás femininos da água, Iemanjá e Oxum, uma postura “mais redonda”, no sentido que os cotovelos são alargados a altura do busto que é levemente dobrado para o baixo; para os orixás guerreiros, Ogum e Xangô, exibe uma postura mais reta; para as divindades mais jovens, Ogum, Oxossi e Iansã, volta-se mais para o céu, enquanto para as divindades velhas, Nana e Obaluaê, aparece mais dobrado para o chão.” (Barbara, 1998)
A experiência da possessão, expressa na dança, é assim modulada segundo as características do orixá. Estes, entretanto, não são as únicas entidades que descendem sobre os corpos dos fiéis. Conforme observamos existem os erês, entidades infantis, brincalhonas e desordeiras, que ainda não foram socializadas. Externos ao universo das religiões africanas existem também os caboclos, espíritos nacionais que se dividem segundo as classes dos índios e boiadeiros. Orixás e caboclos diferem bastante em sua maneira de se comportar e relacionar com o mundo humano: enquanto os primeiros são altivos e distantes, comunicando-se primordialmente através da dança (e portanto da música que reproduz sua identidade sonora particular), os caboclos são mais próximos, conversam, dão conselhos; no geral, gostam de beber, fumar e, muitas vezes também, de tomar conta dos corpos de seus carnais de forma violenta e descontrolada. Há similaridades importantes entre caboclos e erês: ambos expressam a dimensão do carnavalesco, da ruptura com as fronteiras rígidas via o humor e da substituição da formalidade e distância pelos riscos e incertezas advindos das relações entre próximos (Wafer, 1991). Estas diferenças são vividas pelos fiéis também enquanto experiências de possessão bastante distintas. Em quase todos os terreiros há festas próprias para os caboclos e em muitos ritos, após os orixás, canta-se para esta classe de espíritos nacionais. Segundo alguns adeptos do candomblé, quando os caboclos “descem” mantêm seus carnais durante certo tempo em estado de semi-consciência: ao mesmo tempo incapazes de controlar o corpo – que os caboclos gostam de jogar e manipular com certa dose de violência – mas de certo modo ainda capazes de assistir enquanto espectadores a esse movimento e de sentir ou sofrer as sensações – muitas vezes de dor – que provoca. A possessão pelo orixá, ao contrário, implica, ao menos enquanto ideal, perda total de consciência.
Ao adentrar o mundo do candomblé o fiel passa a experimentar nos rituais possibilidades novas e diferentes de ser que pode descobrir e explorar a cada nova performance. Diz Prandi: “na iniciação (...) o filho-de-santo deixa modelarem-se os seus eus sagrados, cuja validade social, no entanto, só faz sentido dentro do grupo religioso. Ao integrar-se no grupo, seu eu social passa, por conseguinte a contar com uma enriquecedora expansão, através do processo ritual de multiplicação e justaposição dos eus sagrados” (1991: 182). Para os fiéis as performances não apenas recriam ou reativam o tempo mítico mas passam a fazer parte, elas mesmas, de uma história. Esta é a história em que gradativamente se revelam particularidades do orixá ou do caboclo de cada um – um modo próprio e singular de dançar e, no caso dos caboclos também de comunicar-se, de expressar e desenvolver preferências frente à platéia – e em que se mostram diferentes momentos ou fases na relação das entidades com seus carnais. Tais momentos podem ser regidos por um calendário religioso, como os ritos de assentamento de santo realizados aproximadamente de acordo com o tempo de iniciação do fiel ou podem simplesmente indicar uma situação particular nas relações do fiel com a entidade (como nos casos em que uma possessão muito violenta é sinalizadora do não cumprimento de obrigações rituais). Essa história que é construída nas performances e que as revela de acordo com uma sequência muitas vezes se expande para além do ritual, povoando a vida do terreiro. Assim caboclos, erês e mesmo orixás vez ou outra misturam-se ao cotidiano da família de santo, trazendo revelações, operando façanhas ou simplesmente dando o ar de sua graça. Da mesma forma também expande-se para o mundo privado dos sonhos, em que as entidades mostram aos seus fiéis novas facetas de sua personalidade, mandam avisos e revelam vontades a cumprir. Conforme Segato (1995) a valorização dos sonhos no candomblé cumpre uma dupla função: por um lado permite que o sonho possa enriquecer – e assim reavivar – o mito, sinalizando para características do orixá particular; por outro permite que o mito venha a integrar a própria identidade.
Em seguida passamos a uma rápida apresentação de uma história de doença e tratamento ao interior do candomblé

A história de Ritinha

Moradora de um bairro pobre de Salvador, Ritinha tem dois filhos pequenos que vivem com ela e o pai, seu atual companheiro. Tem 28 anos, é negra e robusta; em geral extrovertida e bem humorada. Como ele mesma reconhece tem um temperamento forte e não leva desaforo para casa. Quando adolescente esteve internada em um hospital psiquiátrico, tida como maluca. Hoje em dia, pertencente ao terreiro de João Luís, está ingressando, ela mesma, na carreira de mãe de santo. Seu caboclo, Boaideiro dá consulta e faz trabalhos e Ritinha já promoveu duas sessões de caboclo em sua casa. Está juntando dinheiro e contribuições para comprar os atabaques próprios do candomblé.


Ritinha cresceu no meio do candomblé: sua mãe era filha de santo e frequentadora ativa de um terreiro no bairro. Quando esta morre, Ritinha, ainda menina, vai morar com uma tia pentecostal. Logo começa a ter ataques, que as pessoas dizem ser epilepsia. As crises tornaram-se frequentes, com estertores e enrijecimento físico, sem que ninguém identificasse sua origem – os exames médicos não confirmam o diagnóstico de epilepsia. Para sua tia trata-se de “coisa do diabo”, manifestação que ela combate espancando a sobrinha para expulsar o demônio.
As crises aos poucos impedem Ritinha de trabalhar: não consegue manter-se em nenhum emprego. Nessa trajetória cada vez mais pessoas concordam com a hipótese de loucura: “Aí quando eu comecei a trabalhá no salão, eu ia, ficava muito bem fazendo as unhas das, das cliente daqui a pouco não via mais nada. Aí o povo me dizia que era, que eu... ficava feito louca, me lascava toda... que me jogava pelo chão... e e ...ia em cima dos outros, isso eu fiquei, ... dois meses, dois meses fazendo isso. Aí, fiquei dois meses trabalhando lá, assim nessa maluquice, tendo essa... Aí depois ela (a dona do salão) disse que eu tinha poblema mental, que eu não podia ir mais trabalhá lá”. Para por fim ao problema a tia decide interná-la, sem o conhecimento da família. Então, Ritinha tem apenas 15 anos.
É devido a interferência de seu pai que Ritinha termina por receber alta do hospital, após uma semana de internamento. Este consulta José Lins, atual pai de santo de Ritinha e fica sabendo que ela está internada em um hospital psiquiátrico embora seu problema seja de santo. Logo após sua alta, Ritinha é levada a alguns candomblés grandes e prestigiosos da Bahia mas, frustando as expectativas do pai, não dá santo em nenhum deles. É no candomblé de José Lins, terreiro do bairro, relativamente pequeno e sem grande fama, que ela vem a manisfestar. Conforme conta, bolou em uma festa e só acordou três meses depois, já iniciada. “Quando ele (o pai) me troxe aí na casa de José é foi que eu bolei , não levantei mais. Só levantei depois de três meses de raspada. (...). Aí, fez o santo... porque aí... desse tempo pra cá não tive mais maluquice, a maluquice passô”.
O candomblé produz um re-enquadramento da experiência de aflição vivida por Ritinha: trata-se de chamado de santo. Ritinha é filha de Obaluaê, o orixá que retém o poder da doença e da cura. Mais comumente relacionado a doenças de pele – Obaluaê tem o corpo coberto de chagas, é conhecido como o deus da varíola – ele é também identificado com ataques epilépticos, que alguns pais e mães de santo consideram como uma doença típica de Omolu/Obaluaê (Caprara, 1998). Caracterizada por movimentos espasmódicos a dança desse orixá parece elaborar a analogia com o ataque epiléptico: mais que estabelecer uma associação lógica entre a realidade sagrada e a realidade médica, entretanto, opera enquanto metáfora encarnada transformando os termos da analogia e modificando radicalmente a experiência da aflição.
Os ataques de Ritinha traem sua ligação com Obaluaê: no contexto ritual são transformados quando calçados no modo de expressão típico desse orixá. A iniciação, entretanto, não estabelece para Ritinha uma relação de perfeita identificação com seu santo. Este, diz ela, é um orixá fechado, raramente responde as perguntas que o pai de santo lhe faz no jogo de búzios. Mas já lhe apareceu em sonho, dando aviso e procurando intervir positivamente no seu futuro. “Eu sempre sonhei com ele assim, velho, alto, negro quando eu sonhava com ele era assim... sem dente, todo ferido...”. Ritinha responsabiliza seu Obaluaê pelos momentos de depressão, em que se isola e põe-se a chorar sem uma razão definida.
O juntó de Ritinha é Oxum. Este orixá caracteriza-se por ser símbolo do poder feminino e da gestação, uma grande mãe suave, sensual e também uma corajosa guerreira. Essas características não são muito próprias a Ritinha, que está longe de encarnar um modelo feminino e sensual. Toda essa distância entre Ritinha e Oxum, pode ser percebida na sua relação com o orixá. Ritinha fala abertamente que não gosta muito de pessoas de Oxum, pois as considera falsas. Além disso, diz que não gosta de receber sua Oxum, que chora muito antes de ser possuída por essa divindade. Nas festas de José Lins, quando se canta para Oxum, Ritinha se contorce e bate na própria cabeça antes de entrar em transe, para não ser possuída por essa divindade. Diz ela: “eu não gosto de tá dando santo... Eu não gosto. Não sei se você já reparou, aí na roça todo mundo dá tudo, todo mundo dá tudo primeiro e você me vê sempre mais... recuada. Eu não gosto, é uma coisa... É uma coisa que já vem de mim. Essa Oxum minha, eu tenho uma Oxum no meu juntó, pra eu dá essa Oxum, eu choro tanto.... Parece que tem um negócio que me abafa, eu choro tanto, que eu não quero dá... é uma coisa que eu me prendo pra não dá e quando eu não guento mais é que me pega, que eu choro, acho que eu gasto todas as lágrimas que eu tenho... dos meus olhos.(...) É antes dela me pegá, é... eu fico assim. Então, acho que ele (Obaluaê) é exatamente igual a mim, não tem, não tem... não qué muita conversa”.
Ritinha tem uma relação bastante próxima com seu caboclo Boiadeiro, relação que apresenta-se, na maioria das vezes, com um razoável nível de tensão. Ao tempo em que é a entidade que mais lhe inflige castigos Boiadeiro é também um provedor importante, muitas vezes sua única fonte para o pão de cada dia. “Esse caboclo mermo, se eu pudesse não dava mais ele. [Você não gosta dele, é?] Não, eu gosto, porque hoje em dia quem tá me dando o pão do... de cada dia dos meus filho, praticamente é ele. É. Porque as vezes eu tô aqui calada... num vem com muito não, mas ói... seu... aqui ói trouxe aqui esse dinheiro que seu caboclo mandou... pra comprá uma vela pra ele. Aí eu compro uma vela e sempre sobra da vela, eu já compro o leite de meus filhos, tá entendendo? Então muita coisa eu arrelevo dele por causa disso. Mas ele não é dos meus... porque eu queria que ele não viesse assim...e ficasse assim... anos sem vim, mas não, bate na pia, bate na lata... ele tá lá, que ele gosta de... (fulia) é com ele mermo, ele tá ali, entendeu?”
A dimensão vivida da possessão guarda uma “qualidade” própria que Ritinha descreve a luz de uma metáfora retirada do domínio das relações amorosas: “E isso me faz mal, eu não gosto, não me sinto bem. [Você sente como quando ele (o caboclo) sai?] Me sinto assim... vazia. É isso, porque é assim... até eu aceitá ele, do jeito que ele é, vai ser assim... Sinto um vazio. Vô dizê: você gosta de um rapaz... [Certo.] Aí cê com aquele rapaz, transa com aquele rapaz, aí quando você tá ali com ele, você... tá se sentindo forte, né? Quando ele sai você se sente assim... só, se sente assim abandona, se sente assim vazia... É assim que eu me sinto, quando esse caboclo vai embora, é assim que eu me sinto”.
Os problemas na vida de Ritinha não acabam com a iniciação. Pouco tempo depois de iniciada ela começa a namorar um rapaz e se casa. O marido impõe-lhe sérias restrições no que toca a sua atividade no terreiro. Certa vez resolveu participar de uma festa na roça de José Lins, aproveitando a ausência do marido que estava viajando a trabalho. Mas ele sente-se mal nesse dia e volta para casa antes do esperado. Ritinha é avisada do seu regresso por uma vizinha mas o santo de José Lins a proíbe de deixar o terreiro até que sejam concluídas as festividades. Ritinha permanece “virada” de erê durante os três dias da festa. Retornando a sua casa, é surrada pelo marido.
Quando procura afastar-se do candomblé é a vez do santo lhe surrar. Um dos seus conflitos com o candomblé – e foram muitos - lhe traz consequências desastrosas. Ritinha conta que não queria mais ficar metida na seita mas não conseguia se desvencilhar. Ia ao candomblé, mesmo quando não queria. Certa vez, tinha uma festa para ir na rua e tinha também uma festa no terreiro de José Lins. Ela decide ir a primeira mas no caminho é possuída por Boiadeiro. Este a leva para o mato, faz com que rasgue sua roupa e se cubra de folha de cansanção. “Eu disse que não ia pra sessão, que eu ia sair, que não ia pra porra de sessão nenhuma, me lembro minhas palavras. Não vi mais nada. Daí apanhei, disse que ele [o caboclo] foi pro mato, chegou nas, nos mato tinha uma ruma de cansanção, oxente, disse que tirou minha roupa toda, fiquei só de calçola e sutiã. Diz que ele passou a ruma de cansanção na... aqui por debaixo (em baixo do braço), do lado de cá, por dentro das perna, dentro da calcinha, no meio das pernas... fez uma roupa, de cansanção. Meu rosto era isso aqui (coloca as mão próximas ao rosto indicando o quanto estava inchado) Inchado. E ficou por lá por dentro das matas, até a hora de começá o candomblé. (...)Dali até aí na roça apanhando.” .É assim que chega ao terreiro para experimentar ainda mais sofrimento. O caboclo lhe dá uma chimba (surra), lançando-a violentamente contra o chão e fazendo-a bater a cabeça contra a parede. Algumas de suas irmãs de santo, comovidas e chocadas, lançam-se aos pés de João Luís, chorando, para que ele interrompa o transe. O pai de santo permanece inflexível, o castigo é merecido. “E o pió é quando ele deixa a gente assim lúcida, sabe? Porque ele vai batendo e... bate e vai embora pra gente senti a dor. E depois volta de novo pra bater novamente, entendeu?” No final da festa o estado de Ritinha é tão lastimável que José Lins decide mantê-la virada no erê, para que possa se recuperar sem muita dor. Ela termina por se separar do marido e desiste de lutar contra seu destino no candomblé.
Ritinha relaciona os acontecimentos de sua vida com o santo. Não consegue se manter num emprego por mais de um ano pois sempre acontece algo que a tira do trabalho. Diz que essa é a vontade do santo que não quer que ela trabalhe para os outros, mas para ele. Conversando conosco no início do ano Ritinha explica que tem um cargo de mãe de santo, que precisa assumir. Com o tempo passa a investir seriamente nesse projeto no candomblé. Começa a dar consulta, jogar os búzios para clientes eventuais e fazer trabalhos de limpeza. Em geral trabalha com Boiadeiro. É assistida nesse empreendimento por uma amiga, Marina, que mora no bairro e que se diz madrinha do caboclo. É Marina quem agencia tudo quando Ritinha está virada. Ritinha reclama que Boiadeiro ainda não lhe permite cobrar dos clientes: é parte de sua missão passar um tempo atendendo de graça. Entretanto, sempre entra um agrado dos clientes satisfeitos, o que lhe permite comprar material para a sessão (charutos, perfume, etc) também reservar algo para sua casa e filhos. Boiadeiro não cobra mas pede cerveja: ele e Marina são capazes de tomar todo um engradado após a realização de um serviço. Ritinha reclama que o caboclo e sua amiga se divertem bebendo e não sobra nada para ela.
Os modos de Boiadeiro são, em grande medida, discrepantes, do comportamento esperado de uma mãe de família. Além de apreciador de farra e bebida, o caboclo não demonstra afetividade para com as crianças de Ritinha; ao contrário as suas traquinagens tiram-lhe do sério. Certa vez, irritado com a presença de um dos garotos que atrapalhava a consulta, Boiadeiro deu-lhe um tapa tão forte que o lançou para o outro lado da sala.
Em abril Ritinha dá a primeira sessão em sua própria casa, bastante pequena e ainda em construção. Apesar da improvisação – o teto da casa é lona que não retém a forte chuva da noite, na falta de atabaque improvisa-se com um balde de plástico - corre tudo bem. Segundo Ritinha só veio gente séria, não teve “baixaria”. O próprio José Lins comparece. A sessão acaba cedo mas Boiadeiro continua bebendo até de manhã com Ana Maria e alguns outros. A segunda sessão ocorre em maio, já mais organizada em termos de infra-estrutura material. A pequena sala enche de gente, em sua maioria mulheres. O evento é considerado bem sucedido. A realização de uma próxima sessão é colocada na dependência de Ritinha angariar contribuições suficientes para comprar os tambores.
O Boaideiro de Ritinha não é apenas um personagem mítico de uma história individual, privada. Faz parte do cotidiano e da história de muita gente em cuja vida participa como conselheiro, paquerador e mesmo companheiro de farra. Muitas das mulheres tem casos a contar sobre Boiadeiro, e já estabeleceram com ele uma relação que aparentemente não necessita da mediação ou intervenção de Ritinha. Também é assim com Soldadinho, o erê que Ritinha incorpora. Como todo erê ele é criança buliçosa, traquina, desrespeitosa e gozadora da autoridade, mas capaz de grandes feitos. Soldadinho ganha presentes de Ana Maria, guloseimas que adora, como recompensa pelo sucesso que lhe proporciona nos seus empreendimentos. Apronta peças no candomblé de João Luís e demonstra verdadeiro horror aos homossexuais que pertencem ao terreiro. A relação de Ritinha com essas entidades parece proporcionar-lhe acesso a um conjunto variado de experiências e relações sociais, a partir dos quais sua vida se compõe e recompõe enquanto teia de múltiplos caminhos e possibilidades.



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