Língua, texto e ensino Outra escola possível



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PARTE III

O ENSINO DE LÍNGUAS SOB NOVOS OLHARES
Capítulo 10

E SE OINSINO DE LÍNGUAS NÃO PERDER DE VISTA AS FUNÇÕES SOCIAIS DA INTERAÇÃO VERBAL?

...

Este capítulo retoma, com substanciais alterações, uma reflexão que apresentei na 48a Reunião da SBPC, em julho de 1996, e publicada no Boletim 19 da ABRALIN.

...
Referi-me, logo no final do capítulo anterior, à ta­refa de redigir como sendo uma tarefa que a escola tem penalizado porque a tem compreendido mal. Mas, a tem compreendido mal, por quê? Em que sentido?

Tentemos buscar uma resposta a essas perguntas.

Primeiramente, tomo como fundamentos teóri­cos três pontos, dos quais passo a apresentar uma recapitulação em sumário desenvolvimento.

1. Padrões linguísticos e exercício da atuação verbal

Qualquer perspectiva da teoria linguística dá conta de que subsiste e subjaz a toda experiência de interação verbal um conjunto de regras que estabelecem os modos de escolha e organização das unidades, de maneira que seu conjunto faça sentido e possa funcionar comunicativamente. Se é verdade que a atividade verbal ultrapassa os limites do linguístico, não é menos verdade que, sem a materialidade das palavras, não há o exercício

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da linguagem verbal, como é verdade também que tais palavras se devem compatibilizar de acordo com padrões morfossintáticos - além de outros semânticos e pragmáticos - mais ou menos estabelecidos.



O exercício da interação verbal, por conseguinte, não se faz sem pala­vras e não se faz aleatoriamente. Obedece a padrões, a regularidades de diversas ordens.
2. A atividade interativa e as condições de aquisição desses padrões

A apreensão dos padrões de escolha e organização das unidades da língua somente acontece se o sujeito se submete ao uso da língua, na forma necessária da sua textualidade. Ou seja, segundo se expressa Sch­midt, em seu livro Linguística e teoria do texto, de 1978, é na condição da língua-em-função que se apreende todo o conjunto dos padrões de uso da língua. Não os padrões pelos padrões, mas os padrões que estão ligados à produção do sentido e às utilizações com que podem funcionar na atividade verbal que as pessoas empreendem no cotidiano. Padrões funcionais, portanto. Padrões do uso, que, por isso mesmo, estão im­pregnados de historicidade.



Logo, falando, ouvindo, lendo, escrevendo é que vamos incorporando e sedimentando os padrões da língua. Não há outro jeito!
3. A interação verbal e as condições de explicitação das regras da língua

Em relação às regras que definem esses padrões, uma tarefa da es­cola consiste em providenciar a sua crescente explicitação, na pretensão única de assegurar ao sujeito aprendiz uma atuação verbal cada vez mais relevante e coerente (monitorada, também, quando for o caso). À escola cabe, portanto, desvendar (quer dizer, 'tirar do escondido’) os modos de funcionamento da língua; abrir esse universo para que as pessoas possam ver suas regularidades, suas estratégias e táticas de uso.

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Essa pretensão será conseguida na medida em que essa explicitação, esse desvelamento tiver como parâmetro as ocorrências textuais e o caráter inte­rativo de tais ocorrências. Já que não interagimos pelo uso de frases soltas, somente o sentido conferido pela funcionalidade das atuações discursivas pode emprestar relevância e aplicabilidade à atividade metalinguística de ex­plicitação de regras e de padrões gramaticais. As frases têm sentido enquanto fragmentos dessas atuações e, aí, não estão soltas; interdependem-se.

Por exemplo, apenas apresentar o quadro dos pronomes pessoais, na sua múltipla classificação, é insuficiente e adianta muito pouco. Adian­taria ver, em diferentes gêneros orais e escritos, formais e informais, de que maneira os pronomes aparecem na sequência do texto; onde costumam aparecer; onde e por que convém que não apareçam; que efeitos seu empre­go traz para a continuidade e coerência; que diferenças podem apresentar nesse ou naquele gênero de texto; quando, em lugar do pronome, podería­mos recorrer a uma elipse; que consequências traria o mau emprego do pronome; o que seria 'um mau emprego do pronome' etc. O estudo cen­trado em pares de frases - reduzido à substituição de substantivos por pronomes - não é capaz de dar respostas a essas e a outras perguntas. Tampouco, é capaz o estudo apressadinho, em duas ou três aulas - apenas para cumprir o programa - sem o suporte de textos, de muitos textos, de diferentes gêneros, para serem minuciosamente analisados.

Por essas considerações, fica claro que não está em questão, em nenhuma proposta de nenhum lin­guista, retirar a gramática da programação do ensino. Nada mais simplista e sem fundamento do que a ideia de que "já não é para ensinar gramática". Impossível. Não existe língua sem gramática. O que está em ques­tão, na proposta de um ensino mais relevante, é a perspectiva a partir da qual se veja o funcionamento interativo da língua, quer na dimensão de seu voca­bulário, quer na dimensão de sua gramática, quer, ainda, nas regularidades de construção e organização de seus diferentes tipos e gêneros de textos.

...


O nó é se saber qual é a gramática que se deve ensinar. Qual é aquela que já se sabe e o que fazer para ampliá-la e entendê-la melhor.

...
Assim, se considerarmos a linguagem nas suas funções de interação, outra perspectiva não podemos adotar em seu estudo senão a das efetivas experiências da comunicação dialógica.

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Vejamos a seguir um pouquinho de como se comportam os alunos quando o objeto de estudo que lhes é apresentado não parece fazer parte de sua experiência de usuário da língua. Vejamos também a qualidade de seu desempenho quando, ao contrário, lhes é proposta uma atividade que corresponde às suas experiências de atuação comunicativa.
4. Análise de uma experiência de avaliação

Na tentativa de apreciar a pertinência concedida aos três princípios apresentados atrás, tomei, aleatoriamente, quarenta exercícios de avalia­ção realizados por alunos do ensino fundamental da cidade de Recife, PE, numa prova realizada pela Secretaria de Educação do Estado, em 1994.


Minha avaliação constou do seguinte:

- num primeiro momento, procurei avaliar a correspondência esta­belecida pelos alunos entre elementos de metalinguagem solicita­dos nos comandos das questões e as soluções por eles encontra­das. Ou seja, que respostas os alunos construíram para as questões metalinguísticas propostas a partir de frases retiradas de um texto anteriormente apresentado;

- num segundo momento, procurei avaliar, igualmente, a correspon­dência estabelecida entre questão e resposta, só que, agora, em re­lação a uma solicitação de caráter eminentemente textual e discur­sivo, devidamente situada e contextualizada.

Vale a pena informar que as questões de ordem mais metalinguística - as primeiras aqui analisadas - vinham a seguir à apresentação de um pequeno relato, no qual se narrava o que aconteceu a uma família que dormia tranquila numa noite de chuva. Entre outros pormenores, a narra­tiva dava conta de que algumas goteiras caíam sobre os móveis e de como os meninos dessa família participavam do acontecimento.


5. Pois bem: a que conclusões cheguei?

Os resultados apontaram, no primeiro momento, para uma nítida, ex­pressiva e desconcertante discrepância entre a solicitação feita e a relevân­cia funcional da resposta apresentada.

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À guisa de exemplificação, selecionei três questões e, para cada uma, algumas das respostas que me pareceram mais salientes.


A questão 1 era constituída do seguinte:

Leia a frase a seguir e retire dela o que se pede:

Os móveis ficavam molhados por causa das goteiras.

a) Sujeito:

b) Predicado:

Soluções encontradas pelos alunos para a questão 1:



    1. Sujeito: molhados

Predicado: goteiras

    1. Sujeito: molhados

Predicado: móveis

    1. sujeito: moveis goteiras ficavam

predicado: molhados por causa

1.4. sujeito: menino

predicado: virava gostava de goteiras.


    1. Sujeito: Os moveis ficavam

Predicado: molhados por causa das goteiras

1.6. Sujeito: os sujeito ficavam molhados da goteiras

Predicado: os predicados ficavam molhados por causa da goteira
A questão 2 pedia:

Reescreva a frase abaixo, colocando o verbo nos tempos indicados:

Os mais velhos ficam aborrecidos.

Passado:.

Futuro:...
Soluções encontradas para a questão 2:

2.1. presente

Onipotente

2.2. Os mais novos vicaram aburrecido

Os mais velhos ficaram alegre

2.3. Ficam aborrecidas

As mais velhas

2.4. Os mais velhos ficol aborrecidos

Os mais velhos ficam aborrecidos.
A questão 3 constava do seguinte:

Observe:


As panelas eram poucas para tantas goteiras e elas terminavam transbordando.

O pronome elas está no lugar da palavra....

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Soluções apontadas para a questão 3:

3.1. as meninas

3.2 terminavam,

3.3. mulheres

3.4. feminina

3.5. não

3.6. sim

3.7. elas terminavam

3.8. estava

3.9. aquelas

3.10. elas

Uma análise - ainda que sumária - da correspondência pretendida en­tre os comandos dessas questões e as soluções encontradas evidencia que o aluno descartou qualquer apelo ao sentido, às relações textuais - retros­pectivas ou projectivas - e, até mesmo, às evidências mais elementares da coerência. Mostra que o aluno não se deu, minimamente, à busca pertinente do conteúdo da solicitação e deixou de lado qualquer apoio a seu conheci­mento de mundo. Evidencia ainda que não houve, por parte dos alunos ana­lisados, levantamento de hipóteses de solução, de possíveis alternativas de resposta. Na verdade, os cálculos mais elementares não foram levantados - nem mesmo aqueles que acontecem numa adivinhação corriqueira.

Se nos detivermos nas respostas dadas à questão 3, constatamos que se perdeu aí, inteiramente, o sentido das relações referenciais entre os grupos nominais postos em questão (vejamos a substituição de 'elas' por 'as meninas', 'terminavam', 'mulheres', 'feminina'), o que deixa sem suces­so qualquer tentativa de compreensão mais global do enunciado. Ou seja, com base nas soluções apontadas pelos alunos, teríamos, por exemplo:

As panelas eram poucas para tantas goteiras e as meninas termina­vam transbordando.

As meninas transbordando? Nesse contexto? Como é que pode? Cadê o sentido? De que maneira restabelecer qualquer tipo de coerência em um enunciado desse tipo?

E se substituíssemos o pronome elas por feminina? As panelas eram poucas para tantas goteiras e feminina terminavam transbordando.

Nem mesmo o sem-sentido evidenciado foi capaz de acender o alerta dos alunos sobre a ilegitimidade da resposta que estavam dando, sem fa­lar na discordância morfossintática à vista.

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O resultado desse exercício, semelhante a tantos outros, está aí: a pro­dução de fragmentos sem sentido, fora de qualquer aproximação coerente com os elementos da situação posta. Como se não estivesse em jogo uma atividade de linguagem. Como se escrever fosse apenas uma tarefa de pre­encher, não importa como, as linhas deixadas em branco no papel. Como se a gente pudesse admitir que solicitação e resposta não constituem um par de enunciados, cujos elementos se condicionam mutuamente ou que, para qualquer solicitação, pode caber qualquer resposta. É como se a gen­te pudesse admitir que as palavras prescindem dos limites de sua própria definição semântica e de sua eventual dependência em relação ao texto e à situação em que ele ocorre.

As soluções apresentadas são um absurdo linguístico. Mais: um absur­do comunicativo; algo estranho ao cotidiano da fala desses alunos, mas que parece ter-se instaurado como coisa costumeira na prática da escola:

- que tem desconsiderado a funcionalidade da língua, a sua condição de prática social interativa, a serviço do mais amplo entendimento humano;

- que tem desconsiderado a atividade de análise do sentido e da coerência linguística e pragmática - com que as coisas são ditas.

Sei que não estou dizendo novidades. Mas creio que é preciso insistir na advertência de que ainda persiste na escola uma espécie de miopia para reconhecer que a explicitação dos aspectos morfossintáticos da lín­gua - absolutamente imprescindíveis ao adequado exercício verbal, como disse - aconteceria deforma mais produtiva se levássemos os alunos a co­locarem, como parâmetro de validade, os usos reais da língua, as coisas que dizemos para nos fazer entender e agir no dia a dia.

A miopia a que me referi no parágrafo anterior é muito cômoda, pois exi­ge pouco de quem ensina: as nomenclaturas quase não mudam; é paralisan­te, pois o que não é visto não é aguçado e, assim, deixa de haver crescimento. Muito mais, ainda, na etapa do ensino fundamental, quando determinadas nomenclaturas e classificações metalinguísticas soam esquisitas, ininteligí­veis e podem resultar avessas e odiosas. No entanto, essa miopia é lucrativa para uns tantos (não os mais desfavorecidos socialmente, é claro!).

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Mas o que pude constatar no segundo momento da análise pôs abaixo toda essa "desgovernança" linguística dos alunos. De fato, o segundo mo­mento da avaliação - aquele em que se tomou uma questão de natureza textual - revelou-se inteiramente significativo, pois as discrepâncias e a falta de sentido percebidas na etapa anterior desapareceram completa­mente. Evidentemente, quando as solicitações tiveram como objeto a pro­dução de um gênero, devidamente contextualizado e fazendo sentido na situação em que figurava circular, a escolha e a organização das palavras funcionaram de forma totalmente adequadas; sem aquelas discrepâncias com que, na mesma situação de avaliação, as respostas foram dadas.

A questão em análise foi a seguinte:

Escreva no balão o que Cascão pensou sobre o que a Mônica fez.

A solicitação era feita a partir de uma história em quadrinhos, que mostrava a Mônica, de olhos vendados, brincando de cabra-cega com seus amiguinhos. Na tarefa de encontrá-los, Mônica pôs-se a andar, tateando e, depois de algumas voltas, acreditou ter encontrado Cascão ao se aproxi­mar de um porquinho mal cheiroso. Satisfeita, gritou:

- Achei Cascão.

Daqui derivava a questão da prova: os alunos teriam que escrever em um balão o que Cascão teria pensado do fato de Mônica o ter confundido com um porco.

O interessante é constatar que os mesmos alunos que produziram aquelas respostas anteriores, tão desprovidas de sentido e de qualquer coerência contextual, apresentam, agora, soluções coerentes, expressivas, contextualmente pertinentes, peças de linguagem, no seu verdadeiro senti­do e no seu melhor estilo.

Vejamos algumas das respostas dadas pelos alunos:

"Aquela dentuça mim confundindo com um porco";

"Me confundio com um porquino que xera mal";

"eu posso ser jujo mais pra pensar que eu sou um porco";

"Mónica não gostei da pallaçada";

"não achei graça monica não quero brincar mas"

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"a monica pensou que eu fosse um porco."

"já pessou monica pessou que eu era um porquinho"

"Só porque eu não tomo banho ela vai me confundir com um porco."

"Ela está achando que eu sou o que Um porco é?"

"Eu acho que ela pensou que eu estava ali por riso."

"Ela pensa que eu sou um porquinho. Ela é uma gorda, dentuça."

"Ela pensou que fosse eu mais não foi que raiva"

"Ela esta me chamando de porco so porque não tomou banho"

"Não gostei da piada sem graça!"

"A Monica pensava que o porco era eu Ela estava muinto errada só porque cheiro mal."


Tem sentido, não tem, cada coisa que os alunos escreveram nos ba­lões? Diferentemente do sem-sentido, dos disparates que esses mesmos alunos disseram em repostas às outras questões, tudo aqui tem sentido, é coerente, tem expressividade e relevância comunicativa. As dificulda­des mais salientes são apenas de natureza ortográfica - ou pouco mais, o que facilmente pode ser resolvido. Ou seja, nenhuma discrepância foi identificada, quando se tratou de dar "fala" a personagens de um evento comunicativo, cujas condições de realização são inteiramente previsíveis na vida de todos nós, na língua que a gente fala.
6. O que se poderia pensar a partir desse quadro?

Primeiramente, valia a pena perguntar o que se pretende assegurar com o tipo de ensino que prioriza nomenclaturas e classificações meta- linguísticas de palavras e frases. Seria, por acaso, a exclusão de um grande número de pessoas do processo de construção da cidadania, no qual in­tervém também a adequada e relevante atuação verbal? Seria o despres­tígio da carreira de magistério, que se prestando, assim, a um trabalho tão pouco significativo justificaria socialmente os níveis de preparação institucional que obtém e as cifras salariais que alcança? Seria a redução e o falseamento do fenômeno linguístico, esvaziado, desse modo, de suas funções sociais e histórico-políticas? O que se pretende assegurar com esse tipo de ensino, afinal?

Evidentemente, nenhuma escola confessa que tem esses propósitos. Mas, no fundo, são eles que sustentam a prática escolar de salas superlo­tadas, sem tempo (dos professores e dos alunos) para a leitura, sem tem­po

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para a escrita devidamente preparada, planejada e revisada. São eles que sustentam a redução do estudo da língua a exercícios de análise da nomenclatura e da classificação morfossintática de frases e palavras. São eles que alimentam os simplismos infundados sobre a língua, sobre a gra­mática da língua, os quais, por sua vez, reforçam a "ideologia da incompe­tência" e alimentam os preconceitos contra os falares dos mais pobres e dos menos letrados.

Se juntarmos as parcelas desse resultado global, fica uma suspeita: a de que a criança, que inicia a alfabetização no pleno exercício da atividade oral, construindo, portanto, nas mais diversas situações, textos coesos e coerentes, vai gradativamente afastando-se desse saber e aproximando- se de desempenhos escolares sem sentido, ao acaso, iguais àqueles en­contrados no primeiro momento da pesquisa.

Mas também - olhando o que os alunos escreveram nos balões - se poderia concluir que situações interativas de escrita, de fala ou de leitu­ra, mesmo simuladas, poderiam favorecer um estudo e uma reflexão so­bre a língua bem mais produtivos e relevantes. Se compararmos os dois resultados, percebemos que as aberrações de sentido restringiram-se à escrita com finalidades apenas metalinguísticas. Nos textos dos balões; não aconteceram incoerências. Tudo tinha pleno sentido e até certa graça, como convinha à situação de interação em curso.

Um trabalho em sala de aula, a partir de uma atividade desse tipo, po­deria revelar aos alunos que já são capazes de expressar um sentimento por escrito e de construir, para uma situação de comunicação específica, a resposta verbal adequada.

Isso seria suficiente para ir sedimentando nos alunos a convicção de que eles sabem, podem e são capazes, ao contrário do que poderia acon­tecer se eles se detivessem na análise de como resolveram os problemas propostos na primeira parte da prova. Ou seja, os bons resultados que eles conseguem quando lhes é solicitado que escrevam coisas que têm sen­tido seriam uma forte motivação para que eles acreditassem nas suas pos­sibilidades e se lançassem a assumir o desafio de ir tentando, na confiança de que podem conseguir.

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Ainda voltando aos textos dos alunos, vale a pena destacar que as prin­cipais dificuldades reveladas têm a ver com questões ortográficas e de pontuação. Esse dado poderia constituir uma espécie de sugestão de pro­grama para os próximos estudos. Novos exercícios com a escrita de outros gêneros - igualmente contextualizados e interativos - viriam, e na mesma dinâmica, de maneira que estaria instalado um verdadeiro processo de aprendizagem. Uma travessia. Um caminho, a partir do qual a gente pode­ria alimentar a expectativa de que se vai chegar a um "porto seguro".

Não podemos calar o sentimento de terrível frustração que experi­mentamos quando lemos certas produções de alunos, já no final do en­sino médio, depois, portanto, de onze anos - no mínimo - de estudo da língua. E, sofrendo, nos perguntamos: o que fizeram esses alunos durante esses onze anos? (Melhor dizendo: o que fizeram com eles?).

Tais considerações precisam estar presentes - mais do que já estão - nas salas de aula, das pós-graduações aos cursos de magistério - onde são formados os alfabetizadores e os professores de línguas. Para que a linguística se afirme cada vez mais como uma ciência de cunho social, ao lado de outras, empenhada nos ideais da compreensão, da plenitude e da felicidade humanas.

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Que ganhos acumulamos

quando o ensino de línguas tem como foco as funções sociais da interação verbal?

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Capitulo 11

A LEITCJRA: DE OLHO NAS SUAS

FUNÇÕES

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Este texto serviu de ponto de partida para uma discussão em torno da leitura e suas funções sociais, por ocasião de um evento para professores promovido pela Secretaria de Educação de Pernambuco, em 2002.

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Cada ano, avaliações de diferentes portes dão con­ta de que, no Brasil, a escola vem falhando na sua fun­ção de formar leitores. De fato, ensinar a decifrar os sinais gráficos é apenas uma das condições para que se possa, gradativamente, inserir o aluno no mundo dos livros, das informações escritas, da cultura letra­da, da ficção literária; afinal, no mundo da convivência com a língua escrita. A propósito, em algumas escolas, nem mesmo essa condição básica de ensinar a deci­frar os sinais da escrita tem tido o êxito esperado.

Na análise das causas desse problema, pode-se perceber que, por in­crível que pareça, o livro (ou os materiais escritos, de diferentes gêneros e suportes) ainda não é, em todas as escolas, o centro das atividades peda­gógicas, nem mesmo daquelas atividades ligadas ao ensino de línguas, o que constitui uma evidente contradição. Uma pesquisa feita em escolas da cidade de Campinas (SP), na década de 1980, deu conta de que existiam escolas cuja programação não reservava tempo para a leitura, porque, nas palavras dos alunos, "os professores se preocupam com a gramática"; ou "se lêssemos não ia dar tempo para aprender toda a matéria".

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A partir desses depoimentos, é cabível con­cluir que a fixação quase obsessiva no ensino da gramática - cuja caracterização, muitas vezes, a escola mesma não sabe bem o que é - tem deixa­do a sala de aula sem tempo para a leitura. O mais grave é que aquilo que se concebe como sendo "en­sino de gramática", na verdade, é apenas o ensino das classes de palavras, fora de qualquer contexto de interação, com ênfase em sua nomenclatura e quase nada sobre suas funções na construção e na organização dos textos, conforme, reiteradamente, temos referido em nossos trabalhos. (Insisto "para ver se pega...")

...

Como se a leitura de texto pudesse ser feita sem gramática. A propósito, vale a pena 1er o livro A escolarização do leitor: a didática da destruição da leitura, de Lilian Lopes Martin da Silva, onde aparecem os resultados da pesquisa a que nos referimos aqui e de onde são retirados os depoimentos de alunos agora citados. Seriam outros os resultados se essa pesquisa fosse realizada presentemente, em qualquer ponto do país?



...
Esse ensino descontextualizado tem transfor­mado em privilégio de poucos o que é um direito de todos: a saber, o acesso à leitura e à competência em escrita de textos. Lamentavelmente, até o momen­to, aprender a ler, ou melhor, ser leitor, tem sido no Brasil prerrogativa das classes mais favorecidas. Quer dizer, os meninos pobres são levados a se convencerem de que "têm dificuldades de aprendizagem" e, portanto, não nasceram pra leitura. Tentam por alguns anos; cansam-se e acabam desis­tindo. Grande parte das pessoas acha isso natural; ou seja, ninguém consi­dera absurda a "coincidência" de apenas os pobres não aprenderem a ler. Ninguém acredita que esse déficit pode ter uma solução e depende de um conjunto de ações pelas quais somos, todos nós, responsáveis.

Até quando vamos ignorar nossas responsabilidades sociais frente a esse quadro? Além de injusta e indecente, tal situação é comprometedora do próprio desenvolvimento econômico que tem caracterizado os últimos períodos da história nacional e que afeta a nós todos.

Ganha relevância, portanto, um momento de reflexão como este, que pretende focalizar as funções individuais e sociais da leitura. Funções que envolvem, além do acesso ao conhecimento já produzido, a produção de novos conhecimentos, a continuidade e o avanço das descobertas científi­cas e do patrimônio artístico-cultural da sociedade.

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Pelo viés de suas funções, portanto, vamos considerar neste capítulo, a questão da leitura, um tema praticamente inesgotável, embora ainda pouco compreendido na escola (mesmo por seus gestores, às vezes) e entre o geral das pessoas, o que prova, mais uma vez, aquele fosso que se tem constatado en­tre as teorias defendidas pelos pesquisadores e as práticas das salas de aula.

Vejamos alguns desses aspectos, introduzidos aqui sob a forma (mais didática) de perguntas.
1. A leitura é fundamental apenas nas aulas de línguas?

Fica evidente, pelo exame do cotidiano escolar, que as competências em leitura, compreensão e escrita não se restringem às aulas de línguas. Em geral, o professor de qualquer disciplina apoia suas aulas em textos escritos (embora alguns sejam explicados oralmente), o que é facilitado até mesmo pela indicação de um livro didático específico. Lições de histó­ria, geografia, biologia, matemática etc., para citar apenas esses, são apre­sentadas em gêneros expositivos, quase sempre, com imagens, quadros, gráficos, que precisam ser lidos, compreendidos, sumarizados, esquema­tizados, resumidos, em atividades que demandam refinadas estratégias de processamento dos sentidos. Um problema de matemática, a análise de uma explicação de biologia, por exemplo, exigem o exercício de múltiplas interpretações, sem sucesso quando não se sabe mobilizar os dife­rentes tipos de conhecimento suscitados na atividade da leitura.

Não tem fundamento, pois, a concepção ingênua, meio generalizada na prática, de que cabe apenas ao professor de línguas a tarefa de cui­dar da leitura e de outras habilidades comunicativas. Todo professor, de qualquer disciplina, é um leitor e, para sua atividade de ensino, depende, necessariamente, do convívio com textos os mais diversos.

A leitura é, pois, dever de toda a escola.


2. A quem compete ainda desenvolver o apreço à leitura?

O desenvolvimento do tópico anterior não implica que podemos atri­buir à escola a exclusividade do papel de desenvolver competências, nem

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mesmo aquelas diretamente vinculadas à leitura e à compreensão de tex­tos. Se à escola é concedida uma prioridade nessa tarefa, não se exclui, contudo, a intervenção de outras instituições sociais, como a família, os meios de comunicação, as associações comunitárias e tantas outras.

Talvez, a visão também ingênua de que cabe exclusivamente à escola ensinar e de que somente se aprende na escola, tenha favorecido a omis­são de muitas instituições sociais, que, assim, transferem para a escola toda a responsabilidade de promover a ampliação das competências em linguagem. Em se tratando da leitura, também é mantida essa crença ingênua de creditar tudo à escola.

Sabemos que, anteriores à experiência escolar, estão as situações de convívio com materiais escritos, vividas no ambiente familiar. Na verdade, é aí que tudo começa. O que vem depois é só acréscimo (ou conserto!).

...


Uma professora me contou que a diretora de sua escola, diante do interesse da professora, em expor os alunos à leitura diária de livros, lhe recomendava que "logo começasse a dar aula de gramática"! Na verdade, há uma sensação meio generalizada de que a leitura nos faz atrasar o curso!

...
Evidentemente, não pretendemos com essa observação atenuar ou até mesmo neutralizar o papel da escola. A escola é, especificamente, a instituição social encarregada de promover, apro­fundar e sistematizar a formação instrucional e a educação da comunidade. Porém, ela não deve estar sozinha nessa tarefa. Certamente, o que a escola poderia fazer seria envolver a família na empreitada da leitura; convocá-la a participar dos programas, das ações que objetivam promo­ver a convivência do aluno com a cultura escrita. Até agora, não parece que a família seja suficien­temente convocada a entrar nesse "jogo" da descoberta das funções da leitura. Pelo contrário, a escola, em geral, tem sido conivente com a fa­mília, diante das queixas dos pais de que seus filhos "têm tido poucas aulas de gramática".

Falta, portanto, uma aliança entre escola e família, para que a leitura ocupe, sem desconfianças, o lugar que, legitimamente, lhe cabe na forma­ção da pessoa.

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3- Sendo assim, que foco escolher para os objetivos pedagógicos?

Ultimamente tem sido corrente e enfática a afirmação de que os ob­jetivos da escola se devem voltar para a ampliação de diferentes compe­tências. E, naturalmente, o termo competência entrou para o dia a dia do discurso pedagógico.

Mas, como é costume acontecer quando um termo novo entra em cena, a preocupação maior pareceu ser definir o que é competência, qual a diferença entre competência e habilidade, entre competência e objetivo. Fujo, aqui, consciente, a esse gosto muito acadêmico de discutir a exati­dão de certos conceitos e, sem a absoluta precisão, passo a fazer algumas observações em torno do que poderia implicar um trabalho pedagógico com objetivos centrados em ampliar competências.

Antes, vale a pena fazer notar que, de propósito, digo ampliar compe­tências, uma vez que não podemos esquecer que as pessoas a quem ensi­namos (mesmo as "pessoinhas" do ensino infantil!) já sabem muita coisa, já desenvolveram muitas competências, inclusive aquelas comunicativas. Bastaria analisar o curto discurso de uma criança para ver quantas regras

- fonológicas, lexicais, morfossintáticas, semânticas, textuais, pragmáticas - foram integralmente respeitadas. Então, a função da escola consiste, exata­mente, em ampliar essas competências, desenvolvê-las ainda mais, juntar a elas outras ainda não conseguidas. A esse propósito, alerta Sírio Possenti (cf. bibliografia), convinha ao professor, para orientação de seu trabalho, tentar identificar o que os alunos já sabem, o que ainda não sabem, o que precisam saber. Conforme cada etapa de seu ciclo de vida social e escolar.

Por exemplo: uma criança do primeiro ciclo do ensino fundamental, para ler e escrever bem, precisa saber definir um dígrafo, um ditongo crescente; um substantivo? Precisa saber o que é um advérbio? Não.

Mas, por outro lado, precisa ir ampliando seu saber sobre que regula­ridades cada um dos tipos e dos gêneros tem; precisa ir descobrindo, por exemplo, que um texto expositivo ou dissertativo gira em torno de um único tema; precisa ir descobrindo que esse tema deve progredir; pre­cisa ir descobrindo quais os recursos que podem deixar esse texto articulado,

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sequenciado, coeso etc., etc. Precisa ir descobrindo o que se deve fazer para entender um texto, oral ou escrito, desse ou daquele tipo, etc. etc. Enfim, precisa ir descobrindo muita coisa que nem dá para enumerar aqui. No entanto, em geral, a escola se concentra naquilo que a criança já sabe ou naquilo que não lhe faz falta saber. Mas, voltemos ao ponto cen­tral de nosso tópico.


3.1. O que pretendemos compreender aqui por competência?

Inspiro-me em Perrenoud (2000, p.15), para dizer que:

- competência corresponde à aptidão dos sujeitos para ligar os "sabe­res" que adquiriram ao longo da vida às situações da experiência, a fim de, pelo recurso a esses saberes, vivenciar essas experiências de forma gratificante e eficaz. Equivale, assim, à capacidade do sujeito para enfrentar, com o maior sucesso possível, as mais diferentes si­tuações da vida, mobilizando intuições, conceitos, princípios, infor­mações, dados, vivências, métodos, técnicas já aprendidas. Assim, e inevitavelmente, a competência envolve uma relação com o "saber" ou com os saberes acumulados previamente, ao longo da vida. En­volve, ainda, uma relação com o "fazer", ou seja, com a "execução de atividades", e com a resolubilidade das dificuldades enfrentadas, uma vez que toda competência é exercida e é revelada no enfrentamento com os mais distintos tipos de situação. Por isso, necessa­riamente, a competência supõe a articulação do saber já acumulado com as condições específicas das situações enfrentadas.

- Como se pode ver, então, trata-se de "saberes e competências", numa relação clara de inclusão, e não de "saberes ou competên­cias", numa relação de mútua exclusão. Quer dizer, as competências incluem, mobilizam os saberes; não excluem, portanto, a explora­ção de conteúdos. Uma visão simplista da questão poderia levar à suposição de que o foco da escola em competências dispensaria a exposição de conteúdos, de conceitos, de teorias, que, assim, já não contam, pois "bastam as competências". Não é assim: os saberes acumulados são condição para o exercício das competências.

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  • Convém lembrar ainda que esses saberes - condição para o exer­cício da competência – não constituem apenas um conhecimento estabilizado, pronto, estocado na memória. Na verdade, trata-se do saber já apreendido, mas também do saber que, como condição prévia do próprio enfrentamento da situação, vai refazendo-se e ampliando-se. São saberes dinâmicos, então. Em processo constan­te. Um possibilitando o outro.

- Logo, não se trata aqui de uma competência técnica para um fazer mecânico, estático, repetitivamente colado à situação. O próprio cuidado de eleger quais as competências a ampliar, em cada etapa do percurso, já supõe um nível de competência geral para ver, per­ceber, selecionar os objetos e os objetivos, de fato, relevantes do trabalho, na direção das competências fundamentais, que ultrapas­sam aquele fazer mecânico.

- Pensemos, por exemplo, numa competência básica, fundamental, - no sentido mesmo do que envolvem as palavras 'base' e 'funda­mento' - que é a competência para aprender e, dentro desta, a com­petência para selecionar os objetivos e os objetos de nossa aprendi­zagem. Esta é uma competência decisiva, aquela que cabe à escola, prioritariamente, desenvolver, isto é, a competência para aprender. Não podemos esquecer, apoiados em Schneuwly, Dolz e colabora­dores (2004), que a escola representa, em nossa cultura, um lugar social particular de aprendizagem.

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Sobre o conceito de letramento, já circulam bons trabalhos, todos, na perspectiva de chamar a atenção da escola e da sociedade geral para os limites da alfabetização, caso não signifique o meio mais eficaz de possibilitar ao alfabetizando sua progressiva e competente convivência com a cultura escrita,



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4. Que competências são esperadas pelo exercício da leitura?

Vale a pena perguntar-se: por que tanta ênfase na leitura? Que razões haveria para que tanto se defenda a relevância da leitura, sobretudo como foco da atuação escolar? Noutras palavras, qual o papel da leitura - ou quais as funções da leitura? Que competências ela requer? Que competências ela desenvolve?

No âmbito do mais geral, poder ter acesso à leitura significa poder exercer o direito de acesso

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á palavra escrita - a qual, em sociedades pouco desenvolvidas, relembro, tem-se convertido em privilégio de poucos.

A escrita é, sem dúvida, uma das maiores construções da humanidade. Possibilitou-nos superar os limites da fala, que exige, de uma vez, a simul­taneidade de tempo e a confluência de espaço para as pessoas envolvidas na sua realização. Graças à escrita, as pessoas puderam ter acesso ao que outros "disseram" em outros momentos e lugares, fossem esses momen­tos e lugares, temporal e geograficamente, distantes. Graças à escrita foi possível "registrar", "deixar documentado" o que, de outra forma, seria apenas memória e tradição oral. Daí que "ela permeia hoje quase todas as práticas sociais dos povos em que penetrou" (Marcuschi, 2001, p. 19).

Com o surgimento da escrita, portanto, estava desfeito um dos gran­des limites à circulação universal das ideias, à divulgação dos feitos e das conquistas humanas.

Ora, a outra face da escrita é a leitura. Tudo o que é escrito se com­pleta quando é lido por alguém. Escrever e ler são dois atos diferentes do mesmo drama (ou da mesma trama!). Alfabetizar-se, no sentido mais elementar do termo, é adquirir a competência inicial para lidar com os sinais da escrita, uma tarefa da qual a escola, no decorrer da história, se tem encarregado. É desenvolver condições para o sujeito poder inserir- se no mundo dos eventos que envolvem o intercâmbio através da grafia. E, neste particular, entra o conceito atual de "letramento", um conceito que ultrapassa a simples conquista das competências em decifração dos sinais da escrita. Em estado de letramento já se encontram as crianças que veem, que ouvem ou que manuseiam diferentes suportes de escri­ta (livros, jornais, folhetos, anúncios, avisos etc.). Esse estado vai-se afir­mando, vai-se ampliando, continuamente, de maneira que, em estado de letramento, estamos nós todos, a vida inteira. Assim, entre escrita, leitura e escola se estabelece uma vinculação de interdependência tão forte que qualquer uma das três, necessariamente, leva às outras.

Propor, portanto, que a leitura ocupe um lugar de destaque no currí­culo escolar, como instrumento de cidadania, constitui uma das mais legí­timas pretensões. Mas, por quê? Ou seja: que competências são esperadas pelo exercício da leitura?

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4.1. A leitura favorece o acesso a novas informações

Em primeiro lugar, a leitura deve preencher os objetivos prioritários da escola porque nos permite o acesso ao imenso acervo cultural consti­tuído ao longo da história dos povos e possibilita, assim, a ampliação de nossos repertórios de informação.

Na verdade, pela leitura, temos acesso a novas ideias, novas concep­ções, novos dados, novas perspectivas, novas e diferentes informações acerca do mundo, das pessoas, da história dos homens, da intervenção dos grupos sobre o mundo, sobre o planeta, sobre o universo. Ou seja, pela leitura promovemos nossa entrada nesse grande e ininterrupto diá­logo empreendido pelo homem, agora e desde que o mundo é mundo.

A leitura expressa, dessa forma, o respeito ao princípio democrático de que todos têm direito à informação, ao aceso aos bens culturais já pro­duzidos, aos bens culturais em vias de produção ou simplesmente previstos, nas sociedades, sejam elas letradas ou não.

Tal acesso à informação representa, sobretudo, o exercício da parti­lha do poder, o qual acontece muito precariamente sem a corresponden­te partilha do acesso à escrita. Basta pensar em todas as oportunidades das quais os "não-leitores" são excluídos: o analfabeto pleno, o analfabeto funcional, isto é, o alfabetizado afastado da prática da leitura. Todos esses "não-leitores" são, preferencialmente, candidatos a estarem, de maneira mais ou menos profunda, "imersos" no mundo, de cabeça encoberta, sem "olhos" para ver determinados tipos de objetos. Sem saber muito do que se passa à volta de si, costumam ter apenas restritas possibilidades de poderem intervir no curso de suas vidas e dos grupos em que atuam.

Só o homem "emerso", "de cabeça para fora", na visão de Paulo Freire, é capaz de "vir à tona", olhar em volta, perceber o entorno. A leitura nos dá esse poder de emersão, nos confere esse poder de enxergar e perceber o que nos circunda, a fim de, como cidadãos, assumirmos nossos diferen­tes papéis na construção de uma sociedade que respeite a lógica do bem coletivo e dos valores humanos.

Nesse sentido, lembramos a grande oportunidade que a escola pode oferecer pela confluência multidisciplinar da leitura programada. Sa­bemos

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quanto os livros didáticos vinculados a todas as áreas do estudo escolar - além daqueles em torno da linguagem - podem constituir um encontro bastante significativo do aluno com um grande contingente de novas informações. Por essa perspectiva, duas mudanças poderiam ocor­rer na prática escolar:

- primeiro, a leitura deixaria de ser considerada como uma atividade exclusiva da aula ou do professor de português, como tem parecido a alguns;

- segundo, a leitura de textos de outras disciplinas adquiririam esse teor de 'fonte de informação', matéria prima para futuras interações em que o conhecimento especializado de algum tema fosse solicitado.

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A escola parece ignorar esse princípio quando não põe em pauta prio­ritária o estudo das questões textuais. Porque não focalizar a matéria prima com que se constrói qualquer gênero de texto, ou seja, seu conteúdo semântico, seus propósitos comunicativos e suas regularidades textuais? A propósito, a consulta ao livro organizado por Neves et alii em 2003, explora a pertinência de se fazer da leitura e da escrita um interesse de ensino e pesquisa em todas as disciplinas.

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Com efeito, conforme já salientamos, informa­ções de uma lição de geografia, de história, de ci­ências podem fornecer os argumentos de que pre­cisamos para apoiar nossos comentários, em uma análise opinativa, por exemplo. Na grande maioria das vezes, o que nos falta, na elaboração de certos gêneros de texto, não são conhecimentos linguís­ticos (esses, nós já os temos bem armazenados!), muito menos conhecimentos acerca das termino­logias gramaticais. O que nos falta, frequentemen­te, são informações relevantes em torno das quais podemos nos dar ao exercício de desenvolver um tema. Comentar - contra ou a favor - um tema de política, preservação ambiental, pluralidade e con­vivência social, economia, desenvolvimento etc. exi­ge ter sobre essas questões uma gama razoável de informações, capazes de nos fazer dizer o que ou­tros poderão considerar "ditos relevantes".

Nesse caso, quando não se tem o que dizer, a saída é "encher" as "vinte linhas", é dizer o óbvio, o irrelevante, é dar voltas ao mesmo, o que em nada acrescenta ao que já se sabe. Em muitas das improvisadas "reda­ções" dos alunos, sem um trabalho prévio de exploração do tema, resta a obviedade, a irrelevância das afirmações e dos comentários, com significativo

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comprometimento da qualidade dos textos. Tudo isso agravado, depois, pela prática de avaliação de alguns professores que se restringem ao cuidado com a correção gramatical.

É bom lembrar que pobreza de informação, de ideias, que o fato de não ter o que dizer sobre determinado tema, afinal, são problemas que só se resolvem com a ampliação de nosso repertório de informações e de ideias; com a nossa capacidade de, criticamente, ler, ouvir, refletir, tirar conclusões, estabelecer relações entre os fatos. Não são propriamente problemas que se resolvem com aulas de análise sintática, com a procura da distinção en­tre complemento nominal e adjunto adnominal, diga-se mais uma vez.

A propósito da escassez de informação, e pensando na atuação das pessoas em setores da vida social e política, poderíamos lembrar - com pesar - a condição indefesa de quem não sabe ler e, consequentemente, de quem apenas dispõe de um corpo de informações restritas à transmis­são da oralidade. Por isso, a leitura acaba promovendo a inclusão social, acaba sendo uma condição do exercício pleno da cidadania.

Em suma e em termos bem prosaicos, podemos lembrar o óbvio: ler é uma forma de saber o que se passa, o que se pensa, o que se diz; é uma for­ma de ficar inteirado acerca do que vai pelo mundo, acerca do que vai po­voando a cabeça e o coração dos pensadores, dos formadores de opinião, dos cientistas, dos poetas; é uma forma de saber acerca das descobertas que foram feitas ou das hipóteses que estão sendo testadas, ou dos planos e projetos em andamento. Não podemos esquecer de que o mundo é "semiotizado" pela linguagem e de que somos feitos no diálogo viabilizado por ela. As concepções que temos, as teorias que propomos, os projetos que elaboramos nascem do acesso que temos à palavra circulante.

Daí que a leitura é uma espécie de porta de entrada; isto é, é uma via de acesso à palavra que se tornou pública e, assim, representa a oportunidade de sair do domínio do privado e de ultrapassar o mundo da interação face a face. É uma experiência de partilhamento, uma experiência do encontro com a alteridade, onde, paradoxalmente, se dá a legítima afirmação do eu.

Não podemos deixar de referir a utilização cada vez maior e mais per­tinente de textos que conjugam sinais de diferentes linguagens, que, para

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serem entendidos, exigem também a mobilização de outros modos de compreender. A sociedade letrada recorre, atualmente, a muitas outras maneiras de significar, de modo que apenas a leitura dos signos verbais, já chega a ser insuficiente.

Em suma, a leitura, na sua perspectiva informativa, exerce o grande papel de favorecer a ampliação e o aprofundamento de nossos conheci­mentos, a competência para a observação, a análise, a reflexão acerca das certezas ou das hipóteses que vamos construindo. É a lenha com que ali­mentamos o fogo de nossas buscas.

Ter vez à palavra escrita é uma forma de partilhar do poder social.

Vamos a um outro ponto que justifica a funcionalidade da leitura.


4.2. Como relacionar leitura e escrita?

Antes de qualquer outra consideração, vale a pena fazer uma observa­ção: não se pode estabelecer entre leitura e escrita uma relação automática, de causa e consequência imediata e inevitável, segundo pensam alguns: se alguém lê, escreve bem. Como vimos, a leitura constitui uma das condições que propiciam o sucesso da escrita. Mas, não de uma forma mecânica. Não existe uma relação milagrosa ou mágica entre uma coisa e outra. Ou seja, não podemos alimentar o simplismo de que quem lê, necessariamente, es­creve bem. A competência em escrita é, do mesmo modo que todas as outras, resultado, também, de uma prática constante, persistente, refletida, num processo de crescente aprimoramento. Não basta, portanto, ler para escrever bem.

No entanto, não podemos negar que a leitura também constitui um meio de acesso às formas particulares e específicas de escrever. A maior evi­dência - principalmente para quem lê - é a de que não se escreve e não se fala absolutamente do mesmo jeito, embora se use a mesma língua e, em princípio, possam estar em jogo as mesmas pre­tensões interativas.

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Farta literatura que descreve as relações entre fala e escrita insiste no equívoco de conceber uma e outra como dois poios opostos e dicotômicos, marcados por substanciais diferenças. A proposta mais aceitável, no momento, é aquela que vê a fala e a escrita "dentro de um continuum das práticas sociais de produção textual".

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Prevalece, atualmente, a compreensão de que a fala constitui a moda­lidade de uso da língua que requer o concurso simultâneo de dois ou mais interlocutores, atuantes em uma mesma situação comunicativa. Nesse jogo, os papéis de falante e ouvinte se alternam. O discurso oral, especifica­mente aquele da conversação corriqueira, é, dessa forma, construído na interação, conjuntamente, à medida que vai acontecendo. Sua continuida­de e progressão são condicionadas pela própria direção do diálogo, con­forme a orientação que vai tomando a adequada concentração tópica do discurso. Em contextos da fala pública, a exemplo de conferências, apre­sentações, sermões, a palavra é, pelo menos por algum tempo, privativa de apenas um dos interlocutores.

Na escrita, no entanto, normalmente, a recepção do material textual é adiada, pois falta aquela presença simultânea dos interlocutores, que, as­sim, não ocupam, ao mesmo tempo, o mesmo espaço. A imposição desse adiamento poderia significar uma desvantagem, se não fosse vista como a possibilidade de planejar e de revisar o texto, tanto quanto seja neces­sário. De fato, uma das vantagens da escrita é que fica concedido a quem escreve um tempo maior para a elaboração verbal de seu texto, incluindo aí, reiteramos, a chance de o planejar, de o rever e de o recompor.

Levando em conta a maior probabilidade de, na fala, estarem presen­tes as coisas a que nos referimos, podemos observar, ainda, que, na escri­ta, há que suprir, com palavras, a indicação dos itens a que nos referimos e sobre os quais predicamos. Na fala, podemos dizer, sem prejuízo do en­tendimento: É preciso ler isto. O contexto fornece os elementos aos quais podemos remeter a identificação do objeto referido pelo pronome isto. Na escrita, é exigido que tenhamos de encontrar no próprio texto (preceden­te ou subsequente) o item a que o pronome faz referência. Ou seja, na es­crita, é bem mais comum a "descrição" de pessoas, propriedades e objetos ausentes da situação do discurso, o que requer uma maior explicitação linguística dessas referências. Logo, na escrita, o emprego das unidades lexicais (substantivos, adjetivos, verbos) e de formulações sintáticas mais explícitas e completas é ampliado e mais comumente diversificado. É co­mum ainda que se evite o uso de frases incompletas, a meias, práticas comuns na fala informal.

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Os sinais de pontuação - e certos recursos grá­ficos (negrito, itálico, sublinhado, "aspas", letras em caixa alta, entre outros) são outros recursos que tendem a suprir a falta daqueles elementos contextualizadores, sobretudo aqueles que expres­sam as particularidades da entonação, por exem­plo. Além disso, uma maior explicitude dos conecti­vos, entre orações, períodos e parágrafos, também pode ser apontada como marca da escrita (sobre­tudo da escrita formal), pelo mesmo fato de esta­rem ausentes certos traços esclacedores do contex­to situacional. Na verdade, o interlocutor, a priori, tem interesse em que seu texto seja entendido sem grandes esforços, o que o leva a usar todas as indi­cações que podem resolver possíveis dificuldades. Não esqueçamos que escritor e leitor estão envolvi­dos numa tarefa comum, dialógica e recíproca: um em encontro com o outro. Que não falte nenhum sinal! (A menos que a "falta do sinal" já constitua uma indicação de um sentido qualquer).

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O que estou compreendendo como "escrita formal"? Trata-se daquela escrita que se insere numa práti­ca social pública, com um "auditório" ou "interlo­cutores" que, em geral, ultrapassam as relações da simetria social ou hierárquica. Pensemos, por exemplo, em uma monografia, em um artigo científico, em um editorial jornalístico, em um processo judicial etc. Vale observar que, mesmo dentro dessa escrita formal, existem variações de maior ou menor formalidade.



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Merece considerar que não estamos concebendo a fala e a escrita como dois padrões de uso uniformes - o que, por vezes, ingenuamente pensam al­guns. Toda fala não é informal ou não é coloquial. Do mesmo modo que toda escrita não é expressa apenas no registro formal. Existem práticas orais informais e outras, formais; o mesmo acontecendo com a escrita. Daí por que não é muito apropriado comparar oralidade e escrita, de uma forma indiscriminada, sem pontuar os níveis de registro (mais ou menos formal ou mais ou menos informal) de uma e de outra. Uma conversação informal, entre familiares, entre amigos, não serve de padrão para a definição do que seja um texto escrito de divulgação científica, ou um editorial da comuni­cação jornalística. Na verdade, o que é mais relevante é analisar as relações entre o oral e o escrito sem enfatizar as diferenças entre uma e outra.

Essa visão da pluralidade de registros para o oral e para o escrito, bem mais coerente com o que de fato acontece socialmente, tem implicações significativas na hora de explorar, em sala de aula, as especificidades de

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uma e de outra. Daí que apenas a experiência da fala informal não pode promover o entendimento e a aprendizagem da fala formal e, muito me­nos, da escrita de textos formais. Mais grave é constatar que as análises linguísticas que são feitas na escola, em geral, não especificam se as regu­laridades apontadas são específicas da fala ou da escrita, nas suas escalas de formalidade e informalidade. Quase sempre, essas análises se referem a uma língua em potencial, em frases que exemplificam certas categorias gramaticais, válidas, nessa proposta, para qualquer circunstância social. O saldo é a impressão de que a língua não apresenta nenhum tipo de va­riação; funciona da mesma maneira na fala ou na escrita, formais ou in­formais. Não importa: o substantivo, o adjetivo, o verbo parecem coisas estanques que se aplicam, sem variações, a qualquer uso.

No âmbito das considerações que fazemos neste tópico, vale concluir que:

apenas pela convivência com textos escritos formais, pela leitura e pela análise das especificidades desses textos, é que alguém pode apreender os modos de formulação próprios da escrita formal.

Falta toda a escola se convencer de que, apenas "ouvindo", os alunos não conseguem desenvolver a competência para lidar com a leitura e com a escrita de textos. Ou seja, aprender a ler e a escrever, somente lendo e escrevendo. Só através de um amplo convívio com textos escritos. Com prá­ticas letradas cada vez mais diversificadas e complexas frequentemente aliadas, no presente, a outros modos gráficos e icônicos de significar.

Ou seja, os não-leitores acabam por sofrer um tipo de exclusão social; diferente, é claro; mas tão dolorosa e limitante quanto qualquer outra de caráter físico. Na verdade, os não-leitores ficam excluídos da possibilidade de participar dos grupos que se organizam em torno da comunicação escri­ta. Muitos espaços do mundo do trabalho se inserem entre esses grupos.

Será que ainda podemos viver, felizmente, parecendo ignorar as impli­cações sociais do descaso a esses princípios?

4.3. A leitura favorece o contato com a arte da palavra

A leitura é fundamental, ainda, na educação da pessoa para a afetividade, para o desenvolvimento da sensibilidade artística e do gosto estético. ­

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Para o "prazer inútil" das coisas que não se fecham em utilidades materiais e imediatas.

Ler textos literários possibilita-nos o contato com a arte da palavra, com o prazer estético da criação artística, com a beleza gratuita da ficção, da fantasia e do sonho, expressos por um jeito de falar tão singular, tão carregado de originalidade e beleza. Leitura que deve acontecer simples­mente pelo prazer de fazê-lo. Pelo prazer da apreciação, e mais nada. Para entrar no mistério, na transcendência, em mundos de ficção, em cenários de outras imagens, criadas pela polivalência de sentido das palavras.

Saber "entrar no "mistério", como sugeri logo acima, não é alguma coisa que acontece espontaneamente, sem o estímulo da experiência, da convivência com os textos literários. Daí que muita literatura tinha que ser trazida para a sala de aula; não para exemplificar o emprego das classes de palavras e outras questões gramaticais. Mas, para se aprender, pouco a pouco, a sentir o prazer, a emoção de curtir a beleza dos objetos artísticos criados com a palavra. Para aprender, inclusivamente, o modo de se ler um poema, bem diferente, por exemplo, do modo de ler-se uma notícia. A própria natureza do gênero já constitui uma pista para entendimento dos sentidos possíveis. Caso se trate de uma leitura em voz alta, aí é que pesa a forma como se lê. Na verdade, em voz alta, o poema deve ser "declamado" - isso faz parte do gênero -, deve ser lido da maneira que mais eficazmen­te promova o encantamento e a emoção. Diante de um poema, o que nos cabe dizer, sobretudo, é algo do tipo: Que coisa bonita!

O cuidado por desenvolver uma competência na leitura dos gêneros textuais que mais cotidianamente circulam na sociedade (como cartas, avisos, anúncios etc.) não deve enfraquecer o empenho em promover o convívio com diferentes gêneros literários e com as obras de que os textos fazem parte. A história de nossa travessia, ao longo dos séculos, está refle­tida também no grande intertexto que constitui nosso acervo literário.

Não pretendo deter-me aqui nas críticas tão comuns à má qualidade do ensino da leitura, especialmente da leitura dos gêneros literários nem tampouco responsabilizar unicamente os professores - já tão sobrecarre­gados - por esse problema. Entretanto, não posso fazer de conta que não vejo propostas, inteiramente inadequadas, de atividades com leitura de

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poemas. São propostas - de escolas públicas e escolas particulares - feitas ainda agora, em pleno ano de 2009, nas quais se pede aos alunos, simples­mente, que encontrem palavras no aumentativo, identifiquem adjetivos ou substantivos, observem os sons que se repetem, copiem as palavras que rimam, entre outras coisas. Por essa prática, o aluno não aprende a curtir literatura, a achar graça em poemas, crônicas, contos, romances. Tem sido notória a dificuldade dos alunos para interpretarem e comen­tarem textos de natureza simbólica e função expressiva, organizados a partir de analogias ou de recursos metafóricos ou imagéticos (como os próprios poemas, as charges). Em geral, a maioria não consegue ir além do literal e se limita ao estritamente óbvio e periférico para daí apreender algum sentido. Mas, os alunos não podem ser responsabilizados sozinhos por essas competências que não desenvolveram! Eles, em geral, não têm sido expostos com frequência a esses gêneros ou, quando o são, se depa­ram com objetivos (os "objetivos escolares" de procurar coisas ou de reti­rar coisas dos textos!) que não lhes aguçam a capacidade interpretativa.

E, outra vez, queremos frisar: de muita experiência gratificante os não- leitores são excluídos!
5. Como vem o gosto pela leitura?

Não se nasce com o gosto pela leitura, do mesmo modo que não se nas­ce com o gosto por coisa nenhuma. O ato de ler não é, pois, uma habilidade inata. Se isto é verdadeiro para aquelas leituras informativa e formativa, apresentadas nos dois primeiros pontos desta reflexão, muito mais o é para essa leitura de "fruição do belo", vista há pouco, que ultrapassa os interes­ses imediatos das exigências sociais e profissionais. Como vimos, o gosto por ler literatura é aprendido por um estado de sedução, de fascínio, de encantamento. Um estado que precisa ser estimulado, exercitado e vivido.

A quem compete desenvolver esse fascínio, essa sedução? A quem com­pete desenvolver o gosto pela busca da informação que está nos livros? A quem compete despertar o interesse pelas particularidades da escrita? À es­cola, certamente. Formar leitores, desenvolver competências em leitura e es­crita é uma tarefa que a escola tem que priorizar e não pode sequer protelar.

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Incluir a escola é incluir prioritariamente a figura do professor, aquele que, concretamente, dá visibilidade ao ato de ler. Aquele que apresenta o livro, que expõe e lê o texto, analisa-o, fala sobre ele, traz noticias sobre os autores, sobre novas publicações; enfim, aquele que transita pelo mundo das páginas, que deixa o rastro de sua experiência de leitor. É o mediador, entre o aluno-leitor e o autor do livro. Para que o ato do descobrimen­to pessoal aconteça... E para que, nesta relação professor-aluno-autor, os atuais aprendizes possam reconhecer-se também como possíveis auto­res, de outras versões, de outros textos, agora e em outros tempos.

Essa prioridade da escola na formação do leitor não exclui, evidente­mente, a atuação da família, na ação diuturna dos pais, que devem assu­mir a iniciação da criança nesse mundo gráfico (e, por vezes, mágico) das palavras. Não exclui ainda a sociedade, os meios de comunicação - todos: jornais, revistas, rádio, tv, páginas da internet - nem exclui (principal­mente essas!) as políticas públicas orientadas para a educação e a pro­moção da cultura letrada. Não podemos esquecer que os não-leitores são outro tipo de excluídos sociais! Todos os dias o analfabeto sente na pele sua condição de inferioridade.
6. Onde está o sentido do texto?

Essa pergunta pretende nos fazer ponderar sobre que conhecimen­tos devemos mobilizar para entender um texto. De propósito, ela enseja atingir aquele equívoco tão comum de ver um texto reduzido a um arte­fato puramente linguístico: um conjunto de substantivos, de verbos, de advérbios, onde, eventualmente, aparecem ditongos, tritongos, palavras oxítonas e outras coisas mais. Ou seja, ainda há escolas onde se procede como se o entendimento do que é dito fosse feito apenas pelo recurso à gramática. Na visão ingênua de muitos, reiteramos, saber gramática é suficiente para saber ler com sucesso.

Em muitas passagens, vimos pontuando que o sentido do texto não está apenas nas palavras que constam na sua superfície nem está nos limites da gramática. Os sentidos de um texto, melhor dizendo, resultam de uma con­fluência de elementos que estão, simultaneamente, dentro e fora dele.

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Basta lembrar os diferentes tipos de conhecimentos que o leitor mo­biliza no contato com o texto:

- conhecimento linguístico (conhecimento da gramática, do léxico e da for- y ma como se faz o agrupamento e a segmentação das unidades menores);

- conhecimento textual (tipos e gêneros; estratégias e recursos de sequencialização dos diferentes blocos do texto; recursos da coesão, da coerência e de outras propriedades da textualidade; padrões de referenciação etc.);

- conhecimento de mundo [conhecimento que decorre de nossa familiari­dade com os esquemas de organização da experiência, a partir dos quais podemos prever a coexistência (ordenada ou não) de elementos, e, assim, apreender os sentidos do texto, sobretudo aqueles não explicitados]. Em geral, deixamos implícito no texto aquilo que é típico de uma situação, que é previsível a ela, pois esperamos que nosso interlocutor faça os cálculos necessários para encontrar coerência no que está sendo dito.

Convém lembrar ainda que os sentidos do texto resultam também dos elementos que compõem a "cena" de sua produção e a outra, não menos pertinente, de sua circulação.


7. De que leitura estou falando?

Falo de uma leitura interacionista. Não apenas porque a leitura permite o encontro entre dois ou mais interlocutores; mas, sobretudo, porque esses interlocutores são autores-leitores e leitores-autores que já trazem em seus repertórios experiências de outras escritas e de outras leituras. Escrever e ler são, assim, oportunidades de dar continuidade a uma quase infinita corrente de ideias, de concepções, de informações que têm seu começo não se sabe bem onde ou em que paragens desse imenso mundo geográfico e cultural.

Falo de uma leitura interacionista, também, porque a leitura envolve a inte­ração entre diversos tipos de conhecimento, conforme foi mostrado logo atrás.

Falo de uma leitura interacionista, ainda, porque tenho em vista a lei­tura que visa objetivos e propósitos interativos claros e diversificados e, as­sim, não se reduz a uma mera tarefa escolar (a qual, para ser feita, tem que ser pra nota!). Por sinal, uma leitura que não responda a um propósito

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comunicativo qualquer (propósito informativo, de localização de dados, de informações; propósito de fruição apenas) não é propriamente leitura.

Falo, portanto de uma leitura que, a partir de hipóteses, de predições inicialmente levantadas, vai além da superfície do texto, além do que está explícito, do que está declarado. De uma leitura que mobiliza um sentido plural, portanto: que está no texto, que está no leitor, que está no contexto.

Falo de uma leitura que, ao lado de um sentido, busca descobrir inten­ções, pretensões, objetivos para o dizer do texto. Uma leitura, portanto, de um 'dizer' que é também um 'fazer', o que não deixa também de ser uma leitura atenta dos elementos formais desse dizer.

Falo, portanto, de uma leitura que é uma "atividade de procura", na expressão de Ângela Kleiman, em seu livro Texto & Leitor; falo de uma leitura que é uma "atividade de encontro" também, digo eu.


8. E a escola frente a essas concepções?

Evidentemente, todas essas concepções têm implicações pedagógicas, quer na definição das prioridades, quer na seleção dos objetivos; quer na previsão dos conteúdos, das atividades; quer, até mesmo, no planejamen­to de diferentes situações de leitura.

A primeira implicação tem a ver com a certeza de que apenas a alfabe­tização é insuficiente. Como vimos insistindo, é preciso que o alfabetizado vá inserindo-se, sempre mais, no universo da comunicação escrita - o que se tem definido como letramento -, pelo contato com diferentes materiais e objetivos de leitura.

A convivência com a informação escrita, com a exposição de ideias, com a literatura é a condição desse letramento, uma conquista gradativa, que se vai sedimentando a ponto de tornar-se parte constitutiva das ati­vidades sociais do sujeito.

Não deveria parecer estranho nem perda de tempo que a escola desti­nasse grande parte de seus horários à leitura. A escola é lugar de leitura. Assim como a igreja é lugar de oração, e o estádio é lugar de jogo. O que deveria parecer muito estranho é que a escola não priorize a leitura e que

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não seja ela a assumir a promoção do gosto pelos livros, pela informação escrita, pela produção literária. O que deveria parecer muito estranho, repito, é que a escola não seja a sede daquele letramento, o ambiente na­tural em que os alunos mergulham no mundo das linguagens escritas.

Mergulho que aconteceria, como?

- Pelo estímulo a uma cultura do livro.

- Pela fartura de um bom e diversificado material de leitura.

- Pelo acesso fácil e bem orientado a esse material.

- Pela diversidade de objetivos de leitura.

- Pela frequência de atividades de ler e de analisar materiais escritos.

- Pela formação do gosto estético na convivência com a literatura.
Apostamos em que a leitura é:

- um projeto social inadiável;

- uma conquista possível;

- uma competência em permanente construção;

- uma porta de entrada para novos mundos, onde a autêntica e democráti­ca construção humana pode acontecer com maior sucesso.

Em síntese, devemos e podemos promover a conversão da escola em fa­vor da leitura. Por políticas educacionais que priorizem a ampliação das com­petências relevantes para o pleno exercício da cidadania. Pela intervenção de uma escola que ponha a produção do conhecimento relevante e o acesso a ele no centro de seus objetivos, de sua atividade. Que priorize a ampliação das competências das pessoas, para que possam intervir, positivamente, na dire­ção do bem coletivo. Concretamente que tenha livros e leitores desses livros, com tempo e vez para saber o que esses livros dizem. Tudo isto, para que possamos nos aproximar sempre mais da solução dos grandes problemas humanos. Pela ação não menos consistente de uma sociedade que se sinta no legítimo direito de contar com uma escola na qual, pelo exercício pleno da leitura, se aprenda também a pensar, a expressar-se, a participar, na condição de cidadão, das decisões da comunidade e a interferir no seu destino.

Não posso deixar de referir, como agente dessas mudanças, a presença determinante das faculdades de letras e de pedagogia. Das faculdades

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públicas e privadas situadas nas capitais. Mas, sobretudo, das faculdades de formação de professores, espalhadas pelo interior dos Estados, de onde, com certeza, sai a maior parte dos professores que irão atuar nas escolas estaduais e municipais. Tais faculdades são, portanto, um polo altamente responsável pela condução dessas mudanças, principalmente daquelas mais prementes nos espaços rurais ou nos espaços urbanos afastados das grandes metrópoles.

Seria muito sonhar com uma escola na qual o exercício da leitura fos­se o centro da proposta pedagógica, de onde tudo o mais derivaria? Seria muito sonhar com uma escola na qual o gosto da leitura pelo simples pra­zer de ler fosse um cuidado de cada dia? Seria muito sonhar com uma es­cola em que a alegria de poder aprender fosse o desafio de cada momento e o apelo de cada livro? Seria muito sonhar com uma escola que pudesse estar totalmente a favor da solução de problemas? Uma escola que fosse efetivamente comprometida com deixar as pessoas mais aptas para faze­rem desaparecer a miséria, a fome, a violência, as discriminações sociais?

Não sei se seria sonhar muito. Mas acredito que, se desde o início, for dada aos alunos a oportunidade da leitura plena (do livro e do mundo) - aquela que desvenda, que revela, que lhes possibilita uma visão crítica do mundo e de si mesmos - se lhes for dada a oportunidade da leitura plena, repito, uma nova ordem de cidadãos poderá surgir e, dela, uma nova configuração de sociedade.

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Podemos, ainda, adiar esse projeto?



Ávida não gosta de esperar. Amanhã ninguém sabe

No peito de um cantador

Mais um canto sempre cabe.

(Chico Buarque)

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capítulo 12

A ESCRITA DE TEXTOS NA ESCOLA:

DE OLHO NA DIVERSIDADE



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Originalmente, este texto foi apresentado no I Simpósio Nacional de Estudos Linguísticos, em um evento promovido pela UFPB, em João Pessoa, em setembro de 1997.

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1. Língua e variação

A questão da variação linguística tem con­templado as múltiplas possibilidades de a língua realizar-se, atendendo a diferenças do lugar, do meio social ou da situação sociocultural em que a atividade verbal ocorre. Tais possibilidades de va­riação têm sido analisadas, preferencialmente, em relação à oralidade, com foco maior para as especificidades dialetais. Va­riações, por exemplo, do português falado em diferentes regiões do Brasil ou entre o português de Portugal e o português do Brasil têm merecido a atenção de pesquisadores aqui e lá.

No entanto, a língua escrita ainda não recebeu esse "olhar" que enxerga as suas diferenças de uso; ou seja, ainda parece subsistir a impressão de uma língua escrita uniformemente, totalmente está­vel, sem variações. Tal impressão é naturalmente reforçada pelo viés da ortografia oficial, um padrão rígido e inalterável, com mudanças pouco significativas em intervalos muito longos de tempo. A visão de uma escrita uniforme repercute no trabalho da escola, que,

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assim, privilegia o ensino de esquemas rígidos, em cujas formas todos os textos têm de se encaixar.

Vamos refletir um pouco sobre esse ponto.

Seja em relação à oralidade, seja em relação à escrita, a consideração do fenômeno da variação linguística implica, necessariamente, a inclusão dos muitos fatores pragmáticos envolvidos na interação. Quer dizer, se a realização da língua comporta variações é, sobre­tudo, por determinação de elementos extrínsecos a ela, elementos constituintes da situação social em que a atividade verbal se insere, tais como o esta­tuto social dos interlocutores, o tipo de relação que se estabelece entre eles, os propósitos em causa, o espaço cultural em que acontece o evento comuni­cativo, entre outros.

Se tomarmos como parâmetro a língua escrita, podemos perceber que a existência de (quase) in­contáveis gêneros constitui um campo privilegia­do para o entendimento funcional dessas possibi­lidades de variação da língua.

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No capítulo 3, já discorri sobre a questão dos gêneros textuais. Volto a esse ponto, aqui, focalizando, especificamente, a significação dos gêneros para a confirmação do caráter flexível e variável dos textos escritos. Alguns conceitos são reiterados na mesma perspectiva de sublinhar a diversidade da escrita, em geral, vista como mais uniforme que a fala.

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2. Língua escrita, variação e gêneros textuais

Dentro das semelhanças existentes entre as modalidades oral e es­crita da língua, uma, sem dúvida, reside na constatação de que os textos escritos também admitem variações, de modo que, a rigor, não existe uma escrita uniforme, inteiramente padronizada e submissa a uma única for­ma. Se é verdade, segundo propõem Schneuwly, Dolz et alii (2004), que não existe "o oral", mas, "os orais", também é verdade que o que existe são "escritos", como expressões da multiplicidade de conteúdos e de propósi­tos comunicativos dependentes das práticas sociais de escrita.

Na mesma perspectiva de uma escrita plural, se aplicam as palavras de Dubois et alii (1989, p. 609), quando definem a variação como um fenômeno pelo qual, no cotidiano da atuação verbal, uma língua nunca é, "numa época,

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num lugar e num grupo social determinados, idêntica ao que foi em outra época, em outro lugar e em outro grupo social" (destaque nosso).

A aceitação desse princípio implica que se esteja considerando a lín­gua escrita para além da frase, isto é, na sua forma textual e como ativi­dade interativa, a qual, por sua vez, é parte significativa da atuação social das pessoas. Ficar no exercício de formar frases, copiar frases, analisar frases escritas não permite a ninguém perceber o fenômeno da variação, uma vez que esta, reiteramos, decorre exatamente das diferentes circuns­tâncias em que acontece a interação. Ou seja, a escrita, como atividade de linguagem, tem que ser percebida na sua dimensão de texto. Tanto para quem escreve quanto para quem lê.

Com efeito, escrever é, simultaneamente, inserir-se num contexto qual­quer de atuação social e pontuar nesse contexto uma forma particular de interação verbal. Daí que, além das determinações do sistema linguístico, a interação verbal por meio da escrita está sujeita também às determina­ções dos contextos socioculturais em que essa atividade acontece.

Ora, sabemos que as formas de atuação social que as pessoas empre­endem são múltiplas e diferenciadas, pois resultam de situações também múltiplas e diferenciadas, no tempo e no espaço, ou respondem a inten­ções e objetivos vários. A própria singularidade inscrita na determinação da natureza humana conduz à previsibilidade da variação, da desseme­lhança, da heterogeneidade, da instabilidade. A história da humanidade se confunde com a história da mudança, da ininterrupta quebra do esta­belecido pela introdução do novo, nesse contexto, já não inesperado.

Pode-se admitir, portanto, o princípio de que a língua varia também na sua modalidade escrita, em decorrência da imposição de adequar-se às diferentes situações de uso em que se insere. As línguas existem para essas situações, em função de suas solicitações interacionais.

Os textos estão sempre em correlação com os fatores contextuais pre­sentes à situação de comunicação, o que, de certa forma, influencia até mesmo a escolha do tipo e do gênero a ser escrito. O fato de que cada tipo de texto é caracterizado pela predominância de determinadas marcas lin­guísticas de superfície (por exemplo, o emprego de certos tempos verbais

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- o imperfeito, para o tipo descritivo; o imperativo, para o tipo instrutivo; o perfeito para o tipo narrativo etc.) não deixa de ter suas raízes mais re­motas em aspectos de sua dimensão contextual.

Também em decorrência desse foco contextual é que um gênero do tipo narrativo pode requerer mais ocorrências de marcadores temporais que deem conta do fluxo cronológico em que as informações se distri­buem (anterioridade, simultaneidade, posterioridade). Um gênero do tipo dissertativo, ao contrário, demanda outra classe de marcadores, uma vez que, em geral, estão em jogo sequências apoiadas em evidências de mui­tas outras ordens, normalmente evidências atemporais. Isto é, até mesmo as determinações linguísticas de um texto têm raízes nas condições reais de sua produção e recepção.

Dentro dessa perspectiva da variação dos textos em função dos con­textos em que circulam, a linguística, sobretudo aquela de orientação pragmática, tem proposto e desenvolvido a categoria discursiva de gêne­ros textuais, na pretensão de caracterizar as especificidades das manifes­tações culturais concernentes ao uso da língua e de facilitar o tratamento cognitivo desse uso, seja oral, seja escrito.

Tais gêneros têm sido definidos como constitutivos da situação dis­cursiva e como modelos mais ou menos estáveis de textos (Bakhtin, 1995). Essa categoria soma-se à outra, já bem mais conhecida, dos tipos textuais, porém amplia-a, no sentido de que especifica e regula os conteúdos, a es­trutura de organização e as próprias configurações dos textos. Por isso, os gêneros supõem regularidades que não se limitam ao que é dito, mas que especificam um modo próprio de dizer. Sob esse ponto de vista, os gêneros ditam, numa espécie de coerção tácita e generalizada, modos estabilizados de dizer. Partilham, assim, características comuns, embora sempre vulne­ráveis a mudanças. Inscritos no universo cultural de cada grupo, os gêne­ros fazem parte do conhecimento de mundo desse grupo e constituem, por isso, elementos de seu saber partilhado. Ninguém é totalmente "soberano" no momento de atuar verbalmente. Prevalece o imperativo maior de fazer valer nossa condição de seres sociais, "livremente" submetidos, também, às coerções de modos específicos de organizar nossos discursos.

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Uma visão, mesmo sumária, dos gêneros escritos dá conta desses múltiplos modos específicos de dizer, o que comprova a variabilidade que pretendo evidenciar com esta reflexão. Na verdade, convivemos, no dia a dia de nossas escritas e leituras, com:

- notícia, reportagem, editorial, artigo de opinião, entrevista, nota de esclarecimento, carta, convi­te, circular, intimação, anúncio, publicidade, avi­so, boletim, folder, edital, declaração, atestado, parecer, (auto)biografia, regulamento, código, estatuto, ata, boletim de ocorrência, relatório, requerimento, curriculum vitae, projeto, mono­grafia, dissertação, tese, ensaio/artigo acadêmico, resumo, resenha, petição, despacho, sentença, ofício, mandado, procuração, contrato, portaria, escritura, memorando, recibo, receita culinária, provérbio, instrução/modo de uso, prognóstico do tempo, horóscopo, roteiro turístico, laudo médico, bula, anedota, adivinhação, prece, cardápio, con­to, romance, fábula, crônica, poema, home page, portal, site, e-mail, blog, entre muitos, muitos ou­tros, difíceis até mesmo de serem enumerados.

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É difícil apresentar uma lista exaustiva dos gêneros escritos que circulam nos mais diversos grupos e esferas sociais do momento. No entanto, Sérgio Roberto Costa publicou recentemente um livro - Dicionário de gêneros textuais - onde é possível encontrar uma relação de um grande número desses gêneros, com apresentação de suas principais características, além de uma preliminar discussão teórica sobre o assunto. É preciso reconhecer quão oportuna é essa iniciativa, pois as solicitações de que os professores abordem as teorias e práticas sociais da produção e recepção de textos são cada vez mais frequentes.



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Meu interesse com essa discriminação, mesmo muitíssimo parcial, é, em primeira mão, tornar mais evidente ainda quanto a escrita de textos supõe uma variação de modelos e de apresentação formal. Em segundo, criar um pano de fundo para pensar mais tarde a questão do ensino da língua nas escolas.

Há um aspecto que parece contrariar esse prin­cípio da diferença dos modos de dizer. Na verdade, a variedade de que se fala não é aleatória. Acontece nos limites impostos pelas convenções estabelecidas nas já mencionadas condições de funcionamento da ativi­dade verbal. Ou seja, os gêneros constituem modelos específicos de texto, diferentes entre si, mas essas diferenças são, umas mais, outras menos, controladas pelas próprias convenções sociais.

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Assim é que as diferentes classes de gêneros constituem um conjunto regular de formas e de padrões de ocorrência, de maneira que essas clas­ses são reconhecidas como protótipos, convencionalmente estabelecidos e socialmente esperados. Constituem, assim, padrões historicamente se­dimentados e, assim, orientam e regulam a atividade verbal, pois todo texto se apresenta a um tempo, típico e singular, como propõe Bronckart, em seus trabalhos sobre o interacionismo (ver indicações na bibliografia).

É também sob essa condição de típico que se dá a demarcação de seu arranjo sequencial, incluindo "os elementos obrigatórios", "os elementos opcionais", "os elementos iterativos" (segundo mostram Halliday & Hasan, 1989) - mais ainda a delimitação de seu sentido global (segundo propõe van Dijk, 1984, Adam, 1990; entre outros).

Assim é que podemos, prever, por exemplo, quais elementos podem constar numa carta, num requerimento, num aviso, e em que ordem eles vão aparecer. É evidente que tais previsões podem ser quebradas, na de­pendência da intenção do sujeito de, violando-as, conseguir um efeito co­municativo qualquer.

Essa condição dos gêneros, a um tempo típicos e flexíveis, é reflexo da natureza mesma da língua, também ela, simultaneamente, sujeita à tradi­ção e à ação livre da sociedade. Se, por um lado, nas palavras de Saussure (1973, p. 88-90), uma língua é "radicalmente incapaz de se defender" dos fatores que, constantemente, a deslocam, por outro, a solidariedade com o passado restringe e controla esse inevitável deslocamento.

Em suma, os gêneros põem em evidência a complexidade da constituição dos textos: são multiformes e, simultaneamente, prototípicos, em atenção mesmo à natureza convencional das instituições sociais em que acontecem.
3. Língua escrita, variação e ensino

Para começo de conversa, temos em conta que o desempenho dos alu­nos, na escrita, não tem correspondido, em geral, ao dispêndio de tempo e de recursos envolvidos na atividade pedagógica do ensino da língua. A experiência com a avaliação de textos de alunos, mesmo no final do ensino

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médio, autoriza que tenhamos um certo "espanto" frente a certos de­sempenhos normalmente injustificáveis.

Mas, esses resultados já têm sido denunciados e com algum destaque, embora, quase sempre, eles sejam atribuídos mais aos alunos do que às inadequações do sistema escolar, incluindo aí a formação dos professores, a distribuição do tempo escolar, o número de alunos por sala, a escassez e a pouca qualidade do material didático disponível etc. Neste instante, prefiro deter-me no que poderia ser feito, em termos de um ensino escolar mais eficaz da língua escrita.

- O ensino da língua escrita deveria privilegiar a produção, a leitura e a análise dos diferentes gêneros, de cuja circulação social somos agentes e testemunhas. Os critérios de escolha desses gêneros de textos, conforme cada estágio da escolaridade, poderiam advir da observação das ocorrências comunicativas atuais, ou seja, daquilo que, de fato, é usado no cotidiano de nossas transações sociais. A diversidade de gêneros requisitada pela diversificação de seus usos, em tão diferentes domínios discursivos, e pela importância crescen­te que se tem atribuído à escrita são justificativas relevantes para buscar promover a competência dos alunos na produção e na recepção de textos adequados e relevantes socialmente. Aliás, o conhecimento da diversidade de gêneros em circulação, como já referimos, também faz parte de nosso conhecimento de mundo, também constitui parcela de nossa cultura social.

- A superestrutura típica de cada gênero, conforme está legitimada pelas convenções sociais, constituiria um dos pontos centrais desse estudo. A cara de uma carta, de um relatório, de um projeto, de um aviso etc. seria um dos objetos de estudo. A partir da consideração dessa cara prototípica e que seriam exploradas as possíveis variações que podem acontecer dentro de um mesmo gênero. Dessa forma, a escrita de textos, sem referência

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Imaginemos as dificuldades para se escrever um texto com base na seguinte solicitação: "Faça um texto a partir desta figura" (é apresentada, ao lado a figura de uma paisagem, de um animal, de uma pessoa etc..) Mas, texto de que gênero? Com que finalidade? Para quem? Para constar em que suporte? Admira que os alunos tenham dificuldade Para escrever bons textos?



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às suas especificidades de gênero, daria lugar à escrita de gêneros específicos, ressalto, que supõem planos de desenvolvimento, de progressão e de ordenação diferentes. O foco da competência em escrita deixaria de ser a correção gramatical ou a higiene ortográ­fica das palavras. Não que esses elementos não sejam, em alguns contextos, importantes; mas não podem ser o foco, a prioridade do que se ensina. É preciso ter olhos para enxergar a complexidade do próprio exercício da linguagem e a hierarquia de importância que os elementos desse exercício implicam.

- As motivações para escrever na escola deveriam inspirar-se nas mo­tivações que temos para escrever fora dela. Se alguma vez fazemos descrições a partir de figuras, é com alguma finalidade definida; por exemplo, para apresentar a alguém um objeto que está à venda ou para fundamentar nossa discordância frente a uma solicitação de preço. A propósito, os técnicos em engenharia civil, muitas vezes, fazem descrições dos imóveis que vistoriam. Ninguém, porém, faz descrições aleatórias, para nada, sem alguma finalidade definida. Normalmente, sobretudo, no ensino médio, o trabalho escolar tem- se fixado na produção de um modelo de "redação", um texto com uma cara só, engessado em uma forma rígida de desenvolvimento; na verdade numa "fôrma" igual para todos. Sem traços da singulari­dade autoral. Nem mesmo o fato de alguns vestibulares terem pluralizado suas propostas de escrita tem sido suficiente para levar a escola a também diversificar suas solicitações de produção escrita.

- A gramática da língua - um quebra-cabeças (para uns, quase sem solução!) na vida de grande parte dos professores - seria a gramáti­ca requisitada por esses gêneros, em função do que se poderia esta­belecer, com mais precisão e muito mais consistência, o alcance das regras e, principalmente, o impulso para minimizar o estudo das no­menclaturas e das irrelevâncias classificatórias. Seria uma gramática dos gêneros, voltada para os diferentes domínios sociais de ocorrên­cia desses gêneros, lugar onde a língua, de fato, cobra inteira relevân­cia. Seria uma gramática mais próxima das operações que as pessoas realizam quando usam a língua em situações concretas de comuni­cação. Pareceria assim irrelevante, inócua, inalcançável? Despertaria

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tanta aversão entre os alunos? Reforçaria a crença de muitos de que não sabem português, claro!, uma língua muito difícil? Explorar os gêneros seria uma forma de explorar a língua acontecendo; uma lín­gua à altura das capacidades cognitivas de qualquer um.



- Na prática do ensino dos gêneros, devia-se destacar e explicitar a complexidade da variabilidade e da tipicidade dos textos, pondo-se em correlação a tensão natural entre o poder de escolha do sujeito e as injunções sociais que regulam o uso da língua. Dessa forma, o sujeito se via como alguém que pode decidir, frente à sua criação individual e, ao mesmo tempo, como alguém que pertence a uma comunidade onde se vivência a solidariedade linguística. Ou, ainda, como autor singular do seu texto e participante da ampla e irrestri­ta intertextualidade dos usos sociais da língua.

- Ainda, pela concentração nos gêneros, se poderia, com pertinên­cia, identificar o destinatário do texto (ou os destinatários, se fos­se o caso), em seu papel social particular, para levá-lo em conta na dosagem da informação veiculada, na antecipação das posições contrárias e, mais pontualmente, na escolha sintático-semântica das unidades linguísticas. Outro aspecto favorecido seria a identi­ficação do lugar e do momento institucional em que o texto seria lido. Essa previsão constitui um dos parâmetros de seleção dos ele­mentos disponíveis nos paradigmas da textualidade. Quem escreve deve empenhar-se em assegurar, a seu leitor, as pistas necessárias, em cada contexto, para que ele possa reconhecer os sentidos e as intenções pretendidos, sem dificuldade.


Em síntese, o mito da uniformidade linguística e a compreensão in­gênua de uma escrita única, inalteravelmente padronizada, tão comum ao simplismo abusivo da prática escolar, seriam radicalmente abalados pelo confronto com a diversidade dos diferentes gêneros de textos. Se a predominância de um ensino da metalinguagem gramatical deixou a ideia de uma língua oral inalterável, muito mais ainda aconteceu em relação à língua escrita, vista, quase sempre, na sua realização formal ou, pior ainda, como exercício de uma "redação" sem intenção, sem fi­nalidade comunicativa, sem leitor, sem contexto. Exaurindo-se apenas na finalidade do treino.

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Que cheguemos, já, a um ensino de línguas que, em cada momento, estimule a compreensão, a fluência, o intercâmbio, a atuação verbal como forma de participação nossa na construção de um mundo, inclusive linguis­ticamente, mais solidário e mais libertador. Ou seja, privilegiemos o ensino de uma escrita socialmente relevante, não-excludente, encorajadora, cen­trada em tudo que dá sentido à grandiosa aventura da vida humana.

Será que o exercício de formar frases, aleatórias e soltas, pode promo­ver a competência das pessoas para realizarem a complexa atividade da interação verbal?

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eu bem que mostrei a ela, o tempo passou na janela e só Carolina não viu.

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Capítulo 13

CONCEPÇÕES DE LÍNGUA: ENSINO E AVALIAÇÃO AVALIAÇÃO E ENSINO



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Este texto foi apresentado, pela primeira vez, na Reunião Regional da SPBC, em Campina Grande (PB), de 07a 12 de novembro de 2003, durante a mesa redonda intitulada "Os descritores de LP no SAEB e sua relevância na atividade de ensino".

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O título da presente reflexão já sugere dois ní­veis de relação entre as questões que pretendo le­vantar neste capítulo:

- primeiro, a relação mais abrangente entre concepções de língua, por um lado, e ensino e avaliação, por outro;

- segundo, a relação mais pontual, de dupla direção ou de reciprocidade, entre ensino e avaliação.
1. Como perceber a relação entre concepções de língua e ensino e avaliação?

No âmbito deste primeiro ponto, começo por dizer que ensinar e ava­liar são 'atividades' e, como tais, são dependentes de um sistema de con­cepções, de um conjunto de princípios a partir dos quais se definem e se

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delimitam. Tais concepções ou princípios é que imprimem a direção da atividade, é que demarcam o fluxo, a direção e os objetivos de cada passo.

Assim é que, tenho insistido, na escola, nada acontece por acaso; isto é, tudo o que fazemos em uma sala de aula é consequência:

- do que percebemos,

- ou, em contrapartida, do que deixamos de perceber.

Assim, ensinar línguas e avaliar ensino de línguas são atividades que refletem as concepções que temos acerca do que é uma língua, do que são seus diferentes componentes, e de como tais componentes intervêm na sua atualização. Dessas concepções vai derivar, naturalmente, o próprio objeto do ensino e da avaliação e, em desdobramento, todos os paradig­mas de tratamento das questões linguísticas. Objetivos e conteúdos, ati­vidades e práticas, tudo vai ser apenas consequência das linhas teóricas às quais emprestamos credibilidade e saliência. As atuações pretendidas para as áreas do ensino e da avaliação ressentem-se, assim, da natureza das concepções teóricas que as inspiram.

Sob a perspectiva de uma língua que se constitui em atividade funcio­nal e interativa, as práticas de ensino e de avaliação não podem deixar de ser também funcionais e interativas. Ora, no domínio da linguagem, é fun­cional o que se faz dentro de determinado contexto, com um propósito co­municativo específico, num jogo de atuação social particular; no domínio da linguagem, é interativo ainda o que envolve, no mínimo, dois sujeitos, que, cooperativamente, se empenham com o fim de levar a cabo, com êxito, uma atuação comunicativa qualquer. Logo, deixam de ser prioridades as atividades meramente classificatórias ou de rotulação de unidades morfo­lógicas e funções sintáticas, sobretudo a partir de frases soltas.

Tudo o que envolve:

- a dialogicidade da língua,

- a construção e a expressão de sentidos e de intenções,

- em textos orais e escritos,

- formais e informais,

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- de gêneros diferentes,

- com propósitos comunicativos diversos,

- conforme as práticas sociais de que fazem parte é que passa a ser o núcleo do ensino e da avaliação.


Em síntese, em relação às questões linguísticas, o quê e como ensinamos e avaliamos estão na dependência imediata das concepções que temos acerca do que é uma língua, de como funciona e a que fins se propõe.
2. E como perceber a segunda relação, aquela mais pontual existente entre 'ensino' e 'avaliação'?

Comecemos por ressaltar que ensinar presume objetivos muito mais abrangentes, muito mais pre­tensiosos e abertos que avaliar. De fato, os limites do ensino são mais amplos, mais heterogêneos e sujeitos a determinações e atividades muito variadas. Além disso, as pessoas envolvidas na atividade de ensinar e de aprender, embora o façam, na escola, de modo sistemático e institucional, têm projetos que ultrapas­sam o andamento da própria instituição escolar.

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Aqui, nos referimos à avaliação que costumeiramente acontece na escola sob a forma de teste, prova e outros expedientes similares. Não perdemos de vista, no entanto, os objetivos mais amplos que a avaliação assistemática, continuada, formativa, implicada na própria atividade de ensino, envolve.



...
Em relação à avaliação, ao contrário, os parâme­tros são menos extensos. Os objetivos são mais pon­tualmente direcionados, e os limites decorrentes da natureza contingente e técnica de seus instrumentos implicam uma série de restrições que afetam a extensão de seu alcance. Daí que determinadas habilidades podem ser mais facilmente submetidas a ex­pedientes de ensino do que a práticas de avaliação. Por exemplo, tudo o que se refere à oralidade pode e deve ser objeto de exploração no ensino e, nem sempre, pode ser avaliado, sobretudo sob a forma usual de testes e provas, pelas razões mesmas dos limites técnicos dos instrumentos de avaliação.

Apesar dessas diferenças, é inegável a recíproca relação entre ensinar e avaliar. Ambos são atos do "drama" institucional escolar, atos inerente­mente interligados e, em parte, intercondicionantes. Afinal, avaliamos o

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que é supostamente ensinado, com o claro objetivo de obter algum tipo de informação quanto à apreensão do que foi objeto da atividade de ensi­no. Esse movimento não significa que o ensino possa ter como finalidade a avaliação. O que ensinamos não tem importância simplesmente porque "é matéria de prova", ou porque "vai cair na prova", segundo é dito costu­meiramente. 0 movimento que se estabelece entre o ensino e a avaliação é de outra ordem: significa que a avaliação não pode ser aleatória, pois está vinculada ao que foi objeto de ensino.

Esse é o fluxo que vai do ensino à avaliação,

Por outro lado, a avaliação serve de referência para orientar as próxi­mas decisões de quem ensina. Ela confirma as suposições do professor, ou aponta as reformulações que precisam ser feitas em seus projetos e planos de ensino. Tem, portanto, uma função claramente pedagógica no sentido de que possibilita uma visão de como está ocorrendo o percurso do ensi­no. Quer dizer, a avaliação objetiva, em última instância, o ensino. Por isso mesmo é que não se pode restringir à aplicação pontual de testes e provas. Esses são apenas expedientes pontuais que vêm trazer mais dados acerca das atividades de ensino e de aprendizagem de professores e alunos.

Esse é o fluxo que vai da avaliação para o ensino.

Há, pois, na avaliação, um olhar que é retrospectivo - vê o que foi feito antes - e outro prospectivo, que aponta para futuros rumos e para futuras opções.

Essa condição de interinfluência entre ensino e avaliação, contudo, deve passar de um saber intuitivo e ser percebida conscientemente. Isto é, deve ser explorada explicitamente; para que os sujeitos tenham ciência das razões que justificam o fato de estarem sendo avaliados e, assim, par­ticiparem mais ativamente do processo. Nessa perspectiva, as situações de avaliação poderiam ser vistas como oportunidades para que fossem reveladas e discutidas as ações que concorreram para o êxito do processo ou, em contrapartida, as ações que dificultaram ou foram desfavoráveis a uma aprendizagem mais significativa. Nessa perspectiva, ainda, as si­tuações de avaliação deixariam de ter aquele caráter redutor (expresso apenas em números), aquele caráter de prestação de contas, para serem

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o momento de um olhar mais preciso e mais objetivo sobre como se está ensinando e aprendendo.

Longe, portanto, de considerar aqui aquela avaliação simplista e ime­diata que tem por objetivo, sobretudo, "corrigir" o desempenho do aluno em uns dias determinados: dias de provar, como num tribunal, que consta na memória o que foi ensinado. Tanto a escola focalizou essa prática da correção, que, depois dos dias de avaliação, o que os alunos nos pergun­tam é se "já corrigimos sua prova". É lamentável que a escola, também neste setor da avaliação, tenha reduzido suas funções e emprestado a ela sentidos tão curtos e irrelevantes.

A avaliação perspectivada aqui é aquela que alimenta o processo de ensino. Volta a ele. É signo. Atesta. Fala dos resultados. É ponto de referên­cia, para projetar o caminho adiante. Com segurança. Sem impressionismos ou intuições, apenas. É, portanto, ampla, multifuncional, imprescin­dível e tem, reiteramos, uma indissociável relação com o ensino.

Vale lembrar, no entanto, que a avaliação é um processo que envolve pessoas e, como tal, não acontece de forma linear, inteiramente transpa­rente e inequívoca. Ressente-se de toda a imponderável complexidade e heterogeneidade que envolvem as atuações humanas. Só muito simplistamente poderíamos admitir um mútuo condicionamento entre ensino e avaliação que não refletisse a previsível imprevisibilidade de todos os processos humanos.

A esta altura, assoma uma questão bastante polêmica nos dias atuais, a questão do vestibular: um conjunto de provas em torno dos programas curriculares desenvolvidos até o final do ensino médio, instituído para avaliar e selecionar os candidatos ao ensino superior. Naturalmente, es­tes objetivos deixaram o vestibular, nos primeiros anos de sua instalação, em forte vinculação com o ensino médio, sendo os conteúdos das provas pensados a partir dos programas curriculares vigentes. Ou seja, as provas eram elaboradas conforme os programas executados.

Porém, mais do que se pudesse esperar, o vestibular foi assumindo uma grande e inusitada repercussão social, com desdobramentos em todos os pontos do país e em todas as classes sociais, principalmente na classe média, para quem o vestibular chegou a ser uma espécie de objetivo a que não se podia fugir.

221
...

Sei dos limites que as provas do vestibular têm constituído como instrumento de avaliação do ensino. No entanto, quero aproveitar esse espaço para referir as repercussões (algumas, positivas) que o vestibular teve em relação ao ensino, sobretudo no âmbito do ensino de línguas. É bem verdade que essas repercussões poderiam ter sido bem mais expressivas, se, por exemplo, as questões discursivas tivessem levado o ensino a focalizar as regularidades textuais.

...

Pouco a pouco, as referências foram se inver­tendo, e o vestibular é que passou a ser o ponto de referência para o ensino, em algumas escolas. Assim, não era mais o ensino que ditava as regras do vestibular, mas, ao contrário, o vestibular é que inspirava, que orientava e dirigia cada setor do en­sino médio e até do ensino de etapas anteriores.



Nestas circunstâncias, era com base no ves­tibular que as escolas decidiam o que ensinar ou deixar de ensinar. Era prioritário, nos programas do ensino médio, o que caía nos exames vestibu­lares, que passaram, assim, a funcionar como a finalidade, o ponto de chegada do ensino.

Até bem pouco tempo (?), "estudar para o vestibular" era a meta que esgotava toda a pro­gramação da escola. Na esteira dessa influência, veio a indústria dos cur­sinhos, vieram as incontáveis produções de apostilas e fichas, cada uma sintonizada com as tendências das últimas provas. Ou seja, o vestibular passou a definir tudo; não havia imprecisão ou qualquer falta de rumo. Os parâmetros estavam, claramente, e sem ambiguidades, definidos. Este quadro, muito bem pintado por Britto (1997), ainda permanece substan­cialmente, em alguns pontos do país.

Tal inversão - do vestibular para o ensino - pelas circunstâncias em que aconteceu, foi incontestavelmente perniciosa. Primeiro, porque, por mais que sejam ampliadas as possibilidades avaliativas de uma prova, nunca se pode atingir todo o contingente do que é possível fazer à volta de um objeto de ensino; segundo, porque, nos moldes em que inicialmente o vestibular acontecia, as provas, inclusive a de português, punham em rele­vo apenas aspectos pontuais e metalinguísticos da comunicação verbal.

Além disso, tal inversão foi perniciosa, porque nada garante que todos os alunos que concluem o ensino médio pretendem ingressar na universidade.­

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Aquele que optasse por não fazer vestibular teria tido restrita a oportunidade de ampliar seus conhecimentos (e suas competências co­municativas, no caso de estudo de línguas).

Muito do que é necessário aprender para atuar como um cidadão conscientemente participativo e um profissional competente não cabe nos limites restritos das questões de qualquer vestibular. 0 vestibular re­presentou, portanto, uma redução dos amplos fins a que a escola se pro­põe para formar e informar o jovem cidadão; uma redução que chegou a ser perversa e nociva.

Tem-se que reiterar o óbvio: é "pouco demais" dispor a escola toda, seus objetivos, seu ideal maior, seus programas, suas atividades - e até a formação dos professores - em função dos limites estreitos de uma prova de vestibular, uma prova que é apenas uma circunstância, uma contingên­cia pontual de um momento temporalmente localizado.

Esta redução sujeitou a escola a todos os jogos da competitividade de mercado, mesmo quando, para isso, se tivesse que abrir mão dos ideais que definem a natureza da autêntica prática educativa.

Em suma, se, no início, o ensino "alimentou" os ideais do vestibular, os definiu, os estipulou, posteriormente, o vestibular passou a ser a re­ferência do ensino, e com a agravante de que as diretrizes do vestibular nem sempre coincidiram com o que há de mais consistente e relevante em termos do que deve ser uma avaliação.

Em relação ao ensino de línguas, o quadro dos vestibulares não foi di­ferente, embora apresentasse as suas idiossincrasias. Até poucas décadas atrás, as concepções de língua que orientavam o ensino ressentiam-se da visão imanentista, descontextualizada e normativa da língua, o que re­percutiria, inevitavelmente, no tratamento das questões linguísticas pre­sentes às provas. Toda uma tradição histórica, que não cabe analisar aqui, havia conferido à gramática um valor que não corresponde a suas autênti­cas dimensões e às suas específicas funções. E daí provieram muitos equí­vocos, distorções, simplismos e reduções acerca dos fatos linguísticos.

E o círculo (vicioso!) aqui também se instaurou: começou pelo fato de a prova copiar o ensino, para, depois, o ensino copiar a prova. Os primeiros

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vestibulares consolidaram, assim, o ensino de uma língua cujos fatos se restringiam aos limites de sua própria natureza interna e, consequentemente, de uma gramática cuja pretendida consistência a isentava de qualquer interferência externa.

Por este viés, a escola reforçou o caráter normativo-prescritivo dos usos da língua, e reafirmou o único foco que parecia poder dirimir todos os problemas da língua: o foco da correção, do irrefu­tavelmente certo.

...


Professor de português é, no consenso geral, alguém cuja competência maior parece ser a de apontar "erros" e, por outro lado, "mostrar" a forma certa de dizer as coisas. Por sinal, a verdadeira "identidade" do professor de português, em relação às exigências de agora, ainda precisa ser mais bem definida. Nesse sentido, é útil a consulta ao livro de Paulo Coimbra Guedes (cf. bibliografia).

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Nessa perspectiva, o que poderia ganhar sali­ência eram as regras morfossintáticas, conforme estavam descritas nos manuais e, depois, o campo das nomenclaturas e das classificações metalinguísticas. Estudar a língua era, assim, afastar-se da intrínseca heterogenei­dade de seus múltiplos usos, para, através de abstrações de toda ordem, dar conta das mais refinadas, inusitadas e inequívocas particularidades de identificação dos fatos.

Nem é preciso considerar quanto, dentro e fora da escola, os limites tão estreitos destas concepções repercutiram nas representações acerca do que seja uma língua, do que seja estudar uma língua, de quem seja o professor de língua e o que lhe compete saber e fazer.

Com o tempo, as reações a esses simplismos surgiram e resultaram, entre outras medidas, na inclusão da prova de redação no vestibular: um meio de marcar o lugar da língua como uso, como expressão, cujo exercício naturalmente implica a ativação de conhecimentos de diversas ordens.

Pretendeu-se, assim, providenciar para o vestibular um instrumento dis­cursivo de avaliação, capaz de apreender mais fielmente a competência co­municativa dos alunos e, em consequência, levar a escola à exigência de trazer para os programas de ensino da escrita a exploração de questões textuais.

Nesses moldes, o vestibular também assumia uma dimensão pedagógi­ca, pois era legítimo esperar que as escolas providenciassem programas e meios de desenvolver nos alunos a competência para a produção de textos

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escritos adequados a uma situação de avaliação formal. E, de fato, em geral, professores e alunos começaram a escrever mais na escola. Redação passou a ser uma disciplina do currículo, com professor e horário específicos.

Porém, por razões de diferentes ordens, as oportunidades de exercício da produção escrita têm acontecido em condições bastante limitadas, sem a necessária interlocução com outros textos e na rigidez quase mecânica de modelos tipoló­gicos e de estratégias discursivas que anulam a subjetividade necessária a toda autoria. Entre es­sas razões, vale a pena destacar a insuficiência da formação dos professores - que devem saber es­crever bem para poderem ensinar com eficiência - e as conveniências ditadas pelos interesses de lucro, que fazem algumas escolas superlotarem as salas e, praticamente, inviabilizarem um traba­lho mais sério com a escrita de materiais funcionalmente significativos. Nesse contexto, a redação passou a constituir um modelo rígido de texto, com um desenvolvimento e uma apresentação "engessada", submetida a normas, por vezes, irrelevantes e estranhas. A grande relevância era atribuída à correção gramatical e à apresentação formal do texto.

...

Um aluno do 3º ano do ensino médio me contou que seu professor de redação lhe havia ensinado que numa redação não podiam ocorrer mais de quatro 'quês'. Com base em que estudos, pensei eu, se pode dar uma orientação como essa? Como deve ficar confuso alguém que a recebe assim sem mais!



...
Mas, na sequência dos anos, malgrado todos esses senões, a prova de redação veio a ser um indicador privilegiado para avaliar a qualidade do desempenho linguístico dos alunos. Na verdade, ela tem sido uma das forças que, mesmo com limites, tem empurrado o ensino para os usos da língua, nomeadamente, para os usos formais da língua escrita.

Em síntese, o (inevitável?) instrumento do vestibular, no que concer­ne ao estudo das línguas e às capacidades discursivas dos alunos - tem favorecido um interesse maior da escola para abrir-se às dimensões inte­rativas, sobretudo em seus usos de leitura e escrita. Muitas universidades do país já elaboram seus programas de vestibular com base naquelas di­mensões de uso da língua. Pode-se esperar (e se deseja!) que esses pro­gramas inspirem, nas escolas, a definição de outros objetivos e de outras programações. Pode-se esperar, ainda, que esses programas inspirem um

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outro perfil do professor de línguas, o que poderá repercutir, inclusiva­mente, nas instituições de formação.

Lembramos também que, atualmente, é evidente a disposição dos ór­gãos institucionais - acadêmicos e administrativos - para oferecerem um suporte teórico capaz de promover concepções de avaliação mais amplas, mais condizentes com as condições reais de uso da língua. Aí está o do­cumento dos Parâmetros Curriculares, aí estão as orientações que funda­mentam as avaliações do SAEB, e do ENEM, como nos mostra Beth Marcus- chi, em seu trabalho de 2006, apontado na bibliografia. Aí estão, ainda, os critérios a partir dos quais é feito o exame dos livros didáticos no PNLD.

Ou seja, pode-se constatar, no momento presente, uma visão de lín­gua que já inclui sua realização como uma das formas de as pessoas atuarem socialmente; ou, uma visão que privilegia a natureza dialógica e interativa da língua, sua dimensão discursivo-textual, sua irrestrita e inevitável dependência das múltiplas e variadas condições de uso. Não apenas o ensino, mas também a avaliação podem, neste instante, des­frutar de bases teóricas capazes de respaldar opções pelas múltiplas competências implicadas nos usos da modalidade oral e da modalidade escrita da língua.

No entanto, apenas tímidas e pouco substanciais mudanças têm acon­tecido no âmbito do ensino. O peso de uma experiência histórica, que miticamente foi defendida como a legítima, ainda exclui de seus objetos de ensino-aprendizagem e avaliação o uso interativo e interpessoal da lín­gua. Nem mesmo a constatação de que certos pontos já não são objeto de questões em provas de vestibular, nem mesmo a significativa pontuação atribuída à prova de redação têm tido a força suficiente para deslocar, tan­to quanto era previsível, o foco do ensino da pura metalinguagem, classificatória e terminológica, para o ensino das competências e habilidades exigidas pela interação social adequada e relevante. Aquilo que os novos modelos de provas podem ter querido demonstrar parece ainda não ter criado vínculos efetivos nas escolas.

Sumarizando todas as considerações aqui levantadas, insistimos em que não se pode negar a vinculação entre as concepções de língua e as ati­vidades pedagógicas de ensinar e avaliar. Como não se pode negar, ainda,

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a reciprocidade de relação entre ensinar e avaliar, logo, consequentemen­te, entre as oportunidades de avaliação e o ensino.

Mas, queremos ressaltar um ponto: por mais previsíveis que sejam tais relações, elas nunca acontecem de forma linear e inequívoca. Ou seja, por mais que se pretenda para a avaliação a pretensão pedagógica de in­terferir no ensino, são sempre ainda limitadas tais interferências, pois intervir em educação é muito mais que, pela lógica dos cálculos e da pon­tuação dos resultados, transpor elementos de um universo para outro.

Tudo o que envolve ensino e avaliação envolve a inexorável imprevisibilidade da dimensão humana. O que é absolutamente previsível é que não podemos abrir mão dos ideais. Nunca foi tão urgente promover uma escola que seja, de fato, uma porta de entrada de todas as pessoas para o mundo da participação e do desfrute dos bens materiais e culturais que temos produzido.

Faz muito tempo que as portas da escola (pelo menos da escola que favorece o engajamento, a participação) não se abrem para todos. E, nesse tempo, o ensino e a avaliação que fizemos em torno da língua "excluíram" mais que "botaram pra dentro" aqueles que nos bancos da escola se sen­taram. Escola que representa, de qualquer maneira, um de nossos direi­tos fundamentais.

...


A SOCIEDADE PODE ESPERAR?

...


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Capítulo 14

RESUMINDO A ESCUTA...

Por vezes, as mudanças não implicam remover os objetos ou, simples­mente, destruí-los. Até porque existem objetos que não podem ser destruí­dos. Muitas vezes, as mudanças implicam apenas uma mudança de pers­pectiva, um olhar por outro ângulo, o que acaba por ser um novo olhar.

Olhar a língua como marca de nossa identidade cultural dá-lhe uma dimensão política, histórica; acentua-lhe o caráter social e dá visibilidade a seu destino interativo. Amplia-a, pois, enormemente. E pode fortalecer o 'analista da linguagem' que existe, intuitivamente, dentro de nós. Pudemos, historicamente, ter deixado de ver muita coisa relevante na linguagem, nas línguas nossas e de todo o mundo, porque nos taparam os olhos, ou, pelo menos, nos desviaram o olhar para os calos das superfícies imediatas.

Por esse olhar amplo - de horizontes quase infinitos - também pode­mos enxergar o laço entre nossas capacidades para usar a linguagem e o exercício diário da cidadania. Com efeito, a linguagem é uma das formas de exercermos o poder. 0 poder que advém do fato de sermos sujeitos de nossos próprios destinos. 0 poder de recusar-se a ser objeto. 0 poder de ter consciência de nossos direitos e deveres. 0 poder de 'emergir', de admirar; de dar sentido às coisas; o poder de interagir, de partilhar; de superar as dificuldades; de criar situações novas, que nos permitam que­brar as amarras, vencer os limites.

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Uma língua, situada, contextualizada, definida pelas circunstâncias, aten­ta aos usos já feitos e àqueles outros possíveis, representa a posse de um inestimável recurso para viver todas as dimensões da condição humana.

Essa língua situada é a língua viva dos textos, melhor dizendo, dos gêneros textuais, que se materializam numa quase infinita diversidade de práticas sociais. Na verdade, não falamos, não escrevemos, simples­mente. Construímos gêneros, segundo as convenções já estabelecidas por outros que nos antecederam ou que conosco convivem. Concretamente, o que ouvimos, o que lemos, o que nos chega pelo correio, eletrônico ou não, vem organizado, arrumado sob a forma de gêneros: é um folder, uma carta, um e-mail, um atestado, uma notícia, um depoimento, uma crônica, um comercial, um mapa, um abaixo-assinado, um diagnóstico, um aviso, um questionário, uma lista etc. etc. etc. (quantos etcs. caberiam aqui?). Tem pleno sentido, portanto, aterrissar no fértil terreno dos gêneros para construir aí a base de um ensino que seja, de fato, ensino da língua que falamos, ouvimos, lemos e escrevemos. A língua "misteriosa" (para não dizer vazia) das nomenclaturas e classificações metalinguísticas dá lugar à língua com que interagimos da manhã à noite, isto é, a língua expressa em gêneros textuais socialmente "estabilizados", como admitiu Bakhtin.

Somente um ensino nessas perspectivas pode desenvolver no profes­sor e nos alunos a capacidade de ir além dos elementos linguísticos da atividade verbal. Constantemente, somos desafiados a encontrar sentidos e intenções nos textos que construímos e recebemos. A experiência de nossas interações nos tem mostrado quanto a linearidade (visual ou au­ditiva) do texto é insuficiente. 0 mergulho lá pelas entranhas é que pos­sibilita, muitas vezes, o êxito de nosso encontro com o outro. Falar, ouvir, ler e escrever não são atividades que se esgotam na superfície. 0 sentido pleno está bem mais abaixo.

No entanto, essa necessidade de descida não implica que os objetos da superfície, quer dizer, as palavras e sua arrumação, não tenham seu peso e sua validade. 0 material linguístico com que realizamos nossas ações verbais são, junto a outros fatores, condição da sua coerência. As palavras são nossas serviçais, é verdade, mas (sobretudo fora da litera­tura) também têm as suas exigências, seus limites de combinação e podem­

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nos penalizar - com as consequências socialmente desconfortáveis da produção ininteligível - quando não os respeitamos. É condição da coerência, pelo menos da coerência linguística, que cada palavra ocupe, pelo seu sentido e sua função discursiva, a fenda sintática que lhe cabe na composição do texto.

Apesar dessa coerção exercida pela natureza morfossintática e semân­tica das palavras, todo texto é um espaço cheio de vazios, que precisam ser preenchidos na atividade mesma da interação. 0 "tudo" que queremos significar, ou seja, o texto "completo", é naturalmente "incompleto". É pre­ciso que as palavras compareçam à cena da interação. Mas não é preciso que venham todas. Por vezes, uma, apenas, traz embutida não sei quantas. Ou, o conhecimento que temos do objeto ou do cenário de que falamos já dispensa uma série delas. Este jogo é complexo: necessita saber quais palavras precisam comparecer; quais são dispensáveis, pois já são inter­pretáveis mesmo ficando, assim, subjacentes. É confortável saber que, em geral, nos saímos relativamente bem nesse jogo do "esconde-esconde" de palavras. Seria bem pertinente que, em nossas salas de aula, prevíssemos tempo para a análise das muitas formas de esse jogo acontecer. Na verda­de, o estudo dos implícitos tem sido pouco explorado nos programas de línguas. Uma virada em direção à linguística e um simultâneo desprega- mento da gramática levariam a programação de nossas aulas para dire­ções bem mais relevantes. Por exemplo, a grande questão dos implícitos poderia ocupar muito tempo de análise. Uns gêneros mais que outros propiciam o recurso a esses implícitos. A escola é que deve assumir essa tarefa de explicar, de analisar como a língua funciona, na sua explicitude sempre "incompleta", exatamente, por ser funcional e interativa.

Curioso é que esses vazios, mais ou menos, vão repercutir, entre ou­tros fatores, no teor de informatividade do texto. Quer dizer, todo texto é, em alguma medida, portador de um sentido, que, por muitos motivos, é, em cada situação, mais ou menos previsível. Quanto mais o entendi­mento é previsível, menos esse texto mobiliza a capacidade interpretativa do interlocutor. A conformação à regularidade prevista é, assim, por si mesma, pouco informativa. Dizer o óbvio, sob uma forma inteiramente conhecida é afetar esse teor de relevância informativa. A "novidade" do que se diz, seja no âmbito do conteúdo, seja no âmbito da forma, eleva

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o interesse pelo texto, pois requisita um trabalho interpretativo maior e mais aguçado. Um poema, por exemplo, é relevante em grau elevado exa­tamente porque, mesmo dizendo o óbvio, o faz de uma maneira inusitada. Um ensaio científico, ao contrário, pode apresentar um grau de informatividade elevado devido à novidade do conteúdo. Em suma, a relevância de nossos discursos não está em sua correção gramatical (por vezes, uma transgressão pode qualificar ainda mais o que dizemos!), mas no grau de "novidade" que eles expressam. O foco do ensino precisa ser essas e ou­tras regularidades da atividade verbal.

Com efeito, muito ou quase tudo do que se estuda na escola não põe seu referencial nas atividades de linguagem. O léxico, por exemplo, é con­siderado como se fosse isto mesmo: palavras isoladas, não destinadas a combinações, a compatibilidades, a formar cadeias na sequência do texto. Palavras isoladas, em fila, soltas do fluxo da textualidade e, por isso mes­mo, inexpressivas. As palavras existem para entrar na corrente do texto, para, com outras e por causa de outras, construí-lo e significar. Precisam ser vistas não apenas na perspectiva de itens que têm um significado, mas também como itens que realizam a construção mesma do texto, que asse­guram sua continuidade e sua unidade. As palavras são peças, pois, com que vamos armando essas continuidade e unidade. Por isso, precisam ser vistas também nessa dimensão da própria arquitetura do texto.

Arquitetura que nunca parte do zero. Retoma, de alguma forma, ou­tros modelos, outros ditos, outras vozes. Quer dizer, todas as atividades que envolvem a linguagem são, necessariamente, intertextuais. Ninguém é absolutamente original. Na verdade, a história é apenas o registro do grande discurso humano que nunca se partiu. Se esse princípio da inter­textualidade fosse explicitado e explorado na escola, seríamos advertidos para a funcionalidade de ampliar nosso repertório de informações - em consultas, debates, reflexões coletivas - a fim de suprir nossas necessida­des de interação, sobretudo quando se trata de produzir certos gêneros que requerem um maior domínio de informações. Não é fácil, por exem­plo, a escrita de alguns gêneros se não nos dermos ao trabalho prévio de reunir dados e ideias. Pois é: primeiro, juntar ideias; depois, expressá-las; mais depois ainda, revisá-las.

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Pelo que já dispomos de princípios teóricos, de orientações pedagógicas, de análises, de relatos de experiências didáticas, não parece tão difícil dar ao ensino de línguas uma direção mais pragmática, mais comunicativa, mais interativa, mais funcional. Quer dizer, já contamos com elementos a partir dos quais podemos traçar um caminho de ensino de língua que se distancie da mera exploração da metalinguagem, com suas nomenclaturas e classifi­cações infindáveis e que seja centrado nas funções sociais da interação ver­bal. Os alunos não demonstram a mesma qualidade de desempenho quando se trata de classificar categorias sintáticas e quando se trata de representar situações normais da comunicação cotidiana, oral e escrita. Há resultados de análise que comprovam: quando está em jogo uma atividade contextua­lizada, presa aos usos sociais da língua - sejam reais, sejam simulados - os alunos chegam a desempenhos bem mais significativos; desempenhos que não beiram os limites da incoerência, como acontece, em grande parte das vezes, quando se trata da análise sintática de frases soltas.

Não sem razão, portanto, ganham espaços as propostas de leitura e de escrita, centradas nas suas funções comunicativas e na diversidade de contextos culturais, o que leva, necessariamente, ao estudo dos gêneros e das diferentes estratégias discursivas de construir e apreender significa­dos e intenções. Estudo pensado e avaliado; constantemente.

A escola tem grandes possibilidades de abrir caminhos...

Foi o que pretendi com "essas mal traçadas linhas". Eu não queria elas recebessem um ponto final. Queria que tivessem algo assim como umas reti­cências, pois ainda vão ser completadas com outras linhas e outros dizeres.

...


CANTO E O NOSSO CANTO JOGA NO TEMPO UMA SEMENTE.

(Chico Buarque)

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