O dono do morro dona marta



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dia em outra coisa? Quem vai acreditá só na minha palavra?

Havia entrado na Argentina com um passaporte em nome de quem

fora o seu melhor amigo, o falecido Carlos Eduardo Calazans, o Du. Era

o único documento que tinha nesse primeiro mês de foragido, vivendo

com o dinheiro da ajuda do amigo João Salles. A primeira remessa de mil

dólares chegou pelas mãos do missionário Kevin, que gastou metade do

valor da mesada com as passagens de avião do Rio para Buenos Aires,

de ida e de volta. Queixava-se de que o dinheiro era insuficiente para

pagar hotel, comida e as despesas básicas. Em 1999, cada peso argentino

valia o equivalente a um dólar, um valor relativamente alto em relação à

moeda brasileira, o real. Eram necessários dois reais e meio para adquirir

um peso argentino e Juliano ainda não havia apreendido a lidar com essa

diferença no câmbio. Só na hora de pagar alguma conta ele descobria que
os preços das coisas e dos serviços eram altos demais para suas economias.

Logo na chegada, ainda sem ter noção dos preços, gastou oitocentos

dólares, que trouxera do Brasil, com o pagamento apenas das longas

conversas telefônicas com o pessoal do morro.

- Esses argentinos são assaltantes! Por apenas uma conversa de uma

hora o cara aqui tem que pagar mais de 300 dólares!- protestou Juliano.

Apesar do preço milionário, Juliano não podia ver um telefone público

sem tentar fazer algum contato com o Brasil. Cheguei a acompanhar

alguns telefonemas que duraram mais de uma hora, o que mostrava que

ele continuava muito ligado à vida dos homens da Santa Marta e dos

amigos de fora da favela. Numa dessas ligações ele falou com o compositor

Marcelo Yuca, do grupo O Rappa, que já o havia incentivado a

deixar o tráfico. No telefone, Juliano parecia arrependido de ter fugido

sem proporcionar a mesma chance de fuga aos homens que ficaram na

Santa Marta.

- Isso não é certo, Yuca. Eu tô na boa, mas e o meu pessoal, os meus

guerreiros, o Pardal, o Rivaldo, o 33? Eles também têm o direito de comê

num bom restaurante de Buenos Aires. Eles também querem a paz que

eu quero tê. Eu tenho que achá uma solução para essa garotada, cara. Eu

errei, Yuca, eu errei!

Os telefonemas, com o passar dos dias, foram se tornando o principal

obstáculo para as gravações dos depoimentos de Juliano. Ele tinha

dificuldades em permanecer no quarto, em regime de concentração, para

falar de sua vida. Sentia saudades do Brasil e uma grande vontade de

conversar com o pessoal do morro. E para isso precisava sair do hotel

à procura de uma cabine de telefone público. As ligações eram sempre

“chamadas a cobrar” para os homens e a namorada da Santa Marta, e

algumas demoravam mais de duas horas. Pensei que a boca estivesse

encarregada de pagar os longos interurbanos internacionais:

- Caramba! Você não tira o telefone do ouvido o dia inteiro. Quem vai

pagar essa conta? A boca está rica, hein? - ironizei.

- Rica? Que nada, falida! Mas não por causa dos telefonemas. No

morro nós achamos que esse preço é roubalheira. Quem inventô esse

valor? Alguém perguntou se nós concordamos ou não?

Para não pagar, Juliano se valia de uma artimanha muito difundida
entre os traficantes do Rio de Janeiro. As ligações internacionais eram

feitas sempre para o número de um telefone celular, operado pelo sistema

pré-pago, que podia ser adquirido no Rio de Janeiro sem a identificação

do comprador nem a comprovação de seu endereço. O pessoal da quadrilha

geralmente comprava esses aparelhos mediante o pagamento do

equivalente a quarenta dólares para ter um crédito de ligações limitado a

50 minutos de duração. Mas para as ligações a cobrar não havia nenhum

tipo de limite, nem havia como a empresa operadora cobrar pelo serviço.

Para evitar algum flagrante, a quadrilha usava esses celulares por dois

meses, e depois os destruíam.

O total desrespeito às regras de segurança, criadas por nós mesmos,

exigia uma mudança de hotel.

Recomeçaríamos o trabalho em outro endereço, na mesma avenida

Del Mayo. Num domingo pela manhã, depois da mudança, na hora do

almoço, voltamos a andar sem rumo atrás de algum restaurante que resolvesse

o desejo de Juliano, cada vez mais saudoso e faminto por feijão.

- Tô em crise, é sério! Precisamo procurá o povo mais simples, os

pobres. Tenho certeza que eles têm feijão na casa deles - disse Juliano,

enquanto tomava um chocolate no balcão de um bar.

- Povo, só na periferia ou então naquele estádio de futebol - eu disse,

apontando para a TV que exibia ao vivo imagens de um campo de futebol

lotado, o La Bombonera. Era dia de um clássico do futebol argentino

entre os times do Independiente e o Boca Juniors.

- Se o povo tá lá é pra lá que nós vamo. Tu conhece onde fica esse

bagulho? - perguntou Juliano.

- Qualquer taxista nos leva até lá - respondi, enquanto a TV mostrava

as cenas da entrada dos jogadores em campo.

- Dá tempo de correr até o estádio e vê esse jogo de perto? - perguntou

Juliano.

Resolvemos arriscar. O jogo já havia começado quando chegamos à

bilheteria do estádio. Compramos os ingressos mais baratos, de acesso

às populares. A polícia nos obrigou a entrar pelo lado onde estava concentrada

a torcida do Boca Juniors, o time do maior jogador argentino

de todos os tempos, Maradona, que assistia à partida no camarote dos

convidados de honra. Alguns meninos se aproximaram pedindo monedas
para completar o valor do ingresso. Era a prova de que estávamos no lado

certo, na área dos pobres, como Juliano queria.

Não havia espaço para mais ninguém no primeiro andar. Subimos

para o segundo, que parecia mais lotado ainda. Fomos até o terceiro e

andamos em toda volta dos grandes corredores de acesso às arquibancadas

sem achar um bom lugar para ver o jogo. Tivemos que ficar atrás da

última linha de torcedores que estavam em pé por falta de espaço. Um

vento forte aumentava a sensação de frio, próximo de dois ou três graus.

Alguns policiais estavam no meio dos torcedores da última linha, ocupando

o lugar deles, atitude que deixou Juliano indignado.

- Eu paguei e quero vê essa porra. Aqueles polícia vão tê que dáo

lugar deles, qualé que é?

Juliano tentou passar, mas nenhum dos policiais se afastou. Eles continuaram

atentos às jogadas no campo. Juliano se encostou ao lado de um

deles e aos poucos, aproveitando os momentos de vibração da torcida,

foi ajeitando o seu corpo para ganhar espaço e ter melhor visão do gramado.

Em um jogo importante devido à disputa pela liderança no campeonato

argentino e também por causa de uma peculiaridade. Na partida

anterior, o centroavante do Boca, o artilheiro Palermo, perdera quatro pênaltis

consecutivos, talvez um número recorde de fracasso individual na

cobrança da penalidade máxima do futebol. E naquele jogo Palermo teria

mais uma chance de pôr um fim à série de pênaltis perdidos. No Início

do segundo tempo, um zagueiro do Independiente o derrubou na entrada

da área e o juiz marcou pênalti. A torcida fez um enorme ruído, gritando

o apelido do centroavante

- Palermo.

- El loco! El loco!

Ninguém quis perder a chance de assistir ao lance.

No empurra-empurra, conseguimos chegar perto do alambrado das

arquibancadas, embora ainda sem conseguir espaço para sentar. A torcida

gritava o nome de Palermo para a cobrança do pênalti e vibrou quando

percebeu que ele fora indicado pelo treinador. Era uma oportunidade de

recuperar com a torcida o seu prestígio já bastante abalado.

Juliano correu até o alambrado, enfiou os pés e as mãos nos vãos dos


arames e subiu para ver lá do alto Palermo bater o pênalti. Enquanto Juliano

vibrava pendurado no alambrado, eu procurava um espaço ao lado

de dois casais e de alguns homens no final do estreito corredor de acesso

às arquibancadas. Dali dava para ouvir os gritos de Juliano, que tentava

repetir os hinos e os jargões da fanática torcida do Boca.

- Temblor del rei! Em La Bombonera ya ven!

Palermo bateu o pênalti na trave. O quinto erro consecutivo do lance

considerado o mais fácil de ser convertido em gol causou um grande

tumulto no estádio. A torcida do Independiente provocou a do Boca pela

perda do pênalti e a do Boca reagiu, revoltada com o fracasso de seu artilheiro.

No meio da confusão, pouca gente viu quando eu fui atacado por

um grupo de jovens armados.

Fui surpreendido por trás. Um jovem me imobilizou, pressionando a

lâmina de um punhal em meu rosto, enquanto com um dos braços tentava

asfixiar-me.

- La plata, hijo de la gran puta. La plata!

Por causa do frio, eu estava com as duas mãos dentro de uma jaqueta

de couro, o que dificultou uma tentativa de defender-me do ataque. Tentei

tirar o dinheiro do bolso para dar ao agressor e livrar-me do punhal que

estava muito próximo de meus olhos. Mas não houve tempo. Outros dois

jovens me agrediram pela frente com socos na cabeça e pontapés pelo

corpo, que me derrubaram no chão.

Levantei-me rapidamente, tentando me esquivar das espetadas de punhal

na altura da barriga.

Uma punhalada abriu um corte na perna direita, que levantei para

me proteger do golpe que iria me atingir no abdome. O grupo tentou me

arrastar para o corredor de acesso à arquibancada, um lugar estreito e

escuro, onde não tinha ninguém para ver as agressões. Juliano percebeu

a confusão ao redor de mim e pulou lá de cima do alambrado. Correu e

entrou na briga, saltando com os dois pés sobre o grupo e distribuindo

socos e pontapés em todas as direções.

- Caralho! Caralho!

Os gritos assustaram os jovens, que rapidamente se dispersam, me

deixando ferido no chão. Atordoado, levantei-me e corri sem direção

para o lado da multidão que lotava as arquibancadas. No meio da confu
são, eu ainda fui confundido com um torcedor do time adversário e voltei

a ser ameaçado. Levei empurrões, ouvi muitas ofensas. Juliano tentou

interferir, gritou, fez pose de briga no meio do pessoal mais agitado, enquanto

aos poucos fomos nos afastando do centro do tumulto. Mas só

conseguimos escapar quando a atenção da torcida foi desviada por um

gol do Boca Juniors.

- Isso é sacanagem, cara!Isso nos desmoraliza. Cumé que fazem isso

na frente de todo mundo?-reclamou Juliano, já longe dos agressores.

- No começo parecia um assalto. Mas de repente passaram a dar muita

porrada sem nenhum sentido. Não deu pra entender - disse eu.

E tu viu os policiais, cara? Foi na cara deles e os putos não tomaram

nenhuma providência, nem aí, caralho! - reclamou Juliano.

Passada a tensão, apareceu a dor no corte da perna e dos socos e pontapés

que levei por todo o corpo. Decidimos sair do estádio, mas Juliano

queria antes vingar-se pelo menos de um dos agressores, com uma surra

e a entrega dele para a polícia.

- A polícia tem que matá um filho da puta desse! - protestou Juliano.

- Que negócio é esse, Juliano? Deixa pra lá, já foi! - eu disse.

- Caralho, olha aí o furo na tua perna! A polícia tem que vê isso, porra!

Matá um cara desse!

- Ah é, é? Polícia tem que matar bandido, é? É isso que tem que ser

feito, você tem certeza? É isso que ela devia ter feito quando te prendeu?

- disse, tentando mostrar a incoerência de Juliano.

- Foi covardia, cara, é isso que me revolta.

- E qual assalto não é uma covardia? - perguntei.

Já fora do estádio, continuamos discutindo. Como os ferimentos não

eram graves, decidi não procurar a polícia, nem o hospital, para não despertar

desconfiança e uma possível identificação de Juliano. Pegamos um

táxi para sair da área de risco em torno do estádio. Alguns quilômetros

depois, voltamos a andar a pé sem destino certo, em direção ao centro de

Buenos Aires, ainda falando das agressões no La Bombonera.

- É revoltante, revoltante! - disse Juliano.

- Se você não aparece, eu estava ferrado - disse.

- Dá pra tolerá, não. A gente tem que se vingá desses cara. Seguinte:

tu vai dá uma porrada no nariz de um argentino, qualquer um, o primeiro
que cruzá aí na calçada. Tem que dáo troco, já!

- Está louco. Deixa pra lá - disse.

- Mas isso me desmoraliza, cara. Pensa! Isso me desmoraliza.

- Como assim?

- A malandragem. Que vão dizê de mim? Você tava lá com o Juliano

e foi assaltado! Que chefão é esse? Como vô explicá isso pros amigos da

bandidagem?

- Problema, hein!

- Desmoraliza. Desmoraliza! Você fala isso pra ninguém, não, cara!

- Normal, é que você acostumou com o outro lado.

- É foda! Eu nunca tinha vivido isso do lado de vocês. É foda sê otário.

É foda. É. Foda!


CAPÍTULO 33 VICIADO EM FEIJÃO

Há poucos dias do fim do ano 2000, nossos encontros foram monitorados

pelas polícias do Brasil e da Argentina sem que nós soubéssemos.

Fomos surpreendidos pela atitude do cineasta João Salles, que procurou

as autoridades da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro para

confessar que estava ajudando Juliano a sair da vida criminosa, mediante

o pagamento de uma mesada para que escrevesse um livro que até então

era feito em sigilo.

Por coincidência ou não, dias depois o nome de Juliano voltou ao

noticiário da cidade. Uma reportagem do jornal O Globo revelava, sem

citar a fonte, que ele havia sido visto na Argentina na companhia de um

“escritor latino”, a quem estaria contando sua história. Também falava

que Juliano estava a caminho de realizar um antigo desejo, o de se encontrar

com o guerrilheiro zapatista, o subcomandante Marcos, em Chiapas,

no México.

A notícia tornou ainda mais difícil nossos encontros. Por 15 minutos

não fomos descobertos pelos policiais brasileiros que seguiam nossos

passos no centro de Buenos Aires, dias antes do Natal do ano 2000.

Tínhamos combinado que, nesse último encontro, Juliano falaria de

seus planos para viver longe do tráfico e das armas. Mais uma vez, porém,

não consegui convencê-lo a falar por mais de cinco minutos consecutivos,

O motivo da dispersão, desta vez, se chamava Maria.

Era uma morena de traços finos, cabelos encaracolados, sobrancelhas

grossas. Usava correntes, brincos e pequenos enfeites coloridos presos ao

vestido longo,que lembravam a moda hippie dos anos 60. Eu aguardava

Juliano na saída do metrô da avenida Del Mayo quando a vi pela primeira

vez com ele, que estava no outro lado da rua parado numa banca de jornal,

lendo as manchetes do dia, que falavam do crescimento da pobreza e

do desemprego na Argentina.

Me aproximei do casal pensando que a jovem bonita estivesse tentando

vender algum artesanato para Juliano, mas me enganei.

- Tu eres el escritor brasileiro, si? Com mucho gusto. Entonces sigamos

adelante, vamos para alla, mejor para usted e para nosotros.
Era uma manhã de sábado. Caminhamos num silêncio misterioso

mais de dez quarteirões pelas ruas movimentadas do centro comercial de

Buenos Aires.

- Cómo estás? Tranquilo com la paz de Dios? - perguntou Juliano, já

praticando o portunhol.

Em seguida, ele apresentou Maria, disse que era uma amiga que havia

conhecido três semanas antes num passeio a uma reserva florestal perto

da cidade de Córdoba. Uma amizade fulminante. Duas semanas depois

os dois já estavam viajando juntos de ônibus, do nordeste do país à capital.

Depois da parada em Buenos Aires para gravar os depoimentos para o

livro, os dois pretendiam seguir viagem em direção ao sul do continente,

embora não tivessem ainda um roteiro bem definido.

Carregavam duas mochilas, as duas penduradas no corpo de Juliano,

uma sobre o ombro esquerdo, a outra sobre a prótese do ombro direito,

que fora destruído pelo tiro de fuzil no morro do Chapéu Mangueira em

1993. Entramos num café com Juliano queixando-se de fortes dores no

local do ferimento, que nunca foi bem recuperado, tampouco submetido

a tanto peso quanto o da mochila de Maria.

Depois de duas rodadas de cafezinho com água mineral, Maria estrategicamente

resolveu nos deixar sozinhos para recomeçar a gravação dos

depoimentos. Era a primeira vez que se separavam desde o dia em que se

conheceram. Maria despediu-se dizendo que voltaria a encontrar Juliano

em seu esconderijo, provavelmente um hotel, depois da meia-noite.

Juliano parecia bastante tenso. De início, reclamou muito, como se

eu fosse o responsável pela volta do seu nome ao noticiário. Ele tinha

consciência de que isso iria desencadear o aumento da pressão da polícia,

pois a notoriedade tornava a sua prisão prioritária. Ainda não sabia direito

o que fazer. Tinha poucas opções devido à falta de dinheiro. Embora

fosse de uma família pobre, pela primeira vez na vida estava enfrentando

dificuldades para ter as coisas básicas, como transporte público, remédio,

roupa, comida.

Passou a se alimentar à base de empanadas, o alimento mais barato

e fácil de encontrar em qualquer lugar. Enfrentou o frio do rigoroso

inverno argentino com roupas emprestadas pelos amigos que conquistou

na Universidade de Córdoba. Mas perdera boa parte das amizades.
Como atrasara as prestações dos cursos de espanhol e de filosofia, teve

que abandonar os estudos e, em conseqüência, perdeu a maioria dos amigos

do meio universitário. O projeto de começar uma vida fora do crime

aos poucos foi ficando em segundo plano, diante das dificuldades que

passara a enfrentar.

- É foda, cara. Meu passaporte tá em nome de um amigo que já se

foi. Eu sô menos que ele. Não sô um morto, mas também não tenho

uma existência, tenho nome, identidade, nada. Não posso nem mesmo

sê chamado de mendigo de desempregado, de sem-teto. Me sinto abaixo

do nada.


Queixava-se muito da falta de dinheiro. Desde que Salles suspendera

a remessa da mesada de 1.000 dólares, havia quase dois meses, Juliano

se endividara com a dona da pequena pensão de Córdoba.

Chegara a conquistar a confiança de dona Cleonor, uma senhora muito

gorda, de sessenta anos. Ela chegou a estender por quarenta dias o

prazo para o pagamento dos pernoites, das despesas com a copa e das

ligações telefônicas para o Brasil. Mas nos últimos dias, já sem esperança

de receber, dona Cleonor cortou a linha de telefone do quarto, sinal de

que o seu limite de tolerância estava acabando.

Juliano tentou associar-se aos artesãos hippies de uma praça de Córdoba,

mas foi rejeitado porque não tinha como comprar matéria-prima.

Pediu emprego e alguns restaurantes em troca de comida, embora ainda

não tivesse encontrado nenhum que servisse feijão com arroz em suas

refeições. Estava disposto a encarar o sacrifício de receber comida argentina

em forma de salário, mas nem isso conseguiu. Era quase impossível

conquistar uma vaga, concorrendo com milhões de desempregados do

país.

Já pensava em apelar para o furto ou para o assalto para garantir o



sustento quando conheceu Maria e logo se identificou com a história

dela. Maria também vivia uma circunstância especial em sua vida, por

causa de um irmão adolescente problemático. Filha de uma família de

fazendeiros economicamente decadentes, tinha cinco irmãos que saíram

da terra dos pais para morar na casa da avó em Córdoba. O adolescente

Dario, seu irmão de 17 anos, usuário de cocaína desde os 13, acabara de

se envolver num crime que abalara a cidade.
Maria contou a história do crime a Juliano em detalhes.

Num único fim de semana, Dario havia praticado três assaltos contra

pedestres no centro da cidade.

Flagrado pela polícia em mais um roubo, conseguiu escapar num

táxi, e durante a fuga matou com três tiros o motorista que tentou reagir

às suas ordens. O assassinato provocou uma grande passeata dos colegas,

parentes e amigos do motorista, que prometeram linchar o adolescente

quando ele fosse preso.

O medo do linchamento dividiu a família. Os pais queriam mantê-lo

num esconderijo seguro em Córdoba e os irmãos achavam que ele deveria

ser levado para Montevidéu, no Uruguai, com a esperança de interná-

lo numa clínica de recuperação de usuários de drogas. E o deixariam lá

até passar o clima de comoção pela morte do taxista.

- Não é nada disso. Vocês todos estão errados - disse Juliano com a

ênfase de quem sabia do que estava falando.

Maria não chegou a concluir o relato da história de Dario, nem precisava.

- Preciso hablar con este teu hermano, Maria. Teriemos que agir antes

que seja tarde - disse Juliano.

Maria também já tinha ouvido algumas confissões de Juliano. Embora

soubesse que ele falara apenas parcialmente de suas atividades no

Brasil, Maria não demonstrou nenhuma decepção. Ao contrário, gostou

de ouvir a verdade e passou a sentir confiança nele, ficou mais à vontade

para falar das circunstâncias do crime do irmão. Como Juliano era um

estrangeiro, sem nenhum envolvimento com as pessoas de Córdoba, que

estavam revoltadíssimas com o crime, Maria achou boa a idéia de apresentá-

lo ao irmão foragido.

Neutralidade e uma grande familiaridade com a situação garantiram

a Juliano mais do que uma boa receptividade do irmão de Maria. O adolescente

percebeu que estava diante de um homem com experiência no

crime e o recebeu com atenção e respeito. Fez muitas perguntas sobre

a vida dos traficantes do Rio, falou de sua trajetória com as drogas e,

quando soube que Juliano também gostava de maconha, acendeu um baseado

para animar a conversa. Enquanto fumavam, Dario confessou em

detalhes como tinha sido o assassinato do motorista e pediu conselhos,


muitos conselhos.

Juliano falou duro com ele, como costumava fazer no morro quando

precisava impor uma punição disciplinar aos companheiros mais jovens.

Concluíram a longa conversa quando Dario, atendendo à sugestão de

Juliano, decidiu tomar uma atitude surpreendente para a família.

- O melhor é que eu fique num lugar seguro e perto de vocês, não é?

- perguntou aos irmãos mais velhos, numa reunião convocada por Maria

e Juliano especialmente para que todos decidissem juntos qual deveria

ser o destino do caçula.

Todos responderam sim.

O caminho mais perto, por coincidência, neste caso, também era o

mais seguro, seguro até demais.

- Quero ir para a cadeia, lá a minha vida estará mais garantida - teria


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