Sam bourne o código dos justos



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VINTE E SETE
SÁBADO, 20H27, MANHATTAN
Ele já estava lá havia tanto tempo quanto eles e resmungava igualmente alto. Sozinho, de meia-idade, sem dúvida um morador de rua, tinha um rosto que parecia inchado pela exposição ao tempo. No decorrer da tarde, Will vira-o comer metade de uma torta de maçã, que lhe havia sido entregue por um sujeito com um iPod (que não tirara os fones de ouvido), e talvez um saco e meio de batata frita; e a intervalos tinha lido em voz alta a Bíblia encapada de preto, que segurava na mão direita.

Will havia achado aqueles sermões uma irritação durante a tarde, como a sucessão de fregueses que se esforçavam para não se sentar perto demais. Agora, contudo, não poderia ser mais grato. Com uma xícara de café na mão, aproximou-se, cauteloso.

— Senhor, será que não gostaria de uma xícara de café, talvez? Foi feito agora.

O homem ergueu os olhos, lacrimosos. As partes brancas estavam amareladas.

— Se não fora o Senhor, que esteve ao nosso lado, ora diga Israel, quando os homens se levantaram contra nós, eles nos teriam tragado vivos, quando a sua ira se acendeu contra nós...

— Sim, senhor, eu tenho certeza de que está muito certo — tentou Will, no breve momento que o homem inspirou.

Mas de nada adiantou; ele recomeçou.


  • As águas nos teriam submergido, e a torrente teria passado so­bre nós; sim, as águas impetuosas teriam passado sobre nós.

  • Senhor, lamento incomodá-lo, mas gostaria de saber se podia me emprestar a sua Bíblia.

  • Bendito seja o Senhor, que não nos entregou, como presa, aos dentes deles. Escapamos, como um pássaro, do laço dos passarinheiros; o laço rompeu-se, e nós escapamos.

  • É por isso que também oro verdadeiramente, senhor. Mas se eu pudesse dar só uma olhada na sua Bíblia.

Will curvou-se e tentou tomar-lhe o livro da mão. A força do ho­mem era surpreendente. Ele não soltava o livro.

  • O nosso socorro está no nome do Senhor, que fez os Céus e a Terra.

  • Sim, sim, é isso que eu também acho. Assim, se me deixasse apenas dar uma olhada no livro sagrado.

O homem apertou a Bíblia ainda mais forte com a mão nodosa. Will puxou-a, mas o homem puxou-a de volta, ainda resmungando.

Will ergueu os olhos; TC também havia se aproximado. A essa al­tura, quase se sentava junto ao mendigo, puxando o livro. Sabia que parecia ridículo: agredindo um mendigo por uma Bíblia.

— Senhor — disse TC, em voz baixa. — Acha que poderíamos orar juntos? — De repente, o homem parou de falar. TC continuou, a voz como uma suave torrente de pura razão. — Posso sugerir ler o texto do Livro dos Provérbios, capítulo 10?

Sem reclamar, o homem abriu o livro, folheando com o polegar as folhas de papel fino e as letras miúdas. Em alguns segundos, começou a recitar:

— Os provérbios de Salomão. O filho sábio é a alegria de seu pai; o insensato, porém, a aflição de sua mãe.

Will tentou olhar por sobre o ombro dele, tentando ler o resto do antigo texto o mais rápido possível. Pareceu-lhe a habitual mistura bí­blica de profundidade e obscuridade. A escritura sempre tivera esse efeito sobre ele: as palavras pareciam às vezes uma música animada, mas o sentido exato só se tornava claro mediante grande esforço. Qua­se sempre, na igreja ou nas preces matinais na escola, os sons apenas passavam por cima dele. Como agora, nesse estranho e espontâneo en­contro de oração.

O leitor continuava no versículo 2:

— Tesouros injustos de nada servem, mas a justiça livra da morte.

Baixando os olhos, Will disparava na frente. Agora, diante de um versículo após o outro, seu olhar se iluminou: havia alguma coisa inte­ligível ou, ainda melhor, conhecida. Uma palavra destacava-se repeti­das vezes. Aparecera no versículo 2, e lá estava de novo no versículo 3. O Senhor não deixa o justo passar fome, mas repele a cobiça do ímpio.

E mais uma vez no versículo 11. A boca do justo é uma fonte de vida; a do ímpio, porém, esconde injustiça.

E no versículo 16. O trabalho do justo conduz à vida; o fruto do ímpio ao pecado.

Também presente no versículo 21. A língua do justo é prata finíssima; mas os insensatos, por falta de entendimento, morrem.

Onde quer que Will olhasse, a palavra parecia saltar da página. No estado em que se encontrava, privado de sono, quase ouvia vozes, ira­das vozes masculinas, gritando para ele. Lá estava de novo, no versículo 24. O que receia o mal, este cai sobre ele. O desejo do justo lhe é concedido.

Ouvindo o murmúrio desconexo do mendigo, imaginou o rabino de Crown Heights, a balançar-se lendo o versículo 25, os discípulos barbudos balançando com ele. Quando passa a tormenta, desaparece o ímpio, mas o justo descansa sobre fundamentos duráveis.



A palavra recusava-se a desaparecer do livro. No versículo 28 vol­tava — A esperança dos justos causa alegria; mas a expectativa dos ímpios perecerá — assim como no versículo 30: Jamais o justo será abalado, mas os ímpios não habitarão a Terra.

Aparecia até ali no finalzinho, no último versículo. Os lábios do jus­to sabem o que agrada; porém a boca dos ímpios fala perversidades.

O mendigo agora tinha os olhos fechados, entoando as palavras de memoria. Mas Will já tinha ouvido o suficiente. Levantou-se e contor­nou a mesa para sussurrar no ouvido de TC.

— Estou indo embora.

Sabia que poderiam ter discutido tudo durante horas, analisando gramaticalmente cada frase à procura de múltiplos sentidos, como urna dupla dos mais afiados estudiosos talmúdicos. Mas às vezes ti­nha-se de sair ao primeiro instinto. O jornalismo era assim. Você ia a uma coletiva de imprensa, recebia algum volumoso documento e tinha de vasculhá-lo até o fim em cinco minutos, descobrir do que se trata­va, fazer a pergunta e seguir adiante. Na verdade, o documento não poderia ser lido adequadamente em menos de quatro ou cinco horas, mas os jornalistas tendiam a achar que esses rigores eram para mor­tais inferiores.

Assim, Will confiou em seu julgamento. Além disso, estava farto de falar, decifrar e interpretar. Queria mover-se, ir a algum lugar. Fica­ra ali dentro durante horas, inalando o ar adocicado e nauseante de fast food.

Will tinha ouvido o que precisava ouvir. Sabia exatamente aonde tinha de ir — e que teria de ir lá sozinho.
VINTE E OITO
SÁBADO, 21H50, MANHATTAN
Uma longa fileira de elevadores, talvez dez, e quase nenhuma alma para usá-los. Todos os grandes escritórios na certa eram assim nos fins de semana: continuavam funcionando, ainda com um guarda na mesa da recepção e luzes acesas no refeitório, mas apenas uma sombra do que eram nos dias de semana.

O saguão do prédio do New York Times parecia especialmente aban­donado. Na segunda-feira às 10 da manhã, esse espaço ficaria apinha­do, quando gerentes de circulação acotovelavam-se com desenhistas gráficos entupindo os elevadores, metade deles agarrados a xícaras de café compradas a preços exorbitantes. Agora o mesmo lugar achava-se vazio e silencioso, apenas com o som que anunciava que um elevador subira alguns andares e voltava mais uma vez para o térreo.

Will cumprimentou com um aceno de cabeça o guarda de plantão, que lhe lançou apenas um olhar de relance. Assistia a algum jogo num monitor de TV que, Will tinha certeza, devia estar sintonizado nas ima­gens do circuito fechado da saída de incêndio, da entrada dos fundos ou qualquer coisa assim. Usou seu cartão de acesso e dirigiu-se para a redação.

Ficou alegre de estar ali. Trabalhava para o Times havia pouco tempo, mas aquela redação já era bem familiar. E não podia enfrentar a volta para casa. Só a idéia de fechar a porta da frente e ouvir o silên­cio o fazia estremecer. Os quadros na parede; as roupas de Beth no ar­mário; seu cheiro no banheiro. Até imaginar a situação o assustava.

Além disso, não fora o que Yosef Yitzhok o mandara fazer em pes­soa, antes de começar a comunicar-se por enigmas enviados pelo celu­lar? Procure no seu trabalho. Agora, por meio dos Provérbios 10, havia sido mais específico.

Will apertou o passo quando entrou na redação, deliberadamente evitando contato visual com alguém que pudesse reconhecê-lo. Àque­la hora da noite, era, sobretudo, o pessoal da produção, não seus amigos, mas mesmo assim manteve a visão periférica desligada, concentrado apenas em chegar à sua mesa.

Ao se aproximar mais, vislumbrando algo sobre a fina parede divi­sória, seu coração disparou. Havia uma caixa sobre sua cadeira. Pode­ria ser disso que YY falara? Fora inteiramente literal? Vá para a redação, está tudo lá à sua espera. Uma caixa contendo todas as respostas?

Will sabia que era pura fantasia, mas não conseguiu evitar. Precipi­tou-se pelos últimos metros, pegou a caixa, sopesou-a e rasgou o papel, tudo ao mesmo tempo. Muito mais leve do que sugeria o tamanho e tam­bém difícil de abrir. Por fim, as duas abas de cima se abriram, e ele enfiou o braço dentro e apalpou uma coisa mole e carnuda, como uma fruta. Que diabo era aquilo? Enfiou mais a mão; parecia úmida. Enganchou os dedos por uma espécie de abertura e, usando-a como uma alça, ergueu o objeto.

Uma abóbora de Halloween. Will enfiara os dedos numa cavidade ocular.

Preso, vinha um cartão.



A Companhia Melhores Relações convida-o para uma noite especial... Alguma babaquice de um relações-públicas. Os convites para even­tos promocionais em Nova York estavam se tornado cada vez mais absurdos e excessivos: por exemplo, pacotes da FedEx chegavam, com uma chave de prata que acabava sendo o ingresso para o lançamento do novo celular da Ericsson. O puritanismo inglês de Will não conse­guia entender esse conspícuo desperdício. Ergueu a abóbora e atirou-a na direção de uma lata de lixo; ela caiu e abriu-se com a pancada perto da mesa de Schwarz. Ele dificilmente notará.

Passou os olhos no resto da correspondência: circulares e comuni­cados à imprensa. Alguns pareciam recentes — um convite para uma festa no Consulado Britânico em Nova York; um panfleto para uma convenção feita por alguma organização evangélica, a Igreja do Cristo Renascido; uma notícia sobre o plano de saúde do Times — fora isso, a pilha de papel achava-se exatamente como a deixara na segunda-feira, o último dia em que tinha ido à redação.

Já fazia quase uma semana; parecia um século. Parecia uma antiga era de ouro — anterior ao seqüestro. Como fora sortudo, partindo de Nova York e depois explorando as estradas secundárias de Montana sem nada mais grave na cabeça que as preferências volúveis da editoria "Nacional". Claro que não apreciara isso: tinha sido até idiota o bas­tante para sentir-se mal sobre a matéria precipitada da enchente. Como se tivesse realmente alguma importância. Uma das músicas preferidas de Beth veio à sua mente, ou melhor, apenas uma frase dela. You don't know what you've got till it's gone. Você só sabe o que tinha depois de perder... Após um ou dois segundos, já não ouvia a voz de Joni Mitchell, mas a de Beth. Ela adorava cantar, e ele adorava ouvi-la. Acumulando poeira no canto da sala, havia um velho violão, uma recordação dos dias de estudante, quando ela dedilhava velhas melodias de amor e perda.

Ultimamente, raras vezes ela cantava; Will tinha de suborná-la para isso. Mas quando o fazia, o coração dele parecia alçar vôo.

Ele sentia os olhos ardendo. Queria desesperadamente chorar, en­tregar-se à lembrança que o pegara desprevenido. Queria desabar numa cadeira, fazer dos braços um travesseiro e prolongar a lembrança, agar­rar-se a ela como uma criança tenta agarrar uma bolha de sabão, não deixando desfazer-se.

Em vez disso, começou a procurar o livrinho de anotações que ti­nha deixado ali cinco dias atrás, o que preenchera em Brownsville, es­crevendo nos dois lados das folhas.

Não estava embaixo da pilha de comunicados à imprensa, nem das revistas e jornais que já começara a acumular, à espera de serem recor­tados. (Uma tarefa que gostava em teoria, mas que jamais realizava.) Verificou nas gavetas, que havia enchido no primeiro dia com Post-its, um punhado de cartões de visita, pilhas e um velho gravador cassete portátil para o caso de o minidisc pifar. Não encontrou nada ali. Procu­rou na cadeira, no chão e depois revistou todos os jornais de novo.

Olhou em volta das mesas, parando o olhar na foto do filho de Amy Woodstein que começava a andar, e que no retrato aparentemente lu­tava com a mãe, puxando-a para o lado. Os dois sorriam. Amy exibia uma expressão de alegria que nem ela nem mais ninguém jamais exibi­ra naquela redação.

De repente, ouviu a voz dela na mente. Mas meu conselho é que tran­que seus livrinhos de anotações quando Terry estiver por perto. E fale baixo ao telefone.

Will deu meia-volta devagar. Arrumada como sempre, a mesa de Walton parecia não ter nenhum excesso de papel. Apenas um bloco de papel ofício amarelo.

Will avançou bem devagar, olhando instintivamente à direita e à esquerda para ver se havia alguém por perto. Correu as mãos pela mesa, como para confirmar pelo toque se estava tão vazia e limpa como pa­recia. Nada. Verificou embaixo do bloco amarelo, para ver se havia outro escondido. Nada.

Agora levava a mão à gaveta da mesa. Ainda vigiando a sala, co­meçou a puxá-la. Trancada.

Sentou-se na cadeira de Terry Walton, pronto para começar a bus­ca pela chave. Tinha certeza de que devia estar em algum lugar: nin­guém guardava a chave de uma gaveta de escrivaninha num chaveiro, ou guardava? Correu a mão por baixo da mesa, esperando encontrá-la presa com fita adesiva. Nada.

Recostou-se na cadeira. Onde poderia estar? A mesa tinha apenas o bloco e dois lembretes dos dias de glória de Walton como correspon­dente estrangeiro: um busto de Lênin e, mais bizarro, um globo de neve em que a cena de inverno não era de crianças deslizando em trenós nem renas, mas de Saddam Hussein com aparência paternal, os braços es­tendidos para um menino e uma menina que corriam em sua direção. Um objeto kitsch do partido Baath, adquirido quando ele cobrira a pri­meira Guerra do Golfo. Sem pensar, Will pegou-o para sacudi-lo, ver a tempestade de neve cair no poderoso tirano iraquiano. Quando come­çaram a cair os primeiros flocos, viu a chave. Presa na base da bugi­ganga de plástico — uma chavezinha prateada.

— Boa noite, William.

Ele sentiu os músculos se retesarem. Fora flagrado. Girou a cadeira.

Mal enxergava o homem, parado à meia-luz. Apesar disso, ele reco­nheceu o perfil antes de distinguir as feições. Era Townsend McDougal, o editor executivo do New York Times.

— Oh, olá. Boa noite.

Ouviu o nervosismo, a exaustão e o pânico na própria voz.


  • Já ouvi falar de entusiasmo e dedicação, William, mas isto sem dúvida está além do chamado do dever: passar a noite de sábado labu­tando não apenas à própria mesa, mas à de um colega. Muitíssimo la­borioso.

  • Ah, sim. Perdão, eu estava... eu estava procurando uma coisa. Acho que talvez tenha deixado meu livrinho de anotações aqui. Na mesa de Terry, quero dizer.

McDougal fez uma encenação de esticar o pescoço e examinar a mesa, como se a procura fosse uma tarefa difícil, quando de fato a mesa se achava desobstruída e visivelmente vazia.

  • Não parece estar aí, não é, William?

  • Não, senhor. Não está.

Sentiu-se sem graça por aquele "senhor". Também teve consciên­cia de que ali sentado na beirada da cadeira — na de Walton — corria o risco de cair no chão. Era como se estivesse sendo mantido sob a mira de uma arma.

— Não vimos você na redação ontem, William. Harden se pergun­tou se você tinha sido seqüestrado.

Sentiu um calafrio no pescoço, como se lutasse com uma grave gri­pe. E um enorme cansaço.

— Não, eu estava... estive trabalhando num negócio. Numa matéria.

— Que tipo de matéria, Will? Tem outro herói improvável para nós? Outro "diamante no submundo" como seu santificado traficante de drogas? Outro louco doador de órgão?

Will teve uma idéia assustadora. O editor zombava dele ou, muito pior, expressava ceticismo. O jornal havia se queimado antes por jo­vens tão apressados em deixar sua marca que tinham redigido mais ma­térias de ficção que de jornalismo, as quais o New York Times engolira e publicara na primeira página. Pessoas ainda falavam do escândalo de Jayson Blair, que derrubara um dos antecessores de Townsend.

Percebeu a impressão que devia estar causando. A barba por fazer, nervoso — e, inexplicavelmente na redação numa noite de sábado, à mesa de um colega.

— Não é o que está pensando, senhor. — Ouvia sua própria voz triturada pela fadiga, tinha a boca seca. — Eu queria apenas conferir uma informação sobre a matéria de Brownsville. Procurava meu livri­nho de anotações e achei que talvez Walton...

— Por que Walton iria querer seu livrinho de anotações, William? Cuidado para não acreditar em tudo o que ouve na redação. Lembre-se de que os jornalistas nem sempre falam a verdade.

Ali estava mais uma vez, outra alfinetada nele e em suas matérias. Estaria acusando-o de falsificar os relatos de Macrae e Baxter, embora na linguagem refinada de um aristocrata da Nova Inglaterra? Talvez tivesse o sotaque e a postura empertigada da elite de Massachusetts, mas a expressão inabalável de McDougal era o rosto provocador de um político experiente.

— Não, não acredito em nada. Só quero rever minhas anotações.

— Tem alguma coisa na matéria da qual não tem certeza, William?



Merda.

Não, apenas andei me perguntando se deixei escapar alguma coisa que não percebi a princípio.

— Ah, eu certamente imaginaria isso.

Outra alfinetada.



  • Precisa ser muito cuidadoso, William. Muito cuidadoso. O jor­nalismo às vezes é um negócio perigoso. Nada é mais importante que a matéria, é o que sempre dizemos. E quase sempre é verdade. Mas não inteiramente. Há sempre uma coisa muito mais importante que a ma­téria, William. Sabe qual é?

  • Não, senhor.

  • É a sua vida, William. É dela que você deve cuidar. Portanto, guarde o que eu digo. Seja muito cuidadoso. — Fez uma longa pausa antes de continuar. — Direi a Harden que você vai tirar uns dias de descanso.

Com isso, o editor retirou-se de volta à penumbra e começou seu majestoso deslizar em direção à editoria "Nacional". Will desabou na cadeira de Walton e suspirou. McDougal achou que ele era um droga­do, prestes a enfiar os pés pelas mãos e levar consigo o New York Times.

E agora ia "tirar uns dias de descanso". Parecia um eufemismo ad­ministrativo para suspensão, enquanto investigavam a veracidade das matérias sobre Macrae e Baxter. Fora por isso que o livrinho de anota­ções desaparecera? Teria Townsend levado como prova?

Ainda segurava o globo de neve de Saddam, agora embaçado pela umidade da mão. Segurara-o com força durante toda a conversa com Townsend. Não deve ter parecido nada digno: não apenas os olhos ar­regalados, mas as mãos fechadas. Ao abrir os dedos, viu-a mais uma vez — a chavezinha simples que sem dúvida abriria a gaveta da mesa de Walton. Sabia que era loucura experimentá-la, após receber quase uma advertência formal do homem mais importante do jornalismo dos EUA. Mas não tinha escolha. Sua mulher era refém, e aquele livrinho sem dúvida tinha a pista para libertá-la.

Olhou à esquerda, à direita, e mais uma vez às suas costas, para ver se havia alguém por perto. Virou-se num círculo completo, ciente de que Townsend o surpreendera por trás. Então, num único e rápido mo­vimento, arrancou a chave da fita adesiva, abaixou-se e enfiou-a na fe­chadura. Uma tentativa, e ela girou.

Dentro havia diversas pastas castanho-claras bem-arrumadas. En­tre elas, muito mal escondida, a reveladora espiral de metal branco de um bloco de repórter. Will puxou-a e viu o rabisco na capa grossa.

Brownsville.

Minha nossa. Amy Woodstein não tinha brincado: Walton roubara seu livrinho de anotações. Só Deus sabia por quê. A matéria já havia sido publicada. Não tinha informação nenhuma a ser dada. Que uso poderia ter para ele? Will tirou isso da mente: já havia quebra-cabeças o suficiente a resolver sem incluir o bizarro hábito de cleptomanía jornalística de Walton.

Queria começar a folhear o livro logo, mas sabia que primeiro pre­cisava fechar a gaveta, repor a chave no lugar e voltar à sua mesa — tudo sem ser visto. Exatamente contra qual possibilidade se protegia, não tinha certeza. Já havia sido flagrado pelo editor; o estrago estava feito.

Apesar disso, teve o cuidado de debruçar-se sobre sua própria mesa antes de abrir o livro. Criou um método. Primeiro, a rápida busca por alguma coisa a que não dera importância antes: uma anotação estranha que não vira, uma mensagem rabiscada em outra caligrafia que não a sua. Talvez, por alguma feitiçaria ainda obscura, Yosef Yitzhok houvesse enfiado uma mensagem naquelas páginas. Procure no seu trabalho.

Folheou rápido, examinando as frases à procura de algo desconhe­cido. Nada, apenas sua própria letra. A redação estava tão silenciosa, a CNN na noite de sábado ficava muda, que Will ouvia as páginas vira­rem. Ouvia seu próprio cérebro.

Ficou brevemente excitado por duas frases que lhe saltaram aos olhos, com a nítida caligrafia de outra pessoa, mas acabou constatando tratar-se dos dados de contato de Rosa, a mulher que encontrara o corpo de Macrae, escritos com a própria letra dela. Agora lembrava que lhe tinha prometido enviar uma cópia da matéria assim que fosse publicada.

Não encontrou nenhum número de telefone misterioso, nenhuma mensagem secreta — não havia nada de mais dentro do seu livrinho de anotações, guardado na gaveta de Walton desde Deus sabe quando.

Em vez disso, teria de olhar muito atentamente a única pista que sabia que aquele livro de fato continha, aquilo que o levara de volta à redação. Ali estava, numa das últimas páginas, circulada em asteris­cos: a citação que valera a matéria, a de Letitia, a devotada esposa que pensara antes em se prostituir do que deixar o marido na cadeia. O homem que mataram ontem à noite talvez tenha pecado todos os dias da vida que Deus lhe deu, mas foi o homem mais justo que já conheci.

Num instante, viu-se de volta a Montana, falando com Beth ao ce­lular. Tinha sido, deu-se conta, a última conversa que tiveram antes de ela ser seqüestrada. Ele lhe contava o dia que passara cobrindo a vida e a morte de Pat Baxter. Ouvia a própria voz, falando animado, antes de compreender que Beth estava a quilômetros de distância.

"Sabe o que é estranho, fiquei logo impressionado porque ninguém usa essa palavra, ou quase nunca: a cirurgiã que operou Baxter usou a mesma palavra que aquela Letitia. Justo. Usaram até da mesma ma­neira: 'a pessoa mais justa que já conheci', o 'ato mais justo'. Não é estranho?"

Não dera continuidade à questão. Logo compreendera que Beth estava em outra, preocupada com o problema que devia preocupá-lo: não conseguirem ter um filho. Sentiu a garganta ficar seca; a idéia de que Beth podia morrer sem conhecer a experiência da maternidade.

Afastou aquele pensamento da cabeça, fitando sua própria caligra­fia na página. O homem mais justo que já conheci.

Will tinha flertado com a idéia de destacar essa repetição misteriosa quando escrevia a matéria sobre Baxter, mas a descartara quase imedia­tamente. Pareceria autocomplacente demais observar uma semelhança entre duas matérias cujo único verdadeiro elo era sua assinatura. Baxter e Macrae viviam em extremos opostos do país; as mortes dos dois ob­viamente não tinham qualquer relação entre si. Noticiar uma ligação entre dois assassinatos aleatórios só fazia sentido jornalístico se as vítimas fossem famosas, os detalhes já presentes na imaginação dos leitores. Não se tratava disso, decididamente, e por isso Will descartara. Só havia voltado a pensar no caso naquela noite, quando ele e TC se instalaram de cada lado do mendigo pregador no McDonald's. Cada versículo dos Provérbios 10 que ele entoara parecia conter a mesma palavra, repetida com demasiada freqüência para ser coincidência. Justo.

Mas os assassinatos não podiam estar relacionados. Gigolôs negros em Nova York e loucos brancos na área rural de Montana não se mis­turavam nos mesmos círculos nem tinham os mesmo inimigos. Haviam vivido e morrido em mundos à parte.

E, no entanto, tinha alguma coisa estranhamente semelhante nes­sas duas histórias excêntricas. Envolviam homens que pareciam sus­peitos, mas que haviam feito uma boa ação. Ou melhor, uma ação extraordinariamente boa. Justa. Os dois tinham sido assassinados, e ne­nhum suspeito fora preso em ambos os casos.

Will girou a cadeira ao contrário e ficou de frente para a tela do computador. Navegou no site do Times e encontrou sua matéria sobre Macrae. Ia ler o texto como um médico-legista, tentando ver se havia algo mais para dar seguimento.


... Fontes policiais falam de um brutal ataque afaça, com múltiplas pu­nhaladas perfurando o abdome da vítima. Moradores dizem que o estilo do assassinato combina com a moda mais recente entre as gangues, ou nas palavras de um deles: "Facas são a febre do momento."
Os métodos de matar foram inteiramente diferentes. Baxter tinha sido baleado; Macrae, esfaqueado. Will abriu outra janela na tela, per­mitindo-lhe abrir a matéria sobre Baxter. Deslizou o texto, à procura dos parágrafos com o detalhe do médico-legista, a hora e a causa da morte. Por fim chegou à frase que buscava.
Inicialmente, os colegas do Sr. Baxter na milícia suspeitaram de um caso macabro de roubo de órgãos. Sem saber de seu anterior ato de filantropia, imaginaram que a vítima perdera o rim na noite da sua morte. Como para acrescentar mais detalhes a essa teoria, há sinais de anestesia re­cente uma marca de agulha no cadáver.
Will continuou lendo, à procura de mais, como se nunca houvesse lido a matéria antes. Agora queria amaldiçoar quem quer que a escrevera: nada mais havia sobre a injeção misteriosa. Fora apenas deixada em suspense.

Enfiou a mão na bolsa para recuperar o livrinho de anotações atual, o que havia levado para Seattle. Folheou as páginas para encontrar a entrevista com Geneviève Huntley, a cirurgiã que removera o rim de Baxter. Lembrou a conversa, sentado no banco da frente do carro alu­gado, com o celular no ouvido. Deixara-a falar, cauteloso para não interrompê-la. Segundo as anotações à sua frente, ele nem havia per­guntado sobre a recente marca de agulha. Refletindo melhor, entendia por quê. Tinha descartado todo o negócio assim que a cirurgiã lhe fala­ra da operação. A história havia mudado de roubo de órgãos para o homem justo, e esse detalhe inconveniente fora esquecido. Ele tinha esquecido. Além disso, Geneviève dissera que não havia ocorrido ou­tra cirurgia; portanto, a idéia de injeção recente não se encaixava.

Mas agora folheava de trás para frente algumas páginas para ler so­bre seu encontro com o médico-legista e homem de Oxford, Allan Russell. "Contemporânea" foi seu veredito sobre a marca de agulha. Estranho, mas inescapável: os assassinos de Baxter haviam-no anestesiado primeiro.

Will tornou a clicar na matéria de Macrae. Nenhuma conversa de injeções. Apenas um frenético esfaqueamento. Recostou-se na cadeira. Lá se ia outro palpite. Achara que ia provar que aquelas duas mortes de algum modo se relacionavam. Não apenas a estranha coincidência da palavra "justo", mas uma coisa física. Uma verdadeira ligação que pudesse sugerir um padrão. Mas não encontrou nada. O que havia conse­guido? Duas mortes que tinham em comum bons sujeitos como vítimas. Só isso até então. Num dos casos, o de Baxter, algo estranho: ele fora se­dado antes de ser assassinado. O mesmo não ocorrera com Macrae.

Ou melhor, Will não tinha a menor idéia se era verdade ou não. A polícia não mencionara isso — mas também ele não perguntara. Não vira o corpo de Macrae; não entrevistara o médico-legista. Não fizera esse tipo de entrevista. E se não perguntara, não podia saber. Afinal, a morte de Macrae dificilmente fora um grande acontecimento. À parte alguns resumos nas edições da noite, nenhum jornal publicara muita coisa sobre o assunto — até sair a sua matéria no New York Times, claro.

Pegou instantaneamente o celular e procurou a agenda de telefo­nes. Só uma pessoa podia ajudar. Ligou para Jay Newell.


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