Comando. Os pontos de venda do morro, por serem próximos dos fregueses
de Copacabana e, ao mesmo tempo, da base deles, a Santa Marta,
também sempre foram cobiçados pelos seus rivais dentro do CV, Claudinho
e Carlos da Praça. Mas todos foram surpreendidos pelo bonde de
VP.
Os jovens Paranóia e Pardal estavam eufóricos por ver o chefe experiente
comandando pessoalmente o bonde, sobretudo devido à coragem
de se expor no auge da perseguição. Juliano chegou ao morro pelo acesso
da rua Siqueira Campos, na garupa da moto de Tucano. Em seguida,
também sem chamar muita atenção, vieram os outros homens, em mais
duas motos e com os sete carros roubados. A senha do ataque era uma
única palavra:
- Pixação! - gritou Paranóia, que ficou na retaguarda com o pessoal
do spray. À medida que avançavam favela adentro, pixavam nos muros
e paredes as letras CV, com tinta vermelha, para marcar a ocupação. Era
o começo da noite de sábado, os becos estavam movimentados e muita
gente procurou rapidamente abrigo, com medo de um confronto entre os
invasores e os traficantes locais, que haviam recuado para o coração da
favela.
Botequins baixaram as portas de ferro, as mulheres fecharam seus
barracos, as crianças foram impedidas de sair e os pastores das igrejas
evangélicas encerraram os cultos antes da hora. O Tabajara tinha duas
grandes bocas, controladas por grupos diferentes: um independente e outro
ligado ao Terceiro Comando. Os donos da maior delas, a dos indepedentes,
eram três jovens nascidos e criados no morro, e o líder chamava-
se Copa. Eles estavam na praça do Posto de Saúde, com suas melhores
armas e com um número de soldados semelhante ao do bonde de Juliano.
Uma seqüência de explosões, que durou cerca de dois minutos e foi ouvida
em toda a favela, marcou o momento em que os dois grupos ficaram
frente a frente, mas não para guerrear, como muita gente temia. A queima
de fogos era um anúncio de boas-vindas ao bonde, pois a ocupação havia
sido negociada por Juliano dias antes, em encontros fora do Tabajara.
Juliano os convenceu de que a boca dos independentes seria inevitavelmente
tomada por alguma quadrilha do Comando Vermelho ou do
Terceiro Comando, que queria ter o controle total do morro. De fato,
havia mais de um ano o trio vinha resistindo a ataques sistemáticos de
seus inimigos. Por causa dos tiroteios constantes, já enfrentava a reação
de moradores insatisfeitos com a insegurança, além da pressão externa,
vinda dos prédios de Copacabana atingidos pelos disparos. Uma aliança,
segundo Juliano, tornaria o grupo forte o suficiente para afastar os inimigos
e todos os problemas.
Sem tiros e mortes, a imprensa e a polícia não tomaram conhecimento
da mudança de poder no Tabajara. Os detalhes da conquista e as suas
imediatas conseqüências foram explicados por Juliano numa nova carta
enviada aos dirigentes do Comando Vermelho na cadeia de Bangu.
“Faz já muito tempo que nós da Santa Marta vinhemos em luta e muitas vezes
eu poderia tê tomado o Tabajara mas seria pela força bruta. Preferi esperá
que se aliasse a mim os crias de lá e hoje está tomado com mais de 20 crias,
sem violência nem manchete de jornal.
Agora tomado me aparece vários querendo se intítulá de dono ao ponto de
dizerem que os caras que tavam lá não são alemão. Como não? Se eles trabalharam
com todos os meus inimigos. Fora o papo que muitos outros irmãos tinham
a mesma intenção! Se um desses irmãos tivessem tomado eu não tomaria
essa atitude. Me alegraria! E saberiamos entendê!
Pois enquanto meus inimigos tavam lá não tinha dono. Agora que tomamos?
Quero dechá claro meu Presidente que estou pronto a dezenrrolá sobre o
Tabajara. Não tomei com fim financeiro, mas sim com fins estratégicos porque
sempre serviu de base para meus inimigos me atacá, como fez o Tenório, Da
Praça, Claudinho,
Hoje quem tá lá é o Copa, um irmão de lá e uma juventude minha. Quero
sabê se alguém tem algo contra. Sei que o Maitor também tem interece lá pois
diz que vai colocá um precinho de três para um amigo dele que no tempo do
Carlos da Praça e Claudinho fortalecia ele.
Digo desde já que esse amigo dele está aí no B3. E ele qué convecê meus
irmãos a aceitá a sê integrante da minha família!!
Assim vejo meu presidente. Mas se a família tivé otra vizão eu escuta. rei
para podê deszenrrolá até o certo sê demonstrado! Na prática e na certeza de
que lutei, dentro da filozofia de Paz Justiça e Liberdade.”
A conquista do Tabajara não só foi bem aceita pelos dirigentes do Comando
Vermelho como inspirou o planejamento para a futura ocupação
das bocas que estavam sob o domínio do Terceiro Comando. Juliano pôs
para administrar a nova boca os homens que foram expulsos por Zaca da
Santa Marta e os que haviam acabado de sair da cadeia, como o Dudu e
Pintinho. Todos sob as ordens de Copa, também ex-prisioneiro e que já
fora seu gerente de pó.
Juliano não podia ficar por muito tempo em um mesmo lugar. As
buscas da polícia continuavam e envolviam cada vez mais homens. Um
mês depois do Caso Salles, ele já estava exausto e quase desistindo. Sua
única preocupação era encontrar uma maneira de evitar ser morto na hora
da prisão. De tanto perambular de morro em morro, por dentro da Floresta
da Tijuca, acabou correndo outros tipos de perigos. Adquiriu uma
estranha infecção, causada provavelmente pela picada de algum inseto.
Os sintomas eram fortes dores musculares, que dificultavam suas caminhadas,
e muita febre - causa de seus delírios durante os pesadelos de
perseguições.
Abatido pelo estado febril, Juliano passou a dormir mais de 12 horas
por dia, sobretudo depois que ganhou um barraco para se esconder na
favela do Falet. Aproveitou o abrigo para ficar três dias deitado, numa
tentativa de se restabelecer, voltar a ter forças para enfrentar a vida de
foragido. Em setenta horas de sono, acordou apenas duas vezes.
A vizinha, guardiã do barraco, assustada com os gritos dos pesadelos
de Juliano, acordou-o uma vez para acalmá-lo e oferecer-lhe um prato
de arroz, feijão, carne, batata fritas, servido junto com uma garrafa de
guaraná e com uma sobremesa de doce de banana.
- Isso é melhor que sexo - disse ele à mulher, como forma de manifestar
seu agradecimento.
Ele só seria novamente acordado vinte horas depois, quando o barraco
foi invadido pelos policiais do Primeiro Batalhão do Serviço Reservado
e da Divisão de Proteção à Criança e ao Adolescente. Ninguém
acreditou, num primeiro momento, que aquele homem deitado num velho
colchão, sem nenhuma roupa de cama, fosse o traficante que todos
procuravam. Não havia nenhunma arma perto dele. Vestia apenas uma
bermuda, sem nenhum volume nos bolsos, Tinha os cabelos enormes,
encaracolados, amarrados na parte de trás da cabeça com um cordão, e
usava cavanhaque. A seu redor, restos de velas queimadas ao lado das
imagens de São Judas Tadeu, de Santo Expedito e de Nossa Senhora
Aparecida. Ao acordar, assustado, Juliano também teve dificuldades de
entender o que estava acontecendo. Por segundos acreditou que pudesse
ser a continuidade de seus sonhos e pesadelos, sobretudo porque à frente
dos policiais estava uma mulher, a delegada Márcia Julião, com uma
pistola automática apontada para sua cabeça. Vistos do chão, os homens,
que estavam ao lado da delegada, pareciam gigantes, e seus revólveres e
fuzis engatilhados eram ainda mais assustadores.
- Perdi. Perdi. Não me matem. Não me matem - pediu Juliano. O seu
apelo tirou as dúvidas dos policiais.
- A casa caiu, é o VP. Agora não tem banqueiro pra te tirar dessa,
mermão - disse um policial, vibrando com o fim das buscas, que duraram
53 meses e 14 dias.
Era a sua segunda prisão em conseqüência da pressão da imprensa,
associada a suas relações com intelectuais da cidade. Na primeira vez,
quando ainda não era condenado pela justiça, a polícia o prendeu uma
semana depois de ter dado a entrevista “desafiadora” sobre a segurança
de Michael Jackson.
Desde sua última fuga, em 1996, mesmo já condenado duas vezes
pela Justiça, viveu quatro anos em liberdade. Mas depois que virou personagem
do Caso Salles, em menos de dois meses já estava voltando
para a cadeia. A sua prisão na favela do Falet foi acompanhada pessoalmente
pelo secretário de Segurança Josias Quintal. Uma caravana de
viaturas, protegidas por motociclistas que abriam o caminho no trânsito,
levou-o até o prédio central da polícia, onde Juliano já era aguardado por
um batalhão de jornalistas.
Foi exposto às câmeras e aos repórteres, mas não quis dar uma entrevista
coletiva. Diante de perguntas insistentes, não criticou a polícia
- como fizera no passado - e evitou associar a sua prisão ao Caso Salles,
embora tenha culpado a imprensa pela repercussão do episódio.
- Eu sou o monstro que vocês criaram. Vocês me mitificaram. Vocês
precisam disso para sobreviver.
Para o cineasta e amigo João Salles, só elogios:
- Ele é um abolicionista do século XXI. Ele tem idéia da escravidão
que tá acontecendo hoje com os favelados. É uma das poucas pessoas
interessadas, de fato, em ajudá as comunidades dos morros.
Recebeu a visita da mãe Betinha, da sua irmã companheira, Zuleika,
e da namorada Milene, que o abraçou e o fez chorar nos corredores da
delegacia.
- Foi melhó assim. Pelo menos, agora a gente vai podê se ver uma vez
por semana, sem precisá ficá fugindo ou correndo.
Não seria bem assim. Ao prestar o depoimento após prisão em flagrante
na Delegacia de Repressão a Entorpecentes, Juliano ainda não
sabia que seu destino seria a cadeia mais odiada pelos traficantes, o presídio
de segurança máxima de Bangu. A cadeia era conhecida por impor
o isolamento - cada preso ficava numa cela individual - e por obedecer
a uma rígida disciplina, que principalmente limitava a possibilidade de
conversarem livremente. Também adotava uma série de restrições, com
finalidade punitiva. Elas variavam de caso para caso. Para Juliano, escolheram
a pior que ele podia esperar, a proibição de receber visitas da namorada.
Mas quando soube que o seu destino era Bangu 1, as conhecidas
restrições disciplinares ficaram em segundo plano. A maior preocupação
dele passou a ser a chegada ao lugar onde estavam concentrados os 12
principais dirigentes do Comando Vermelho. Juliano sabia que era aguardado
lá para esclarecer episódios controversos de guerras passadas.
Antes de dar explicações aos dirigentes do CV, Juliano teria que prestar
contas aos homens que, pela Constituição, representam o povo brasileiro.
Convocado a depor na CPI do Narcotráfico, três dias depois de
ser preso, ele foi levado de avião, sob escolta da Polícia Federal, para
Brasília. O protocolo do Congresso Nacional, que exigia traje social para
o acesso ao prédio, teve de ser quebrado para liberar a entrada de Juliano,
que estava algemado e vestia bermuda jeans camiseta branca e tênis.
- Que paíííís é eeesse?
Já no plenário, para se acalmar enquanto aguardava o início do interrogatório,
Juliano cantou a música de sucesso de sua banda preferida, a
Legião Urbana. Estava emocionado, tenso e ao mesmo tempo orgulhoso
por ser o primeiro integrante do Comando Vermelho a falar no Congresso
Nacional. No início da sessão, quando os deputados da CPI autorizaram
a retirada de suas algemas e ofereceram dez minutos para suas palavras
iniciais, Juliano não esqueceu de saudar o CV. Levantou o braço esquer
do e com a mão fechada gritou a palavra de ordem da organização.
- Paz, Justiça e Liberdade.
Ele tinha uma grande expectativa em relação ao seu próprio discurso
Passados os dois dias que antecederam o depoimento organizando as
suas idéias, falando sozinho para treinar e depois não passar vergonha
diante do plenário mais representativo do país. Encarava a convocação
como uma grande oportunidade, a maior que já tivera na vida, para convencer
as pessoas de que os traficantes também deveriam ser ouvidos
em um futuro debate público que buscasse soluções para os problemas
sociais geradores de violência do Brasil.
- Oitenta por cento das pessoas que se envolvem no tráfico, se envolvem
por pura necessidade - disse ele no início do discurso livre.
A sua maior expectativa era convencer o plenário de que, como “dono
de boca”, era um líder da comunidade, ilegal mas legítimo. Tinha a ingênua
esperança de conquistar a simpatia dos deputados e de convencê-los
a aderir a suas idéias para o combate ao crime e à violência no país. Para
demonstrar que tipo de contribuição poderia dar, na hipótese de um debate
público sobre segurança, fez um prognóstico sobre a tendência da
criminalidade no Rio.
- Violência não se resolve só com polícia, porque o problema maior
é social... O tráfico do Rio é violento sim e, desse jeito, vai se torná cada
vez mais violento. As pessoas serão cada vez mais seqüestradas. Quem
tem carrão tem toda a razão de andá com medo.
Ele pensara, com grande dose de ingenuidade, que o seu depoimento
na CPI seria um sucesso, como foi o de seu amigo, o cineasta João Salles.
Dias antes, convocado a depor como testemunha, Salles exibiu o documentário
“Notícias de uma guerra particular” no plenário. E depois de
explicar as razões de ter dado uma ajuda de três mil dólares ao traficante,
foi aplaudido de pé pelos deputados.
No caso de Juliano, convocado na condição de interrogado, as gentilezas
da abertura logo se transformariam numa sabatina sobre a vida
criminosa do narcotráfico.
- Você cometeu muitos crimes? Você era violento? - perguntou o deputado.
- Eu era violento sim, igual ao Mad Max. Aquela era a minha realida
de - respondeu Juliano, fazendo referência a um filme famoso.
- Como era o movimento das bocas de cocaína? Quanto você faturava?
- Nunca comprei mais de quatro quilos de cocaína das pessoas que
me ofereciam partidas de drogas.
Quando percebeu que os deputados queriam, em vez de ouvir suas
idéias sobre o crime, escutar revelações importantes sobre o universo do
narcotráfico, Juliano recuou estrategicamente. Limitou-se a responder de
forma genérica às questões mais delicadas, como a denúncias de extorsão
policial.
- A gente pagava para eles deixarem o tráfico rolá. Se a gente não
dava, eles caçavam e matavam.
Depois de ouvi-lo durante duas horas e meia, irritados, os deputados
o convidaram a depor numa sala secreta, com a esperança de obter
confissões mais consistentes contra os chamados barões da cocaína e os
chefes de outros morros. Juliano não mudou de postura. Nessa hora, sabendo
que logo voltaria ao convivio de traficantes poderosos na cadeia de
Bangu, a fidelidade ao Comando Vermelho era mais que oportuna.
O relator da Comissão Parlamentar de Inquérito, deputado Moroni
Torgan, que fora um atuante delegado de polícia, acabou a sessão indignado.
- O discurso social dele cai como um castelo de cartas quando se nega
a colaborar com a CPI.
Ele não passa de um gerente um pouco mais articulado. Diz que quer
ajudar a luta contra o tráfico, mas se recusa a falar o nome dos financistas.
Ele não quer ajudar os pobres coisa nenhuma!
CAPÍTULO 38 NEIN E BERENICE
- Tu tá vendo o Tabajara na tua frente, rapá? Vamo vermelhá em cima
de ti, tamo com mais de cem AK, vacilão!
A ameaça de guerra era de um traficante já em atividade no morro
recém-conquistado. O Tabajara tinha sido escolhido como base para a
formação do bonde do tão esperado ataque. O plano tivera o aval dos
homens do Comando Vermelho, um sinal de que Juliano teve uma boa
recepção em seus primeiros dias como prisioneiro na cadeia-fortaleza de
Bangu 1.
Dias antes, a “diretoria” do CV já havia aprovado também a invasão
total do Tabaj ara para expulsar os rivais do Terceiro Comando, que ocupavam
metade do morro muito cobiçado pelo tráfico, devido à proximidade
da multidão que mora em Copacabana. A área ocupada pela favela
também tinha alguma semelhança geográfica com a da Santa Marta. As
características do morro não permitiam a expansão das moradias, o que
ajuda a explicar um fenômeno único nas favelas do Rio de Janeiro. A Ladeira
do Tabajara foi a única que teve a sua população diminuída na última
década do século XX. Eram 1.149 pessoas em 1991 e foi diminuindo
num ritmo de quase dois por cento ao ano. Em 1999, não passavam de
822 moradores. Mas para os traficantes, a favela nunca deixou de ser
atraente. Para o CV, o domínio do Tabajara virou instrumento de pressão
contra os dois “crias” que disputavam o controle da Santa Marta.
Depois de vencer os inimigos em dois dias de guerra, o CV finalmente
conseguia resolver a velha briga, dividindo o Tabajara, metade para
Juliano, metade para Claudinho, ambos sob a bandeira da organização.
Com uma base próxima à favela, estava aberto o caminho para a formação
do bonde e a retomada da Santa Marta, embora isso fosse publicamente
negado por Juliano.
Recolhido ao isolamento de celas individuais, Juliano vira seu nome
sair do noticiário, mas ele não deixara de se comunicar com os amigos e
alguns repórteres. Apesar das decepções com a imprensa e com os intelectuais,
ele voltaria a dar entrevistas esporádicas pelo celular e por meio
de cartas supostamente encaminhadas por seu advogado a publicações
eletrônicas e revistas.
Nos primeiros dias do novo século, ele falava no tráfico como coisa
do passado. Reivindicava o direito de ser transferido de Bangu para uma
cadeia onde pudesse estudar Filosofia e Direito. Falava em aprender um
pouco mais sobre a alma humana e também se capacitar para um dia cuidar
ele próprio de sua defesa nos processos que ainda tramitavam fora e
dentro da cadeia.
Continuava na mira da polícia, que passou a acusá-lo de envolvimento
nas disputas internas na cadeia pelo poder do CV, que culminaram
com a morte de Dênis, o chefe do tráfico da maior favela da América do
Sul, a Rocinha. Dênis apareceu enforcado dentro de sua cela. Juliano
ainda era um novato na cadeia mas como no dia da morte de Dênis sofreu
arranhaduras no peito, a direção do presídio o apontou como um dos dois
suspeitos de terem praticado o crime. Na sindicância interna, Juliano negou
a acusação e disse que os machucados em seu corpo não passavam
de arranhões provocados por sua ginástica no chão da cela.
Para os adolescentes, que viviam exilados no recém-conquistado Tabajara
e na casa de Mãe Brava, no morro do Cantagalo, a história de Juliano
continuava a mesma. As últimas notícias vindas da cadeia serviram
de estímulo para sonhar com uma segunda guerra contra Zaca. Embora
tivessem apenas vagas lembranças da primeira grande guerra de 1987,
quando eram crianças, queriam reproduzir uma revanche também para
ficar na história.
Foi nessa época que eu retomei as gravações dos depoimentos com as
pessoas da quadrilha, que fora obrigado a interromper em conseqüência
do Caso Salles. Contra a minha vontade, minha pesquisa sigilosa para o
livro havia se tornado pública, o que obviamente impedia a sua continuidade
no morro. Alguns homens de Juliano e moradores nunca mais quiseram
conversar comigo. Depois da invasão da favela pela quadrilha de
Zaca, a maioria teve que fugir para algum lugar incerto, o que dificultaria
ainda mais um possível contato. A retomada gradual das entrevistas só
foi possível pela ajuda, mais uma vez, de Kevin, que também se afastara
do morro.
Foi o missionário que os convenceu a aceitar a minha tática alternati
va: em vez de eu procurá-los de forma sigilosa como antes, eles sairiam
de seus esconderijos para falar comigo, na minha área, no asfalto.
O primeiro a aparecer foi Tênis, o amigo de Nem.
-Aí!
- Obrigado por ter vindo.
- Qual que é?
- O helicóptero, lembra? Gostaria de saber melhor daquela história do
helicóptero, você quer falar?
- Quero mermo, aí. Vô sentá o prego naqueles putos.
- Não, não. Estou falando da história do passado, a do Nem.
- Grande parceiro, aí. Eu até me arrepio quando lembro do que fizeram
com ele.
Desde a fuga de Juliano para a Argentina, Tênis estava morando no
Cerro Corá. Casou no morro e estava prestando serviço para o chefão das
drogas. A experiência como guarda-costas de Juliano o ajudou a se aproximar
do dono da boca, Bruxo, que o escalou para o grupo de seus seguranças
mais confiáveis. Mas o chefe acabaria morto, numa circunstância
que impediu qualquer ação em sua defesa. Bruxo foi vítima da explosão
de uma granada contra o seu rosto, detonada por ele próprio.
- O Bruxo era maluco, como o Juliano. Também tinha levado um tiro
na cabeça. Aí um dia ele pegou uma granada, e disse assim: vou fazê que
nem o Juliano. Vou desmontá essa porra. De repente: buuum! Explodiu
na cara dele! E o Bruxo já é, aí!
Com a morte do Bruxo, o Terceiro Comando tomou a boca e Tênis
teve que fugir do Cerro Corá.
Deixou a mulher grávida no morro e passou a viver de tarefas nos
morros dos amigos. Na última vez que voltou à Santa Marta não gostou
da forma como foi tratado pelos “frentes” da boca.
- Cheguei pro gerente do branco e pedi: aí, preciso de 30 real pra
comprar dois sacos de cimento pra obra do meu barraco. E o Kito Belo
respondeu: não tá dando, não tá dando.
Durante o nosso encontro, contou que no último ano estava vivendo
praticamente sem dinheiro. Queixava-se também da falta de apoio do
Comando Vermelho à quadrilha de Juliano. Percorrera vários bailes funk
no começo do ano 2000 para espalhar as dificuldades da Santa Marta,
levar ao conhecimento do CV as suas reivindicações. Achava que os dirigentes
do CV os abandonaram porque estavam de bronca com Juliano e
os inimigos estavam tirando proveito disso.
- Eu vi lá no funk do Borel: os neguinhos do CV com a mochila
envergada de munição. No Turano também, a maior fartura... e a gente
nesse sufoco, aí.
Era cotado pelos parceiros de sua geração que estavam na cadeia para
assumir a condição de novo frente de Juliano na Santa Marta na hipótese
de que a boca fosse retomada. Desejava, como seus amigos, expandir o
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