Mãe Brava.
Mudinho movimentava a cabeça para os lados, sinal de negativo.
- Se não foi a polícia... quem foi, caralho? Foram os alemão? - perguntou
Mãe Brava.
Mudinho sinalizou que sim.
- Cacete! Mataram alguém? Um dos nossos?
Mudinho confirmou sacudindo a cabeça. A essa altura já havia uma
pequena multidão em volta dele. Alguns jovens também faziam perguntas,
tentando esclarecer rapidamente a história. Era meio-dia. Acordado
às pressas, Careca lembrou à Mãe Brava que Mudinho tinha uma interlocutora
na favela.
- Vamo levá ele até o barraco da Luz - disse Brava.
Cara a cara com Luz, Mudinho puxou com os dedos a ponta do próprio
nariz, mostrou os seus dentes superiores, fazendo o sinal de negativo
com a mão, num esforço para ajudar o pessoal a identificar a vítima do
crime a que assistira.
- Nariz puxado, nariz longo.., dentes superiores, não... sem os dentes
de cima? Já sei, já sei... O Mendonça! - disse Luz.
A descoberta provocou reações de tristeza, desespero, revolta.
- Ele tá dizendo que mataram um dos nossos. Foi o Mendonça, meu
Deus! O Mendonça! - gritou Brava.
Mudinho correra sem parar dez quilômetros a pé, do prédio da antiga
TV Manchete, na Glória, até a Santa Marta. Os homens foram acordados,
um por um, para saber da novidade. Mendonça estava a caminho do
morro do Turano, na Tijuca, onde iria negociar uma ajuda de homens e
armas para fortalecer a quadrilha durante o retorno de Juliano. Ele dirigia
um Voyage com Mudinho ao seu lado, quando foi surpreendido, ao parar
em um sinal, por dois homens que estavam de moto, usavam capacete e
dispararam pistolas automáticas.
Embora os assassinos não tenham deixado pistas, para Juliano a natu
reza do crime apontava naturalmente a autoria:
- Isso é coisa de cagüeta. Tem X-9 na área, aí. Tá no meio da gente,
ó! - disse Juliano na primeira conversa com seus homens.
No mesmo dia da morte de Mendonça, ele tomaria a sua primeira
decisão de comando. Em homenagem à família Fumero, exigiu que o
velório fosse feito na capela da Igreja Nossa Senhora da Auxiliadora,
ponto estratégico em uma das vias de maior movimento na Escadaria,
bem perto do posto da PM. Havia suspeita de o crime ter sido praticado
pelos agentes secretos da P-2 e Juliano queria mostrar à polícia as conseqüências
da morte na comunidade.
O velório mostrou a situação em que se encontrava a quadrilha de
Juliano. O caixão de madeira crua era o mais barato da funerária. O jovem
que sonhara ter poder e dinheiro, como o falecido tio Cabeludo,
seria enterrado com chinelo de dedo, bermuda, uma camisa social branca
surrada. Uma grossa corrente de prata, que usava no pescoço, foi posta
em suas mãos junto com a sua “ferramenta de trabalho”, como dizia, um
revólver 38, cano curto. Juliano obrigou os homens mais franzinos, como
era Mendonça, a doarem o melhor tênis e a melhor calça para vesti-lo
com dignidade.
As mulheres do piza prestaram uma homenagem ao criador da única
quadrilha que continuava faturando alto no morro. De acordo com a tradição
dos funerais dos bandidos de conceito, cobriram o corpo de Mendonça
com lírios brancos. Os homens quase falidos de Juliano trouxeram
outras flores que compraram fiado ou roubaram dos jardins das casas
próximas à favela. Careca se encarregou, constrangido, de recolher das
mãos do amigo morto o trezoitão: o revólver 38 poderia fazer muita falta
nos próximos dias.
Luz estava inconformada. Passou horas ao lado do caixão e, às vezes,
falava baixinho como se estivesse conversando com Mendonça.
- Eu enterrei o teu tio, cara... Tu era um moleque... Agora que tu virô
grande, vai me deixá na mão? Sacanage... Tinha que sê eu, parceiro... Eu
tô fodida, parceiro...
Mendonça deixou de herança um barraco de madeira velha, de três
cômodos, que se fosse de um morador comum da favela valeria, em
1997, o equivalente a 700 dólares. Mas como era usado pela gerência
da endolação, tinha outro tipo de valor. Era alvo de guerra, dificilmente
alguém teria coragem de comprar. A mulher Adriana, que morava com a
filha Caroline na casa da família, nem pensou em ficar com o barraco. Só
passou por lá para recolher alguns pertences do marido e as fotos coladas
na parede, que mostravam Mendonça sorridente ao lado dela e de sua
irmã com o craque Axel, em vários almoços nas melhores churrascarias
da cidade.
A herança de guerra de Mendonça ficou para a amiga Luz. No mesmo
dia do enterro, virou sede da primeira reunião de Juliano para definir
os planos para a reestruturação da boca. No ano de ausência do chefe, o
controle ficara dividido entre dois grupos com características diferentes:
o dos caxangueiros, liderado por Paulo Roberto, e o do pessoal que já
entrou para o crime pelo caminho do tráfico, embora fosse comandado
também por um assaltante, Mendonça, e formado em sua maioria por
integrantes da antiga Turma da Xuxa.
As mortes dos “dirigentes” Du, Rebelde e Mendonça e o número de
presos nos últimos meses indicavam uma fase difícil, a pior desde a retomada
do morro no começo de 1995.
- Quem tá na cadeia? Diz aí - perguntou Juliano.
- General, Pinha, Funfa, Ramon, Ká... - respondeu Paulo Roberto.
- E quem tá na condicional?
- Pimpolho, Formigão, Vianinha... e tem um monte aí que tá pedido.
Se puxá a capivara vem 157, 12, 121 e o caralho... Começando por mim.
O Tá Manero também tá pedido. Tem que puxá aí uns dez anos de cana
- informou Paulo Roberto.
- Caralho, o time tá manjado, tem muito nego marcado pelos homi
aí... Temo que renová a rapaziada, botá uma molecada na frente, aí, pra
desbaratiná, é ou não é? - disse Juliano.
- Tamo ferrado, chefe. E os alemão sabe disso, vão invadi qualqué
hora. Tá mole, molinho... - disse Paulo Roberto.
- Quantas armas nós temos? - perguntou Juliano.
- Fora a Jovelina, cinco ARs, dois G-3, um AR quebrado, uma 12 fudida,
a minha Glock, que tá lindona, duas pistolas do pessoal do plantão,
e o resto é 38. O grave é que não tem munição - disse Paulo Roberto.
- Bem, tenho uma surpresa: tem uma pá de granada enterrada numa
área aí... Vou apanhá pra nós. E o frente do Vidigal, o Patrick, que é irmão
CV, pode botá um fortalecimento aqui. Sacumé, os alemão do Terceiro
tão a fim de entrá com tudo na zona sul e a Santa Marta tá no meião,
é estratégico - explicou Juliano, como se fosse o comandante de uma
guerra.
Na lógica de Juliano, reforçar o seu exército era o único meio de evitar
as prisões e as mortes.
Suspeitava que o assassinato de Mendonça tivesse sido encomendado
pelos inimigos do Terceiro Comando, que estavam em guerra de expansão
pelos morros da zona sul contra o Comando Vermelho. Num quadro
de falência, sabia que a Santa Marta precisava de apoio dos líderes do CV
que controlavam alguns dos principais morros da vizinhança: o Vidigal,
a Rocinha, o complexo Cantagalo-Pavão-Pavãozinho, o Azul, o Cerro
Corá.
Os homens do Terceiro Comando já haviam derrotado o CV nas favelas
do Cantagalo e na ladeira do Tabajara, ambas próximas da Santa
Marta. O risco do Terceiro atacar era alto, mas não era o que mais preocupava
Juliano. Ele sabia que, mesmo sem pedir ajuda, imediatamente o
CV entraria na guerra para conter a expansão de seu maior concorrente
no narcotráfico. Seria um aliado natural e poderoso, com quantas armas
e soldados fossem necessários.
Mais preocupante, para Juliano, eram as ambições dos inimigos de
dentro do próprio Comando Vermelho, principalmente as da dupla Carlos
da Praça e Claudinho. Os dois continuavam presos, e aproveitaram a
convivência com os dirigentes do CV nas cadeias para conspirar a favor
da retomada do controle da Santa Marta.
Havia ainda a ameaça de invasão dos inimigos independentes, representados
por Zaca. Também prisioneiro, o ex-PM nunca deixou de enviar
mensagens para seus simpatizantes no morro, com promessas de entrar
na guerra a qualquer momento para recuperar a condição de dono.
Para se prevenir de algum ataque inimigo de surpresa, no primeiro
mês de vida clandestina Juliano dedicou-se integralmente a treinar os
jovens recém-integrados à quadrilha. Ele próprio comandava as aulas
práticas de artilharia no Tortinho, um minicampo de futebol assimétrico,
com linhas laterais curvas e as traves dos gols pintadas de branco nos
dois barrancos que delimitam ao fundo a área do jogo.
Os novos guerreiros treinavam tiro contra o barranco do Tortinho
quando a emboscada começou. Os fogueteiros estavam posicionados em
todos os pontos de acesso da favela, tinham a seu dispor um bom estoque
de fogos, mas nenhum deles teve tempo de acendê-los. O pessoal mais
experiente guardava posição à sombra de uma grande rocha do pico do
morro. Alguns deles, como Juliano, aproveitavam para lubrificar a arma
com óleo de máquina de costura e o lubrificante WD. Ninguém viu seus
inimigos chegarem silenciosos pelo céu. Só perceberam quando os primeiros
tiros disparados do ar atingiram o chão do Tortinho.
No primeiro vôo rasante, Rafael, de 15 anos, foi atingido na barriga,
caiu de bruços e bateu com o rosto numa pedra. Estava treinando tiro ao
alvo havia apenas uma semana, levado para o tráfico pelo irmão mais
velho, Rivaldo, que também era novato na função de contador da boca,
embora já estivesse envolvido com a venda de drogas desde o tempo de
Raimundinho. Rafael foi socorrido pela polícia e teria morrido a caminho
do hospital. Fora o segundo a morrer pelos tiros disparados do mesmo
helicóptero em direção à área da favela. A outra vítima era conhecida de
todos moradores, era o gari Wagner, integrante do pequeno grupo autônomo
de varredores de lixo da Santa Marta.
De uso proibido no governo anterior, de Leonel Brizola, os helicópteros
estavam novamente liberados para a polícia combater o crime nas
favelas. Era uma das principais armas na guerra contra o narcotráfico
promovida por um general do Exército, da chamada linha dura, que esteve
no comando da Secretaria da Segurança Pública do Rio de Janeiro,
de 1995 a 1998. O general Newton Cerqueira, que fora integrante
dos órgãos de repressão da ditadura militar, tornou-se conhecido no país
por ter participado das patrulhas que mataram, em 1971, em Brotas de
Macaúbas, no sertão da Bahia, um dos maiores líderes da guerrilha de
esquerda do Brasil, o ex-capitão do exército carioca Carlos Lamarca, da
Vanguarda Popular Revolucionária.
O prêmio pela morte de suspeitos, como Rafael, era outra arma usada
pela policia do general para combater o crime. No período de janeiro de
1993 a julho de 1996, mais de 300 mil reais dos impostos do Rio reforçaram
os salários dos PMs que mataram 700 pessoas, acusadas de terem
resistido a tiros às ordens de prisão.
Alguns dos mortos eram soldados de Juliano. Um deles, Tartaruga,
foi morto durante o plantão da boca por descuido da sua segurança pessoal.
Ele tinha sido orientado por Luz para não namorar, sob nenhuma
hipótese, enquanto estivesse no grupo encarregado da vigilância, mas
cedeu aos encantos da adolescente
Katinha, ex-namorada de Nem, chamada no morro de Maria da Boca
porque adorava ficar com o pessoal do tráfico.
No final da tarde eles estavam trocando beijos e abraços animados
junto ao paredão de pedra na área da boca. Nesse mesmo lugar, durante
a noite, costumavam manter relação sexual, em pé, sem chamar muito
atenção pois ficavam um pouco afastados do grupo de seguranças.
Naquele dia também eram plantonistas Paranóia, Nego Pretinho e
Pardal. O grupo havia recebido o reforço de Tênis, libertado da cadeia
uma semana antes, depois de ter cumprido cinco anos de pena.
Nenhum deles reagiu quando o tiro foi disparado do meio do mato
por algum soldado da polícia militar.
Foi um único barulho abafado de tiro e ninguém entendeu direito de
que lado tinha sido disparado.
Um disparo certeiro. Tênis viu o amigo ser atingido na cabeça no
momento em que beijava Katinha, mas não entendeu direito o que tinha
acontecido.De repente, Tartaruga perdeu as forças das pernas e ficou pendurado
nos braços da namorada, que na hora emudeceu, traumatizada.
Mais tarde no velório de Tartaruga, Luz usou o episódio para pressionar
Juliano contra a escalação de mulherengos para a guarda da boca. E
tentou convencê-lo a punir Katinha num tribunal para servir de exemplo
às outras “Marias” que viviam em torno dos vapores. Juliano recusou a
proposta.
- Foi vacilo geral, mas a Katinha não teve culpa nenhuma, caralho
- disse Juliano.
- Falou a majestade, o rei dos punheteiros. Tu também já levô ferro
por causa delas e ainda não aprendeu - protestou Luz.
- Quero solução, Luz. Qualé que é a proposta? - perguntou Juliano.
- Galinha, mulherengo assim como tu, fora do plantão...
O episódio fez Juliano aceitar os argumentos de Luz e levar mais
a sério a escolha dos sentinelas da boca. Promoveu o sempre solitário
Nego Pretinho para a chefia do plantão de segurança. Era um prêmio ao
adolescente, que, desde o dia em que foi castigado no tribunal, deu várias
provas de fidelidade ao chefe e se tornou o mais obediente da quadrilha.
Por causa do trauma da morte de Tartaruga, Nego Pretinho ficaria
sob intensa fiscalização de Luz. Faria 18 anos sem nunca ter namorado
ninguém.
- Assim tu tem futuro, Pretinho. Pode crê, mulhé chama morte, aí.
Juliano resolveu ter um guarda-costa. Também por insistência de
Luz, o escolhido foi Tênis, que não tinha uma vida muito agitada com
as mulheres. Luz conhecia a sua história de fidelidade ao casamento e
admirava a coragem dele na hora de combate.
- Esse veio tarimbado da cadeia e segura uma onda com a mulhé dele
lá no Cerro Corá. Manero, discreto, é o cara - disse Luz.
Tênis fora morar no Cerro Corá por sugestão de Juliano. A Santa
Marta estava cercada, e ele precisava de um homem de confiança no morro
vizinho para ajudálo a escapar. Tênis ficaria encarregado de vigiar o
caminho no meio da floresta que faz a ligação entre os dois morros e que
um dia poderia ser uma opção de fuga.
Morava na casa da família de sua mulher, no Cerra Corá, mas passava
a maior parte do tempo na parte alta da Santa Marta. Além de ser a área
que melhor dominava era o caminho natural de fuga para o outro morro,
por dentro da mata. Depois da morte de Tartaruga, ele passaria a seguir os
passos de Juliano, com a missão de protegê-lo dos ataques ou de ajudá-lo
a enfrentar os ataques inimigos.
Também era sua função vigiar o fuzil Jovelina quando o chefe precisasse
dormir ou descansar, e cuidar da sua manutenção, basicamente
passar óleo lubrificante em suas engrenagens.
Mas o novo desenho da segurança da boca não iria impedir outras
perdas na quadrilha. A notícia da volta de Juliano à favela levou a polícia
a fazer operações quase diárias. E a aumentar o valor da oferta em dinheiro
pela sua captura. A polícia também reativou um procedimento que
estivera proibido no governo de Brizola, a invasão policial dos barracos
sem mandado judicial.
Juliano tentou tirar proveito das irregularidades da policia, que aos
poucos foram revoltando os moradores. Ele ouvia as queixas das famílias
que tinham suas casas violadas ou que sofriam espancamentos e tortura
para confessar alguma informação sobre os esconderijos do chefe do
morro.
Na ausência de uma entidade que as defendesse, muitas vítimas procuravam
a boca para reclamar a Juliano. Ele adorava fazer o papel de
“ouvidor” das denúncias contra a polícia ou contra qualquer morador. E
gostava mais ainda de ouvir as fofocas, principal fonte, aliás, do “serviço
secreto” que ele próprio inventara na boca.
A receptividade do chefão aos poucos transformou a boca numa espécie
de central de reclamações.
Só um ano e meio depois os moradores criaram uma entidade independente,
a Casa da Cidadania, para fiscalizar as violações dos direitos
constitucionais e protegê-los dos abusos praticados pela polícia. A entidade
logo ficaria sob suspeita da polícia por causa das constantes denúncias
que fazia às autoridades e à imprensa e porque tinha como principal
dirigente um grande amigo de Juliano, que muitos consideravam irmão,
o missionário Kevin Vargas.
De imediato, a entidade começou as atividades em duas sedes. A base
administrativa e o ponto de reuniões eram numa casa alugada, ao lado da
praça das Lavadeiras. A outra sede era uma casa que havia sido doada e
tinha um valor simbólico na favela. Fora usada como camarim de Michael
Jackson e estava abandonada havia dois anos, desde as gravações do
clipe do astro americano. Pertencia à Associação de Moradores, que fez
a doação à Casa da Cidadania, que a transformou em ambulatório médico
e escola profissionalizante.
A nova entidade encaminhou às autoridades as reivindicações dos
desabrigados do grande incêndio e das vítimas dos deslizamentos do
morro. E elas foram atendidas. Também conseguiu, com empresas privadas,
doações de remédios para distribuir no ambulatório e de material de
construção para algumas pequenas obras coletivas. Reativou, com relativo
sucesso, os bailes de sexta-feira à noite na quadra da escola de samba,
que passou a atrair jovens de vários morros da zona sul. Mas a principal
atividade da Casa da Cidadania era a defesa dos direitos das vítimas da
violência policial.
“PARA ACABAR COM A VIOLÊNCIA
POLÍCIA INVESTIGATIVA E INTELIGENTE”
A frase foi pintada por grafiteiros no maior muro da entrada do morro
pelo lado oeste. Por iniciativa da Casa da Cidadania, os jovens artistas da
Santa Marta passaram três meses reproduzindo em outros pontos estratégicos
artigos da Constituição da República e da Declaração Universal
dos Direitos Humanos. Na sede da Casa da Cidadania, escreveram:
“TODAS AS PESSOAS NASCEM LIVRES E IGUAIS
EM DIGNIDADE E DIREITO”
Nos muros do caminho principal, o beco Padre Hélio:
“O LAR É ASILO INVIOLÁVEL”
Também produziram pequenas placas, como um lembrete útil, que
foram fixadas nos postes, igrejas, terreiros, creches, lanchonetes, botequins.
“VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS?
LIGUE PARA OUVIDORIA DE POLÍCIA.
FONE: 690-11-99
MAUS-TRATOS. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIOS.
IRREGULARIDADES E ABUSO DE AUTORIDADE.
EXTORSÃO.
(NÃO É NECESSÁRIO SE IDENTIFICAR)”
Juliano também participou da campanha, como desenhista. Foi obra
dele o mural de um menino jogando futebol com a camiseta do Botafogo,
pintado na parede de uma casa no canto do Cruzeiro. Também tem a
assinatura dele o grafite do muro ao lado.
“VOCÊ TEM DUAS SAÍDAS: TER CONSCIÊNCIA OU AFOGAR
A SUA PRÓPRIA INDIFERENÇA” PAZ. JUSTIÇA. LIBERDADE. FÉ
EM DEUS.
A visibilidade da campanha irritou ainda mais os homens do Batalhão
de Operações Especiais, o Bope, que faziam a caçada mais ostensiva
a Juliano. Fora este mesmo grupamento que o prendera pela última vez,
no verão de 1996. Treinados para o combate antiguerrilha, os soldados
faziam operações no morro em quaisquer circunstâncias. Enfrentavam
a chuva, o frio, a lama, a escuridão e até os obstáculos das matas cerradas.
Infiltravam-se por dentro da floresta durante a madrugada, para tirar
proveito do sono e da menor visibilidade dos homens que estavam de
plantão na boca. E tentavam surpreendê-los agindo em datas improváveis
para uma operação policial, como aconteceu na madrugada de 15 de novembro
de 1998, feriado da Proclamação da República.
Pouco antes do amanhecer, dez soldados de uma patrulha do Bope,
que usavam uniformes de camuflagem formavam uma linha de tiro na
divisa da área da favela com o pátio da prefeitura. Os P-2 do serviço
de inteligência da PM já haviam descoberto que ali era um caminho de
passagem de Juliano, que costumava se refugiar no matagal. Os agentes
secretos tinham vasculhado a mata com ajuda de cães farej adores e localizaram
o lugar onde ele dormia, junto a uma árvore centenária.
Tiveram certeza de que era mesmo um esconderijo de Juliano pelos
objetos pessoais encontrados no meio das raízes enormes crescidas na
superfície. Eram imagens de Santo Expedito, Santa Terezinha, São Judas
Tadeu, Nossa Senhora Aparecida e Santa Gertrudes, todas cercadas por
velas, alguns livros, um deles sobre a experiência da guerrilha de foco,
de Régis Debray, uma garrafa de vinho tinto quase vazia, três latas cheias
de atum, dois cobertores finos de lã, protegidos por um saco plástico,
guardados ao lado das cinzas e restos de madeira de uma fogueira. E um
bilhete para a namorada Luana com a assinatura de Juliano.
Às dez horas da manhã, a movimentação das crianças que brincavam
de jogar pedra e soltar pipa na área do lixão de Beirute indicava uma
aparente normalidade no caminho. Mesmo assim, prevenido, Juliano formou
um bonde com três jovens, para protegê-lo numa caminhada até os
limites da floresta, pois decidira descansar em seu esconderijo do mato.
Saiu do corredor de dona Virgínia dando ordens para os que ficaram de
plantão e partiu para o seu destino com a Jovelina pendurada no ombro.
Escalou o adolescente Paranóia, desarmado, para seguir em frente,
liberando o avanço do bonde formado em fila indiana. Era o último da
linha.
Na encruzilhada de seu Moacir, ajoelhou para rezar um Pai-Nosso em
frente ao altar, cheio de flores, em volta da imagem de Jesus Cristo Crucificado.
Agradeceu pelas graças alcançadas no lugar, onde ganhou muito
dinheiro no tempo em que era vapor. Seguiu à esquerda pelo corredor
tortuoso e esburacado até chegar ao barraco da antiga namorada Biba, tia
de sua ex-mulher Marisa. Pediu um prato de feijão com ovo e farinha, comeu
sentado na porta da cozinha, tomou uma garrafa de guaraná e saiu,
atrás do bonde, chupando uma laranja.
O primeiro tiro de fuzil arrancou metade do braço de Popeye, o primeiro
da fila. Logo atrás, Formigão jogou-se para o lado e caiu, atingido
na cabeça, sobre um fogão velho, abandonado em frente ao barraco de
seu dono. Uma série de outros tiros o atingiram pelas costas e o empurraram,
com o fogão, para dentro de uma vala seca. O terceiro parceiro, Podre,
Dostları ilə paylaş: |