O homem perante a morte


É. Mâle, L’Art rdigieux du XX’ siècle, Paris, A. Colin, 1940



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1 É. Mâle, L’Art rdigieux du XX’ siècle, Paris, A. Colin, 1940.
2 Mateus, 25, 34-41.

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PHILIPPE ARIES

os doze apóstolos raramente representados exactamente a seu lado (em Laon), mais frequentemente alinhados no vão da fachada, à direita e à esquerda.


Duas acções tomam então uma importância considerável. Uma é a pesagem das almas, que passa para o centro da composição, cena que suscita preocupação e inquietação; inclinados sobre as varandas do céu, nas abóbadas da fachada, os anjos observam. Cada vida culmina nos pratos da balança. Cada pesagem chama assim a atenção dos mundos celeste e infernal.
Já não se trata de evitar um exame cujo resultado não se conhece previamente. A sua importância é ainda acentuada a ponto de ter parecido por vezes necessário dobrá-lo. Os eleitos e os condenados são indicados pela balança de S. Miguel, mas como se esta operação não bastasse, são uma segunda vez separados pelo gládio do arcanjo Gabriel.
Contudo, o juízo nem sempre segue a escolha da balança. Há intercessores que intervêm e desempenham um papel que o texto de S. Mateus não previra, o papel conjunto do advogado (patronus), do suplicante (advocare deum), que fazem apelo à piedade, ou seja, à graça do soberano juiz. O juiz é tanto aquele que agracia o culpado como aquele que o condena e compete a alguns dos seus familiares incliná-lo ao perdão. Aqui, este papel pertence à mãe e ao discípulo, que o assistem aos pés da cruz: a Virgem e S. João Evangelista. Vêem-se primeiramente aparecer discretamente na fachada de Autun, mesmo no cimo do tímpano, de cada lado da grande auréola que envolve Cristo. No século xin, tornaram-se actores principais e a sua importância é igual à do arcanjo que pesa as almas. Estão de joelhos, com as mãos juntas, de um lado e do outro de Cristo que imploram.
O rei tem portanto a sua corte e, como tem assento no tribunal, a sua missão principal é fazer justiça.
A descida apocalíptica do céu para a terra tornou-se um tribunal de justiça, o que, aos olhos dos contemporâneos, nada lhe retirava da sua majestade, porque o tribunal de justiça era o modelo das solenidades supremas, a imagem e o símbolo da grandeza, como a justiça era a manifestação mais pura do poder.
Este desvio da escatologia em proveito de um aparelho judiciário, por muito pomposo que seja, surpreende-nos, a nós modernos que nos tornámos tão indiferentes e cépticos em relação à justiça e à magistratura. O justiciável de hoje foge delas, muito diferente dos intratáveis entendidos em processos, seus antepassados! A importância reconhecida à justiça na vida quotidiana e na moral espontânea é um dos factores psicológicos que separam e opõem as mentalidades antigas e modernas.

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Esta sensibilidade à noção e às manifestações da justiça data verdadeiramente da Segunda Idade Média, e durará no Antigo Regime. A vida humana aparece como um longo processo, onde cada acção é sancionada por um acto de justiça ou, pelo menos, de gente de justiça. A instituição pública é ela mesma concebida sobre o modelo dos tribunais de justiça e cada comunidade de funcionários de polícia, de finança, é organizada como um tribunal com um presidente, conselheiros, um procurador e um escrivão.


Um texto do século XIV mostra até que ponto o apelo ao juiz, nas formas legais, era natural, como um reflexo: a mulher do conde castelhano Alarcos acaba de saber que o marido a vai matar para poder casar-se com a infanta de Castela. Faz a sua oração, as suas despedidas. A sua alma está em paz, não procura a vingança, mas convoca os assassinos perante o juiz divino. A justiça, com efeito, deve ser restabelecida e, coisa curiosa, não será desencadeada pela intervenção espontânea do juiz omnisciente: pertence à vítima inocente reclamar o seu direito *:
Perdoo-vos, bom conde, pelo amor que tenho por vós,
Mas não perdoo ao rei nem perdoo à infanta.
E convoco-os a ambos para comparecerem em justiça no
[alto tribunal de Deus dentro de trinta dias.
Não deixará de se admirar esta mulher que, a ponto de morrer cristãmente, mantém suficiente sangue-frio para lançar uma citação em tão boa forma.
Existe uma relação entre esta concepção judiciária do mundo e a nova ideia da vida como biografia. Cada momento da vida será, um dia, pesado numa audiência solene, na presença de todas as forças do céu e do inferno. A criatura encarregada desta pesagem, o arcanjo signifer, tornou-se o popular patrono dos mortos: não se deve tardar a conquistar os seus favores. Reza-se-lhe como mais tarde se levarão «especiarias» aos juizes: «Que os introduza na santa luz.» 2
Mas como conheceu o instrutor angélico os actos que deve avaliar? É que estes foram registados num livro por um outro anjo, meio-escrivão, meio-contabilista.
1 Lê Romanero, op. cit., p. 111.
2 S. Miguel é muitas vezes honrado nas partes altas da igreja. Numa capela de S. Miguel em Saint-Aignan-sur-Cher, dois restos de fresco representam um o combate com o dragão, o outro a pesagem das almas.

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O símbolo do livro é antigo nas Escrituras. Encontramo-lo na visão de Daniel (XI, 1): «Nesse tempo erguer-se-á Miguel, princeps magnus, que se deterá perante as gerações do teu povo. Virá então um tempo como nunca houve desde o nascimento das nações. Mas nesse tempo, o teu povo será salvo: todos aqueles cujo nome terá sido encontrado no livro.» E ainda, no Apocalipse, V, 1: «Vejo na mão daquele que se senta no trono um livro escrito recto verso, selado com quatro selos.» Este livro é o rolo que o Cristo de Jouarre segura na mão, perante os eleitos que o aclamam. Continha os seus nomes e era aberto no fim dos tempos. Mas na época de Jouarre, servia de modelo a um outro líber vitae, livro real desta vez, onde estavam inscritos os nomes dos benfeitores da Igreja que se liam durante as orações galicanas da oblação: o recenseamento dos santos. Esse mesmo livro de Daniel ou do Apocalipse, na fachada de Conques, é mantido aberto por um anjo e designado pela inscrição: signatur líber vitae. Contém os habitantes da terra viventium, como diz o Lauda Sion do Corpo de Deus, que assim indica o Paraíso.


É este o sentido principal do líber vitae, mas vai mudar no século xin. O livro já não é o census da Igreja universal, tornou-se o registre 1 onde são inscritas as questões dos homens. A palavra registre aparece aliás no francês no século xin. É o sinal de uma nova mentalidade. As acções de cada homem já não se perdem no espaço ilimitado da transcendência, ou ainda, se se pretender falar de outra maneira, no destino colectivo da espécie. Ei-las a partir de então individualizadas. A vida já não se limita apenas a um sopro (anima, spiritus), a uma energia (virtus). É composta por uma soma de pensamentos, de palavras, de actos, ou como se diz num velho Conjiteor do século viu2: peccavi in cogitatione et in locutione et in opere, uma soma de factos que se podem detalhar e resumir num livro.
O livro é, portanto, simultaneamente a história de um homem, a sua biografia, e um livro de contas (ou de razão), com duas colunas, de um lado o mal e do outro o bem. O nosso espírito contabilístico dos homens de negócios que começam então a descobrir o seu mundo próprio - que se tornou no nosso aplica-se ao conteúdo de uma vida como à mercadoria ou à moeda.
Assim, o livro manteve o seu lugar nos símbolos da vida moral até ao século xvm, quando a balança foi cada vez menos
Registo. (N. da T.)
Confitear de Chrodegang de Metz (morto em 766).

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representada e quando S. José ou o Anjo da Guarda tomaram o lugar do arcanjo signifier ou psicopompa.


Um século depois da fachada de Conques onde o sentido é ainda o do Apocalipse, os autores franciscanos do Dies irae fazem-no levar perante o juiz na confusão aterradora do fim do mundo, e é um livro de contas.
Líber scriptus proferetur In quo totum continetur Unde mundus judicetur.
Coisa muito curiosa e significativa, o livro que fora primeiramente o dos eleitos vai tornar-se o dos condenados.
Um século ainda depois do Dies irae, um quadro de J. Albergno, de meados do século XIV, mostra Cristo-juiz num trono e segurando nos joelhos o livro aberto onde está escrito: Chiunque scrixi só questo libro sara danadi (quem quer que esteja inscrito neste livro será condenado). Apesar de reservado aos condenados, é um livro recapitulativo da humanidade. Mais notáveis são as almas que estão representadas abaixo do Cristo-juiz, sob a forma de esqueletos. Cada uma dessas almas segura nas mãos o seu próprio livro e exprime pelos gestos como essa leitura a aterra.
Em Albi, no final do século XV ou no início do século XVI, no grande fresco do Juízo Final, no fundo do coro, encontram-se os mesmos livrinhos individuais que os ressuscitados, nus, usam pendurados ao pescoço, como único vestuário, como uma peça de identidade 1.
Veremos mais adiante que, nas artes moriendi do século XV, o drama passou para o quarto do moribundo. Deus ou o Diabo consultam o livro à cabeceira do leito do agonizante. Mas dir-se-ia que o Diabo guarda perante si o livro ou o cartaz que agita com veemência para exigir o que lhe é devido2.
A arte barroca provençal dos séculos xvn e xvm conservou o livro: em Antibes, o Tempo, um velho, levanta o sudário que tapa o corpo de um jovem e mostra ao mesmo tempo um livro; em Salon, na igreja de S. Miguel, patrono dos mortos, um retábulo do século xvm contém, entre os instrumentos macabros clássicos, um livro aberto onde se pode ler: líber scriptus pro-
1 A. Tenenti, // Senso, op. cit., fig. 40 e p. 443.

2 A. Tenenti, La Vie et Ia Mort à travers l’art du XV siècle, A. Colin, 1952, Cahier dês Annales, n.s 8, fig. 17 e p. 103.

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fect (...)• Existirá uma relação entre este livro e o das vaidades*?
No fim da Idade Média, nos séculos XVI e XV, as contas são feitas por aqueles que com elas aproveitam, pelos diabos, certos de que o mal deveria vencer. Concepção sinistra de um inferno sobrepovoado, excepto intervenção gratuita da misericórdia divina.
Depois da reforma tridentina, o equilíbrio, comprometido na época macabra, foi restabelecido. A contabilidade abandonada ao Diabo no fim da Idade Média já não satisfazia o devoto ou o moralista da época clássica. Não deixaram de surgir os tratados de preparação para a morte. Num deles, Espelho da alma do pecador e do justo durante a vida e à hora da morte, de 1736, cada homem possui dois livros, um para o bem mantido pelo seu anjo-da-guarda (que retomou um dos papéis de S. Miguel), o outro para o mal mantido por um demónio.
A imagem da má sorte é assim comentada: «O seu anjo-da-guarda aflito abandona-o (ao moribundo), deixando cair o livro onde estão apagadas todas as suas obras que aí estavam escritas, porque tudo o que fez de bom não tem mérito para o céu. À esquerda, vê-se o demónio que lhe apresenta um livro que encerra toda a história da sua má vida» (sublinhei a palavra história, confissão significativa de uma concepção biográfica da vida)2.
Sobre a imagem da boa morte, passa-se o contrário: «O seu anjo-da-guarda, com um ar alegre, mostra um livro onde estão escritas virtudes, as suas boas obras, jejuns, orações, mortificações, etc. O Diabo confuso retira-se e lança-se no Inferno com o livro onde nada há escrito, porque os seus pecados foram apagados por uma sincera penitência.» 3
O grande livro colectivo da fachada de Conques tornou-se no século xvm um livrinho individual, uma espécie de passaporte, de registo criminal, que é preciso apresentar às portas da eternidade.
Com efeito, o livro contém a história inteira de uma vida, mas é redigido para só servir uma vez: no momento em que as contas estiverem fechadas, onde passivo e activo serão compa-
1 G. e M. Vovelle, «La mort et 1’au-delà en Provence cTaprès lês autels ames du Purgatoire», Cahier dês Annales, n.2 29, Paris, A. Colin, 1970.
2 Miroir de l’âme du pêcheur et du juste pendant la vie et à Vheure de la Mort. Méthode chrétienne pour finir saintement Ia vie, nova edição, Lyon, em F. Viret, 1752, p. 15. O privilégio é de 1736.
3 Ibid., p. 35.

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rados, onde o balanço termina. A palavra «balanço» provém, na linguagem do século XVI, do italiano balancia. A etimologia sublinha a relação entre o simbolismo do livro e o da pesagem. Concebe-se portanto, desde o século xn pelo menos, que existe um instante crítico. Na antiga mentalidade tradicional, uma vida quotidiana imóvel misturava e confundia todas as biografias individuais. No tempo da iconografia do Juízo, cada biografia já não aparece dissolvida numa longa duração uniforme, mas precipitada no instante que a recapitula e singulariza: Dies illa. É a partir deste resumo que deve ser avaliada e reconstituída.


A consciência da vida longa passa portanto pelo tempo de um instante. É notável que esse instante não seja o da morte, mas que tenha sido situado depois da morte, e na primeira versão cristã, referido ao fim do mundo que uma crença milenar pensava ainda próximo.
Encontra-se aqui a recusa inveterada de assimilar o fim do ser à dissolução física. Imaginava-se um prolongamento que nem sempre ia até à imortalidade do bem-aventurado, mas que arranjava pelo menos um espaço intermédio entre a morte e a conclusão definitiva da vida.
O JULGAMENTO NO FIM DA VIDA
Desde o século XIV, o tema do Juízo Final não foi totalmente abandonado: encontramo-lo nos séculos XV e XVI na pintura de Van Eyck ou de J. Bosch, no século xvn ainda aqui e além (Assis, Dijon). Todavia, sobreviveu a si mesmo, perdeu a sua popularidade e já não é verdadeiramente sob essa forma que se imagina em seguida o fim último do homem. A ideia de julgamento separou-se então da ideia de ressurreição.
A ressurreição da carne não é esquecida; a iconografia e a epigrafia funerárias, tanto protestantes como católicas, não deixaram de lhe fazer referência. Mas separou-se do grande drama cósmico e foi colocada no destino pessoal de cada homem. O cristão afirma ainda por vezes sobre a pedra tumular que ressuscitaria um dia; já não lhe importava que esse dia fosse o do segundo Advento ou do fim do mundo. O essencial era então a certeza da sua própria ressurreição, último acto da sua vida, de uma vida que o obcecava a ponto de o tornar indiferente ao futuro da criação. Esta afirmação da individualidade opunha a atitude dos séculos XIV-XV, ainda mais que a dos séculos xn-xn, às mentalidades tradicionais. O futuro sobrenatural, apaziguado, liberto do clima dramático do juízo onde se situava a

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partir de então a ressurreição, pode parecer um regresso à concepção confiante do primeiro cristianismo; a aproximação é superficial e enganadora, porque, apesar das afirmações da epigrafia funerária, o medo do julgamento não deixou de vencer a confiança na ressurreição.


A separação da ressurreição e do juízo tem uma outra consequência mais evidente. Desapareceu o intervalo entre o juízo, conclusão definitiva da vida, e a morte física, e esse é um grande acontecimento. Enquanto este intervalo existiu, o morto não estava completamente morto, o balanço da sua vida não estava encerrado, sobrevivia a si mesmo parcialmente na sua sombra, Meio vivo, meio morto, tinha sempre o recurso de «voltar» e exigir aos homens da terra a assistência, os sacrifícios ou as orações que lhe faltavam. Era consentido um arrependimento que os bem-aventurados intercessores ou os piedosos fiéis podiam aproveitar. Os efeitos longínquos das obras de beneficência realizadas durante a vida tinham ainda tempo para se fazerem sentir.
A partir de então, o destino da alma imortal é decidido no exacto momento da morte física. Haverá cada vez menos lugar para os que regressam e as suas manifestações. Em contrapartida, a crença, durante muito tempo reservada aos sábios e teólogos ou poetas, no purgatório, lugar de espera, tornar-se-á verdadeiramente popular, mas não antes de meados do século xvn, e substituiu-se então às velhas imagens do sono e do repouso.
O drama abandonou os espaços do além. Aproximou-se e joga-se agora no próprio quarto do doente, em redor do seu leito.
Também à iconografia do Juízo Final se substituiu no século XV uma nova iconografia de gravuras em madeira, difundida pela tipografia: imagens individuais em que cada um meditava em sua casa. Estes livros são tratados sobre a maneira de bem morrer: artes moriendi. Cada página de texto é ilustrada com uma imagem a fim de que os laici, ou seja, aqueles que não sabiam ler, pudessem compreender o seu sentido tanto como os litterati1.
Esta iconografia, apesar de nova, remete-nos para o modelo arcaico do jacente no leito, doente, que as cenas do Juízo Final tinham coberto: como vimos, o leito era o lugar imemorial da morte. Continuou a sê-lo até ter deixado de ser leito, símbolo do amor e do repouso, para se tornar hoje nesse material tecnológico de hospital, reservado aos grandes doentes.
1 A. Tenenti, La vie, op. cit., p. 98 e seg.

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Com efeito, morria-se sempre na cama, quer fosse de morte natural, ou seja, segundo se julgava, sem doença e sem sofrimento, quer da morte mais frequente por acidentes, «de puta 1, de febre, ou de apostema2, ou outras doenças graves, dolorosas e longas 3». A morte súbita, improvisa, essa, era excepcional e muito temida; mesmo os ferimentos graves, os acidentes brutais deixavam tempo para uma agonia ritual no leito.


O quarto devia contudo tomar um sentido novo na iconografia macabra. Já não era o lugar de um acontecimento quase banal, apenas mais solene que os outros, tornava-se o teatro de um drama onde o destino do moribundo se jogava uma última vez, onde toda a sua vida, paixões e apegos eram postos em causa. O doente vai morrer. Pelo menos sabemo-lo pelo texto onde se diz que é crucificado pelo sofrimento. Não aparece nas imagens onde o seu corpo não emagreceu, ou mantém ainda força. Segundo o costume, o quarto está cheio de gente, porque se morre sempre em público. Mas os assistentes nada vêem do que se passa, e, pelo seu lado, o moribundo não os vê. Não porque tenha perdido o conhecimento: o seu olhar fixa com uma atenção tenaz o espectáculo extraordinário que é o único a perceber, seres sobrenaturais invadiram o quarto e comprimem-se à sua cabeceira. De um lado a Trindade, a Virgem, toda a corte celeste, o Anjo da Guarda; do outro, Satã e o exército monstruoso dos demónios. A grande reunião do fim dos tempos faz-se dentro do quarto do doente. A corte celeste está lá, mas já não tem todas as aparências de uma corte de justiça. S. Miguel já não pesa na balança o bem e o mal. É substituído pelo Anjo da Guarda, mais enfermeiro espiritual e director de consciência que advogado ou auxiliar de justiça.
Contudo, as mais antigas representações da morte na cama conservam ainda a encenação a partir daí clássica do julgamento, tratada no estilo dos Mistérios. É este o caso de uma ilustração da oração dos mortos, de um saltério de 1340*. O acusado exige o recurso ao intercessor: «Pus em vós a minha esperança, Virgem Maria de Deus mãe. Tirai o pecado da minha alma e do inferno onde a morte é amarga.» Satã, atrás do leito, exige a alma: «Exijo ter para mim, Por justiça segundo o direito, A alma deste corpo que parte, Que está cheia de grandes manchas.»
1 Ferimento grave. (N. da T.)
2 Abcesso. (N. da T.)
3 A. Tenenti, La Vie, p. 108.
* Manuscrits à peinture du XIII’ au XIV siècle, catálogo da exposição, BN, 1955, n.9 115.

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A Virgem descobre o seio, Cristo mostra as chagas e transmite ao Pai a oração de Maria. E Deus concede a sua graça: «Se há razões para que o teu pedido seja plenamente satisfeito, comove-me o Amor de quem é honesto, Negá-lo não posso certamente.»


Nas artes moriendi, a Virgem e Cristo crucificado estão sempre presentes; todavia, quando o moribundo exala a sua alma num último suspiro, o Pai não ergue nem o gládio nem a mão do justiceiro, mas o dardo misericordioso da morte que abrevia os sofrimentos físicos e as provações espirituais. Acontece então que Deus seja menos juiz no tribunal que árbitro de uma luta entre as forças do bem e do mal, de que a alma do moribundo seria a aposta.
A. Tenenti, na sua análise da iconografia das artes moriendi, pensa que o moribundo assiste ele mesmo ao seu próprio drama como testemunha mais que como actor: «Um combate entre duas sociedades sobrenaturais no qual o fiel tem uma fraca possibilidade de escolher, mas nenhum meio de se furtar. Em redor do seu leito, uma luta sem mercê, tropa diabólica de um lado, legião celeste do outro.»
Isto sobressai com efeito de determinadas imagens: assim, podem interpretar-se os desenhos à pena que ilustram um poema, o «Espelho da Morte», num manuscrito datado de 1460 aproximadamente 1. Um representa a luta do diabo e do moribundo; outros, a intervenção do anjo bom, a crucificação, instrumento da salvação, o último, finalmente, o combate do Anjo e de Satã à cabeceira do moribundo.
Existia portanto a ideia de uma confrontação entre as forças do bem e do mal. Mas não parece vencer na ars publicada por A. Tenenti. Parece-me, pelo contrário, que a liberdade do homem é aí respeitada e que, se Deus pareceu depor os atributos da Justiça, foi porque o próprio homem se tornou no seu próprio juiz. O Céu e o Inferno não lutam, como no «Espelho da Morte» de Avinhão, assistem à última provação proposta ao moribundo e cujo sentido de toda a vida será determinado pelo resultado.
São eles os espectadores e as testemunhas. O moribundo, esse, tem o poder, nesse instante, de tudo ganhar ou de perder: «A salvação do homem está estabelecida no seu fim.» Já não convém portanto então examinar a biografia do moribundo como era costume no tribunal das almas, no último dia do mundo. É ainda muito cedo para este balanço definitivo, porque a biografia não está encerrada e deve ainda sofrer modificações retroactivas. Não se
1 Manuscríts à peinture du XIII’ au XVI* siècle, n.9 303; A. Tenenti, La vie, op. cit., p. 55.

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poderá portanto avaliar globalmente se não depois da conclusão. Esta depende do resultado da última provação que o moribundo deve sofrer in hora mortis, no quarto onde vai entregar a alma. Compete-lhe vencer com o auxílio do seu anjo e dos seus intercessores, e será salvo, ou ceder às seduções dos diabos, e estará perdido.


A última provação substituiu o Juízo Final. Jogo terrível, e é em termos de jogos e de apostas que Savonarole fala: «Homem, o diabo joga xadrez contigo e esforça-se por te agarrar e te dar xeque-mate nesse ponto (a morte). Portanto, apronta-te, pensa bem nesse ponto, porque se ganhares nesse ponto ganhaste tudo o resto, mas se perderes, o que fizeste nada valerá.» 1
Tal risco tem qualquer coisa de aterrador e compreende-se que o medo do além tenha podido conquistar então populações que ainda não receavam a morte. Este medo do além traduzia-se sem dúvida pela representação dos suplícios do Inferno. A aproximação entre o ponto da morte e o momento da decisão suprema arriscava estender à própria morte o medo suscitado por uma eternidade infeliz. Será assim que se deve intrepretar o macabro?
OS TEMAS MACABROS
Os temas macabros aparecem na literatura como na iconografia aproximadamente ao mesmo tempo que as artes moriendi.
Há o hábito de chamar «macabras» (por extensão, a partir das danças macabras) às representações realistas do corpo humano enquanto se decompõe. O macabro medieval, que tanto perturbou os historiadores desde Michelet, começa depois da morte e detém-se no esqueleto. O esqueleto ressequido, Ia morte secca, frequente no século xvn e ainda no século xvm, não pertence à iconografia característica do século XIV ao século XVI. Esta é dominada pelas imagens repugnantes da corrupção: «O cadáver que já não é.» 2

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