O homem perante a morte



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cedeu-se-lhes isso pelas suas orações e liberalidades, finalmente exigiram-se essas liberdades como dívidas.» 1


A gradação das tarifas do cemitério à igreja marca bem que de um a outra só havia uma diferença de honra. Na realidade, a mentalidade comum na Idade Média e no início dos tempos modernos distinguia mal o enterro dentro da igreja e ao lado. Existia somente uma hierarquia de honras e de devoção, desde a relíquia do santo ou o altar-mor até ao fim do cemitério, e esta continuidade não era interrompida pela parede física da igreja. Tudo se passava como se esse muro não dividisse e como se só contasse a distância até ao centro espiritual do conjunto eclesiástico, tumulatio in ecclesiam ou sepelitio apud martyrium memórias (inumação dentro da igreja ou junto das memórias dos mártires); as duas expressões são empregadas com o mesmo sentido.
Assim surpreende-nos menos a pouca atenção prestada aos mandamentos canónicos (era coisa corrente) que a constância e a tenacidade com que as autoridades eclesiásticas mantiveram durante um milénio uma regra nunca observada. Os decretos conciliares preservaram uma concepção teórica do sagrado em contradição com a prática; prolongavam um mundo que já não a compreendia, a repugnância tradicional em misturar ao sagrado do templo a corrupção dos mortos. O seu contacto não originava mais nem profanação nem manchas.
Os laicos e mesmo os clérigos, no seu comportamento pessoal, tornaram-se estranhos à concepção do sagrado contida ainda no direito. Estavam todos ingenuamente persuadidos, a despeito dos textos canónicos, de que não existia nenhuma intolerância do sagrado na vizinhança dos mortos, como aliás na presença familiar dos vivos. A fronteira mental entre o sagrado e o profano permaneceu bastante imprecisa até às reformas dos séculos XVI e XVII: o profano era invadido de sobrenatural e o sagrado penetrado de naturalismo.
A GALERIA E O OSSÁRIO OU CARNEIRO
A estreita relação entre o cemitério e a igreja reconhece-se ainda pelas palavras que as designam e pela ambiguidade do seu emprego.
Para estabelecer um cemitério, construía-se uma igreja. Num diploma de 870, Luís, o Germânico, lembra que os pais man-
1 Thomassin, op. cit.; J. Gerson, Opera, Antuérpia, 1706, t. n, p. 440.

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daram construir uma igreja «a fim de que haja nesse sítio um cemitério para os mortos» 1. A basílica Notre-Dame de Tours foi fundada pela sepultura dos pobres. O cemitério parisiense dos Champeaux é o grande cemitério da pequeníssima igreja paroquial dos Santos Inocentes, apesar de, neste caso, o território da paróquia não ultrapassar os muros do cemitério. As palavras ecclesia e cimeterium são quase sinónimas. Du Cange chama cimeterium a «uma igreja onde os corpos dos defuntos são inumados» 2.


Contudo, se se construía uma igreja para fazer dela um cemitério, hesitava-se em transformar um cemitério em igreja, pelas razões de direito que sabemos. «Se foram enterrados mortos antes de a igreja ter sido consagrada, que não seja consagrada.» 3 O concílio de Tribur (895), quer inclusive no caso em que houvesse túmulos de mais se retire o altar, se já o tivessem colocado. É por isso que as necrópoles merovíngias foram abandonadas, por falta de igreja no local, em proveito da igreja mais próxima.
A função cemiterial começava no interior da igreja, dentro dos seus muros, e continuava para além dela, no espaço que constituía os passus ecclesiastici, in clrcuitu ecclesiae. A palavra «igreja» não designava portanto apenas o edifício, mas também esse espaço todo. Assim, os costumes de Hainaut definem «as igrejas paroquiais», «a saber a nave, campanário e cemitério» 4. O cemitério propriamente dito, em sentido restrito, era portanto simplesmente o pátio da igreja: atrium id est cimiterium (comentários do decreto de Graciano). «Galeria» e «carneiro» são as palavras mais velhas que designam o cemitério na língua falada. A palavra «cemitério» pertenceu durante muito tempo de preferência à língua erudita dos clérigos: uma palavra grega latinizada. Turpin pressiona Rolando para que toque a trompa
1 Ecclesiae ut ibi cimeterium esse mortuorum, citado por É. Leste, op. cit.
2 C. du Cange, Ecclesia in qua humantur corpora defunctorum.
3 Nullo tumulorum vestígio apparente, ecclesiae reverentia conserveretur. Ubi vero hoc pró multitudine cadaverum difficile est f acere, locus ille coemeterium et polyandrium habeatur, oblato inde altare, et constituto sacrificium Deo valeat offeri, A. Bernard, La Sépulture en droit canonique, tese de direito, Paris, 1933, pp. 20-21, n. 7.
4 Em 1059, um concílio romano fixa em sessenta passos per circuiturn para as igrejas principais e em trinta passos para as capelas, confina cemeteriorum. É. Lesne, op. cit.; G. Lê Brás, Dictionnaire d’histoire et géographie ecclésiastique, 1930, art. «Asile», t. rv, cols. 1035-1047.

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a fim de que o rei e o seu exército os venham vingar, chorar e «enterrar... em galerias de mosteiros»1. Um cronista relata: «Tomou-se à força a galeria e a igreja da cidade.» Dizia-se a galeria Saint-Maclou, como a igreja Saint-Maclou. A palavra foi substituída em francês por «cemitério» a partir do século XVII, mas permaneceu em inglês, em alemão, em neerlandês (churchyard, kirchhof, kerkhof)2.
A parte do atrium, onde se enterrava de preferência, foi primeiramente a parte semicircular que rodeava a ábside: in exhedris ecclesiae. Contivera em primeiro lugar os túmulos venerados que ainda não se ousava colocar no coro, in cancello. Os corpos de S. Martim em Tours, o de S. Germano em Paris repousaram aí em capelas, antes da sua transferência para o santuário sob o altar-mor.
A outra zona privilegiada era o «vestíbulo», o paradisum ou adro. Foi aí que se colocou o primeiro laico a ser inumado quase na igreja, o imperador Constantino. O paradisum era o o impluvium sub stillicidio, ou seja sob as águas da chuva que tinham absorvido o sagrado da igreja correndo ao longo do telhado e contra os muros: quod et impluvium dicebatur área ante ecclesiam quae dicebatur paradisus. Dizia-se em francês debaixo das goteiras:
Un sarkeu fist appareiller
A metre emprès sã mort sun cors
Suz Ia gutiere de defors 3-4.
Na França do Sudoeste, onde Constantino era frequentemente representado a cavalo sobre a fachada ocidental, por cima do «vestíbulo», dizia-se também «sob Constantino de Roma que está situado na parte direita da igreja».
Fora destes locais privilegiados, em redor da igreja, enterrava-se in átrio, no adro, que mais tarde passaria a ser o cemi-
1 La Chanson de Roland, op. cit., CXXXII.
2 Dictionnaire de 1’ancien f rançais, op. cit., art. «Aitre»; C. Enlart, Manuel d’archéologie médiévale, p. 909 e seg. «Cemiíière», P. Duparc, «Lê Cimetière separe dês vivants», Bulletin philologique et hlstorique du Comité dês travaux historlques et scientifiqu.es, 1964, pp. 483-509.
4 C. du Cange, op. cit., «Stillicidium», «Paradisum»; Roman de Rou, v. 5879. Citado por Viollet-le-Duc, Dictionnaire raisonné de 1’architecture française, Paris, 1868, t. ix, p. 23.
5 Um caixão mandou aparelhar
f. Para colocar depois da sua morte o seu corpo
Sob ’a goteira de fora. (N. da T.)

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tério propriamente dito. Notar-se-á que um dos mais antigos nomes que designavam o cemitério não possui nem o sentido religioso de repouso, de sono, nem o sentido realista de enterrar: muito simplesmente, o adro da igreja.
Uma segunda palavra foi empregada como sinónimo de galeria: o carneiro. Uma e outra são igualmente usadas na Canção de Rolando. Quando Carlos Magno e o seu exército chegam ao local onde jazem os corpos de Rolando e dos seus companheiros, reúnem-nos: «Ad un carner sempres lês unt portei.» «A pieuz agus font lês charners ouvrir.» «Depois que os matastes [de Formigny em 1450] foram postos em terra em grandes carneiros.» :1
No fim da Idade Média, parece que o emprego da palavra «carneiro» foi bastante difundido e que se substituiu à palavra «galeria»: esta só permaneceu perante um nome próprio de santo, tornado um nome de lugar: galeria Notre-Dame, galeria Saint-Maclou.
Segundo Furetière, provinha de carnarium «que está em Flauto com o mesmo significado». Caro, do latim clássico, passou para a língua clerical com vários sentidos: o verbo fez-se carne, o pecado da carne, a carne é fraca. Na linguagem vulgar, o mesmo caro deu palavras que significam carne (o italiano carne), mas também com o baixo latim carona, cadáver.
O carneiro designa em Rabelais a despensa onde se guarda o toucinho, como em Flauto. R.-J. Bernard encontra-o ainda no século xix no Gévaudan, onde «estava muitas vezes situado nas proximidades do quarto do dono da casa»2. Hoje a palavra designa a bolsa dos caçadores. Ora, no antigo francês, a mesma palavra «carneiro» significa também o lugar bento onde repousam os mortos: carnarium ou carnetwn, no latim dos clérigos. Acabamos de o citar na Canção de Rolando, sem qualquer intenção de menosprezo. Sem dúvida o uso comum adoptou na origem uma palavra popular e grosseira, como a nossa «velha carne» de hoje, para nomear o que não tinha nome nas línguas nobres, excepto o vocábulo grego, ainda erudito de mais, de «cemitério». Evolução paralela àquela que deu «testa» (cabeça), a partir do baixo latim testa, o cântaro!
Todavia, aqui não se trata de substituição de uma palavra por uma outra, mas de uma criação que responde a um conceito
1 La Chanson de Rolland, op. cit., CCXII; Roncival (Formigny) Mathieu de Coucy, Histoire de Charles VIII, citados por J.-B. de Lacurne de Saint-Palaye, Dictionnaire de 1’ancien français, op. cit., art. «Charnier».
2Annales ESC, 1969, p. 1454, n. 1.

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novo, o de cemitério. E é esta emergência que é interessante. Entre os Romanos, o tumulus, o sepulcrum, o monumentum, mais tarde a tumba, tinham mais sentido que o espaço que os túmulos ocupavam. Poder-se-ia quase dizer que não havia cemitério, só havia túmulos mais ou menos justapostos.
Na mentalidade medieval, foi, pelo contrário, o cemitério que teve sentido. No início da Idade Média, o túmulo, tornado anónimo, já o não tem. O que conta é o espaço público e fechado das sepulturas. Daí a necessidade de lhe encontrar um nome.
A palavra «carneiro» conservou o sentido geral de cemitério, mas no final da Idade Média designa, além disso, uma parte desse cemitério, local tão específico que foi tomado pelo todo: o ossário, mas também as galerias onde os ossos eram ao mesmo tempo colocados e expostos. Esta evolução tem a ver com a forma tomada pelo recinto eclesiástico, o atrium fechado com muros.
Tal como se enterrava sub stillicidio, enterrava-se in porticu (preau em francês1): debaixo de alpendres ou de galerias (claustro) encostados ao muro da igreja, sob nichos ou jazigos que se sucediam como arcadas cavadas nesse muro. Os pórticos continuaram ao longo dos muros que fechavam a galeria e davam-lhe o aspecto de claustro (que servia ele mesmo também de cemitério aos monges ou aos cónegos). Os cemitérios antigos assemelhavam-se perfeitamente a claustros: uma (ao longo da igreja) ou várias galerias abobadadas enquadrando um pátio fechado.
Cerca do século XIV, adquiriu-se o hábito de retirar da terra os ossos mais ou menos ressequidos das velhas sepulturas, a fim de dar lugar às novas e de os amontoar nas caves das galerias ou sobre os recontros de abóbada quando existiam. Eram aí por vezes escondidos (foi assim que em 1812 se descobriu em Paris, nas abóbadas de uma igreja abandonada, durante a sua destruição, no lugar do actual Collège de France, uma grande quantidade de ossadas), mas a maioria das vezes, eram aparentes2.
Chamou-se carneiros a estas galerias e os ossários que as encimavam, «o local dentro do recinto da igreja que contém os ossos dos mortos»3. «Aí, no cemitério dos Inocentes», segundo Guilherme, o Bretão, no seu Paris sous Charles VI, «está um cemi-
1 Claustro ou pórtico, em português. (N. da T.)
2 Igreja de S. Bento.
3 Crónica de Marigny, In carnario qui locus intra septa ecclesiae illius ossa continet mortuorum, Lacurne de Saint-Palaye, op. cit.

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tério muito grande, recinto de casas chamadas carneiros, onde os ossos dos mortos estão amontoados.» x
O Trésor de Ranconnet-Nicot, datado de 1606, define assim o carneiro. «O local onde se põem os ossos dos trespassados, ossuaria.» Ou ainda, segundo Richelet: ossiutn conditorium, «o depósito dos ossos», «local num cemitério (e já não, aqui, todo o cemitério) onde se alinham e põem em fila os ossos dos mortos (também se diz os carneiros Santos Inocentes)».
Segundo estes textos, carneiro designa o ossário por cima da galeria. Designa também a própria galeria. Nos Inocentes, a cada arcada de uma galeria correspondia um espaço coberto a que se chamava carneiro. Cada carneiro era como que uma capela, e o nome do seu fundador estava gravado no muro: «Este carneiro foi feito e dado à igreja pelo amor de Deus no ano 1395. Rezem a Deus pelos trespassados.» «Armand Estable mandou fazer com os seus bens este carneiro para albergar os ossos dos trespassados.» E deste modo Sayal, no século XVII: «O que há de mais singular neste cemitério (dos Inocentes) é o túmulo de Nicolas Flamel e de Pernelle sua mulher, que está perto da porta do lado da rua Saint-Denis, debaixo dos carneiros.» Testadores, nos séculos XVI e XVII, pediam para ser enterrados «sob os carneiros» 2.
Finalmente, último episódio desta evolução semântica, no século XVII, o sentido de ossário desapareceu da linguagem, senão dos dicionários, e a palavra «carneiro» já só designa a galeria em redor da igreja e do seu pátio. Em breve se torna arcaico, e é então que a palavra «cemitério», oriunda do latim eclesiástico e já empregue desde o século XVI, se impõe definitivamente à língua falada.
Pelo menos reside aí a evolução semântica francesa. Em inglês o emprego da palavra cemetery na linguagem corrente parece ainda mais tardio. Churchyard ou graveyard só foram substituídas por cemetery no uso corrente no século xix, e para designar, por oposição, uma outra forma de cemitério, o rural cemetery 3.
1 Guillaume lê Breton, Description de Paris sons Charles VI, em L. Leroux de Liney e L. Tisserand, Histoire générale de Paris, Paris,

1867 p. 193.


2 H. Sauval, op. cit., t. i, p. 359; V. Dufour, Lê Cimetière dês Innocents, em F. Hoffbauer, Paris à travers lês ages, Paris, 1875-1882, t. n, 1.’ parte, pp. 1-28 (citações de Roland de Virlays, Dictionnaire d’architectures, 1770, e do abade Villain).
3 Ver infra, cap. X, «A visita ao cemitério».

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As palavras não traem as coisas: o cemitério medieval é simultaneamente galeria e carneiro.


Galeria: um pequeno pátio rectangular de que um dos lados coincide com o muro da igreja. Pelas suas dimensões exíguas, distingue-se tanto do cemitério moderno como da zona funerária extensa e por vezes mal definida da Antiguidade. Quando um cemitério medieval sucede a um cemitério galo-romano ou merovíngio, não ocupa mais que uma pequena parte: o cemitério diminuiu encerrando-se por detrás do recinto eclesiástico 1. Não imaginamos hoje (e isso surpreendia também nesta época) como mais de meio milhar de mortos parisienses conseguiu amontoar-se no pequeno quadrilátero, ligeiramente maior que a actual praça dos Santos Inocentes, entre as ruas Saint-Denis, de la Ferronnerie e de la Lingerie (que continuam a existir), e a rua aux Fers. Estes eram os antigos limites da igreja dos Santos Inocentes e do seu cemitério e aqui, por uma vez, o cemitério é muito maior do que a igreja.
Carneiro: o pátio, ou galeria, é rodeado de carneiros, simultaneamente galerias cobertas, capelas funerárias e ossários. O cemitério dos Santos Inocentes, segundo Corrozet, «contém LXXX arcos e carneiros sob os muros da igreja», ou seja em redor da igreja2. Os Inocentes desapareceram, mas existem ainda carneiros na Bretanha, em Ruão, em Blois, em Monfort-1’Amaury, etc. Os espaços cobertos pelos carneiros eram capelas funerárias quase tão procuradas para sepultura como o interior das igrejas. Nos Inocentes, nas capelas de Orgemont e de Villeroy, dois carneiros aumentados para o lado do pátio, o preço
1 «A região que rodeia a igreja Saint-Cervais (em Paris) poderia portanto na Antiguidade e na época merovíngia ser um amplo cemitério que sobreviveu estreitando-se até à Idade Média.» Eliminado quando da criação da paróquia Saint-Jean-en-Grève, subsiste na praça do Velho Cemitério Saint-Jean, ou platea veteris cimeterii. M. Vieillard-Troiekoufoff et ai., Lês Anciennes Êglises suburbaines de Paris (rv-X siècles), Memoriais da deferação das sociedades de história de Paris e da Ile-de-France, 1960, p. 198.
3 V. Dufour, La Danse macabre dês Saint-Innocents de Paris, Paris,

1874; V. Dufour, em F. Hoffbauer, Paris à travers lês ages, op. cif., t. li,

1.’ parte, p. 29.

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da inumação era, no século xvm, de 28 libras. Sob o pequeno carneiro (pequeno lado) o preço é ainda mais elevado por causa das sepulturas demasiado frequentes pedidas para este lugar onde os corpos não podiam ser consumidos depressa: para cada túmulo a levantar, 25 libras, sem túmulo, 20 libras. Sob os grandes carneiros (os dois grandes lados), para um túmulo a levantar 18 libras e 15 libras sem túmulo a levantar. Algures, mas não nas grandes fossas comuns, sobre o circuito da galeria, 5 libras e 3 libras (incluindo sem dúvida o fornecimento de cerveja). Sabemos os preços de um enterro na igreja Saint-Louis-en-1’Ile em 1697; a nota do coveiro é de 12 libras, às quais se devem acrescentar as 6 libras de direitos paroquiais da nota do padre, portanto de 12 libras a 18 libras, número comparável ao dos grandes carneiros dos Inocentes.
AS GRANDES FOSSAS COMUNS
Por cima das galerias, as cumeeiras abertas estavam cheias de crânios e de ossos ressequidos, amontoados ao ar livre, e visíveis do cemitério.
No espaço entre os carneiros - com poucas árvores plantadas, muitas vezes invadidos pelas ervas, apesar do padre e da comunidade disputarem o pasto e por vezes os frutos -, alguns túmulos aparentes muito raros, alguns monumentos para uso litúrgico, cruz, altar, púlpito, pilar dos mortos, que deixavam descoberta e nua a maior parte do pátio interior. Era aí que se enterravam os mortos pobres, aqueles que não pagavam os direitos elevados da inumação dentro da igreja ou debaixo dos carneiros. Amontoavam-se em grandes fossas comuns, autênticos poços de 30 pés de profundidade, de 5 metros por 6 metros de superfície, contendo entre 1200 a 1500 cadáveres, as mais pequenas de 600 a 700. Havia sempre uma aberta, por vezes duas. Ao cabo de alguns anos (ou de alguns meses), quando estavam cheias, fechavam-nas e cavavam-se outras ao lado, na parte mais remotamente escavada da galeria. As fossas quase não eram cobertas de terra quando se fechavam, e os lobos, dizia-se, nos invernos frios, não tinham dificuldade em desenterrar os cadá-
1 F. de Lasteyrie, «Un enterrement à Paris en 1697», Bulletin de la société d’histoire de Paris e de l’Ile-de-France, Paris, t. rv, 1877, pp. 146-150.

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veres (nem os lobos, nem os ladrões que abasteciam, no século XVIII, os amantes da dissecação). A utilização dessas fossas podia não remontar mais atrás que o século XV e sem dúvida (é uma hipótese) tornou-se habitual no momento das epidemias de peste que assolaram as cidades já sobrepovoadas pelo ascenso demográfico do século xni. Desde o tempo de Glaber, cavavam-se por altura das f ornes: «Como não se podia enterrar separadamente cada cadáver por causa do grande número de mortos, as boas almas que temiam a Deus construíram em diversos locais carneiros onde se colocavam mais de 500 cadáveres.» O Bourgeois de Paris conta em Outubro de 1418: «Morreram em tão pouco tempo tantas pessoas que foi preciso cavar nos cemitérios parisienses grandes fossas onde se colocavam em cada uma 30 ou 40 pessoas, amontoadas como toucinho, e apenas salpicadas com um pouco de terra por cima.» Fala também mais adiante de grandes fossas que recebiam cada uma cerca de 600 pessoas: «Foi preciso cavar de novo grandes fossas, 5 nos Inocentes, 4 na Trinité e noutros locais»
Sauval julga também que o cemitério na Trinité data da grande peste negra de 1348: «Em 1348, havia em Paris tanta gente que os cemitérios regurgitavam de corpos mortos. O que obrigou Filipe de Valois a ordenar ao preboste dos mercadores que procurasse fora da cidade algum lugar para fazer cemitérios novos, de modo que ficou com um grande jardim da rua Saint-Denis contíguo à Trinité do qual tratou com os religiosos 2.»
Depois das epidemias de 1544, 1545, 1548, 1553, as autoridades do Châtelet esforçaram-se por encontrar «alguns cemitérios separados e afastados» mais longe que a rua Saint-Denis, «para neles inumar e enterrar os corpos daqueles que morrerão da doença de peste e daqueles que, por pobreza, estão habituados a ser expostos em público sem sepultura». «No cemitério do hospital da Trinité não se enterravam a partir de então os corpos das pessoas mortas no hospital da dita cidade; seria aplicado e apropriado o dito cemitério da Trinité para o aumento, morada e comodidade das pobres crianças alimentadas e. mantidas no dito hospital. Em vez desse cemitério será tomado lugar capaz e suficiente na ilha Macquerelle, limitado pelo rio Sena [...] Mas sobre o que a cidade, um ano depois (1555), veio a representar
1 F. de Lasteyrie, «Un enterrement à Paris en 1697», Bulletin de la société d’histoire de Paris e de l’íle-de-F rance, Paris, t. TV, 1877, pp. 146-150.
Journal d’un bourgeois de Paris au Moyen Age, op. cit. (Outubro-Novembro de 1418), p. 116; H. Sauval, op. cit., t. n, p. 557.

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que seria de recear que aqueles que conduzissem os corpos os atirassem ao rio para procederem mais depressa, não se prosseguiu 1.»


No final, essas grandes fossas cujos textos falam sobretudo a propósito de epidemias, já não eram reservadas aos tempos de grande mortalidade. Pelo menos a partir do século XV e até ao fim do século xvin, tornaram-se o modo comum de sepultura dos pobres e dos defuntos de condição modesta. Em 1673, um comissário-examinador do Châtelet encarregado de um inquérito sobre os cemitérios de Paris, descrevia deste modo no seu relatório o dos Inocentes: «Observamos também que há actualmente a cerca de vinte pés da Torre chamada Notre-Dame-des-Bois, do lado do setentrião, uma fossa comum que o coveiro nos diz ter sido aberta durante Janeiro último, com cerca de 15 pés por 18 pés e 20 de profundidade (cerca de 6 m), coberta não exactamente com diferentes pranchas; a dita fossa podia conter 600 a 700 corpos, e nela haviam presentemente 500. Acrescentou-nos que durante Maio seria aberta uma outra, sem poder indicar-nos o lugar precisamente, não havendo aí nenhuma noção da ordem destas aberturas; O que ocasiona por vezes que na altura das escavações, ao encontrar corpos não consumidos, se detenham, quer para as encher com novas inumações, quer para as cobrir e ir algures.»
Estas grandes fossas não eram cavadas apenas nos grandes cemitérios que datavam da Idade Média. Num cemitério muito recente que a administração de Saint Sulpice criara em 1746 na rua de Bagneu, um comissário, durante o mesmo inquérito, encontrou uma fossa de 15 pés por 15 pés de largura e 18 pés de profundidade «coberta com uma grade de ferro, podendo conter 500 cadáveres».
Tudo se passa como se os hábitos adquiridos para enterrar rapidamente as vítimas da peste dos séculos xin e xiv nas cidades tivessem sido conservados para enterrar todos aqueles que não pagavam os direitos de sepultura dentro das igrejas e sob os carneiros 2.
As grandes fossas justificavam o nome de «come-carne» que se dava aos Inocentes, mas que muitos outros cemitérios mereciam. «Neste cemitério, há tantos ossos de defuntos que é uma coisa incrível», diz Corrozet, mas isso deve-se à sua virtude par-
1 L.-M. Tisserand, «Lês iles du fief de Saint-Germain-des-Près et la question dês cimetières», Bulletin Soe. Hist. Paris, t. TV, 1877, pp. 112-131.
2 BN, Manuscritos franceses (Ms. fr.), Documentos Joíy de Fleury,

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ticular: «a terra do qual (cemitério) é tão putrescível que um corpo humano é aí consumido em nove dias». Atribuía-se assim aos Alyscamps de Aries a mesma propriedade que se considerava como sobrenatural. Quando os tesíadores, por vezes bispos, que não podiam ser inumados nos Inocentes, pediam que se pusesse um pouco dessa terra dentro do seu caixão, era sem dúvida por causa dessa qualidade maravilhosa que possuía. As ossadas expostas nestes carneiros provinham dessas fossas. Havia duas operações sucessivas, uma respeitante a todo o cadáver, a outra respeitante apenas aos ossos, depois da consumação das carnes. Sabe-se que a prática da dupla sepultura é conhecida em outras culturas, em Madagáscar por exemplo, mas não tem aqui o mesmo sentido religioso.
Deve citar-se um caso particular no Sul de França, diferente do costume geral dos carneiros. Encontram-se nas pequenas igrejas romanas da Catalunha cavidades feitas nas paredes e que dão para o exterior. Destinavam-se a receber ossos e eram fechadas por um epitáfio. Ainda se podem ver hoje. Estes túmulos eram manifestamente como segundas sepulturas, ou sepulturas de ossos, porque o corpo não podia aí entrar todo. O esqueleto fora desmanchado. Estariam estas sepulturas reservadas a personagens importantes, depois da consumação das suas carnes, ou destruição destas carnes por fervura, por exemplo? Esta prática desenvolveu-se onde as proibições canónicas de enterro dentro da igreja foram melhor respeitadas: ter-se-ia então enterrado o mais perto que se podia do muro ou, ainda melhor, dentro do muro. Pelo contrário, o uso dos ossários na França não mediterrânica corresponde a ideias diferentes. Foi um fenómeno de massa que se difundiu cerca de meados da Idade Média, nos séculos XIV e XV, no final do avanço urbano, quando os estreitos espaços das galerias não conseguiram absorver os restos de uma população crescente e exposta periodicamente a mais fortes mortalidades epidémicas. Arranjou-se lugar exumando os ossos e transportando-os para onde se podia, ou seja para as caves, sobre os recontros das abóbadas.
Esta prática era ainda seguida no final do século xrx nos cemitérios bretões onde, conta-nos Anatole Lê Br az, ao fim de cinco anos, se levavam para o carneiro os ossos do último ocupante para deixar lugar livre. O coveiro de Penvenan tinha «lavrado seis vezes toda a extensão do cemitério», ou seja, «deitara sucessivamente na mesma cova até seis mortos». Fazia o seu ofício como todos os seus predecessores, os coveiros dos séculos XVI e xvn, cujos arquivos notariais conservaram os contratos assinados com as fábricas: o de São Maclou de Ruão recebe a 27

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de Outubro de 1527 três libras «por ter limpo o cemitério e por ter arrumado os ossos dos trespassados na galeria» \
«Dificilmente se teria encontrado um coveiro mais entendido», prossegue Anatole Lê Braz. «Continuava a ver claro como em pleno dia nas fossas que enchera. A terra húmida do cemitério era, a seu ver, transparente como água.» O pároco pede-lhe um dia que enterre um dos seus paroquianos, ou melhor «que lhe cavasse uma cova onde o grande Ropertz foi enterrado, há cinco anos». Mas o coveiro conhecia bem de mais o seu cemitério e os respectivos habitantes: «Naquele sítio além, como vê, os cadáveres conservam-se durante muito tempo. Conheço o meu Ropertz. A estas horas, os vermes mal começaram a trabalhar-lhe as entranhas.»
OS OSSÁRIOS
A característica mais impressionante do carneiro é a exibição dos ossos.
Durante muito tempo, sem dúvida até aproximadamente ao século xvn, os ossos afloravam o solo, misturados com as pedras. Um vitral, hoje desaparecido, da sacristia de Saint-Denis (1338) ilustrava as obras de misericórdia de S. Luís, entre as quais o enterro dos mortos. Todavia, não se representa um enterro, mas a reunião dos ossos: S. Luís encheu um saco com crânios e tíbias, os seus companheiros, que o auxiliam a segurar o saco, tapam o nariz e a boca. Em quadros de Carpaccio, o cemitério está juncado de restos de esqueletos ou mesmo de bocados de múmias, meias enterradas.
No tempo de Pantagruel, os crânios, os ossos arrastam-se por todo o lado e servem aos «mendigos dos Inocentes para aquecerem o eu». Alimentam a meditação de um Hamlet. Pintores e gravadores mostram-nos no interior das igrejas ou ao lado, misturados com a terra remexida.
Contudo, a partir do século XV, talvez mais cedo, nas cidades, nas vilas, alinharam-se e ordenaram-se essas massas enormes de ossadas, perpetuamente restituídas pela terra. Foram então expostas artisticamente em expositores por cima das galerias dos carneiros, ou ainda sobre o alpendre da igreja, ou dentro
1 A. Lê Braz, La Légende de Ia Mort chez lês Breton armoricains, Paris, Champion, 1902, t. i, p. 313; M. Pillet, L’Aitre Saint-Maclou, Paris, Champion, 1924.

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PHILIPPE ARIES

de uma pequena capela, ao lado da igreja, destinada a essa função.


Restam ainda alguns: um, na fronteira franco-luxemburguesa, e os ossários bretões. Estes não têm um nome particularmente bretão. Chamam-se «garnal». «Carnal», ou seja a bolsa da Canção de Rolando, o carneiro: são, com efeito, a sobrevivência estranha e tardia dos carneiros do final da Idade Média e do início dos tempos modernos: «Por detrás das grades da clarabóia, misturadas com os restos das tábuas de caixão, as ossadas estão empilhadas em bocados: acontece que transbordam e pode tocar-se, sobre o apoio exterior da janela, em filas de crânios cheios de musgo que seguem com os olhos vazios as idas e vindas dos passantes» (A. Lê Braz).
Consta que uma noite, cerca de 1800, «um rapaz embriagado levou para casa uma cabeça de morto que roubara de um carneiro: sóbrio, ficou cheio de terror». Esta é a história bruta. Deu origem a esta lenda: o rapaz bêbado julgou furtar a coifa de tecido fino de uma morta que dançava no cemitério e que tentara raptar. Ao regressar a casa, arrumou-a dentro do armário e, no dia seguinte, «em vez da branca coifa em tecido fino, estava uma cabeça de morto e sobre a cabeça havia ainda cabelos, longos e maleáveis cabelos que provavam ser a cabeça de uma rapariga». Já nada restava ao jovem, decreta o pároco consultado, a não ser «levá-la ao carneiro de Pommerie de onde viera»
Os costumes funerários bretões dão-nos uma chave para compreender o significado das exposições de ossos desde meados da Idade Média até ao século xvin e ainda mais tarde na Bretanha, em Nápoles, em Roma. No século xrx, a confusão macabra, a transferência dos ossos para expositores eram proibidas pela lei. Foram todavia toleradas pela administração no oeste bretão onde persistiram até à guerra de 1914. Mas, sentimento novo, a família bretã, tocada pela preocupação moderna de particularizar o túmulo, preferiu ao anonimato tradicional do carneiro uma espécie de pequeno ossário individual, «a caixa do crânio». Estas caixas tinham uma abertura, muitas vezes em forma de coração, que permitia ver o crânio, tal como, nos cofres-relicários, se arranjava um oculus para ver o santo 2. Estas caixas do
1 A. Lê Braz, op. cit., t. i, p. 286.
2 Th. Durcocq, «De Ia variété dês usages funéraires dans POuest de la France», memorial lido a 18 de Abril de 1884 no 22.- Congresso das Sociedades Eruditas, secção das Ciências Económicas e Sociais, Paris, E. Thorin, 1884.

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