O projeto político-pedagógico da convivência com o Semiárido brasileiro: a Rede de Educação do Semiárido Brasileiro



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O projeto político-pedagógico da convivência com o Semiárido brasileiro: a Rede de Educação do Semiárido Brasileiro.
Lalità Kraus

Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Marcelo Moraes



Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Brasil

Resumo

O objetivo do presente trabalho é analisar e avaliar a proposta político e pedagógica da Rede de Educação do Semiárido Brasileiro – RESAB, e a relação dessa proposta com o desenvolvimento territorial e regional. Trata-se de um novo sujeito político organizado em rede com uma proposta de educação contextualizada para o semiárido. Essa proposta é parte constituinte de uma perspectiva que se insere dentro de um paradigma de convivência e propõe um novo modo de refletir e agir no semiárido.



Palavras-chave: Educação contextualizada; Convivência; Rede; Desenvolvimento territorial.

Introdução

A RESAB é um espaço de articulação político e pedagógica, que reúne organizações governamentais e não governamentais do semiárido, sendo que a rede adota o mapamento do semiárido proposto nos anos 90 pela UNCCD – Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação. Esse recorte específico corresponde à área semiárida dos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Paraiba, Pernambuco, Piauí, Sergipe e Rio Grande do Norte, mais o norte de Minas Gerais e a zona Sub-Úmida Seca do leste do Maranhão e noroeste do Espiríto Santo, por um total de 1.338.076km² (BRASIL, 2006).

O objetivo da rede é consolidar uma proposta de educação contextualizada nas escolas do semiárido assim como contribuir na formulação de políticas públicas educacionais do semiárido, orientada pelos princípios de convivência com o semiárido no âmbito de um plano de desenvolvimento sustentável.

As políticas públicas impulsionadas pelo governo sempre se expressaram no semiárido através de políticas assistenciais de emergência, fragmentadas e desarticuladas, segundo um paradigma de combate à seca. Dentro de jogos de poderes entre elites regionais os problemas sócio-econômicos do semiárido foram explicados unicamente como produtos de condições naturais adversas. Assim, a instrumentalização da seca possibilitou a caracterização e a criação de um espaço-problema.

A questão da seca orientou os projetos e programas de desenvolvimento territorial, virando elemento caracterizante e determinante de um território, de uma cultura e de um povo, assim como elemento de barganha nos pactos entre a elite nordestina e o Governo (CASTRO, 1992). Tratou-se de intervenções fundadas no tecnicismo e no economicismo, nas quais “o território era [unicamente] a base para a conquista e instrumento de poder do Estado” (CARVALHO, 2007, pag, 16).

Oliveira (1987) aponta que as intervenções e o planejamento no Nordeste nunca tiveram intenção de diminuir os desiquilíbrios regionais, mas foram instrumentos apropriados e utilizados na lógica de divisão do trabalho, de acumulação capitalista, de homogeneização do espaço e de conflitos de poder.

Ao contrário, nas últimas duas décadas organizações da sociedade civil e alguns setores do Estado, a partir de um entendimento da complexidade e riqueza sistêmica do semiárido, propuseram um novo discurso e um paradigma de convivência. Trata-se de um conjunto de forças rizomaticas, que poderíamos chamar de redes de convivência, movidas por uma lógica flexível, adaptável e voltada para abordar as especificidades e a complexidade do mundo social do semiárido, na tentativa de romper com o tecnicismo e o economicismo das políticas e do planejamento. Ao contrário, podemos pensar a lógica governamental como uma lógica mais impermeável, resistente e marcada pelo princípio da universalidade.

O presente artigo apresenta a ação sócio-política e a proposta de educação contextualizada de uma dessas redes, a RESAB, que propõe um novo modo de ver e intervir no semiárido. O ponto de partida é o reconhecimento da ação dos sujeitos políticos, sendo que a ação política se realiza pelo Estado em sentido amplo, incluindo a sociedade política, mas também a sociedade civil (GRAMSCI, 1975). Nesse sentido, é importante distinguir entre política pública, em quanto ação realizada pelo Estado em sentido gramsciano, e planejamento, em quanto instrumento técnico da política.



  1. Ação em rede

A ação em rede representa um exercício social de práticas democráticas, que se irradiam e se difundem na sociedade, e que ampliam a capacidade de ação dos sujeitos (EGLER, 2013). As redes estão se impondo como uma verdade-realidade no cenário sócio-político, traçando os caminhos por uma democracia por vir. Isto revela a dinâmica de um momento histórico em que o modelo político da democracia representativa parece esgotado e novas práticas democráticas estão emergendo.

As redes de convivência no Nordeste brasileiro constituem uma multidão multicolorida, um sujeito social plural e múltiplo, que age com base naquilo que as singularidades têm em comum num processo de transformação e libertação (HARDT e NEGRI, 2005). A pluralidade e multiplicidade é dada pelo fato da RESAB ser composta por diferentes atores do mundo governamental e não governamental, diretamente e indiretamente envolvidos na educação, mas unidos pelo reconhecimento da importância da educação contextualizada para uma vida digna no semiárido e para ações que garantam a convivência com o lugar. Isto constitui o comum que permite comunicar e agir em conjunto, é o elemento de coesão interno da RESAB. Nesse sentido, a ação em rede da multidão desafia toda a tradição da soberania, porque embora múltipla e diferente, é capaz de agir em comum e de se governar sem uma cabeça que manda (HARDT e NEGRI, 2005). É uma ação que não pode ser medida segundo as estruturas e os valores políticos-econômicos tradicionais, mas que tem pleno valor político na medida que é uma coletividade que luta em comum e produz o comum.

O mapa 1 tem como objetivo apresentar os 5 núcleos da rede que atuam atualmente de forma mais ativa e que são mais organizados nos Estados da Bahia, Ceará, Alagoas, Piauí e Paraíba. Por cada núcleo são indicando os principais membros. Assim, é possível entender a complexidade da composição da RESAB, assim como a riqueza de uma instituição composta por atores da esfera governamental e não governamental.

A RESAB está se colocando como uma nova institucionalidade política, composta por organizações governamentais (por exemplo, universidades, secretarias municipais de educação e secretaria estaduais de educação) e não governamentais (ongs, pastorais, sindicatos e igrejas). É uma institucionalidade política complexa, que incorpora a sociedade política e a sociedade civil e que traça os caminhos para uma reinvenção da política e do desenvolvimento no semiárido. A RESAB, assim como as redes de convivência, propõe políticas públicas que partam do chão, a partir dos limites e das potencialidades do território, e que possam garantir a superação das condições marginais e de pobreza da população do semiárido.

A RESAB tem uma arquitetura organizada por uma secretaria executiva com sede em Juazeiro da Bahia e grupos gestores locais nos Estados do semiárido. É um sistema aberto e altamente dinâmico com extensão multidirecional e não linear, podendo se expandir e se multiplicar para um lado ou para outro de forma dinâmica e imprevisível. Isto significa que novos grupos podem surgir ou sumir, fortalecer ou enfraquecer, definindo um sistema aberto às possibilidades onde ”o fora da rede é todo o universo de pontos ainda não conectados” (CASSIO, 2003, pag. 22). Cada núcleo gestor faz parte de números outras redes num sistema onde conexões geram conexões, fazendo da conexão um dos principais elementos de riqueza e poder, responsável pela dinâmica do sistema como um todo.



MAPA 1 – Núcleos e membros da RESAB no semiárido. Fonte: pesquisa de campo.

O dinamismo organizacional não deve ser confundido com a falta de organização. Isso acontece com frequência devido ao fato que são novas formas de organização que, não podendo ser enfeixada nos órgão hierárquicos de um corpo político, são erroneamente interpretados. Na RESAB os grupos gestores tem plena autonomia de gestão, organização e ação, podendo decidir como implementar a educação contextualizada no território e como efetivar a ação nos diferentes espaços políticos. Isto garante uma ação flexível, rizomatica e enraizada localmente. Ao mesmo tempo, a organização em rede e a existência de uma secretaria executiva compactam a ação, garantendo homogeneidade de princípios, cooperação, colaboração e ação social transescalar, capaz de agir em nível local, estadual, regional e nacional.

O Mapa 2 evidencia, a partir de um entendimento da importância das conexões, a estrutura das relações dos membros da RESAB e uma representação gráfica das mesmas. A representação gráfica foi feita a partir das conexões instituídas no facebook da RESAB, utilizando o software livre GEPHI. Entendemos que o facebook não representa a totalidade da rede e que a análise das conexões não é suficiente para desvendar a totalidade e complexidade das relações e, em geral, da prática sócio-política. De todo modo, permite iluminar dimensões quantitativas da arquitetura da rede e revelar a estrutura dos fluxos de interação-comunicação. O objetivo é mostrar e analisar a intensidade das conexões, a horizontalidade e a coesão interna a rede.



Mapa 2 – Representação gráfica da arquitetura das conexões internas da RESAB. Fonte: pesquisa de campo.

O Mapa 2 mostra como a visualização gráfica do facebook da RESAB revela 594 nós-atores e um total de 8880 arestas. O tamanho dos nós é determinado pelo grau de conectividade, ou seja, o número de conexões que cada nó estabelece. O grau médio de conectividade (average degree) é 14,949, ou seja, cada nó da rede possui em media 14,949 conexões, indicando um bom nível de conectividade. Isto é também confirmado pelo bom valor da densidade de 0,025. A densidade é calculada como a relação entre o número de relações efetivas e o número de conexões possíveis, indicando quão conectados entre si estão os nós da rede. O índice de conectividade, de densidade são todos importantes indicadores do nível de coesão. A propriedade da conectividade é um dos elementos centrais para pensarmos o processo de horizontalidade da rede. O facebook da RESAB monstra um bom nível de coesão, reduzindo assim a probabilidade que se constituía uma estrutura potencialmente hierárquica, fragmentada e conflituosa. Apesar de ter nós com grau de conectividade maior, a totalidade dos nós-atores está bem conectados entre eles, constituindo uma plataforma ideal para um processo distribuído e horizontal. As cores dos nós revelam o nível de modularidade da rede, ou seja, a divisão em comunidades ou subgrupos mais conectados entre si. No gráfico são distinguíveis 3 macro grupos mais intensamente conectados. A rede não apresenta uma estrutura com numerosas comunidades interna, revelando um potencial muito baixo de fragmentação interna. O alto índice de conectividade e a falta de fragmentação em sub-grupos tem implicações sociais importantes, sendo que nesse tipo de estrutura a  informação flui mais rapidamente, facilitando a interação-comunicação e a comunicação-ação. Isto é, é um processo de informação e comunicação fluente que pode levar a uma eficiente ação social e política.

O Mapa 2 revela a existência de nós com grau de conectividade maior. Embora não exista centralidade, nas redes existem sempre nós mais conectados, chamados hiperconectores (CASSIO, 2003) ou elos fortes (SCHERER-WARREN, 2006), que não necessariamente definem um sistema hierárquico. Na RESAB o núcleo gestor da Bahia (em particular o IRPAA) se destaca como mais conectado, funcionando de atalho e como nó animador, sendo que estimula a participação, a articulação e a difusão. Um atalho beneficia todos os que estão a ele ligados e o núcleo da Bahia, por exemplo, serve para animar os núcleos locais enfraquececidos, para estimular a criação de núcleos da rede onde ainda não existem e fortalecer a ação política da rede nos mais diferentes espaços políticos.

Os resultados da ação sócio-política da RESAB se manifestam de forma distinta no tempo e no espaço. Em termos gerais, em nível local os núcleos gestores implementam ações de educação contextualizada principalmente dentro das escolas inferindo nas práticas pedagógicas escolares, mas também promovem políticas públicas educacionais para o semiárido nos espaços políticos locais, entre os quais fóruns, camaras, audiências públicas e conferências temáticas (por exemplo, a CONAE).

Em nível nacional a RESAB têm representantes e participa ativamente em diferentes espaços políticos, entre os quais, a Comissão Nacional de Educação do Campo (CONEC) do Ministério da Educação, o Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC), Conselho Nacional do Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF) vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Instituto Nacional do Semiárido (INSA) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) e participou da preparação do Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN-Brasil). A RESAB é também articulada com outras redes como a Articulação do Semiárido (ASA). O objetivo é se inserir na maioria dos espaços políticos para que a educação contextualizada se torne uma política pública e seja uma temática transversal nas políticas no semiárido.

Embora focada na educação contextualizada para o semiárido, a proposta política da RESAB é abrangente e complexa, colocando-se como uma das ações necessária para garantir a convivência com o semiárido. Almeja-se dar conta do território nas suas múltiplas dimensões, evitando o setorialismo e o tecnicismo, para que as intervenções político-territoriais abordem a complexidade da vida social e não tratem o semiárido de forma unidimensional como problema hídrico e climático.

A ação sócio-política em rede é assim uma fonte de reorganização das relações de poder (CASTELLS, 1999), com excelentes possibilidades de criação de uma nova esfera pública, de novas formas democráticas e de libertação. A RESAB é um dos exemplos de pessoas mais conectadas num território amplo como o Nordeste brasileiro, que representam a concretização de possibilidades de destruição da soberania em favor de novas práticas democráticas. Assim, não é uma simples recusa da transcendência, mas a descoberta do plano da imanência, através da reterritorialização dos poderes de criação e da ação de resistência (HARDT e NEGRI, 2000).

A ação em rede da RESAB ocorre no terreno biopolítico, ou seja, é imanente à sociedade e produz diretamente novas subjetividades e novas formas de vida. A produção biopolítica da multidão no caso da RESAB mobiliza a educação contextualizada como elemento que os membro compartilham em comum e que produzem em comum contra os poderes imperiais e capitalistas. Representa também a forma como se busca difundir e implementar a ação de convivência com o semiárido entre as entidades que a ela se vinculam mediante a articulação entre esfera governamental e não governamental.



2. Educação, convivência e desenvolvimento regional

O discurso a favor da educação contextualizada tem como objetivo despertar uma sensibilidade pedagógica capaz de reconhecer as potencialidades do Semiárido e possibilitar a construção de uma educação que seja tecida com fios da cultura local, construindo uma grande rede de saberes que valorize as pessoas do Semiárido e torne-as protagonistas do seu processo de emancipação.

Podemos considerar duas formas de pensar a educação: a educação formal implementada e reproduzida pelo Estado e pelo Mercado, e uma educação contra-hegemônica, pensada e difundida pela multidão, no sentido de Hardt e Negri (2005). A educação contextualizada é uma proposta que “vem do baixo”, de forma imanente e endógena, e que se realiza mediante a parceria entre atores governamentais e não governamentais. É uma proposta político-pedagógica alternativa que tenta se inserir de forma rizomatica na prática escolar e na vida cotidiana da população do Semiárido.

A ideia de contextualização se funda no princípio de interdisciplinariedade e transdisciplinariedade na construção do conhecimento, suportando-se na falência das grandes narrativas da ciência e da pedagogia moderna, ou seja, dos princípios de neutralidade, formalidade abstrata e de universalidade. No Semiárido essa ideia é representativa de demandas particulares: a descolonização da educação, a desconstrução do estereótipo do Nordeste e do Nordestino e a difusão do paradigma de convivência com o Semiárido.

É uma proposta que encarna um projeto democrático, sendo que a educação é o campo privilegiado de atuação da violência e da representação simbólica (BOURDIEU, 1998). Os conteúdos dos livros didáticos e o currículo escolar são produtos e resultados diretos de relações de poder entre grupos sociais. No semiárido, os materiais didáticos são oriundos da região Sudeste e vem com uma carga de estereótipos uniformizados, constituídos historicamente (PIMENTEL, 2002). Assim, a educação descontextualizada contribui para um processo de aceitação dóxica do mundo e de interiorização de imagens e representações, exercendo uma violência que não é reconhecida como tal pelos estudantes e professores. Um sistema educacional, assim definido, reproduz uma estratégia de estereotipização e, usando as palavras de Bourdieu, uma situação de violência simbólica por meio de um desprezo do contexto e da cultura popular local, definindo assim uma subcultura. A educação, assim entendida, desvaloriza a cultura e identidade local, desqualifica o semiárido com sua cultura, suas riquezas e suas particularidades, e contribui para o processo de demonização do Nordeste renovando preconceitos seculares.

A proposta de educação contextualizada prevê uma adaptação dos conteúdos e materiais escolares ao território, à cultura, à identidade do semiárido. Um dos princípios norteadores é a

“valorização e articulação dos saberes; bem como a valorização dos espaços de aprendizagem, como a comunidade, o bairro, ou seja, a preocupação fundante é não restringir os saberes e os conhecimentos apenas ao ambiente da escola, mas articulá-los com os saberes da vida, nas suas variadas dimensões: afetiva, social, prática, estética, cultural” (MENEZES e ARAUJO, 2007, pag.10).

O objetivo da educação contextualizada é fazer assim que se concretize a re-orientação político-pedagógica dos processos educativos, para que se vinculem à realidade local, às necessidades de vida e aos potenciais do semiárido, construindo sujeito conectivos com o mundo. Trata-se de despertar uma sensibilidade pedagógica capaz de reconhecer as potencialidades do Semiárido e possibilitar a construção de uma educação que seja tecida com fios da cultura local, construindo uma grande rede de saberes que valorize as pessoas do Semiárido e torne-as protagonistas do seu processo de emancipação. É um processo que contribui no processo de produção de significado como pratica de leitura de mundo e como exercício político de tomada de consciência e ação social na própria realidade.

Constitui uma luta simbólica na perspectiva de desconstrução de preconceitos e de estigmas regionais, e de construção de uma relação entre educação e desenvolvimento (PIMENTEL, 2002). A educação contextualizada se torna um modo de ser, tendo como objeto a vida em todas as suas dimensões, é transdisciplinar e transversal na ação sócio-política, fazendo assim que a relação entre desenvolvimento e educação deixe de ser meramente residual. Em particular, se insere transversalmente no paradigma de convivência com o semiárido.

Ligada à educação popular, a educação contextualizada se preocupa em relacionar a vida cotidiana com a escola, fazendo da vida um objeto do conhecimento escolar e fazendo da educação um modo de ser. Assim, supera a fragmentação disciplinar e favorece o entendimento do diálogo entre os diferentes saberes, desenvolvendo uma visão holística da vida no mundo, novos significados do lugar e da vida no lugar.

Essa prática pedagógica procura alterar a visão de mundo e a representação social sobre o Semiárido, transformando a idéia de que é simplesmente um lugar de miséria e de seca, em outra visão que o representa como local de possibilidades e não de negação. Nesse sentido, usando a lógica foucaultiana, a educação contextualizada constitui um contra-dispositivo capaz de instituir uma nova verdade e novas práticas sobre o Semiárido. É um movimento de constução de um novo dizer-verdadeiro (FOUCAULT, 2008). Uma “re-ocupação” do Semiárido, invertendo o campo de dizibilidade e visibilidade negativas.

A educação contextualizada é um dos processos de revalorização territorial e de desenvolvimento dentro do paradigma de convivência. A convivência com o semiárido é o paradigma que os movimentos estão defendendo e que está se impondo com força desde a ocupação da SUDENE em 1993 e a criação do documento do Fórum Nordeste durante a ocupação, em que se afirma a necessidade de priorizar o princípio de convivência com o semiárido nas politicas públicas regionais. Assim, se redefine um realocamento da questão do desenvolvimento regional na esfera da sociedade civil e fundada em novos princípios: a convivência com o semiárido e com suas condições ambientais e culturais é tomada como princípio do desenvolvimento; a participação popular é necessária para a plena realização de um verdadeiro desenvolvimento, que realize os interesses populares e transforme o cenário sócio-político, que sustentou e justificou o discurso hegemônico da seca (MACEDO, 2004).

Ao paradigma da modernidade, baseado na concepção de combate à seca e de modernização econômica, se contrapõe o paradigma contemporâneo de convivência com o semiárido (SILVA, 2003). A concepção de combate à seca e aos seus efeitos entra definitivamente em crise e também a concepção de solução dos problemas das secas através da modernização renova seu discurso, inserindo a questão ambiental e social como prioritárias. Com esse novo paradigma, o objetivo é resgatar e divulgar experiências nascidas do saber popular, aprimoradas no diálogo com o saber científico, e transformar as mesmas em referências para propor ao poder público um modelo diferente de políticas públicas. Isto é resultado de um entendimento do problema da região semiárida, não mais como um problema climático, mas mais como um problema de ordem soció-política.

Percebe-se a convivência com o Semiárido como um projeto social e um modo de pensar e fazer o desenvolvimento regional. Trata-se de um projeto de desenvolvimento ainda em construção, que aborda a realidade na sua complexidade sistêmica e busca um equilíbrio entre as demais dimensões (ambiental, social, econômica, histórica, política e cultural) e a dimensão econômica (SILVA, 2003).

Essa nova perspectiva da convivência e esse nova visão do desenvolvimento exigem um processo cultural constituído por novas aprendizagens e a tomada de consciência dos reais limites e potenciais do semiárido (SILVA, 2003). Devem orientar e ser orientados por “uma mudança profunda no pensamento, percepções e valores que formam uma determinada visão da realidade” (CAPRA, 1999, p. 29). Requer novas formas de pensar, sentir e agir no semiárido, que o abordem de forma sistêmica nas suas mais variegadas dimensões, superando o setorialismo e a fragmentação das intervenções e das políticas públicas do passado, e passando da concepção mecanicista para uma visão holística e ecológica.

Essas novas perspectivas surgem a partir da lógica da sociedade civil, que é flexível, adaptável e voltada para abordar as especificidades e a complexidade do social, ao contrário da lógica governamental (CARVALHO, 2011). Nesse processo a RESAB com a proposta de educação contextualizada almeja construir essa nova forma de pensar e agir a partir da base, ou seja, nas escolas do semiárido. A lógica flexível se manifesta numa proposta alternativa de educação, que encarna um projeto de mudança social a partir do rompimento com o discurso de estereotipia e de hegemonia cultural, por meio de uma desconstrução da representação simbólica e imagem estigmatizada entorno do Nordeste e do Semiárido, e de afirmação identitária local. O processo de educação contextualizada é criador e plasmador de uma vontade e moral social, em que os indivíduos desconstroem e reconstroem uma nova representação do lugar e se reapropriam da própria cultura. E os atores envolvidos começam a entender os problemas e as potencialidades do lugar na sua totalidade, inclusive as causas políticas e sociais da marginalização e da pobreza.

É um processo que interfere na subjetivação de estigmas, plasmando uma nova ecosofia do Semiárido, capaz de produzir novas subjetividades. Partindo do pressuposto que o lugar não tem unicamente una dimensão físico-material, mas também ideal-imaterial (GUATTARI, 1990), sabemos como a construção de um novo olhar afeta a dimensão subjetiva. Esse novo olhar inclui regimes de signos, imagens, ideias e valores, que definem uma nova territorialidade, uma nova ecosofia. Emerge um novo território simbólico-cultural (CARVALHO, 2011).

Além dos resultados em termos de subjetivação e ação, a educação contextualizada proporciona mudanças nas condições estruturais de reprodução social. É parte de um conjunto de forças em movimento que constroem alternativas concretas de convivência e de planejamento regional. O Semiárido é a região com os índices de pobreza e exclusão social mais preocupantes do país; e currículos desvinculados da realidade, das necessidades e das potencialidades do lugar impedem que a educação se transforme num dispositivo para o desenvolvimento (SOUZA e SILVA, 2011). A educação contextualizada, ao contrário, cria espaços de reflexão e ação que, a partir da descontrução da imagem de um não-lugar, traçam caminhos para novas possibilidades de vida no Semiárido. Por exemplo, o processo de contextualização inclui reflexões críticas e ações concretas acerca de oportunidades de geração de renda no Semiárido, respeito e preservação do meio ambiente, mudando as perspectivas da vida cotidiana dos estudantes e das comunidades.

A partir do processo de descontrução e construção de um novo olhar, é possível imaginar e concretizar novas possibilidades de vida no lugar. Não é mais um não-lugar, mas um lugar-potencial. Os estudantes, professores e professoras, e os membros das comunidades aprendem a viver de maneira diferente, não tendo mais como única opção a cidade ou a região Sudeste. O Semiárido se apresenta aos olhos deles de outra forma, com outras cores e tons, e as pessoas enxergam potencialidades vivas.

Mais é muito mais do que isso. A educação contextualizada, dentro de um paradigma de convivência, promove um enfoque sistémico no planejamento e gestão territorial. São apontadas novas especificidades e potencialidades do território, mediante um processo de reaproriação social do território e gestão compartilhada (CARVALHO, 2007). É uma perspectiva cultural, que, a partir da desconstrução e construção das representações sobre o Semiárido, demonstra como nenhuma lógica capitalista “anula os processos organizadores e produtivos da natureza e os sentidos das culturas” (Ibid, pag. 28).



Conclusão

Sendo que as políticas públicas impulsionadas pelo Estado sempre se expressaram no semiárido através de políticas assistenciais de emergência, fragmentadas e desarticuladas, pautadas no tecnicismo e no economicismo, a RESAB e outras redes de convivência propõem políticas públicas que partam do chão mediante o envolvimento da sociedade civil e do poder público. É assim que as redes estão se impondo como uma verdade-realidade no cenário político brasileiro, traçando os caminhos por uma democracia por vir, capaz de garantir o desenvolvimento regional.

A educação contextualizada e a construção de um novo olhar e de uma nova territorialidade vivida cria as bases pela reapropriação do lugar e pela realização de um encontro entre desejos e oportunidades no Semiárido. Assim, a escola e a educação se podem transformar em elementos de libertação e de transformação no Semiárido, dando lugar a novas espacialidades de poder e de saber. É evidente a complexidade e a riqueza do processo de educação contextualizada, e também do paradigma de convivência com o semiárido na sua totalidade, em contraposição à antiga e unívoca significação dada ao semiárido e ao Nordeste, que inspirou intervenções e política públicas ineficazes, emergenciais e desarticuladas. A proposta de contextualização e de convivência, impulsionada principalmente pela sociedade civil, se colocam dentro de um projeto alternativo de planejamento regional e de desenvolvimento, mediante intervenções e políticas públicas que partam do chão, a partir de uma nova ressignificação territorial.

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