O milagre de Plínio Doyle
Ceila Ferreira Brandão
Certa vez, estavam Plínio Doyle, Carlos Drummond de Andrade
e outros confrades comemorando um dos aniversários do Sabadoyle.
Uma repórter se aproximou de Plínio Doyle e perguntou sobre o segre-
do de anos e anos de reuniões de escritores, críticos literários ou sim-
plesmente amantes da literatura e da cultura brasileiras em sua casa,
durante tantos sábados. Plínio respondeu: “Pergunte ao Drummond”.
Foi então que Drummond falou com a clareza de quem tem a chave
onde estão guardadas as palavras e seus sentidos: “Milagre do Doyle”.
Quem conhece Plínio Doyle compreende a verdade contida nas
palavras do Poeta. Somente uma pessoa como ele, com espírito de
perfeito anfitrião, poderia congregar intelectuais de variadas ten-
dências; personalidades tão diferentes; ideologias às vezes antagô-
nicas e manter a paz, a cordialidade e a perenidade das famosas
reuniões aos sábados.
Foi Raul Bopp, um dos expoentes do Modernismo no Brasil,
que, com a sensibilidade inerente aos poetas, criou o neologismo
Sabadoyle. Tais encontros surgiram a partir de uma visita de Carlos
Drummond de Andrade à casa de Plínio Doyle, com o objetivo de
consultar algumas publicações da vasta biblioteca de literatura bra-
sileira. Desde então, um sábado do ano de 1964, começaram a afluir
ao local vários apreciadores de livros e de uma boa conversa.
O Sabadoyle faz hoje parte da história da cultura e da literatura
brasileiras. Através das atas que, desde 1972, passaram a assinalar
esses encontros, podemos colher o testemunho e a palavra de eminen-
tes escritores e intelectuais como: Carlos Drummond de Andrade,
Pedro Nava, Raul Bopp, Mário da Silva Brito e tantos outros.
O Sabadoyle, através das atas, registrou vários momentos da
nossa literatura, a ponto de podermos afirmar que o estudo de tais
documentos enriqueceriam qualquer tese sobre o contexto cultural e
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literário dos anos 60 aos 90.
Nos anos 90, o Sabadoyle assinalou o prestígio da literatura
produzida por mulheres. Entre os sabadoyleanos estavam escrito-
ras e intelectuais de indiscutível talento como Stella Leonardos e
Heloísa Maranhão. A primeira, grande poeta, escritora e
encorajadora de novos talentos. A segunda, escritora de uma obra
que é cada vez mais lida pelo grande público e estudada no meio
universitário brasileiro.
Plínio Doyle soube colecionar livros e lançou as bases para a
criação do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira. Hoje, como em
outras épocas, faz amigos fiéis e preserva livros para todos aqueles
que amam a palavra escrita.
Psicanálise e Nosso Tempo
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Do ancião ao labrego
Cláudia Maria Amorim
Quando Luís de Camões escreveu sua epopéia, o mundo se apre-
sentava em crise. Era a crise dos valores defendidos pelo Humanismo
e pelo Renascimento, contestados pela evidente instabilidade a que
estava sujeito o homem do século XVI. Na sua epopéia, esta crise
ocidental transparece pelo tom maneirista que o autor imprime à obra.
Podemos lê-lo, por exemplo, no episódio do velho do Restelo, canto
IV, de Os Lusíadas.
O velho é, indubitavelmente, um dos personagens mais dignos
da epopéia. É dele a voz que, destoante, tem a coragem de condenar
os desmandos da empresa expansionista, desvelando o seu real ca-
ráter de “vã cobiça”, “vaidade” e “glória de mandar”. Mesmo con-
denando a expansão ultramarina, o velho, “nas praias, entre a gen-
te”, é ouvido com nitidez pelos navegantes. É apresentado pelo en-
tão narrador deste canto (Vasco da Gama) como alguém de “aspeito
venerando” cujo saber é “só de experiências feito”. Fala durante
dez estrofes do poema e, no momento mesmo em que as naus come-
çam a se afastar, continua sua fala, ouvida ainda pelos navegantes
já no “líquido elemento”.
Na esteira destes mares tantas vezes navegados, vamos encon-
trar na obra Memorial do Convento, de José Saramago, um diálogo
com o texto camoniano do qual não poderia faltar a reatualização
do episódio do velho do Restelo. O século XVIII, época de constru-
ção de conventos (e de passarolas), é certamente um período bastante
conturbado em Portugal. Ideais iluministas dividem o cenário com os
autos-de-fé da Inquisição num momento marcado pelas contradições,
presentes, inclusive, nas hesitações do próprio rei D. João V.
Na construção do convento de Mafra, durante o seu reinado,
trabalham os homens não-assinalados, esquecidos pela história, e
sem nenhuma possibilidade redentora na Ilha dos Amores. Na epo-
péia em que se transforma a construção deste convento, o velho
também aparece para denunciar os desmandos do rei e da pátria
portuguesa, metida já numa “austera, apagada e vil tristeza”. Po-
rém, diferentemente do que acontece no episódio camoniano, o ve-
lho que aqui comparece não consegue ser ouvido e, por tamanha
ousadia, é silenciado. Também este velho, entre as gentes, levanta
sua voz e conhecemos que “é um labrego de tanta idade já que o não
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quiseram”. Do alto de um valado, “púlpito de rústicos”, revela o
que vê, naturalmente que também com um saber só de experiências
feito: “Ó glória da mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem
justiça.” Após isto, dá-lhe o quadrilheiro uma cacetada na cabeça,
até que o velho caia por fim morto.
De modo diverso ao que acontece no texto camoniano, o velho
não tem ou não é apresentado como alguém de aspecto venerando.
Ao contrário, é um labrego, um aldeão, rejeitado para o trabalho
pela idade. Dele sabemos ainda que, apesar da avançada idade, con-
segue levantar a voz, não se intimida diante do que vê.
No entanto, não o deixam falar. É silenciado covardemente e o
pouco que consegue dizer nem chega aos ouvidos do rei, sentado em
seu trono, alheio àquilo que se passa nesta nova epopéia.
Dois momentos, dois velhos que sobre sua época se manifestam.
No fim do conturbado século XVI, um velho, digno pelo seu saber de
experiências feito, consegue pelo menos ser ouvido; no século XVIII,
outro velho, igualmente sábio pela sua avançada idade, pela sua co-
ragem e dignidade de não se calar diante do que vê, outro velho,
dizíamos, tenta falar. Mal pronuncia as primeiras palavras, já o im-
pedem os quadrilheiros do rei. Parece que, com o passar dos séculos,
considera-se menos o saber que se adquire com a experiência, com a
idade. O fim do nosso que o diga se de aposentados, de inativos não
só impedem a fala como desejam roubar-lhes o pão e a dignidade.
Psicanálise e Nosso Tempo
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Impasses da cultura do individualismo
Claudia Maria Amorim
No último feriado, fui assistir ao filme A vida é bela, de Roberto
Benigni, e, de fato, não me surpreendi com o sucesso que vem fazen-
do junto à opinião pública. O filme é uma fábula, como nos adverte o
narrador, sobre a história de uma família judia italiana que, durante o
nazi-fascismo europeu, vai para o campo de concentração. Estranha
proposta esta de se tratar tal temática como fábula. Mas, aberta às
propostas, acompanhei atenta o desenrolar da trama.
Algo, porém, soava estranho, incompatível. Será plausível, para
não entrar no campo da ética, haver espaço para a fábula, para o
riso, ante uma situação profundamente dramática como aquela? Se
lembrarmos que o riso é muitas vezes corrosivo, sarcástico,
demolidor e, portanto, crítico, tudo parece se explicar.
No entanto, a sensação de inquietude permanece e é agravada
em algumas cenas iniciais, como aquela em que o menino, ao ler
uma tabuleta numa loja da cidade, pergunta ingenuamente ao pai o
porquê da proibição da entrada de judeus e cachorros na tal loja.
Indagado, o pai (inocente?) responde ao filho que também na sua
loja ficaria vedada a presença de visigodos e aranhas. Atrás do ab-
surdo da resposta, o preconceito, o desrespeito às diferenças. A
intolerância parece ser algo “normal”. Tudo é uma questão de tabu-
letas. Seria engraçado, mas não é.
Se o riso pode ser corrosivo, neste filme tenuemente adquire
essa função. A cena em que o então garçom invade a escola pública
para conquistar a professora por quem está apaixonado e exibe o seu
corpo magro e frágil é interessante porque desconstrói, pelo avesso, o
discurso da raça ariana. Entretanto, tudo se perde à medida que os
acontecimentos se sucedem e restam apenas os esforços patéticos do
pai que tenta convencer o filho de que o campo de concentração é o
lugar de uma grande gincana da qual sairá um vencedor.
O mundo não é um grande jogo em que todos fingem a intole-
rância. Ela existe de fato. Está hoje na guerra da Iugoslávia, nos
massacres ruidosos e silenciosos de milhares de pessoas em vários
lugares deste planeta. Àquela época, é responsável pelo maior
genocídio da história da humanidade. Mesmo desejando salvar o
próprio filho dos horrores da guerra, inconcebível é a maneira pela
qual tenta fazê-lo. A vida só pode ser bela quando excluímos os
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outros, a dor, o sofrimento (nosso e alheio) dos nossos corações e
mentes? Apela-se para a célula familiar, para o amor paterno e tudo
se resolve? Os outros, os que estão à nossa volta, não importam
porque simplesmente não sabem jogar?
A nossa contemporaneidade fim-de-século parece querer provar
que tudo é uma questão de criatividade individual. Ao fim e ao cabo,
o que conta é a grandiosa imaginação do homem, capaz de fazê-lo
sobreviver até ao holocausto. Basta não se render à tristeza. Sobrevi-
verão os imaginativos, os criativos, aqueles que, apesar de tudo, ain-
da acreditam que a vida é bela.
Ledo engano. Não há salvação possível fora da realidade, fora
do coletivo. Não se pode fechar os olhos para o que acontece em
torno. Tampouco é permitido ser ingênuo, inocente. Num tempo
partido, é preciso tomar partido.
Enquanto o pai fingia jogar e fazia o filho acreditar neste jogo,
o nazismo não brincava. As conseqüências deste terrível momento
continuam na nossa memória e não se pode, sob o risco de se bana-
lizar as atrocidades, encarar um genocídio como uma fábula. As
fábulas fantasiam o nosso imaginário e constroem um final feliz.
O menino se salva, acredita que venceu. Mas os crimes da nossa
História permanecem e não podemos mudar-lhes o final.
Psicanálise e Nosso Tempo
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Que país é este?
Cláudia Maria Amorim
Tempo de Copa do Mundo. O Brasil pára... olhos postos na
telinha ou no telão, conforme as possibilidades, ouvidos presos à nar-
rativa ligeira do locutor. De leste a oeste, do Oiapoque ao Chuí, todos
movidos pela mesma paixão patriótica, vestidos, mesmo que simboli-
camente, de verde e amarelo.
A televisão nos informa a cada minuto, ainda que em remotíssimo
caso de nada quiséssemos saber, sobre os fatos relacionados à sele-
ção, à família dos jogadores do nosso país e também dos outros.
Somos bombardeados por esse súbito sentimento cívico que
unifica (será mesmo?) toda a nação. O aparato tecnológico que acom-
panha a Copa do Mundo na França é um show à parte.
Chegamos às minúcias tecnocráticas de poder dizer estatisti-
camente quantas vezes o Brasil jogou contra determinado país,
em que dias, quantos gols foram marcados por tal jogador, quantos
minutos aquele artilheiro pegou a bola em campo etc. Números,
imagens que tomam a tela e saturam os olhos e ouvidos dos cida-
dãos, atingindo corações e mentes. Embotados por estas notícias,
chegamos a esquecer de muitas outras, talvez, até de nós mesmos.
Somos o país do futebol - desse fato ninguém se esquece.
Ainda que a seleção brasileira este ano esteja deixando a desejar,
esperamos ansiosos ver confirmada uma das nossas únicas certe-
zas. Talvez nada mais nos reste a dizer do Brasil.
Passada a euforia coletiva, voltamos a nossa rotina e
embotamo-nos agora de nossa vida extremamente individualista.
Esquecemo-nos e esquecidos ficamos da pátria, do coletivo.
Alguns envergonhar-se-ão até do fato de viverem neste país mi-
serável, desigual; outros, distantes de qualquer sentimento patriótico,
envolvidos com seus próprios problemas, ocupar-se-ão de qualquer
coisa, até que o sistema fabrique algo de interessante para entorpecer
os sentidos. As bandeiras, fitas, camisas, sabe-se lá que fim terão e
enquanto isso a mídia busca outro assunto de interesse nacional. Como
será o fim da novela? Qual o destino dos personagens?
Gostamos tanto de futebol e ainda não aprendemos que é pos-
sível virar o jogo que tem o mesmo placar há quase cinco séculos.
Enquanto corações e mentes são tomados pelo ufanismo, enquan-
to vibramos com as jogadas da seleção, as jogatinas, daqueles que
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só têm como pátria os próprios interesses, continuam a reinar so-
beranas, num jogo perverso, já conhecido por alguns de nós.
O futebol é uma das paixões dos brasileiros - isso é indiscutí-
vel. Normalíssimo é, portanto, a mobilização do país em torno da
bola que rola na França. O que não é real é o fato de vivermos em
função disto durante um mês inteiro, vestindo verde e amarelo,
para depois desligarmo-nos de tudo que seja realmente de interes-
se coletivo e social.
Psicanálise e Nosso Tempo
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Mário de Sá-Carneiro e o desejo do Outro
Cláudia Maria Amorim
Há 82 anos morria Mário de Sá-Carneiro, escritor português,
contemporâneo de Fernando Pessoa e autor de uma obra que inclui
poesia, romance, contos, teatro. Com Pessoa e outros nomes como
José Almada Negreiros, Raul Leal, Santa-Rita Pintor, Luís de
Montalvor e Ronald de Carvalho, ele criou a revista Orpheu, que
teve importância capital na inauguração e consolidação do Moder-
nismo Português.
Embora tenha vivido tão curto tempo, Sá-Carneiro deixou-nos
uma obra coerente em sua amargura e em sua busca por um significado
maior para a arte. Foi daqueles que recusou veementemente a perda de
uma espécie de superioridade que a arte deveria guardar diante da nor-
malidade burguesa do mundo.
Conhecido basicamente pela sua poesia, cuja expressão apre-
senta traços do Decadentismo do fim do século XIX, Sá-Carneiro é
igualmente criador de uma prosa bastante interessante e medular-
mente lírica. É A confissão de Lúcio, sem dúvida, sua obra-prima
como ficcionista. Tal narrativa traz-nos de algum modo o teor trágico
da sua existência, tendo o poeta morrido sem completar os 26 anos.
Nesta narrativa, Lúcio, personagem principal, narra os aconte-
cimentos que antecederam o crime do qual foi acusado e pelo qual
passou preso os últimos dez anos, sendo que logo no início da obra
desenvolve uma ambigüidade em seu relato ao afirmar que deseja
fazer uma exposição clara de fatos, declarando mais adiante, porém,
que a sua confissão resultará decerto a mais incoerente, a mais
perturbadora, a menos lúcida.
Ora, mesmo distanciado dez anos dos fatos que culminaram com
a sua prisão, Lúcio ainda titubeia diante daquilo que seria a verdade,
sendo que esta pode ser inverossímil como nos adverte o personagem.
Assim, a narrativa instaura-se sobre o signo da razão - “exposição
clara dos fatos” - e da loucura - “confissão mais incoerente, mais
perturbadora, menos lúcida”, o que se confirmará no decorrer desta,
especialmente quando se forma o triângulo amoroso Lúcio, Ricardo e a
misteriosa Marta.
Num jogo de espelhos, esta obra traz-nos, entre outras coisas, o
desejo de invenção de um outro, desdobramento narcísico do eu, uma
espécie de heteronímia sem o artifício, sem o lúdico fingimento
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pessoano. Tal desdobramento apresenta-se também em muitos de seus
poemas, como no de n.º 7: “Eu não sou eu nem sou o outro,/ Sou
qualquer coisa de intermédio;/ Pilar da ponte do tédio/ Que vai de
mim para o Outro.”
Oscilando entre estas imagens, o poeta representa, talvez, a
indefinição do próprio país que revia desde o século anterior a sua
imagem de nação desbravadora de mares e continentes, e constitui-
se numa espécie de síntese trágica de um processo de autognose
inaugurado por escritores portugueses do século anterior.
Sujeito de existência trágica, Sá-Carneiro inscreve-se em suas
obras, e n‘A confissão de Lúcio em particular, e sublinha as tênues
fronteiras entre a sanidade e a loucura, resultantes de sua inadaptação
à vida cotidiana. Tal experiência, como se sabe, o levará ao suicídio
na distante Paris, como se fora um dos seus personagens.
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Sociedade oral... por escrito...
Claudio Cezar Henriques
Quase toda notícia divulgada a respeito da educação no Brasil
choca, horroriza a sociedade, que se escandaliza com os resultados,
com as práticas e com os números. De vez em quando, algumas
dessas notícias se reportam ao ensino de Língua Portuguesa, e é
desse tema que vamos tratar.
Não há quem não reconheça que, hoje em dia, as pessoas já
não sabem mais se expressar, falam um português precário e escre-
vem – quando muito – numa língua repleta de erros e barbaridades.
Todavia, o sucesso alcançado pelas muitas seções de “tira-dúvidas
de linguagem” nos nossos jornais é uma comprovação de que, ape-
sar do desleixo generalizado em relação aos padrões de linguagem,
ainda existe o sentimento da necessidade de se usar corretamente a
língua nacional. Se bem que, de um lado, temos de ter cuidado para
não transformar esse sentimento numa fixação hipocondríaca ou
policialesca, segundo a qual precisamos retornar à era do “certo ou
errado”, em detrimento do bom senso e do reconhecimento da ade-
quação de certos usos mais recentes. Isto significa, de outro ponto
de vista, que também é perigoso e deletério o liberalismo exagerado
quanto ao emprego de flexões, concordâncias e regências nitida-
mente desvirtuadas e vulgares.
O círculo falar, ler e escrever envolve, portanto, uma atitude
de vida. Lamentavelmente, o que se observa em nossa sociedade
hoje é um privilégio da oralidade, com todos os prós e contras que
isso representa. Daí decorre a natural, mas equivocada, transposi-
ção da oralidade para o campo da leitura e da escrita. Livros e
textos em língua oral não são piores do que nenhum livro ou ne-
nhum texto. Mas é esta a realidade. Coleções de obras literárias
acompanham e alavancam a venda de jornais e de revistas. Macha-
do, Alencar, Saramago, Drummond: todos por apenas três reais...
Tanta gente comprando, quanta gente não lendo... A sedução
consumista, infelizmente, não combate o mal da oralidade na escri-
ta, que só pode ser enfrentado com a leitura de textos em linguagem
não coloquial. Afinal, escrever significa deparar-se com a lingua-
gem em sua concretude, já que a escrita dá corpo às palavras, mate-
rializa a língua. Por isso, é inadmissível que um instrumento tão
essencial seja mal conhecido e mal utilizado.
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Enquanto nossa sociedade não exercitar na plenitude todos os
matizes desse círculo, continuará complicada sua autoconstrução.
E esse circuito precisa envolver família e escola de maneira unívoca.
A cidadania de que tanto se fala passa por essa estrada, que, por
enquanto, como diz a canção, ainda não vai dar em nada...
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História de um coração roubado
Cláudio de Sá Capuano
No último dia de aula do curso primário, o menino teve a mai-
or decepção de sua vida. Roubaram-lhe o livro O coração. A obra,
do italiano Amicis, que falava justamente da vida escolar de alunos
de sua idade, tinha sido um presente do pai, que deixara na folha de
rosto uma dedicatória. Entretanto, pior que ter perdido o livro que
tanto cobiçara e amara foi descobrir que ele se encontrava sob a
pasta de Plínio, o melhor aluno da classe, aquele que, como alguns
dos personagens do livro, era justamente o melhor dentre todos os
alunos, o perfeito, o modelo a ser seguido.
Este é o enredo de uma crônica chamada “O coração rouba-
do”, composta pelo escritor brasileiro Marcos Rey. Em um texto
breve e denso, o autor narra o que uma forte decepção pôde fazer
com a visão de mundo de um menino que ainda sabia crer nos ou-
tros. O roubo d’O coração foi, para ele, inúmeros outros roubos.
Além do presente paterno, que ele, por sinal, recuperou do compa-
nheiro de classe sem denunciá-lo, havia perdido também a inocên-
cia, essa sim irrecuperável, bem como a capacidade de confiar nas
pessoas, de ter alguém como modelo, de crer na humanidade enfim.
O ladrão? Tornou-se um advogado de respeito, chegou a
desembargador. Enganava a todos, menos ao narrador, que conhe-
cera seu lado mais sombrio ainda na infância. Sempre que podia,
tentava desfazer com amigos ou estranhos a imagem respeitável
que o antigo colega de classe construíra.
Quarenta anos mais tarde, em uma mudança, caído de uma estan-
te, O coração veio-lhe às mãos. Nunca mais o tinha aberto. Tamanha
fora a sua decepção, desgostara-se igualmente do livro. No entanto, os
quarenta anos que o separaram do episódio que marcaria toda a sua
vida suscitaram outros sentimentos, a saudade, a vontade de reler a
dedicatória do falecido pai. Ao abrir o livro, não a encontrou, mas na
página seguinte, numa caligrafia desconhecida, havia as palavras: “Ao
meu querido filho Plínio, com todo amor e carinho de seu pai.”
Encerrado o texto, abre-se uma reflexão. O roubo que quaren-
ta anos antes parecia tão claro, ante tão forte evidência, nada mais
fora que um erro de juízo, uma leitura mal feita de uma situação
aparentemente banal, mas que pôde transformar um menino crédu-
lo em um homem incapaz de se sensibilizar ante a virtude do outro.
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Podemos fantasiar, já que tudo afinal é ficção, uma vida pontuada
por julgamentos distorcidos, feitos por um leitor formado, desde a
infância, no equívoco. Podemos principalmente fantasiar a sensa-
ção que teria tido esse menino velho ao descobrir que jamais saberia
quem de fato lhe roubara o livro, tendo que enxergar em si o ato que
julgara ser do outro. Que sensação teria tido ao se dar conta de que
era ele mesmo o responsável pela maior decepção que tivera na
vida? Ele sim, o ladrão de seu o próprio coração.
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