A Idade das trevas não acabou
Maria do Amparo Tavares Maleval
O quotidiano brasileiro, nos dias que correm, apresenta a todo
instante atos irresponsáveis praticados por cidadãos que ocupam fun-
ções importantíssimas na sociedade, algumas até mesmo vitais: são
parlamentares faltosos a sessões do Legislativo, alguns deles corrup-
tos e perfeitos bandidos; governantes que se divertem e ostentam va-
lores materiais e intelectuais, enquanto o Brasil se afunda em grave
crise econômico-social; professores distantes da sala de aula; polici-
ais e juízes omissos e infratores; médicos ausentes dos plantões; etc.
Os meios de comunicação apresentam-se recheados de notíci-
as que parecem representar um “mundo às avessas”, mas que, de-
sastrosamente, é real.
Por outro lado, muito se fala das benesses do terceiro milênio,
do novo mundo solidário e responsável que se instauraria no nosso
triste planeta Terra, ele também vítima de atos criminosos: todos
sabemos que desmatamentos e poluições industriais vêm provocan-
do feridas irreversíveis na sua camada de ozônio protetora, bem
como na rede hidrográfica e na fauna, apontando para um fim não
muito distante. Daí que o novo Milênio, prometido e esperado com
ansiedade, pareça meramente utópico diante dos acontecimentos que
presenciamos a cada hora.
Se atentarmos para os primórdios da civilização ocidental, ve-
remos que da Idade Média para cá houve pouca evolução do gênero
humano, apesar de tantas conquistas tecnológicas e outras. Ocorre-
nos a atualidade das sátiras de Alfonso X, o Rei Sábio, de Leão e
Castela no século XIII, contra a irresponsabilidade dos seus cava-
leiros. Por exemplo, em algumas das suas cantigas de escárnio cri-
tica duramente os nobres que se recusaram a cumprir o dever na
guerra de reconquista da Andaluzia aos “mouros”.
Numa delas, amaldiçoa o fidalgo que viera atrasado e de má
vontade para a batalha, apesar de ter sido muito bem pago. Recor-
demos uma das suas estrofes, cuja grafia atualizamos: “O que le-
vou os dinheiros / e não trouxe os cavaleiros, / é por não ir entre os
primeiros / que faroneja? / Pois que vem com os postumeiros (com
os últimos), / maldito seja!...”
Não poderíamos perfeitamente transpor estes versos para o Bra-
sil atual?... Na guerra contra a miséria, a violência, a falta de educa-
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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ção e de cultura, as doenças, etc, onde estão os que são pagos com o
suado dinheiro dos trabalhadores assalariados, através de impostos
exorbitantes e mal administrados?... De que têm medo, se esta guerra
do Brasil de hoje é ainda mais “santa” do que a que se praticava nos
tempos do rei-trovador?...
As trevas com que tantos caracterizaram a Idade Média não se
dissiparam, após tantos séculos. Pestes, fomes e violentações de toda
ordem continuam a assolar o nosso belo planeta azul. Até quando?...
Psicanálise e Nosso Tempo
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A diversão na corte de D. Manuel
Maria do Amparo Tavares Maleval
No reinado de D. Manuel, as iniciativas tomadas por seu
antecessor, D. João II, visando à expansão marítima portuguesa, co-
briram-se de êxito. E este rei, chamado com justa razão de O Venturo-
so, tornou-se dono de um vasto Império, que incluía o nosso Brasil,
cujos quinhentos anos de “descoberta” pelos portugueses neste ano
2000 festejamos. Estes dados são bastante conhecidos. Como, po-
rém, se divertiam os cortesãos da época, enquanto a árdua gesta
expansionista se realizava?...
Sendo D. Manuel o mais rico soberano da Cristandade no
seu tempo, graças ao comércio exclusivo das especiarias, a sua
corte cresceu sobremaneira (viria possivelmente daí o modelo para
o excesso de funcionalismo público no nosso país). E nos serões
que então aconteciam no palácio real, além da música, da dança,
poesia e pequenas representações teatrais, os jogos de cartas tor-
navam mais agradável o convívio dos nobres e doutores (o Direito
estava altamente em voga) palacianos.
O Cancioneiro Geral, recolha de poesia feita desde o século
XV, por Garcia de Resende, e publicado em 1516, no reinado
manuelino, é um precioso documento dessas diversões. O próprio
Resende, além de outras composições, é autor de trovas encomen-
dadas pelo rei para o carteado em moda.
Este jogo consistia em 48 cartas, cada uma apresentando uma
trova, que podia ser de louvor ou “deslouvor”, distribuídas, após bem
embaralhadas, em igual número, para damas e cavalheiros. Assim,
das 24 cartas destinadas às damas, da mesma forma que aos corte-
sãos, 12 continham trovas elogiosas e 12 eram satíricas. Deveriam
ser lidas em voz alta, e quem tivesse a má sorte de ser agraciado com
alguma(s) destas últimas, seria objeto da zombaria dos presentes.
À primeira vista ingênuo, o jogo, no entanto, trouxe-nos, atra-
vés das trovas de Garcia de Resende, uma amostra do que se consi-
derava valor à época: para as mulheres, gentileza, discrição, saber
(?), manha sedutora, graciosidade, elegância, desenvoltura (inclusi-
ve ou principalmente para bailar), bondade e, sobretudo, formosu-
ra. Para os homens, além da elegância, desenvoltura, brandura, dis-
crição e boa aparência, os valores prezados eram a galanteria, jovi-
alidade, seriedade, prestígio, dotes poéticos, humorísticos e musi-
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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cais, fluência verbal, dançar e caçar bem, constância no amor,
autoconfiança... enfim, ser agradável, confiável... domesticado.
Portanto, os jogos de carta del-Rei são altamente instrutivos
para nos inteirarmos das virtudes preconizadas naquela auspiciosa
época. Tinham um caráter não apenas lúdico, mas pedagógico.
Através deles propugnavam-se os principais mandamentos da
cortesania, de modo que o monarca pudesse ter súditos que lhe
criassem um mínimo de problemas, ocupados como estavam com
as “cousas de folgar” e “gentilezas” palacianas.
Também Gil Vicente, o “criador” do teatro português, praticara o
docere cum delectare (isto é, ensinar através da diversão) em seus fa-
mosos Autos. Mas o alvo preferido das suas críticas eram as classes
sociais medianas. O que nos faz valorizar ainda mais o testemunho
desses aparentemente inocentes jogos incentivados pelo Venturoso.
Psicanálise e Nosso Tempo
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O leitor na era eletrônica
Maria Helena Sansão Fontes
“A juventude já não lê”. Essa frase ouvida hoje aos quatro cantos,
talvez esvaziada da exclamação com que se ensimesmavam os mestres
de outrora, revela a constatação realista dos professores de literatura
que insistem ainda na emoção de passar aos alunos globalizados a pai-
xão pela leitura de romances e (por que não?) de poesia.
Se nos adolescentes o desinteresse se justifica pelo apelo imbatí-
vel da imagem do vídeo e do ritmo alucinante das discotecas, nos
jovens estudantes das faculdades de letras, o descaso pela leitura se
transforma em sintoma de distorção vocacional. Num país assolado
por graves problemas econômicos e sociais - onde o desemprego é um
fator iminente para cada jovem que entra na universidade - escolher a
literatura como opção de carreira poderia significar a vitória do so-
nho sobre a crua realidade da sobrevivência, ou, melhor ainda, a bus-
ca heróica da realização existencial em detrimento do sedutor prestí-
gio social advindo de outras carreiras mais promissoras financeira-
mente. Entretanto, o que se constata é que a corrida por essa última
opção há muito mutila a verdade da vocação, debilitada por anos de
descompromisso dos governos com a cultura e a educação.
A escolha pela literatura já se despojou, assim, de seus méritos
salutares de amor às artes. A disputa pelo mercado de trabalho seguro
e promissor é verdadeira e exige preparo, conhecimento e poder com-
petitivo. Nela não há lugar para todos. E os que sobram, os que não
alcançaram o pódio ou não tiveram ânimo suficiente para enfrentar a
competição, onde ficam? Acomodam-se onde a procura é menor, onde
antes habitavam os sonhadores, os artesãos da existência, os caçadores
da liberdade: as faculdades de letras, entre outras de prestígio também
desvalido. Mas, por estarem fora de lugar, marcham na contramão dos
poucos que ainda buscam, errantes, o seu sonho de realização através
das páginas que insistem em serem escritas.
Buscar saídas que tranqüilizem os professores de literatura em
relação à gradativa extinção do leitor do futuro faz parte de um
complexo questionamento, que abrange a ineficácia dos modelos
educacionais superados diante da velocidade dos tempos. Tal velo-
cidade parece não permitir o paciente exercício da leitura, feito atra-
vés do olhar que percorre cada linha da esquerda para a direita,
enquanto a imaginação tece sua teia de labirintos e sonhos, sem
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pressa de virar a página.
Atendendo a essa louca ânsia da aventura, os meios eletrôni-
cos de comunicação são muito mais eficazes do que os livros. Sons
e imagens exercem seu fascínio em decibéis e explosão de luzes e
cores, sem que se perceba que a emoção dessa era de velocidade
proclama a despedida da sensibilidade despertada pela leitura, que
coloca o homem diante de si mesmo para entender o mundo, e não
diante de imagens virtuais nas quais ele se perde, transformando-se
em meros fragmentos de si mesmo.
Psicanálise e Nosso Tempo
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Quem é o dono da história?
Maria Helena Sansão Fontes
A peça A dona da história de João Falcão, classificada como
comédia, realmente nos faz dar boas gargalhadas, mas, sobretudo,
cumpre a função primordial da arte, que é mexer com as pessoas,
causando até mesmo desconforto. Ela toca fundo na existência e
levanta o questionamento sobre o nosso destino, nosso livre arbítrio
e, acima de tudo, sobre os limites de uma geração.
Marieta Severo interpreta a personagem de 50 anos que, soli-
tária, busca sua própria história. É preciso ter uma para contar, que
seja interessante, que não seja banal. E a sua história é igualzinha à
da maioria das mulheres de sua geração. A lembrança dos seus 20
anos, personificada por Andréa Beltrão, insiste em lhe trazer a his-
tória que ela nega, que ela tenta mudar, no criativo jogo de hipóteses
que dá formato ao texto.
Em meio às risadas que nos escapam e que trazem a catarse
necessária à vida, fica alguma coisa incomodando, esse
questionamento sobre a falta de gratuidade da existência (ou a
gratuidade completa, quem sabe?). Um convite para uma festa, um
encontro, um simples gesto podem mudar tudo, podem nos levar da
acomodação à infelicidade, ou da descoberta ao gozo supremo. Na
vida, não podemos alterar um momento que se consagrou, não há
jogo de hipóteses. Não podemos resolver mudar um gesto que não
deu certo, é inexorável. A arte pode. Pode levantar hipóteses e brin-
car com o acontecido, desfazendo-o, pode refazer a história tornan-
do-a interessante, pode recriar o destino.
Os limites e valores da geração da personagem de Marieta é
que são, a meu ver, revisitados nessa comédia. As décadas de 60 e
70 foram marcadas por valores rígidos que se impunham no âmbito
social e no familiar. A transgressão a esses limites não era feita
impunemente, sem culpas ou cobranças pessoais, ainda que incons-
cientes. É muito comum nessa geração a constatação de que se hou-
vesse possibilidade não se escolheria o mesmo caminho, caso se
vivesse novamente o tempo da juventude.
A peça traz à tona a dificuldade de transgredir, de mudar o que o
jovem de hoje muda sem pensar muito. A geração que está agora com
20 anos talvez não tenha uma “história para contar” quando tiver 50
anos, mas também não estará preocupada com isso, porque faz e des-
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faz quando tem vontade, casa e descasa quando lhe convém e, sobretu-
do, pensa que descarta a infelicidade no momento certo, como se fosse
a dona da história.
Psicanálise e Nosso Tempo
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João do Rio - entre a fama e o preconceito
Mariângela Monsores Furtado Capuano
João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-
1921), jornalista e escritor do início do século XX, adotou o pseu-
dônimo de João do Rio, entre outros (em torno de 12 ou 13), e com
ele tornou-se conhecido.
Sua “vida vertiginosa”, no dizer de Raimundo Magalhães
Júnior, seu biógrafo, foi marcada pelo preconceito. Cedo, tornou-se
um jornalista respeitado e famoso, porém essa fama custou-lhe muito.
Mulato, obeso e homossexual, João do Rio, em vida, enfrentou um
grande preconceito, fato este que praticamente o impediu de chegar
à ascensão social que desejava. Mesmo assim, foi membro da Aca-
demia Brasileira de Letras e conhecido internacionalmente, princi-
palmente em Portugal, onde era muito lido e querido.
Este escritor, com uma grande força de trabalho, retratou de
forma apaixonada a vida cotidiana carioca da Belle-Époque, atra-
vés de seu estilo eclético. Foi crítico, cronista, contista; autor de
novelas, romances, peças teatrais e tradutor, sendo a sua paixão
pelas ruas o elemento detonador de toda sua obra.
Figura controvertida, durante sua vida e principalmente nos seus
últimos anos, recebeu numerosos ataques à sua imagem de homem,
jornalista e escritor, através da imprensa. Até mesmo um atentado à
sua casa ele sofreu. Todos estes fatos possivelmente o abalaram, cul-
minando num ataque cardíaco que o levou à morte em junho de 1921,
no auge de sua popularidade.
João do Rio foi mais uma vítima de uma sociedade conservado-
ra e hipócrita, que não consegue conviver e aceitar o outro, ainda
mais em se tratando do diferente, nem tampouco confirmar seu va-
lor. Durante sua vida contraiu grandes afetos e inúmeros desafetos.
Ao mesmo tempo que por uns era muito amado, por outros era
mortalmente odiado. Talvez a razão pela rápida obscuridade que se
formou em torno de seu nome, logo após sua morte, tenha sido fruto
de inveja e desagrado por parte de jornalistas não tão bem sucedi-
dos; de inimigos políticos, contrários às suas idéias de reformas
sociais e, principalmente, pelo preconceito que girava em torno de
sua cor e de sua condição de homossexual.
João do Rio, recentemente despertado de seu silêncio, revela-
nos, através de sua obra, a paixão que sentia por sua Frívola City,
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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como ele mesmo intitulava a cidade do Rio de Janeiro, a mesma que
o escondeu e o silenciou por muitos anos.
Psicanálise e Nosso Tempo
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A crise da reforma de uma nova época
Marina Machado Rodrigues
A chegada do ano 2000 se avizinha. Esta virada, entretanto,
não será trivial, possui um sabor particular. Este é o reveillon que,
de acordo com o imaginário popular, inaugura o novo milênio.
Embora se saiba que as mudanças de século e milênio só se efeti-
vam em 2001, o ano de 2000 não deixa de ser emblemático. Sobre
ele já setenciava a mística cristã: “a 2000 não chegarás!” Não creio,
pessoalmente, que a sentença se cumprirá, ao menos em sentido
literal, assim como as profecias de Nostradamus, que apontavam o
fim da humanidade inadiável em 1999, não se cumpriram. Mas não
são poucos os que antevêem o Apocalipse iminente.
Desde há muito, quando se tratava de estabecer uma data limi-
te para algo longínquo, o imaginário popular fixava o ano de 2000.
Há 40 ou 50 anos atrás, era comum imaginar-se que no próximo
milênio o mundo viveria sob a égide da máquina. Aliás, um ingênuo
e delicioso cartoom da década de 60 antecipava a sociedade do
futuro e as facilidades da vida moderna, onde máquinas e robôs
substituíam o homem nas tarefas cotidianas. Na realidade, hoje,
não estamos muito distantes desta perspectiva futurista.
A engenharia genética inventou os clones e será mesmo capaz,
em muito pouco tempo, de reproduzir órgãos humanos, salvando inú-
meras vidas que dependem de um incerto doador para o transplante
sempre adiado. Neste século que agoniza, foram incalculáveis os avan-
ços conseguidos pela Ciência.
Creio que o mundo não acabará. Ao menos, do ponto de vista
físico. Mas a expectativa que se constrói em torno do próximo mi-
lênio, porém, não deixa de ser o reflexo da decepção presente. Se o
homem galgou imensas distâncias, no que concerne ao campo ma-
terial; no que respeita ao espiritual, cabem outras palavras. É óbvia
a crise de valores. A humanidade necessita de reformas urgentes.
Ela, quem sabe, talvez merecesse ser reinventada.
O Brasil não é uma exceção no panorama mundial, ansiamos
por profundas mudanças. Ninguém tolera mais tanta violência, tan-
ta injustiça e iniquidade. Estamos mergulhados num mar de lama,
onde a corrupção e o crime organizado corroem a sociedade como
um câncer. A CPI do Narcotráfico, todos os dias, denuncia o
envolvimento de membros do Legislativo, do Executivo e de impor-
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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tantes empresários, em atividades ilegais. Oxalá, ela própria não se
deixe contaminar, seguindo o destino das anteriores, que acabaram
na pizzaria da esquina mais próxima.
Tim, tim! Neste reveillon, o meu brinde será à recuperação moral
do país. Afinal, se os valores morais estão em estado terminal e a Ciên-
cia ainda não foi capaz de clonar caracteres, só resta esperar que a
própria sociedade se reinvente, cobrando dos cidadãos e homens públi-
cos a seriedade que este país merece. Que 2000 seja de fato o início de
um novo tempo, em que a demagogia e a moral cínica praticadas
indiscriminadamente recebam sentença de morte, até porque não há
limite para o sonho. E como diz a sabedoria popular “a esperança é a
última que morre.”
Psicanálise e Nosso Tempo
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Para que servem as fantasias?
Marina Machado Rodrigues
Fantasia. Estranha palavra porque se reveste de sonho, voa e
ganha o espaço. Contudo, se cria e se alimenta nos mais profundos
recantos da alma. É devaneio e, como tal, pressupõe a dimensão do
inatingível como possibilidade, permanecendo, ainda assim. Talvez
porque seja impossível ao homem abrir mão da felicidade. A fanta-
sia encobre a realidade, enquanto denegação de um ideal, como um
traje. Ela será então somente uma tentativa de burla? Quem sabe?
Fantasia, em outra acepção, é elemento fundamental ao Carna-
val. Mas aqui o sentido primeiro também não se exclui. O termo
adquire uma dinâmica própria, porque no reinado de Momo tudo é
permitido. Até certo ponto, a fantasia, enquanto disfarce, concede ao
sonho, imponderável, uma face concreta. Será mesmo? O Carnaval é
o momento de se colocar para fora o que se recalcou durante o ano
todo. Assim era já na Idade Média, quando se podia ver uma legião
de reis e rainhas que no restante do ano mal tinha o que comer. Por
esta lógica, se explica a frase antológica do Joãosinho Trinta: “Quem
gosta de pobreza é intelectual, o povo precisa é de luxo!”
Antigamente, o luxo não era uma imposição. O povo saía às
ruas com fantasias improvisadas e a descontração própria do mo-
mento, e, mesmo para os trajes mais elaborados, a sofisticação dos
atuais seria inimaginável. Muitas delas eram, no mínimo, curiosas:
fantasia de bebê, de diabo, de Pierrô, Arlequim ou Colombina, de
preso, de cigana... A de diabo é perfeitamente explicável numa cul-
tura extremamente católica como a nossa. A de bebê, idem, já que
todas as responsabilidades relativas à família recaíam exclusiva-
mente sobre os ombros dos homens. Mas o que dizer dos persona-
gens transpostos diretamente da Comédia del’Arte italiana? É ver-
dade que triângulos amorosos existem desde que mundo é mundo. E
a de preso, traduziria a hipertrofiação de um ego? Ou a reafirmação
de um valor supremo diante de uma situação de extrema privação, o
que amplificaria, pelo contraste, aquele valor? A de cigana repre-
senta, talvez, também a liberdade, um dos valores mais caros a um
povo que sequer cria raízes numa terra.
Antes, a festa pagã servia para justificar desvios de toda or-
dem, significava a possibilidade séria de virar do avesso as regras
rígidas impostas à conduta moral pela sociedade conservadora, em
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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alguns dias do ano. A máscara encobria os possíveis transgressores.
Mas e hoje? O que esperar do Carnaval? Já não há o que enco-
brir, as inversões da ordem, da justiça, do senso comum, se fazem
durante os 365 dias do ano.
Bem, as fantasias mudaram, teria mudado também o espírito do
Carnaval? É difícil afirmar, mas o que permanence, indiscutivelmente,
e de forma perene, é a capacidade de sonhar, inerente ao ser humano.
Psicanálise e Nosso Tempo
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