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teratura universal sofreram apreciações tão diferentes. Na Espanha, a Araucana foi completamente esquecida. A fama universal do poema começou com os elogios que
lhe teceu Voltaire, no Essai sur Ia poésie épique (1733); depois, Chateaubriand comparará a Araucana à Ilíada, sem conseguir leitores para o poema. Mais recentemente,
fizeram-se tentativas de salvação na Espanha: salientou-se a precisão da língua, a tradição de objetivismo do Poema de] Cid no reconhecimento da bravura do inimigo;
até se falou em "Ariosto realista" e em estoicismo militar à maneira do espanhol Lucano. Mas até hoje os críticos não chegaram a um acôrdo com respeito à questão
se as paisagens chilenas na Araucana correspondem à realidade americana ou são imitadas de descrições em Virgílio. Parece que ninguém leu realmente a Araucana, que
só existe como documento da mentalidade dos que conquistaram o Chile:
A literatura portuguêsa (49) conseguiu o que não conseguiu a espanhola: a transfiguração da experiência nacional - geográfica, militar e econômica - em epopéia nacional.,
Mas concluir, daí, e essa conclusão se tirou várias vêzes, que os portuguêses têm o gênio épico, e que os espanhóis não o têm, seria uma generalização ilegítima.
Falando com rigor, não foram apenas os espanhóis que falharam naquela conquista literária; as epopéias virgilianas de tôdas as nações, nos séculos XVI e XVII - tentativas
de realização de uma ambição já dos humanistas - são tôdas elas artifícios enormes, e, as mais das vêzes, monstros de ilegibilidade. Nenhuma das nações européias
possui o "gênio épico", e essa negação também se refere aos portuguêses; dão testemunho disso os inúmeros imitadores portuguêses de Camões, cada um pior do que o
outro. Quem possui o gênio épico, não é a nação portuguêsa e sim o indivíduo Camões; e casos individuais dessa espé
49) Fid. de Figueiredo: História da Literatura Clássica. Vol. I. 2.& ed. Lisboa, 1924.
cie desafiam qualquer explicação que os quisesse transformar em fatos históricos, bem determinados. O que se pode fazer só é: expor as circunstâncias especialmente
favoráveis ao gênio individual.
No caso da epopéia portuguêsa, a circunstância especial é a derrota do feudalismo português já durante a Idade Média, e a existência, em Portugal, de uma civilização
econômica de tipo burguês, mas sob as aparências políticas, militares e eclesiásticas do aristocratismo. No seio da burguesia portuguêsa nasceu um espírito realista
e até crítico, que aparece nos grandes historiadores da época da Descoberta e Conquista, e que impediu a transformação dessa experiência em romance de cavalaria
fantástico. Ao mesmo tempo, entrou em Portugal o ideal da Renascença aristocrática: o ideal do "cortegiano", guerreiro culto e humanista valente. Êsse ideal correspondia
à forma aristocrática da organização portuguêsa, e era portanto capaz de fornecer a forma literária para aquela experiência: a forma virgiliana. Como último resultado
da cooperação de tôdas essas condições foi criada pelo gênio épico de Camões a epopéia de Os Lusíadas.
O espírito realista manifesta-se na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto (5O), descrevendo com a ingenuidade de um homem do povo as suas aventuras inéditas na Ásia;
obra que seria preciso comparar com a de Marco Polo, e teve o mesmo destino: ser considerada mentira, porque os, meros fatos pareciam contos de fadas e romance de
cavalaria. A parte mais interessante da comparação seria at análise estilística, entre duas formas de narração sóbria -estilo oral em Marco Polo e estilo escrito
em Fernão Men
5O) Fernão Mendes Pinto, c. 151O-1583.
Peregrinação (1614).
Edições: por Brito Rebêlo, 4 vols., Lisboa, 19O8/191O, e por J. de Freitas, Pôrto, 193O/1931.
F. Cristóvão Aires: Fernão Mendes Pinto. Lisboa, 19O4.
G. Le Gentil: Fernão Mendes Pinto. Un précurseur de Vexotisme au XVIe siècle. Paris, 1947.
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des Pinto. Subsídio para compreender bem o espírito realista do povo que empreendeu aquelas viagens é a descrição de 12 famosos naufrágios na História trágico-marítima
(51) O ponto de vista é o do marujo, e a impressão, portanto, mais natural do que em Hakluyt.
O ponto de vista do humanista culto é a posicão de
João de Barros (52), autor de um romance de cavalaria e
portanto apto para descrever a descoberta e conquista da índia (até 1529) como emprêsa épico-fantástica, com o espírito nacionalista de um Lrvio português. Dizem
que a sua primeira Década inspirou a Camões a idéia de Os Lusíadas, mas o nível da concepção é diferente; e não haveria Camões - ou antes espírito camoniano - sem
a existência de outro humanismo, bem diverso do humanismo retórico de João de Barros. Seria o humanismo crítico de Damião de Góis, do qual descende; por sua vez,
o realismo crítico de Diogo do Couto (53), que continuou as Décadas até os acontecimentos de 16O8: a sua curiosidade etnográfica não o deixa ver só os feitos dos
portuguêses, mas também as atitudes e a situação dos indígenas, e êsse comêço de uma mentalidade crítica exprime-se com fôrça maior na descrição sóbria, quase relatório
e tanto mais impressionante, da administração maléfica dos portuguêses na índia. A base dessa crítica fôra a mentalidade livre de certos "geó
51) História trágico-marítima em que se descrevem cronolôgicamente os naufrágios que tiveram as naus de Portugal (coleção de Bernardo Gomes de Brito, 1688; public.
em 2 vols., 1735/1736).
Edição por D. Peres, 6 vols., Lisboa, 1936/1937.
52) João de Barros, e. 1496-157O.
Crônica do imperador Clarimundo (152O; ed. 155O) ; Décadas da Asia (1, 1552; 11, 1553; 111, 1563; IV, 1615).
Edição das Décadas em 8 voas., com biografia por Man. Severim de Faria, Lisboa, 1777/1778.
Hernãoni Cidade: "João de Barros". (In: Boletim de Filologia, XI, 195O.)
53) Diogo do Couto, 1542-1616.
Décadas da Asia (IV, 16O2; V e VI, 1612; VII, 1616; VIII, 1673). Edição em 14 vols., Lisboa, 1778/1788. A. F. G. Bell: Diogo do Couto. Oxford, 1924.
grafos do espírito", como Damião de Góis (54), humanista cosmopolita, amigo de Bembo, Sadoleto, Erasmo e do reformador sueco Olaus Petri. Albrecht Duerer pintou
o retrato dêsse humanista cristão com veleidades de reforma eclesiástica: entre os portuguêses que viajaram para um novo mundo, êste permaneceu na Europa, descobrindo
outro mundo novo, o do espírito. Camões não lhe acompanhará de todo a liberdade do intelecto, mas sim a independência da alma.
Um dos elementos da grandeza de Luís de Camões (65) é a perfeita unidade de subjetivismo e objetivismo na sua
54) Damião de Góis, 15O2-1574.
Crônica do Felicíssimo Rei D. Manuel (1566/1567).
Edição por J. M. Teixeira de Carvalho e Dav. Lopes, 4 vols., Coimbra, 1936.
Maxim. de Lemos: "Damião de Góis". (In: Revista de História, IX/X, Lisboa, 192O/1922.)
M. Bataillon: O Cosmopolitismo de Damião de Góis (trad. port.). Lisboa, 1938.
55) Luís de Camões, c. 1524-158O. (Cf. nota 64.)
Lusíadas (1572) ; Rythmas (1595) ;
comédias: El-rei Seleuco (1549?) ; Anfitriões e Filodemo (publicadas 1587).
Edição pelo Visconde de Juromenha, 6 vols., Lisboa, 186O/1869; Edição Nacional (Afonso Lopes Vieira), Lisboa, 1928; Edição de Os Lusíadas por H. Cidade, Barcelos,
194O; Edição das poesias líricas por J. M. Rodrigues e Af. Lopes Vieira, Coimbra, 1932. P. Oliveira Martins: Camões. Os Lusíadas e a Renascença em .Portugal. 2.a
ul. Pôrto, 1891.
W Storck: Vida e Obra de Luís de Camões (original alemão: Paderborn, 189O; tradução ampliada por Carol. Michaëlis de Vasconcelos). Lisboa, 1898.
A. Padula: Camões petrarchista. Napoli, 19O4. :"reóf. Fraga: Camões. Época e Vida. Pôrto, 19O7.
J. M. Rodrigues: Camões. Época e Vida. Coimbra, 19O7. Teóf. Braga: Camões e a Sua Obra Lírica e Épica. Pôrto, 1911.
J. M. Rodrigues: Camões, a Obra Lírica e Épica. Coimbra, 1911. Ant. Sergio: Ensaios. IV.a série. Lisboa, 1934. H. Cidade: Luís de Camões. I: O Lírico. Lisboa, 1939.
Vol. II: O Épico. Lisboa, 195O.
Crist. Martins: Cartões. Temas e Motivos da Obra Lírica. Rio de Janeiro, 1944.
M. H. Hou,vens Post: Culturele stromingen en intelectuele invlaeden der Renaissance in het Werk van Luís de Camões. Groningen, 1948.
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obra. Os portuguêses consideram-no, com razão, poeta clássico, no sentido da Renascença virgiliana e humanista. Mas os românticos alemães e inglêses, que lhe renovaram
a glória, chamavam-lhe, também com razão, poeta romântico, no sentido de cristão, nacional e "moderno". Hoje, não sentimos tão nitidamente essa antítese dos críticos
de 18OO entre "clássico" e "romântico"; mas a mesma antítese volta em outro nível, entre o espírito objetivo, épico, da epopéia, e o espírito subjetivo, pessoal,
da lírica de Camões. Os dois elementos confundem-se de maneira completa: a vida desgraçada de Camões -
vida
Mais desgraçada que jamais se viu" -
faz parte, da maneira mais natural, da gloriosa epopéia dos portuguêses que
".... entre gente remota edificaram Novo reino que tanto sublimaram" -
e a catástrofe nacional de Portugal coincide, como se isso também fôsse natural, com a sua transfiguração em Olimpo épico. O mesmo conjunto de objetividade e subjetividade
revela-se no estilo de Camões. Poucos poetas sugerem tanto como êle a impressão de poeta nato: a poesia parece a sua língua materna. Já em Os Lusíadas, nos quais
as normas da imitação virgiliana e o tom da narração histórica constituem obstáculos da expressão livre, muitas passagens têm o acento de confissão autobiográfica;
um estilo coloquial, que é ao mesmo tempo fácil e preciso como o de quem tem de fazer uma comunicação importante para ser entendido. O mesmo estilo coloquial domina
inteiramente a poesia lírica de Camões.
"Junto dum sêco, fero, estéril monte, Inútil e despido, calvo, informe" -
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assim começa a "Canção X", com o realismo de um relatório marítimo, desenvolvendo-se sem transições artificiais em confissão da "alma cativa" naquele lugar; e o
"envio", com a sua antítese petrarquesca ("não mouro... porque mouro:"), é apenas a conclusão lógica de um estado contraditório da alma. Dêste modo, o leitor quase
não percebe que êsse estilo coloquial não é coloquial nem é o estilo de Camões: é o estilo internacional da Renascença, a língua dos petrarquistas e bucólicos, língua
que Camões aprendeu com tanta perfeição como quem vive durante decênios em país estrangeiro e perde enfim o sotaque, falando a língua alheia como se houvesse nascido
com ela. Camões é poeta culto, e até erudito como poucos da Renascença. Inúmeras reminiscências de poesia antiga, italiana e espanhola revelam os seus conhecimentos
literários; história portuguêsa e geográfica da Ásia são objetos da sua meditação perpétua; a mitologia greco-romana e a astronomia e cosmografia da Renascença aliam-se,
em Os Lusíadas, de modo tão perfeito, que constituem um sistema cósmico, fechado como o mundo de Dante, composto o Inferno das tempestades do Oceano, o Purgatório
das provações sofridas pelo gigante Adamastor, e o Paraíso voluptuoso da Ilha dos Amôres; e como no segundo plano do "Triregno" de Dante, aparecem sempre o Arno
e a colina de Fiesole e a cidade de Florença, assim se adivinham sempre atrás das maravilhas da índia e dos terrores do mar as "doces e claras águas do Mondego",
a paisagem de Coimbra. Camões conseguiu o que nenhum outro poeta épico de estilo virgiliano logrou alcançar, nem sequer o próprio Virgílio: a unidade perfeita do
assunto real e do estilo sublime. Só Os Lusíadas são "epopéia nacional` e "epopéia regular" ao mesmo tempo.
O número das "epopéias regulares" que sobrevivem, é reduzidíssimo. A Divina Comédia não é epopéia em sentido estrito, o Orlando Furioso não é regular, e o Paradise
Lost coloca-se intencionalmente fora dos moldes virgilia-
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nos. Fica a Gerusalemme Liberata, e sabe-se que Tasso meditara muito antes de encontrar um assunto que pudesse interessar à cristandade inteira - intuito irrealizável
depois da Reforma, e que o levou ao artifício de apresentar os cruzados medievais em trajes do Barroco. Camões venceu a dificuldade pela limitação: não pretendeu
interessar senão à pequena nação portaguêsa, mas naquele momento em que a história de Portugal se confundiu com a maior transição do mundo moderno. O símbolo dessa
coincidência é que em Os Lusíadas a história portuguêsa inteira aparece como preparação do grande momento histórico das descobertas, assim como o pequeno rio Mondego
desemboca no grande Oceano.
É justamente o interêsse patriótico nacionalmente restrito que confere a Os Lusíadas o interêsse universal. O Império colonial português, criado por um ato da Providência
Divina como o próprio Império Romano de Virgílio, é um milagre histórico: é o Império da Fé - eis a inspiração que Camões pôde tirar da primeira Década de João de
Barros. Mas Virgílio devia construir artificialmente a ligação entre Tróia e Roma e inventar uma pré-história romana, enquanto Camões se pôde apoiar em fatos históricos
e acontecimentos vistos. Daí o realismo histórico que Voltaire tanto elogiou em Camões: a falta de lendas, milagres, aventuras inverossímeis e aventuras amorosas;
o crítico esqueceu, quanto ao último ponto, a Ilha dos Amôres, que é o cume do realismo camoniano, porque é um sonho: o sonho de amor dos marujos portuguêses, famintos
durante as viagens intermináveis. O ponto vulnerável dêsse realismo épico - o ponto em que Camões revela que não é um Homero - é a máquina mitológica do poema: as
intervenções dos deuses pagãos para impedir ou favorecer a emprêsa de Vasco da Gama. Além de constituir parte integral da arte poética virgiliana, a máquina mitológica
foi para Camões mais importante do que para outros poetas épicos modernos; só assim parecia possível "sublimar"
o assunto histórico-nacional, conferir-lhe a dignidade de acontecimentos transcendentais e universais: a Providência cristã serve-se, para a criação do Império católico-português,
dos deuses pagãos, assim como se serviu do pagão Virgílio para anunciar o nascimento do Cristo (Ecl. IV). Se Camões fracassou nisso, fracassou como Virgílio; na
Eneida também, os deuses já não fazem parte, como em Homero, da realidade, e entre os deuses de Camões e os seus guerreiros e comerciantes portuguêses da índia há
discrepância evidente. Mesmo assim, a máquina mitológica de Camões é superior à de Virgílio: a mitologia virgiliana é fria, como a da religião do Estado romano,
na qual já ninguém acreditava, ao passo que os deuses do cristão Camões são imponentes figuras retóricas, metáforas pomposas, como pintadas por Rubens; Camões está
às portas do Barroco.
A retórica pomposa e monótona, que é a maior inimiga das epopéias classicistas e as condenou quase tôdas à ilegibilidade, não falta de todo em Os Lusíadas. Em Virgílio,
é atenuada peia melancolia elegíaca; em Camões, pelo inevitável prosaísmo de muitos relatos de natureza políticomilitar e, mais, pelo pressentimento angustioso da
catástrofe nacional; e neste último ponto Os Lusíadas lembram a Ilíada. A melancolia virgiliana, em Camões, está em outra parte: na sua poesia lírica, que muitos,
e com boas razões,
preferirão à sua epopéia. Camões é um dos maiores poetas elegíacos de todos os tempos. A sua lírica não é própriamente original; a influência de Petrarca era poderosa
demais. Mas através das frases e imagens convencionais sente-se sempre a expressão pessoal, menos nos sonetos do que nas canções. Como acontece em todos os elegíacos,
o conteúdo da lírica camoniana é limitado; pequeno, como o coração humano : partindo das "doces e claras águas do Mondego", através dos "Erros meus, má fortuna,
amor
ardente", o poeta chegou ao resumo doloroso da sua vida:
.á
t
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"Puras verdades já por mim passadas... Oxalá foram fábulas sonhadas!"
Camões é profundamente pessimista, não pode haver dúvidas sôbre isso. Pessimismo de um platônico cristão, para o qual o mundo é uma "prisão terrestre e escura" da
alma. Nenhuma consolação estóica, tão familiar aos espanhóis, pode atenuar o pessimismo do católico português contra o qual se conjuraram "Fortuna co Amor". E contudo
encontra outras armas para vencer êsses inimigos. Quanto ao amor, levanta-se aqui a questão espinhosa da sinceridade do erotismo petrarquesco de Camões, ou antes
da realidade carnal dos seus amôres. Em face da sua teoria idealista, neoplatônica, do amor, as dúvidas parecem justificadas. Mas essa teoria não é, na poesia camoniana,
o ponto de partida, e sim o resultado. Os amôres de Camões eram tão reais como a sua "má fortuna". A "Fortuna", êle venceu-a por confundir o seu destino pessoal
com o destino maior da sua raça, descendo com ela como o Fado-Providência mandou; variando palavras de Camões, poder-se-ia dizer: "da desgraça particular para a
desgraça geral". Mas o caminho da desgraça terrestre constituiu ao mesmo tempo o "caminho de subida" neoplatônico em que se vence o "Amor"; com as suas próprias
palavras, "da particular beleza para a Beleza geral". É êsse caminho de ascensão que aparece na sua poesia lírica como "intelectualização da emoção", chegando-se
à disciplina de uma poesia pura. Camões descreveu êsse caminho numa grande meditação poética que talvez seja a maior das suas obras: a paráfrase do salmo CXXXVI:
"Sôbolos rios que vão por Babilônia, me achei, onde sentado chorei as lembranças de Sião".
A alegoria bíblica encobre dois sentidos: o literal, expressão do exilado de Portugal, e o místico, expressão da alma
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exilada na terra; e assim, como um dos rios sombrios da Babilônia, corre a meditação poética, atravessando a disciplina da vida pecadora até, "vencida a natureza",
chegar ao "mundo inteligível" e, encontrar a suprema consolação do platonismo cristão
"Ditoso quem se partir para ti, terra excelente, tão justo e tão penitente que, despois de a ti subir, lá descanse eternamente!"
Camões ocupa na literatura portuguêsa o lugar de Dance na literatura italiana: a sua grandeza sufocou os posteriores. Mas isso não deixa de ter razões reais. A nação
portuguêsa foi, entre as européias, a primeira que chegou a uma estrutura econômica bem definida, e isso numa época em que a epopéia classicista ainda era possível.
Dêste modo, os portuguêses criaram - o que nenhum outro povo conseguiu - uma moderna epopéia nacional, que foi, porém, sintoma do comêço da petrificação daquela
estrutura nacional e da petrificação da sua literatura.
O realismo nacional da epopéia camoniana é um caso especial do romantismo aristocrático da Renascença: ambos representam atitudes ativas, uma real, outra ilusória.
A terceira possibilidade do homem aristocrático da Renascença é a evasão para um mundo em que não há descobertas geográficas e lutas comerciais, mas onde, em compensação,
também não pode haver guerra alguma: é o mundo bucólico, pastoril, de horizontes fechados, espécie de reagrarização ilusória da Europa; as elegâncias do "cortegiano",
transportadas para a paisagem da Arcádia.
A primeira forma da literatura bucólica é a poesia pas
toril, a écloga (56). O modêlo não era o mimos de Teá
56)
E. Garrara: Poesia Pastorale, Milano, 19O8.
A. Farinelli: Italia e Spagna. Vol. I. Torino, 1929.
H. Genouy: L:"élement pastoral dans Ia poésie narrativa et le drame en Angleterre de 1579 à 164O. Paris, 1929.
A. Hulubei: L:"églogue en Franca au XVIe siècle. Paris, 1938.
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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 557
57) Baptista Mantovano (Battista Spagnuoli), 1448-1516. `Cinquecento-, nota 3OJ
Eclogae (1948; edição de Paris, 1513).
crito, e sim a écloga virgiliana, com os pastôres dialogando em linguagem elegante sôbre ocupações rústicas e amorosas, mais ou menos fúteis, inserindo-se alusões
a personagens e acontecimentos importantes da história contemporânea. Petrarca deu no Carmen bucolicum o exemplo de églogas modernas em língua latina; e as églogas
latinas de Baptista Mantovano (:"7), de inspiração cristã e versificação virgiliana, conseguiram sucesso enorme, serviram de livro didático no ensino do latim de
todos os países - Shakespeare aprendeu o latim nesse livro - e foram traduzidas para várias línguas. Menos medievais, mais humanistas, são as poesias bucólicas latinas
de Andrea Navagero (58), o mesmo que iniciou Boscán no petrarquismo; a sua écloga "Ioles" é uma das mais belas e menos convencionais.
A écloga italiana em língua italiana é principalmente narrativa; o Ninfale Fiesolano, de Boccaccio, dera um exemplo teocritiano. Mas no século XVI desaparece o elemento
rústico, realista, pelo qual se distinguiu a Nencia de Lourenço de Médicis. A écloga idealiza-se, pela introdução de ninfas e deuses de rios e montes, sátiros e
faunos, acentuando-se nessa mitologia artificial a índole evasionista da poesia bucólica; as alusões políticas são substituídas por bajulações a príncipes e a princesas,
e várias
églogas foram escritas para as solenidades de casamentos e nascimentos em famílias soberanas, outras para exprimir pedidos do poeta a fim de receber benefícios.
Assim sendo, pode-se esperar péssima qualidade da poesia idílica. Mas não é tanto assim; o forte senso de beleza formal, próprio dos italianos e especialmente dos
italianos da Renascença, criou uma série de produções belas e injustamente esquecidas. A Sarca, do desprezado Bembo (5O), descrevendo Ocasamento do deus do rio
dêsse nome com uma ninfa,
o e indigna da Lepidina, de Pontano, porém mais pomposa, como um grande gobelino barroco; um juiz tão severo como Burckhardt gostou dêsse poema. já se mencionou
a bela Ninfa Tiberi_na, de Molza, enquanto a Clorida, de Tansillo, já pertence, estilisticamente, ao Barroco. Nesta última écloga, a descrição do gôlfo de Nápoles
é imitada das já mencionadas Egloghe pescatorie, de Rota. As melhores éclogas italianas do século XVI são as de Bernardino Baldi (1O): imitou, em vez de Virgílio,
os bucolistas gregos, e aproxima-se mais da verdade rústica. Enfim, o Batino (1618), de Francesco Bracciolini (sl), imitação do -Moretum pseudovirgiliano, já é novamente
um poema realista; descreve costumes de autênticos camponeses italianos. Bracciolini é poeta barroco.
O mestre da écloga espanhola é Garcilaso de Ia Vega (O~). A sua Écloga I, "Ei dulce lamentar de dos pastores, Galicio juntamente y Nemoroso", e os versos -
"Corrientes aguas, puras, cristalinas; árboles que os estáis mirando en ellas, verde prado de fresca sombra lleno..." -
(Cf. "O
Traduções para o francês por Jacques de Morderes, 1523, e
Michel d:"Amboise, 153O.
Tradução inglêsa por George Turbervile, 1567.
Edição moderna por W. Mustard, 2.a ed. Ba:".timore, 1928. 59)
V. Zabughin: "Lrx: poeta beato: B. Sparnoli Mantovano". (In:
Atti dell:"Acadeznk deTArcadia. 1917, I.) 6O)
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