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Era uma distinção sucinta que eu ia lembrar sempre nas minhas viagens.
A cerimônia Bearing Witness na Sauna terminou com uma leitura do Kaddish do Pranteador, oração judaica para os mortos, primeiro em hebraico, depois em inglês: "Que haja paz abundante do céu, com o que há de bom na vida para nós e para toda a Israel. E digamos amém. Que Aquele que traz a paz para o universo traga paz para todos nós e para toda a Israel. E digamos amém."
Amém também para que aquela sensação de alívio, de libertação
- de um momento de coexistência pacífica com a atrocidade completa de Auschwitz e de todas as nossas perdas —, voltasse para mim o resto daquele dia, uma fragrância que cobria o fedor da morte.
Aquela noite, quando contei para os outros, em clima de quase confissão, sobre essa experiência de libertação de tantos pensamentos e sentimentos infernais, fiquei surpreso mas aliviado de ver que alguns deles meneavam a cabeça, compreendendo.
- Eu me sinto mais viva aqui do que em qualquer outro lugar
- confidenciou Aleksandra Kwiatkowska, estudante de fotografia, de 24 anos.
O seu comentário ficou ainda mais incoerente porque ela era uma loura linda, vibrante, alto-astral, inteligente e compassiva, que tinha um sorriso intenso. No seu tempo livre ela fazia trabalho voluntário numa clínica para crianças em sua cidade natal de Wroclávia, Polônia. Ela me disse que aquele era o seu segundo retiro em Auschwitz.
Eu quis saber por que se submeter a uma experiência tão devastadora emocionalmente como aquela, duas vezes.
- Cercada pela morte a cada passo? — perguntei, incrédulo. — Como pode se sentir mais viva? Como pode? - insisti. - Como?
- Eu não sei - respondeu ela, espantada com meu tom de interrogatório, como eu também estava. - Mas é isso... que acontece... é verdade.
E ela não disse mais nada.
Essa resposta não foi nenhum alento para mim. Fiquei mais perplexo e frustrado. As pessoas costumam perguntar como foi que aquilo aconteceu. Como foi que deixamos seis milhões de pessoas serem assassinadas? Quem poderia ser tão cruel para
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cometer coisa tão horripilante? O budista responde: "Eu não sei." Parece que se desliga.
Imaginei se ela raciocinava com o que os praticantes do zen chamavam de "mente do não sei". A frase sugere que existem coisas que nunca poderemos entender, e que só terão sentido quando pararmos de tentar entendê-las. Isto é, quando deixarmos de lado presunções e suposições, quando desistirmos de tentar compreender e imaginar tudo intelectualmente - resumindo, quando pusermos as nossas mentes em descanso e ficarmos simplesmente quietos, como dizem os budistas -, então veremos as coisas como elas são. Por quê? Porque paramos de julgar, de discriminar, de fazer distinções, de "nós" e "eles", e talvez mais concretamente ainda, de nós contra eles.
Não sei nada da mente do não sei. De onde venho, chamamos a isso de negação. O que sei é que mais cedo aquele dia, na meditação, a intensidade das emoções que percorriam meu sangue acionaram os hormônios que nos preparam para a luta ou a fuga e me encheram de raiva, lamento, culpa e desejo de vingança. Naquele momento eu tinha três opções. Uma era continuar com raiva e querendo vingança, o que só gerava mais sofrimento. A segunda era fugir correndo e me esconder daqueles sentimentos, o que era impossível. A terceira era aceitá-los como parte incompreensível do espectro da vida, inclusive a morte e o sofrimento, assim como a vitalidade e a felicidade. Nessa terceira via eu também podia me sentir "mais vivo".
Hermann Hesse tinha escrito algumas linhas sobre o sofrimento que pareciam um cartão da Hallmark a primeira vez que li. Agora as leio com respeito renovado: "Você sabe muito bem, lá no fundo, que existe apenas uma mágica, um poder, uma salvação... e que se chama amor. Bem, então ame o seu sofrimento. Não resista a ele, não fuja dele. E a sua aversão que provoca dor, nada mais."
Era uma lição difícil — para um judeu, para um polonês, para uma pessoa que pensa que precisa de respostas -, e honestamente ainda não aprendi. Mas fiz as pazes com os meus sentimentos sobre aquela página negra da história e estava disposto a viver sem saber, pelo menos por um tempo, pois sabia que teria momentos nas próximas semanas para continuar praticando.
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4 NA TERRA ONDE BUDA NASCEU
A índia e seu novo despertar para aquele que despertou
Você não pode andar pelo caminho sem se transformar no próprio caminho.
- O BUDA
Ele deu expressão a verdades de valor infinito e engrandeceu a ética não só da índia, mas de toda a humanidade. Budafoi um dos maiores éticos e um dos maiores gênios que jã existiram no mundo.
- Albert Schweitzer
O primeiro Conclave Internacional de Budismo e Turismo Espiritual, organizado pelo Ministério de Turismo e Cultura do governo da índia, estava programado para começar em fevereiro de 2004, exatamente quando cheguei a Nova Déli. O presidente da índia, o dr. A. RJ. Abdul Kalam ia fazer o discurso de abertura. Sua Santidade o 14° Dalai Lama, cujo governo do Tibete em exílio fica no estado indiano de Himachal Pradesh, índia, daria a tônica. Teriam seminários sobre tópicos como "Relevância do budismo e da filosofia budista no mundo moderno" e "Peregrinação budista para a índia: problemas e perspectivas".
Parecia ser exatamente o tipo de evento que eu devia cobrir, mas hesitei antes de me inscrever, em parte porque não se encaixava perfeitamente na minha definição de budismo engajado, e em parte também porque eu imaginava que tudo seria apresenta-
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do de modo excessivamente indiano, quero dizer, muita pompa burocrática e pouca circunstância substantiva. Mas, além disso, tinha opiniões conflitantes sobre toda a campanha promocional.
Por um lado podia-se dizer que o budismo estava sendo mais uma vez reconhecido no país onde nasceu, e onde tinha praticamente deixado de existir por volta do século XIII. Então mesmo que misturada com gráficos em forma de torta e relatórios demográficos com o perfil dos "turistas potenciais", um pouco da ideologia budista certamente seria apresentada para pessoas que nunca tinham ouvido falar dela. Por outro lado, toda aquela comercialização do budismo parecia ser um contraponto a exatamente aquilo que estavam promovendo. Depois de um tempo não pude deixar de pensar que os interesses empresariais iam querer a sua parte, como muitos estádios de esportes nos Estados Unidos têm prefixos com nomes de marcas. Eu podia imaginar que era contratado para escrever o texto promocional assim: "Veja o inspirador Templo Kmart Mahabodhi! Sente-se sob a mundialmente famosa Arvore Bodhi Microsoftr
Agora que o governo via altas cifras naquela moda crescente de viagens espirituais, estavam prontos para embarcar na picape da turma do Buda. Mas para mim parecia que o governo estava meio atrasado para a festa. Eu achava que o Buda já tinha saído na frente nessa campanha. Dois mil e quinhentos anos antes, quando encorajou as pessoas a fazerem aquela peregrinação para os lugares que tinham significado especial na vida dele, ele lançou o que se transformou numa indústria internacional de muitos bilhões de dólares chamada turismo. As primeiras que foram consideradas pacotes de viagem foram as peregrinações seguindo os passos de Buda. Nos últimos dois mil anos um número incalculável de pessoas cruzou milhões de quilômetros para caminhar onde o Buda caminhou, sentar onde ele sentou, beber chá onde ele poderia ter bebido. E nesses lugares, pequenas casas de chá, pousadas e barracas que vendem lembranças típicas, devia haver placas anunciando: "O Buda dormiu (bebeu, andou) aqui!"
E mais outra coisa me incomodava: o governo estava organizando isso, apesar do budismo ter vivenciado um longo e inexo-
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rável declínio do século IV ao século XII, vítima da onda da conquista dos muçulmanos, e acabou praticamente morrendo no país onde nasceu. Hoje, de 1,05 bilhão de indianos, menos de um por cento é budista (há mais cristãos do que budistas na índia). O governo estava sendo hipócrita? Tinha sido dominado por nova luz? Ou apenas a luz do interesse próprio? Eu devia ter ido assistir só para ver como eles cuidariam desse assunto delicado.
Mas em vez de ir à conferência passei o dia entrevistando alguns secretários de turismo em seus escritórios no sétimo andar do Hotel Ashok em Nova Deli. Numa pequena sala de reunião, um urbanista chamado R. K. Safaya, chefe do Departamento de Projeto e Desenvolvimento da Empresa de Habitação e Desenvolvimento Urbano da índia (HUDCO), passou uma projeção de slides delineando o progresso e os planos de desenvolvimento dos locais mais famosos da peregrinação budista, acabando por transformá-los em destinos que seriam mais facilmente acessíveis e mais atraentes visualmente, para promover o tão desejado aumento de visitantes. Ele mostrou o antes e o depois de diversos lugares, com descrições e citações pertinentes do Buda escritas embaixo. Quando aparecia uma nova imagem o sr. Safaya lia o que estava escrito em voz alta, apesar de estarem grafadas em inglês, que é a minha língua mater. Mas mesmo assim ele lia, e com aquele inglês maravilhosamente melódico dos indianos, ao qual meus ouvidos estavam começando a se acostumar. Notei também que cada vez que o sr. Safaya fazia uma alusão ao Buda, ele o chamava de "Senhor", que no início interpretei como a devoção dele ao budismo. Perguntei se ele era de fato budista. Ele disse que não, que era hin-duísta. Mas isso foi um primeiro sinal de que na Ásia a reverência que as pessoas demonstram por aquele homem não precisa necessariamente estar ligada à religião ou à teologia. Para ele e para muitos outros indianos hinduístas, o Buda é mais uma figura historicamente significativa, às vezes divindade hinduísta, outras vezes um ser humano cujas idéias, valores e ações mereciam o maior respeito, como um verdadeiro exemplo de conduta.
O budismo é chamado de religião ecológica, ele disse, citando as palavras do Buda: "Como uma árvore criando néctar, o ser
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humano precisa usar de forma adequada a natureza para que a continuidade de um padrão benéfico no relacionamento homem/ natureza não seja ameaçado. Peça para o chefe da família acumular riqueza da mesma forma que a abelha que, quando coleta néc-tar para transformar em mel, não prejudica a fragrância e a beleza da flor."
O sr. Safaya acrescentou:
— Hoje em dia não posso imaginar nenhuma definição melhor de desenvolvimento sustentado do que essa afirmação límpida.
Esse credo filosófico, ele disse, era a inspiração guia com a qual ele e sua equipe esperavam projetar os lugares budistas importantes na índia. O projeto que eles se apressavam em concluir, enquanto conversávamos, era Bodh Gaya, o mais sagrado de todos os lugares budistas, onde o Buda foi iluminado. Esses locais sagrados foram declarados pela Unesco Patrimônio Cultural da Humanidade em 2002, vigésimo terceiro sítio homenageado na índia. O motivo da urgência era que a conferência do Budismo e Turismo Espiritual ia levar delegados para visitar os lugares em poucos dias.
Quem ia nos encontrar era Amitabh Kant, secretário adjunto do Ministério do Turismo. O sr. Kant era menos poético, falava "turismês".
— Em termos de turismo, o circuito budista é um dos principais focos da índia — disse ele. — Antes do 11 de setembro, nosso turismo internacional estava aumentando. (Tradução: as pessoas vinham de lugares muito distantes para visitar a índia com mais freqüência.)
"Depois do 11 de setembro, essa tendência mudou. O turismo internacional de longa distância começou a cair e o mais próximo a crescer. (Tradução: turistas da Europa, do Japão, das Américas do Norte e do Sul, até da Austrália, ficavam em casa. Mas turistas da região da Ásia conhecida como BIST-EC - Bangladesh, índia, Mianmar, Sri Lanka, Cooperação Econômica da Tailândia - e mais do Nepal, do Butão, do Laos, de Camboja, do Vietnã e da Indonésia continuaram viajando para lá.)
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"Os interesses deles são complementares com esse fluxo. (Tradução: a maioria das pessoas dessa parte do mundo é budista.)
"Nós percebemos esse imenso mercado. Temos um inventário sensacional, sítios, relíquias, arte, arquitetura e trabalhamos muito na infra-estrutura para tornar a viagem para cá mais atraente."
A minha tradução: Isso nós íamos ver. O que eles realmente mostraram foram fotografias de algumas áreas onde tinham terminado o trabalho. Uma era das cavernas muito famosas de Ajanta e Ellora, a duas horas de Mumbai, que datavam do início do primeiro milênio. Eu ia para lá mais tarde nas minhas viagens. Os slides que vi naquele ponto não eram nada encoraj adores. Os resultados da plástica infra-estrutural pareciam muito sanitários, muito não-indianos, talvez mais aceitáveis para turistas ocidentais, mas decididamente privados de qualquer charme ou ar de antigüidade. Tinham criado um "cinturão verde do ecoturismo" de três quilômetros em torno das cavernas, com uma área comercial no centro, com comunicação visual uniforme, lojas de alvenaria com a mesma cor verde desbotada, um estacionamento com bastante espaço para ônibus de turismo e um ônibus verde que levava os visitantes até as cavernas. Nos Estados Unidos teríamos o complexo envelhecido para parecer realmente antigo. Ali só havia concreto, todo pintado da mesma cor. Nós tentamos tornar mais antigo, eles procuram modernizar.
O projeto Bodh Gaya envolvia 40 hectares em torno da atração central, a Arvore Bodhi e o templo Mahabodhi, erigido ao lado da árvore mais ou menos no ano 250 a.C. Desviavam os ônibus de turismo e o trânsito de visitantes para um local fora da cidade e reuniam os vendedores como fizeram em Ajanta e Ellora. Em Bodh Gaya, uma cidade com 30 mil habitantes que vê 30 mil a 40 mil turistas e peregrinos todos os dias de outubro até o início de fevereiro, esse desvio de ônibus certamente reduziria muito o sofrimento humano provocado pelos afunilamentos do trânsito. Eu disse para eles que estava indo para Bodh Gaya e que pretendia verificar como era antes.
- Você é budista? — perguntou o sr. Kant.
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Eu sabia que aquela era uma pergunta que iam me fazer muitas vezes, mas ainda não tinha pensado numa resposta. Não queria ter de escolher um lado, especialmente se corresse o risco de ofender aqueles hindus, e não queria também explanar todo o meu dilema cosmológico.
- Eu diria que... — Engasguei e usei expressões ambíguas. — Nunca me aprofundei muito. Já pratiquei meditação budista e meditação hinduísta. Respeito muito o Senhor Buda e penso que ele certamente foi um dos três ou quatro maiores seres humanos que já existiram. Bem, então é sim, acho que posso dizer que sou um budista. Eu teria orgulho de dizer que sou budista. Mas fui criado na fé judaica. E assim eu seria um bu-judeu.
Era uma piada velha que os judeus que praticam meditação usavam nos Estados Unidos, mas aqueles indianos riram muito como se eu tivesse acabado de imitar Robin Williams no tempo em que era comediante e fazia shows animados em boates.
- Você é? — passei a bola para o sr. Kant.
- Eu não - ele retrucou logo, como se eu o tivesse chamado de mutante cheio de espinhas.
Mas então explicou todo orgulhoso que o primeiro nome dele, Amitabh, era um dos nomes de infância de Siddhartha e também o nome do Buda da Luz Infinita, que diziam que trazia calma, paz e contentamento. Por que uma família hindu daria ao filho um nome budista? Essa estranha desconexão - de homenagear o Buda no nome do filho, mas distanciar-se do budismo como religião - estava presente na cultura indiana. Os indianos afirmavam que Buda era simplesmente a reencarnação do deus indiano Vishnu, e portanto isso fazia do budismo uma seita do hinduísmo. A bandeira da índia, conhecida como a Roda da Lei, o Dharmacakra, que foi posta em movimento quando o Buda proferiu seu primeiro sermão em Sarnath, na moderna Uttar Pradesh. Também em Sarnath, uma imponente estátua de um leão de quatro cabeças sobre uma coluna erigida por volta do ano 250 a.C. pelo grande budista indiano o rei Ashoka, é o emblema nacional da moderna República da índia. Todas as moedas e cédulas da índia têm esse símbolo do leão de quatro cabeças.
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Para entender essa inconsistência eu temia que ia ser necessário uma análise profunda da mentalidade infinitamente mítica dos indianos, feito que mesmo aqueles acadêmicos reunidos no Conclave Internacional de Budismo e Turismo Espiritual não ousariam tentar.
No dia seguinte voei mais de 800 quilômetros para o leste de Nova Deli até a cidade de Patna e depois ainda aluguei um carro com motorista para percorrer os quase cem quilômetros para o sul até Bodh Gaya, onde me encontrei com um grupo de 14 norte-americanos em excursão de peregrinação budista organizada, num turbilhão do tipo se-hoje-é-terça-isso-deve-ser-o-local-onde-Buda-nasceu de visitar oito lugares em 16 dias. Nós viajamos em ônibus alugado para visitar os quatro principais locais sagrados — além de alguns sítios menos sagrados. Ao todo, aquela excursão cobriria cerca de 2.430 quilômetros nos estados indianos do nordeste, Bihar e Uttar Pradesh, além de atravessar a fronteira e ir até o Nepal.
Eu havia encontrado esse grupo de um modo que tinha começado a chamar de jornalismo zen, o toque budista despiroca-do do jornalismo ensandecido de Hunter Thompson nos anos 60. O jornalismo zen era uma espécie de acesso cármico aleatório, feito pelo Google e outros programas de busca, temperado com coincidência e sorte, inspirado em improvisações jazzísticas, carente por ser um caso incurável de procrastinação. Significava que suas fontes viriam de qualquer lugar: desde assistir à TV tarde da noite enquanto deveria estar lendo sutras budistas, ler a revista Mad no banheiro, até furtar idéias de Budismo para otários, {Buddhism for Dummies). Também significava poder aterrissar desavisado em outro país, com poucos contatos e um mapa dado pela recepção do hotel. No seu quarto você leria rapidamente os guias de viagem, suas próprias anotações rabiscadas e cópias de e-mails, depois começaria a discar o telefone para ver quem estaria disponível depois de você traçar uma boa refeição e uma bebida forte. E aí lá ia você pela trilha alegremente para encontrar a verdade, o significado das coisas, a felicidade... e uma boa entrevista.
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Nesse caso eu tinha googleado "Seguindo os Passos de Buda", e uma das primeiras indicações era esse grupo, em www.buddha-path.com, de um indiano chamado Shantum Seth que parecia razoavelmente bem informado e respeitado. Comecei a enviar e-mails para ele, mais para conseguir alguma informação sobre se eu podia fazer isso sozinho e para simplesmente examinar o cérebro dele. Fiquei bem impressionado e telefonei para ele de Nova Jersey para sentir melhor a autenticidade dele. Quando a minha mãe recebeu a conta de 144 dólares um tempo depois, percebi que tinha de me juntar a esse grupo. Era o único modo de poder justificar a conta do telefone como despesa legítima.
Nos dez dias seguintes fui sugado para o vórtex de uma experiência que tinha escrupulosamente evitado na minha carreira, como se fosse o vírus Ebola. Queria que pudessem escrever no meu túmulo: "E ele fez tudo sem jamais participar de uma excursão de viagem boca-livre para escritores" (a propósito, continuo virgem de boca-livre na TW). Por quê? Basicamente tenho um problema com duas coisas nessas experiências: odeio cumprir os horários dos outros, e odeio cumprir os horários dos outros. Não que eu seja um líder, mas não sou mesmo um seguidor. E também não sou gregário — de participar de associações, de clubes do livro, de equipes de boliche e obviamente não de grupos de excursão. O Cavaleiro Solitário, o Homem de Marlboro, Han Solo - são esses os arquétipos de heróis masculinos norte-americanos que me serviram de modelo. É só acrescentar os outros suspeitos de sempre, os anti-heróis alienados e misantrópicos.
Menciono isso porque representa sérias desvantagens para um budista neófito. E por causa disso, aqui pode ser um bom lugar, como outro qualquer, para partilhar minha guerra pessoal com pelo menos uma das máximas do budismo. Os Três Refúgios -juramento que tanto os praticantes leigos do budismo como os monges fazem para exprimir seu compromisso de obedecer aos ensinamentos budistas - são os seguintes:
Eu me refugio no Buda. Eu me refugio no Dhamma. Eu me refugio na Sangha.
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Você recita isso três vezes, nessa ordem, enquanto se curva diante de uma estátua de Buda. Pode dizer isso antes, depois e até durante a meditação. Ou sempre que sentir que a tentação está chegando. Ou quando a solidão apertar. Quando nada parece estável ou seguro, o Buda, o Dhamma e a Sangha oferecem um lugar de proteção e consolo. Também chamados de Três Jóias, Três Tesouros e de Pedra Preciosa Tripla, são os abrigos budistas para a tempestade, refúgios do nosso sofrimento. O equivalente cristão poderia ser Jesus Cristo, a "boa nova" que Jesus trouxe de Deus e a congregação da igreja, de acordo com o monge beneditino e veterano praticante zen, o irmão David Steindl-Rast, co-autor com Robert Aitken Roshi de The Ground We Share: Everyday Practice, Buddhist and Christian. Os votos budistas foram criados algumas gerações depois da morte do Buda como parte da cerimônia de ordenação dos praticantes radicais preparados para se desfazerem de suas posses domésticas e materiais e partir para a vida monástica.
O Buda é a principal fonte de autoridade e de inspiração. A experiência pessoal dele demonstra que existe uma saída do mundo de sofrimento que é alcançada por meio do esforço de cada um.
O Dhamma é a totalidade dos ensinamentos do Buda. Esses ensinamentos são a bússola com a qual orientamos nosso caminho através da tempestade de sofrimento. (Quando escrita com d minúsculo, dhamma significa "a lei" ou "como as coisas são".)
A Sangha é a comunidade espiritual, o grupo de monges e freiras e mestres da sabedoria budista, assim como seus alunos. Interpreto que também significa a família e a rede de amigos, já que todos são mestres se fizermos esse negócio de budismo direito.
Admito que tenho problema com autoridade, por isso acatar o Buda poderia ser inerentemente contra o meu credo. Seja por profissão ou inclinação, tenho o hábito de procurar as falsidades por trás da verdade. Mas foi o terceiro refúgio — a Sangha — que me deu mais problemas. O jornalista paira à beira da multidão e olha para dentro. Ele transforma o subjetivo em objetivo e acaba "objetificando" até a si mesmo, na verdade separa-se de si mesmo.
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Para obter essa perspectiva o escritor recua e se distancia e faz de si mesmo uma ilha. Levo isso mais adiante ainda. Opto por viver numa ilha de verdade. Então estou numa ilha (minha mente) que está numa ilha (essa gloriosa restinga). Escrevo em casa, de modo que há dias em que não converso nem vejo qualquer pessoa. Se não fossem os e-mails, eu podia estar completamente isolado da humanidade, ou de qualquer Sangha, e não estaria infeliz por isso. Pelo menos procuro me convencer disso.
A minha disposição e capacidade de evitar julgamentos nessa questão da Sangha foram postas à prova e me saí melhor do que pensava, apesar de algumas gafes no início. Esse grupo acabou se revelando bastante interessante, mas até pessoas interessantes podem se tornar sufocantes e chatas depois de pouco tempo. Entre elas havia um homem de Seattle de 37 anos que reconheceu tranqüilamente que tinha se aposentado recentemente e também nos contou que ele era bipolar (como se o fato de não parar de se mexer e seu comportamento errático não indicassem claramente isso); uma ex-freira católica, mulher adorável que tinha se casado e depois, como costumam dizer, tinha se divorciado bem; uma mulher cuja família do marido havia fundado uma escola de belas-artes no Maine, que tinha uma postura regia mas era extremamente ingênua; e o advogado muito bem-sucedido de Portland, cuja clientela, ele informou mais de uma vez, incluía algumas instituições sem fins lucrativos (como se isso pudesse perdoar seu problema com controle). Havia também alguns psicoterapeutas da Costa Leste, duas mulheres que eram viúvas recentes e um fotógrafo, além de algumas mulheres aposentadas. Socioeconomicamente era um grupo com muita renda à disposição; espiritualmente a maioria tinha tido alguma exposição à prática budista nos Estados Unidos. Uns poucos estavam muito envolvidos com a prática budista. E esse era exatamente o tipo de corte demográfico de ponta sobre o qual o sr. Kant & Cia teriam babado.
Mas o mais interessante para mim era o guia da excursão, Shantum Seth, um homem bonito e magro de quarenta e tantos anos, com feições delicadas e uma voz melíflua que misturava os sotaques hindu e inglês. Shantum era de uma família hindu proe-
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minente - "Hindu há tantas gerações quantas conhecemos", ele disse quando sentamos numa casa de chá perto do mosteiro em que nos hospedamos em Bodh Gaya. O pai dele, Premnath Seth, é aposentado de uma carreira bem-sucedida na manufatura de calçados. A mãe, Leila Seth, é advogada também aposentada, foi a primeira juíza de um tribunal superior na índia. Sua autobiografia, On Balance, foi publicada enquanto eu estava na índia, e ela recebeu bastante atenção da imprensa por isso. O irmão dele é escritor, Vikram Seth (The Golden Gate, A Suitable Boy etc).
Shantum Seth desliza tranqüilamente pelo rio Ganges, com a antiga cidade sagrada hindu de Benares (hoje Varanasi) aojundo.
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Morava em Londres e também foi alvo da imprensa indiana, porque tinha sido nomeado curador do Museu Britânico.
Shantum havia seguido um caminho que devia levar para uma carreira bem-sucedida nos negócios como a do pai dele, mas nesse caminho a sua consciência apareceu. Ele lembrou que um dia estava hospedado num hotel e que se deu conta de que uma noite naquele hotel custava tanto quanto o salário de uma semana de um sapateiro. O hinduísmo, com seu rígido sistema de castas, perpetuava aquela injustiça social, afirmou. Shantum tinha seguido alguns gurus hindus, mas no fim ele disse: "Viajei demais, meus pés não tocavam no chão. E no hinduísmo há essa postura de que 'está tudo bem, como deve ser'. Baseia-se demais na fé. Fui criado com uma maneira de encarar a vida mais ocidental, mais prática, científica e racional." Depois de completar sua tese sobre Mahatma Gandhi e o desenvolvimento sustentável, ele se envolveu com trabalho social e com o movimento pela paz, mas "em vez de ficar em paz fui ficando mais agitado e pronto para a briga. Você se torna parte do problema".
Nos últimos vinte anos Shantum trabalha no setor de desenvolvimento e mais recentemente como consultor do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas para promoção de trabalho voluntário, subsistência e turismo. Também participa ativamente de um grupo chamado Ahimsa Trust, que trata da paz e dos problemas do desenvolvimento.
Parece irônico, mas ele precisou de uma longa viagem à Califórnia para descobrir o budismo e encontrar um mestre espiritual que achava que valia a pena seguir.
- Ouvi dizer que os melhores mestres do mundo estavam na Costa Oeste. Além disso havia toda aquela música de protesto; isso foi no período em que protestavam contra a Guerra do Vietnã. Dylan, Joan Baez, Peter, Paul e Mary, Country Joe e o Fish.
Quando ele mencionou Country Joe cantamos em uníssono um dos mantras mais memoráveis daquele tempo: "Gimme an F... F! Gimme a U... U!..."
Aquele também foi o ápice do movimento do potencial humano. Shantum visitou os lugares que constavam de todas as ver-
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