Reportagem no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha



Yüklə 0,53 Mb.
səhifə3/12
tarix06.09.2018
ölçüsü0,53 Mb.
#77762
1   2   3   4   5   6   7   8   9   ...   12

Na figura pode-se observar um galpão, e ao fundo pequenas casas, ao lado deste galpão tem uma fila de pessoas, sendo que algumas estao em pé e outras sentadas no chão.

(Fim da descrição da figura)


Página 46

Dezenas de funcionários e ex-funcionários, que preferem o anonimato por medo de represálias, confirmam as práticas subumanas no tratamento aos doentes. Vítimas dos mais diferentes tipos de transtorno mental e grau de periculosidade conviviam no mesmo espaço exíguo. Muitos deles não tinham consciência do próprio corpo, e cenas grotescas, como centenas de pacientes zanzando nus pelos pavilhões, transformaram-se em rotina. Higiene simplesmente não existia. A maioria defecava em público, no mesmo chão dividido por todos. Os doentes chegavam a comer as fezes que se acumulavam pelo pátio. Um esgoto a céu aberto atravessava o manicômio e, na água podre que corria, vários internos encontravam a maneira mais fácil de aplacar a sede.


Para dormir, tinham um improvisado colchão coletivo: capim sobre o chão de cimento. Hordas de pacientes se amontoavam para comer em cochos, nada menos do que buracos abertos no chão de cimento, em que a comida era despejada. As camas eram colocadas nos corredores da enfermaria, e doentes dormiam escorados nos sanitários.


Ex-empregados denunciam a existência de dois cômodos apelidados de “péla porco” — onde se amontoavam, num espaço de 9 m, mais de oitenta pacientes — e de uma cela forte individual, denominada “rotunda”. A solitária destinava-se aos internos mais agitados e com doença infectocontagiosa. Era uma sala escura com menos de 2 m de comprimento por 3 m de largura, com paredes de alvenaria, janela gradeada, porta de aço maciço e assoalho de madeira. Não havia nenhum tipo de instalação sanitária.


Página 47

Não é difícil imaginar o resultado dessa equação: diarréia, frio e fome matavam a todo instante. No inverno, que é rigoroso em Franco da Rocha, os óbitos se multiplicavam. Sem atendimento ou orientação, a vida dos pacientes se resumia a passar o dia nos imensos pátios, esfregando-se pelo chão e definhando.


No final dos anos 1960, um fantasma assombrou o manicômio: os arredores de Franco da Rocha eram sobrevoados diariamente por bandos de urubus, atraídos pelas emanações pútridas do belo prédio — que já não era tão belo assim. Os muros construídos pela genialidade de Ramos de Azevedo testemunharam um verdadeiro massacre.


Historiadores acreditam ter ocorrido milhares de mortes em pouco mais de vinte anos. Eram tão altos os índices de mortalidade, que geraram situações sinistras. O pesquisador Adauri Alves garante que o Manicômio Judiciário se transformou em negócio lucrativo para interesses escusos, tornando-se um dos maiores fornecedores de cadáveres para as escolas de medicina de São Paulo. Eram tantos lotes de peças anatômicas que, em determinado momento, as escolas ficaram abarrotadas de cadáveres. O excesso da oferta, entretanto, não foi problema. Segundo Adauri, os corpos passaram a ser decompostos em ácido, para a venda apenas de ossadas.


— Muitas vezes os pacientes eram vistos cuidando uns dos outros. O estado geral da população era lastimável. Até hoje sonho com essas cenas — diz Gilberto Miranda de Almeida, atendente de enfermagem do hospital há 31 anos.


Página 48

Os prontuários e os depoimentos perpetuam dores ali sofridas nesses anos. Há pacientes atualmente internados que carregam graves seqüelas dessas violências. Mutilações, deficiências e cicatrizes formam um rastro de destruição. Muitos têm deficiência mental profunda, agravada pelas péssimas condições de internação de que foram vítimas. Todos são sobreviventes do inferno — resíduo de um tempo sinistro.


Loucura revolucionária
A fase de decadência agravou-se na década de 1970, com os rumores de que a instituição seria colaboradora dos órgãos de repressão da ditadura militar. Muitos acreditavam que, todos os dias, levas de presos políticos eram internadas como doentes mentais. Tornaram-se comuns, em Franco da Rocha, as fábulas sobre guerrilheiros usados como cobaias humanas para experiências psiquiátricas. O manicômio se havia transformado, segundo o imaginário popular, num campo de concentração criado para o extermínio das vozes discordantes da ditadura.

Até hoje, essa parte da história é repleta tanto de mitos quanto de verdades. A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos sempre acreditou na possibilidade de encontrar informações no hospital sobre militantes que desapareceram, sobretudo em 1974, quando o governo deixou de reconhecer oficialmente a morte de seus opositores. Uma comissão de parlamentares formada em 1991 recebeu documentos de um anônimo, mostrando que ex- integrantes de movimentos revolucionários internados no manicômio


Página 49

sofreram torturas e maus-tratos. Um deles teria sido assassinado e enterrado no cemitério existente no Hospício do Juqueri. A comissão chegou a trabalhar até com a hipótese de que havia pistas da passagem, pelo Hospício, de Davi Capistrano da Costa, ex-dirigente do Partido Comunista Brasileiro, desaparecido desde 1974. Seu filho, Davi Capistrano Filho, foi médico em Franco da Rocha e assegurava ter ouvido comentários sobre a internação do pai, nunca comprovada. Davi Filho, político no litoral paulista, que morreu quando este livro estava sendo escrito, contou:


— Amigos meus de trabalho diziam ter visto uma pessoa parecida com meu pai. Mas os boatos caíram por terra quando o ex- tenente Marcelo Paixão de Araújo disse que meu pai tinha sido morto e esquartejado no Rio de Janeiro e, em seguida, enterrado na Rodovia Rio—Santos.


O que existe até agora comprovado são quatro relatos de presos políticos enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN), que cumpriram pena como doentes mentais no Manicômio Judiciário. Suas fichas médicas e inquéritos foram descobertos, nos arquivos da instituição, pela mesma comissão que encontrou mais de mil ossadas numa vala clandestina do cemitério de Perus, distante apenas 13 km do manicômio. Um dos principais integrantes da comissão foi Ivan Akselrud Seixas, ex-militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), que passou três anos internado como demente na Casa de Custódia deTaubaté. Em abril de 1971, Seixas foi preso em São Paulo pela Operação Bandeirante (Obari), junto com seu pai, o mecânico Joaquim Alencar Seixas, que também militava no MRT. Na noite seguinte à prisão, o pai de Ivan


Página 50

morreu sob tortura. Menor de idade, Ivan continuou preso no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), aí conhecendo um dos presos que se tornou paciente do Manicômio de Franco da Rocha, Antônio Carlos Meio Ferreira, o Melinho.


— Eu e ele participamos de uma greve de fome na prisão — conta Seixas.


O prontuário de seu antigo companheiro de presídio diz que Melinho chegou ao manicômio no dia 14 de setembro de 1972, às 13h. Tinha 30 anos e era baixinho, com pouco mais de metro e meio de altura, o cabelo sempre despenteado e a barba comprida. Foi estudante de geologia da USE mas não teve tempo de formar-se, porque militava no grupo guerrilheiro Vanguarda Armada Revolucionária (VAR)—Palmares, surgido em 1969. Os membros daVAR—Palmares ficaram famosos por ter feito o maior roubo da guerrilha urbana:


US$ 2,5 milhões, em um assalto ao cofre de Ana Capriglione, amante de Ademar de Barros, ex-governador de São Paulo.

Os documentos de Melinho no manicômio dão informações desencontradas e mostram que ele tentou despistar seus interrogadores — teoricamente, peritos da equipe de saúde. Pela leitura,


Figura. O manicômio calou as vozes de muitos internos.

(Inicio da descrição da figura)

Na figura temos três homem, dois deles ao fundo, sendo que o homem da esquerda esta de boné, e o da direita esta com as mãos no bolso. Já o homem do centro da figura, esta bem próximo, sendo que ele esta de lado.

(Fim da descrição da figura)


Página 51

é difícil determinar o que ele disse a sério e o que disse com ironia. A certa altura, por exemplo, afirmou ter “concessão especial” para falar, de modo que suas palavras não se perdessem “com prejuízo da humanidade”. Foi diagnosticado como esquizofrênico paranóide — prova da produção em massa dos laudos daquele período decadente — e passou quatro anos e três meses em Franco da Rocha.


O diretor do manicômio, na época em que os quatro presos políticos passaram por lá, era o psiquiatra Paulo Fraletti, hoje aposentado e vivendo na cidade de Pedreira, em São Paulo. Assinou vários documentos que comprovam a internação de presos enquadrados na LSN, como, por exemplo, a comunicação de entrada de dois militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN): Dorgival de Sousa Damasceno e João Adolfo Castro da Costa Pinto. Fraletti alega que não tinha como recusar a internação dos militantes políticos, porque obedecia a ordens superiores:


— A internação deles vinha assinada por juízes e com laudos médicos atestando que eram portadores de problemas mentais. Se eu recusasse a internação, seria processado, como fui certa vez, ao me recusar a receber um preso que não era político.


As péssimas condições dos internos são facilmente reconhecíveis nos prontuários. Dorgival de Sousa Damasceno, que chegou ao hospital no dia 15 de agosto de 1970, vindo do Presídio Tiradentes, onde provavelmente fora submetido a tortura, apresentava “idéias de suicídio”. Os documentos afirmam que ele ficou internado lá por dois meses. João Adolfo Castro, que como Damasceno era membro da ALN, grupo guerrilheiro de Carlos Marighella, deu


Página 52

o seguinte depoimento aos psiquiatras, seis dias depois de chegar a Franco da Rocha:


“Eu apanhei muito, me deram choque na cabeça, nos testículos e acho até que estou impotente... Não consigo dormir, não tenho fome, só tenho vontade de ficar deitado”.


Ele chegou ao manicômio em fevereiro de 1971 e ficou internado por um ano e cinco meses. Seu prontuário registra uma carta de 1 de outubro de 1971, na qual o inglês John Cleator, membro da Anistia Internacional, pede informações sobre ele. Não deram resposta. A seu respeito, há um documento que comprova a existência de uma cela especial para os presos políticos, provavelmente a chamada “cela surda”, do segundo andar, a de número 19 da ala B. Um ofício assinado por Amélio Rodrigues, funcionário que ocupou vários cargos na direção do manicômio, encaminha João Adolfo para essa cela. “Não é permitida a aproximação de nenhum funcionário, salvo o da disciplina”, determina o documento.


O terceiro caso é o de um militante enterrado de forma irregular no cemitério do Juqueri, que há décadas serve para sepultar indigentes do hospício. Trata-se de Adão Martins Braga, que foi levado ao manicômio no dia 5 de fevereiro de 1968, sob escolta policial, procedente do Presídio Tiradentes. Morreu no mesmo dia em que o internaram. A causa mortis registrada no laudo necroscópico aponta toxemia por peritonite traumática. Na linguagem pericial, isso significa que o paciente provavelmente apanhou muito e teve hemorragia profunda.


Página 53

Sofrimento de profeta


O quarto preso político cuja documentação foi encontrada no manicômio não era um militante, nem ao menos entendia de política. Chamava-se Aparecido Galdino Jacinto, e seu caso tornou-se conhecido em todo o país depois que a Rede Globo o recontou na novela Fogo sobre terra, em 1974. Juca de Oliveira fez o personagem inspirado em Galdino, que não foi retratado de forma fiel: a censura da época impedia referências explícitas. Acusado de crime contra a segurança nacional, Galdino ficou oito anos no manicômio. Chegou em outubro de 1971, depois de ser considerado esquizofrênico paranóide pela Justiça Militar. Em 1991, ele reconheceu, perante a comissão de deputados paulistas, a fotografia de vários militantes do PCB desaparecidos na década de 1970. Não afirmava que os reconhecidos eram membros da esquerda, apenas admitia ter convivido com eles em Franco da Rocha.

Esse homem simples, de longos cabelos brancos e olhos azuis, representava um risco naqueles anos de repressão. Líder messiânico, perambulava pela pequena cidade de Rubinéia, quase na divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul, rezando pelas plantas e pelos animais, benzendo quebrantos e maus-olhados. Jurava ter visões proféticas e vociferava contra a construção da hidrelétrica de Ilha Solteira — uma das principais bandeiras do então governo Castelo Branco. Inconformado com a miséria na região ribeirinha, acreditava que a usina traria mais fome e pobreza para a população.


— A construção acabou com o caminho dos peixes, das plantas e dos homens — diz Galdino, hoje com 74 anos, que na época formou sua pequena legião de resistentes, chamada Força Divina.


Página 54

A fé no “profeta” provinciano, em Rubinéia, era quase inquestionável. Sua casa vivia repleta de doentes. A multidão de pobres e ricos, novos e velhos, que o procurava em busca de suas bênçãos, começou a incomodar as autoridades policiais. Até que, certo dia, a Companhia Energética de São Paulo (Cesp) o procurou para indenizá-lo porque sua casa seria inundada pela barragem. A empresa descobriu, então, que ele não recolhia impostos. Galdino resistiu com todas as suas forças, por acreditar que “a terra é de Deus e foi deixada para o povo plantar e viver”.


— A Força Divina era para orar, para salvar o mundo do fogo eterno — recorda, um tanto contrariado ao tocar no assunto.


Figura. Documento prova a transferênda injustificável de Caldino para Franco da Rocha.

(Inicio da descrição da figura)

Na figura consta o Ofício que foi encaminhado ao diretor do Manicômio Judiciário. No qual foi comunicado a remoção do réu Aparecido Galdino Jacinto da casa da detenção para o referido manicômio.

(Fim da descrição da figura)


Página 55

Com idade entre 16 e 60 anos, os integrantes do “exército celestial” Força Divina, cerca de vinte homens e mulheres, providenciaram fardas e quepes para vestir na luta de rezas e o rações contra a construção da barragem. Usaram os uniformes verdes e azuis apenas uma vez. A polícia de Rubinéia prendeu todos. O profetae seus soldados uniformizados foram ainda obrigados a desfilar pela cidade amarrados uns aos outros, como um troféu de guerra. Líder incontestável, Galdino foi acusado de ter infringido o Código Penal por curandeirismo, resistência à prisão e lesões corporais. O promotor que examinou o caso achou pouco: encaminhou o processo para ser julgado também pela Justiça Militar.


Depois de passar quase seis meses no Presídio Tiradentes convivendo com outros presos políticos, Galdino foi transferido para a Casa de Detenção, também em São Paulo. Julgado, foi absolvido pela Justiça comum. O advogado Alcides Silva argumentou, em defesa extraordinária, que curandeiro é aquele que explora a crendice popular, e seu cliente benzia sem cobrar um centavo, O tribunal impôs ao líder messiânico uma medida de segurança por dois anos, confinando-o no Manicômio Judiciário. Vencido o tempo da pena, sua sentença era sempre prolongada, sem explicação convincente das autoridades.


Em 1975, o parecer caracterizava o interno como pessoa “incoerente e ilógica”. No ano seguinte, os psiquiatras viram no sorriso de Galdino um indício de periculosidade, e escreveram no laudo: “Apresenta um sorriso inadequado, que sempre ostenta, mesmo dialogando sobre fatos graves. [...] Por vezes ri de modo inadequado”.


Página 56

— Um ato político foi transformado em mero comportamento psicótico — afirma Christina Roquete Lopreato, autora do livro Milagres da fé, registro emocionante da saga de *Galdino*.


Nota de canto de página para “Galdino”: ChristinaRoqueteLopreato, Migres dafé (Campinas: Centro de Memória da Universidade de Campinas, 1999).

(Fim da nota de canto de página)


Após a denúncia da Comissão Arquidiocesana dos Direitos Humanos e dos Marginalizados, houve revisão do caso, e os pareceres foram novamente examinados. Galdino deixou Franco da Rocha em 1979. Em horas de conversa, ele se revela esquecido e despreocupado. Mal recorda datas, alguns acontecimentos, poucos nomes de pessoas. Lembra-se, no entanto, das paisagens da Rubinéia antiga, que submergiu em abril de 1973, nas águas do complexo de Urubupungá. Seu último trabalho foi como jardineiro nas encostas da ponte rodoferroviária, erguida sobre o grande lago formado pela hidrelétrica. Continua rejeitando dinheiro e a proposta de exigir indenização pelos anos em que ficou preso. Diz, convicto:


— Não assino de jeito nenhum. A assinatura vai provar que estou do lado de alguém, e só estou do lado de Deus. Passei por Franco da Rocha porque tinha de passar, era uma provação de Deus. Minha vida é sofrimento; profeta sofre.


Vive com uma mulher 41 anos mais jovem e os nove filhos numa pequena casa em Santa Fé do Sul, município paulista de 30 mil habitantes, vizinho de Rubinéia — que, reconstruída, tem pouco mais de 5 mil habitantes. Garante que nunca mais viu os seguidores de sua Força Divina, e muda de assunto rapidamente.


— A injustiça de conviver vários anos com um monte de doentes da cabeça não é nada perto da dor de ver Rubinéia debaixo


Página 57

desse mundaréu de água — lamenta Galdino, apontando a imensidão da represa.


Um alivio
Asituação caótica do manicômio começou a ser amenizada na virada da década de 1980, mas isso não significou a volta da época de ouro e, sim, a diminuição da violência moral existente. Não por acaso, a mudança ocorreu no mesmo momento em que o Brasil iniciava sua saída do período militar. As transformações começaram a partir da ação da Corregedoria dos Presídios, que impulsionou uma completa reestruturação do sistema penitenciário. Também ganhavam força as correntes que lutam pelo direito de cidadania do doente mental e por sua reintegração na sociedade.

Uma contribuição valiosa do ponto de vista terapêutico foi a mudança de foco do uso das drogas antipsicóticas e antidepressivas no Brasil. No início dos anos 1950, com o desenvolvimento da psicofarmacologia, pesquisadores franceses descobriram que os indivíduos


Figura. Vista panorâmica do atual Manicômio Judiciário cercado por grades e guaritas.

(Inicio da descrição da figura)

Na figura consta a vista de uma cidade, no fundo tem um morro com muitas casas, mas a frente observa-se mais casas, e bem na frente temos a vita do manicômio judiciário cercado por grades e guaritas.

(Fim da descrição da figura)


Página 58

sãos tinham uma sonolência forte ao ingerir doses de antihistamí nicos — remédios contra alergias e asma. Aplicou-se, então, em doentes mentais uma versão mais forte de anti-histamínicos, produzindo as primeiras drogas antipsicóticas. A descoberta deixou os hospícios franceses mais calmos, o que possibilitou o tratamento dos pacientes. Com o medicamento e a existência de um programa ativo de acompanhamento pós-internação, muitos voltavam ao convívio familiar e retomavam o curso normal de sua vida.


O problema é que, em Franco da Rocha, os pacientes eram tratados com as drogas antipsicóticas e depois esquecidos quando ganhavam a rua. Isso por causa, sobretudo, da deficiência no sistema de saúde mental. Grande parte dos internos recebia o tratamento e, quando conquistava a liberdade, logo era vítima de um surto e cometia outro crime. A família, quase sempre desestruturada, não podia ajudar o doente. Era mais fácil entregá-lo, de vez, à prisão no manicômio.


O psicofarmacologista Benedetto Saraceno, gerente do programa Nations for Mental Health, da Organização Mundial da Saúde, e participante de uma das mais radicais reformas psiquiátricas ocorridas no mundo, que se realizou na Itália nos anos 1980, afirma:


—A medicação somente surte efeito se usada de forma racional. E óbvio que, sem as drogas antipsicóticas, teríamos um retrocesso de cinqüenta anos no tratamento das doenças mentais. A questão é como usá-las e em que contexto. De nada adianta medicar sem garantir direitos de cidadania ao paciente que volta à sociedade.


Página 59

O ambiente em Franco da Rocha tornou-se mais calmo. Doses fortes de remédio eram suficientes para acalmar as mentes em crise. O eletrochoque foi abolido. Outros fatores contribuíram para conter a fase de deterioração, entre os quais a integração, no quadro de profissionais, das funções de assistente social e de psicólogo. Ainda assim, os pacientes não tinham direito à laborterapia (terapia ocupacional), à prática de esportes e ao lazer. Não havia dentista nem barbeiro, embora essas duas funções constassem no organograma da instituição.


Uma das maiores conquistas aconteceu nos anos de 1981 a 1984, quando foram iniciadas as visitas domiciliares. Até então, o contato com os parentes acontecia de forma esporádica. Havia um distanciamento da família, o que prejudicava o tratamento dos doentes. Muitos ficavam meses sem receber uma visita ou correspondência, sentiam-se renegados e entravam em crise, regredindo no tratamento. Com a autorização de visitar sua casa, a maioria dos internos passou a ter ganhos terapêuticos nunca vistos antes. E houve outras melhorias: o número de médicos quadruplicou; assistentes


Figura. Placa pintada de preto sinaliza a estrada de terra que leva ao universo da loucura


enclausurada.

(Inicio da descrição da figura)

Na figura observa-se um poste de luz, um orelhão, e uma placa que sinaliza a entrada para o manicômio, que consta os seguintes dizeres: Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima.

(Fim da drescrição da figura)


Página 60

sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais, técnicos desportivos, enfermeiros e auxiliares foram contratados.


— Adotamos uma nova filosofia de trabalho com o apoio de uma equipe multidisciplinar. Começou, assim, um grande processo de humanização — conta o psiquiatra Paulo César Sampaio, diretor do manicômio de 1987 a 1992 e ex-responsável pelo Serviço Médico do Sistema Penitenciário de São Paulo.


As modificações foram resultado de várias medidas políticas nos últimos quinze anos do século 20. Em janeiro de 1985, um decreto do governo estadual determinou que o Manicômio Judiciário, então vinculado à Secretaria de Estado da Saúde, passaria a pertencer à Secretaria da Justiça. Em julho de 1988, essa decisão foi revogada e a instituição passou a integrar o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde, o antigo Suds. Transformou-se em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima, seu nome atual. Depois de cinco anos, transferiu-se de novo para a área da Justiça, dessa vez subordinada à Secretaria da Administração Penitenciária.


Houve ainda profundas mudanças estruturais. No início de 1986, o Manicômio Judiciário deixou de funcionar no prédio construído por Ramos de Azevedo, que atualmente abriga a Penitenciária de Franco da Rocha. Foi instalado numa antiga colônia do Juqueri, por coincidência no mesmo local em que, no final do século 19, viviam os doentes mentais criminosos do hospício. O local possui seis pavilhões com capacidade para quarenta homens cada. A colônia feminina permaneceu ao lado do antigo edifício até agosto de 2001.


Página 61

Luz, apenas Luz


No final o final de 1985, a Ordem dos Advogados do Brasil solicitou um habeas corpus coletivo para os pacientes de Franco da Rocha. Nesse documento, que se insurgia contra a suposta psiquiatria repressiva, estava um nome conhecido dos brasileiros. Datilografado em preto bem escuro, na parte superior do papel timbrado com a sigla OAB, lia-se: “João Acácio Pereira da Costa, vulgo Bandido da Luz Vermelha”. Os laudos dos peritos foram confrontados e o pedido, indeferido.

Na São Paulo dos anos 1960, enquanto o manicômio massacrava seus habitantes, João Acácio transformava-se num ladrão sofisticado. Competia em fama com o lendário criminoso italiano Gino Meneghetti, outro especialista em entrar nas casas paulistanas para furtar jóias. O apelido Luz Vermelha lhe fora dado porque portava sempre uma lanterna em suas operações criminosas — inspiração do americano Caryl Chessman, executado na cadeira elétrica em 1960, que matava suas vítimas carregando na mão uma lanterna de luz vermelha. Os locais dos crimes de João Acácio — homicídios, roubos e furtos — foram percorridos pela polícia. Ele usava um inovador macaco hidráulico para arrebentar as grades de proteção das janelas. Vestido com smoking, fazia-se de bêbado enquanto abria a porta com uma de suas chaves falsas, sem chamar a atenção de quem estava na rua.


Yüklə 0,53 Mb.

Dostları ilə paylaş:
1   2   3   4   5   6   7   8   9   ...   12




Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©muhaz.org 2024
rəhbərliyinə müraciət

gir | qeydiyyatdan keç
    Ana səhifə


yükləyin