Tema: “Terreiro de São Domingos” – Relatos de sua história e do seu funcionamento ritualístico místico e sincrético, Americana, São Paulo



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III SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES

Terreiro de São Domingos” – Relatos de sua história e do seu funcionamento ritualístico, místico e sincrético: Americana, São Paulo




AUTOR: Adilson Rogério do Amaral

Instituição: Instituto Superior de Ciências Aplicadas – Limeira- SP

e- mail: doamaral@netsbo.com.br

Neste trabalho apresento os resultados parciais de estudo etnográfico sobre a história da Tenda Espírita Pai João, um templo de umbanda estabelecido na cidade de Americana, interior do estado de São Paulo, desde sua fundação em meados de 1945 até os dias de hoje1.

Considerando a inexistência de documentos escritos a respeito deste e de outros templos da cidade de Americana - SP, e a necessidade de recuperar para as gerações futuras sua rica história, lancei-me na tarefa de investigar e reconstruir o processo de constituição e consolidação da Tenda Espírita Pai João, bem como os ajustes2 ritualísticos por que passou nesses mais de cinqüenta anos de existência, a fim de se adaptar às transformações mais gerais da sociedade e às características de sua clientela.


Para a realização desse estudo etnográfico foram privilegiadas as estratégias qualitativas de pesquisa, como a história oral e a utilização de material iconográfico, além de suporte na literatura a respeito da religião Yorubá, originária da África Ocidental e matriz geradora dos templos de umbanda brasileiros.

Segundo site disponível na Internet dedicado ao mestre Didi, um sacerdote e estudioso da religião afro do Brasil3:

Assim como na África Ocidental, a religião Yorubá impregnou todas as atividades dos africanos e seus descendentes no Brasil, regulando e influenciando o viver cotidiano, e, dessa forma, conservando um sentido profundo de comunidade para preservar o mais específico de suas raízes, e recriar aquilo que se fizesse necessário para sua sobrevivência no Novo Mundo. Todo esse complexo e dinâmico sistema cultural reforçou e ainda reforça princípios básicos de convivência associativa, tendo nos ensinamentos transmitidos através de um amplo conjunto de textos orais, o elo entre as sucessivas gerações de seus integrantes. Nesse processo, o místico e o sagrado manifestam-se através de um complexo sistema filosófico e simbólico, expressos numa rica liturgia”.
Em meus estudos verifiquei que nas suas origens africanas, os rituais Yorubá apresentam características distintas das verificadas no Brasil. Trazida da África para o Brasil pelos negros que foram feitos escravos, a religião Yorubá passou por alguns ajustes nos seus rituais religiosos, devido às pressões exercidas pela sociedade branca dominante e seu interesse em converter toda a sociedade habitante no Brasil ao catolicismo. O sincretismo com os santos católicos foi inevitável, gerando uma nova configuração da religião, mesmo que preservadas as características originais mais relevantes.

Com o advento da abolição da escravatura, os seguidores da religião Yorubá vivenciaram uma certa liberdade de culto, podendo estabelecer templos em suas casas, desde que na periferia das cidades e sob forte vigilância do poder público, na figura da força policial. Dessa maneira, novos ajustes foram se verificando a fim de que os adeptos da religião pudessem realizar seus cultos e seus rituais.

O caso da Tenda Espírita Pai João não poderia ser diferente. Seu próprio nome evidencia concretamente essa necessidade de ajustes, apesar de ser conhecida também como Terreiro de São Domingos, devido sua localização em um bairro da cidade de Americana com o mesmo nome. Nascida em meados dos anos 40, pelo desejo de Dona Antonieta Fratuccello, uma senhora abastada e influente daquela cidade do interior de São Paulo, mais um pequeno grupo de amigos, dentre os quais o senhor Francisco Dias dos Santos (conhecido como Chico Carro), Geni Lucia Cometti e alguns simpatizantes da umbanda, esse templo teve que enfrentar inúmeras vezes o preconceito e a perseguição da polícia..

Em 1945 um senhor chamado Benedito Minarelli, iniciado no Orixá, viajou do Rio de Janeiro para Americana a fim de fazer uma visita ao templo. Nele permaneceu, passando a dirigi-lo com Dona Antonieta, até que em pouco tempo tornou-se o sacerdote absoluto do templo.


O templo foi regularizado oficialmente no ano de 1955, só depois de receber o “alvará de polícia”, com ajuda de pessoas influentes que freqüentavam o templo naquele período. Na época, tal alvará era emitido pelo próprio delegado de polícia.


O período de formação da Tenda Espírita Pai João constitui aspecto importante na elaboração desse estudo, como menciona Prandi (1991) que 1930 é o ano em que surge o primeiro centro umbandista na capital de São Paulo, apontando um intervalo de apenas quinze anos desde a criação deste primeiro templo e o de Americana, no interior do estado.

A Tenda Espírita Pai João é a mais antiga de Americana. Ela abriu caminho para que outros templos de umbanda se estabelecessem na cidade, muitos deles tendo como sacerdotes ex-seguidores seus que, após terem colhido ensinamentos e passado pelo processo iniciático na “tenda mãe”, constituíram seus próprios templos.

Apesar de todos os atropelos por que passou em seu processo de constituição na década de 40, a esta Tenda foi conquistando mais e mais fiéis, inclusive das camadas de poder aquisitivo mais elevado da cidade – as pessoas ditas brancas. Isso causou um certo frisson na comunidade americanense. Os rituais eram concorridos, chegando mesmo a ser gravadas em suas dependências cenas do filme Janaína, protagonizado pelo então galã Roni Von, e tendo no elenco artistas como Raul Cortez dentre outros. Desde então, o templo vem realizando seus rituais, apesar do falecimento do Sr. Minarelli no ano de 1982, tendo a partir deste período passado por novos ajustes.

Para enfocar as formas de ajustes verificados no espaço estudado, descreverei agora um dos rituais de iniciação, considerado o mais importante de um templo de umbanda – aquele que inicia novos adeptos. Em alguns templos, só após a iniciação de noviço pode-se dizer que ele pertence ao axé. Na tradição Yorubá o ritual de iniciação é concebido de forma totalmente diferente do que vemos na maioria dos templos de culto ao Orixá no Brasil.

Conforme descreve Verger (1981) em seu livro Orixás, geralmente a iniciação é indicada por um babalaô que, usando da adivinhação, traça o provável destino da criança e determina a iniciação da mesma. A partir do momento em que se inicia não somente o processo, mas também os seus preparativos, os noviços serão chamados de futuros elegun (aquele que pode ser montado). É primordial que se tenha um espaço privado onde os iniciandos permaneçam 17 dias em reclusão. Esse recinto não tem necessariamente que fazer parte integrante do templo, desde que seja um espaço sacralizado. Tal espaço é chamado de Igbó Iku (Floresta da morte).

Os iniciandos são levados à Igbó Iku um certo período antes de sua iniciação, a qual poderá ser uma cerimônia individual ou coletiva. Após os iniciandos terem adquirido todo o material usado para a iniciação, que varia de um Orixá para o outro, bem como de uma região para a outra, tem início o ritual.

A estadia dos iniciandos na Igbó Iku simboliza a passagem para o além, e se faz necessária para que haja a “separação” entre a vida profana e a nova vida consagrada ao deus. Os iniciandos são obrigados, desde a entrada nesse lugar, a tomar beberagens vegetais feitas com infusão de certas folhas, cascas etc. e dedicadas ao Orixá. De acordo com as crenças Yorubá, essas abluções contêm o axé, a força dos deuses. Elas exercem uma ação sobre o cérebro dos iniciandos, deixando-os em um estado de entorpecimento e de sugestionabilidade.

A noite que antecede ao começo da cerimônia é chamada de Aisun (não dormir). O primeiro dia da cerimônia é chamado de Orosise (cumprir a tradição). Nesse dia realizam-se duas cerimônias:



  1. Anlodo (vamos ao riacho): consiste em um banho de purificação, tomado às margens de um rio, com uma infusão de ervas dedicadas ao Orixá. Esse banho ritual simboliza o rompimento com os males da vida profana.

  2. Afejewe (lavamos com sangue): é o nome da próxima cerimônia a que os iniciandos são submetidos, realizada logo após o banho de purificação. Consiste na raspagem ritual dos cabelos dos iniciandos e a colocação do osu (oxu) em suas cabeças previamente iniciadas. O objetivo do osu é sacralizar a cabeça do iniciando, que será chamado a partir de então de adosu (aquele que usou o osu), provando assim sua iniciação. Essa cerimônia se completa com o sacrifício de animais e dança ritual do iniciando montado pelo seu Orixá. A partir desse momento o iniciando torna-se um omo titum (uma criancinha).

  3. Ijeta (o dia do efun): quando o corpo do iniciando é marcado com traços de giz branco ou colorido, com pinturas específicas dependendo do Orixá. Nesse dia os iniciandos são levados para sua primeira aparição em público, sempre guiados por pessoas já iniciadas, as quais andam curvadas sempre atrás deles. Em algumas regiões da África o Ijeta é considerado um dia consagrado a Obatalá (criador dos seres humanos), independentemente do Orixá da pessoa. Nessas regiões os iniciandos são pintados somente com a coloração branca e são envoltos em panos brancos, em sinal de respeito a Obatalá.

  4. Ijeje (dia do Waje): dia em que as cabeças dos oma titum são pintadas. As cabeças dos iniciandos são pintadas de azul-anil, com alguns pontos feitos com osun (ossum), um pó vermelho extraído de uma árvore, podendo haver variações de cores dependendo do Orixá. Depois disso os iniciandos ficam reclusos somente dando oferendas, tendo saídas raras.

  5. Ijetadogun: o décimo sétimo dia desde o começo da iniciação, quando o omo titum torna-se um elegun e passa usar um novo nome. Nesse dia é feita a re-aprendizagem das atividades diárias, para que os elegun comecem a retomar suas atividades cotidianas. O sacerdote faz um longo pronunciamento, com uma série de recomendações e proibições. Logo após é passado a cada elegun o seu novo nome, que deverá ser usado a partir daquele momento. São entoadas diversas cantigas aos Orixás, podendo alguns elegun entrar em transe. Em seguida, novamente os elegun são retirados do recinto. Agora já podem retornar às suas casas e continuar suas vidas, ou melhor começar uma nova vida.

A iniciação que acabei de descrever trata-se, segundo Verger, de um típico processo iniciático de um filho do orixá Xangô, na Nigéria. Segundo esta interpretação, naquele país o elegun só é submetido às cerimônias iniciáticas em um templo ou local dedicado ao seu Orixá. Visto dessa maneira, no Brasil o processo iniciático sofreu algumas modificações. Contudo, parece que mesmo na Nigéria ocorreram ajustes no processo de iniciação, quanto ao período de iniciação, por exemplo.

Segundo Ifa Senu4, hoje em dia até na África já não se segue o mesmo processo como no passado. Antigamente, uma iniciação tinha um tempo de duração máximo de até 42 dias, sendo que no interior da África ainda existem sacerdotes que mantêm esse período. Outros usam 21 dias, outros sete dias, outros três. Atualmente a iniciação pode ser feita em até mesmo um único dia, devido à vida atribulada de nossos tempos. Além disso, a iniciação em um Orixá não só é determinada pelo Babalawo5, ela pode ser também por afinidade e por consangüinidade.

O Babalorixa Olufemi, um sacerdote da cidade de Campinas - SP, teve sua iniciação na Nigéria. Ele descreve a iniciação no sistema Erindelogun67: “o período de iniciação no sistema de adivinhação é de duas semanas. Durante a reclusão os iniciandos podem sair do templo onde estão, sem nenhuma implicação.”

Vale ressaltar que não é necessário passar por nenhum processo inciático na religião Yorubá para usar esse sistema de adivinhação. E mais, não há raspagem da cabeça nem tampouco incisões no corpo. Não é necessário usar traje especial, podendo ser usada roupa no estilo africano. As exigências são no sentido do iniciando decorar os nomes de todas as quedas dos búzios, sob pena de sua iniciação não ser realizada. Participam desse ritual, que deve ser pago, não mais que cinco pessoas.

Nos dois últimos dias do processo é que realmente se dá a cerimônia de iniciação. Prepara-se um amaci8 para que sejam lavados os búzios, bem como a pequena peneira de palha trançada usada para lançar os búzios no momento da consulta. Oferece-se uma cabra ao Orixá, e a mesma depois é preparada e servida a todos os presentes. Toda a cerimônia realiza-se dentro de um templo dedicado ao Orixá Oxum (divindade da fertilidade), na cidade de Osogbo, Nigéria.

Logo após o término da cerimônia, uma das sacerdotisas do templo, Adoni Olorisa, adverte que se o iniciado for um artista para jogar os búzios irá prosperar, ou seja, de nada adiantaria saber de cor os nomes das quedas se não houver fé e a certeza daquilo que está sendo feito.

O ritual brasileiro chega a ser considerado luxuoso em relação ao africano, com exageros nos materiais e na pompa das cerimônias. Por exemplo, na Nigéria não existem ensaios para a saída de obrigações9 como no Brasil. Lá pode ocorrer o caso de uma pessoa virar (ser incorporada) no Orixá, passando pela rua, pois a maior parte das festividades acontece nesse espaço público. Quanto aos recursos gastos no ritual também há diferenças. Na Nigéria é necessário pagar para aprender. Ninguém ensina nada sem dinheiro. Mas o custo do processo como um todo é bem menor que no Brasil.

Partindo destas comparações, pude perceber que verificam-se, portanto, ajustes nos rituais brasileiros, bem como nos africanos. Eles são observados desde o local da iniciação, onde se agrupa em um único templo todo o panteão das divindades Yorubá e mesmo de outras regiões da África, até a cerimônia.

Na Tenda Espírita Pai João o ritual iniciático apresenta características específicas. Para uma pessoa se iniciar como médium10 ela tem que freqüentar o templo durante um certo período, podendo variar de pessoa para pessoa. Em seguida, a pessoa consultará o Pai de Santo, que lhe dirá, através do jogo de búzios, qual Orixá (pai e mãe) governa sua cabeça. Logo após já começarão os processos iniciáticos, com duração de no mínimo sete a oito anos, através de uma cerimônia por ano, sendo a primeira o Batismo, e em seguida a iniciação, com o camarim, mais os preceitos. Uma iniciação de um filho de Oxóssi (divindade das matas e da caça), por exemplo, ocorre da seguinte maneira:

A primeira preparação é a lavagem da cabeça, simbolizando o batismo. Para essa obrigação (nome dado às cerimônias iniciáticas e sagradas de um modo geral) são usados os seguintes materiais: bebidas correspondentes aos seus Orixá; um alguidar11; uma vela de sete dias; guias12 correspondentes aos seus Orixá; roupa branca; um torço (pano usado para enrolar na cabeça); sabão da costa (sabão de coloração preta); uma pemba branca (espécie de giz) para ser riscado o ponto13 no alguidar; água.

O batismo é realizado em cerimônia aberta, em uma sessão comum, sempre nas “Giras dos Orixá”14. São feitos todos os ritos de abertura com defumação, orações, etc. O que distingue o batismo das sessões comuns é que antes das entidades serem evocadas o sacerdote chama o novo filho ao centro do templo e pede para ele se ajoelhar, permanecendo nessa posição. Em seguida, um dos filhos mais velhos do templo, sem cargo elevado na casa, traz um alguidar e o entrega ao sacerdote. Este começa a desenhar no alguidar símbolos representativos do Orixá – dono da cabeça do iniciando. Tais desenhos também são conhecidos nesta casa como ponto, terminologia utilizada também para denominar as cantigas sagradas do ritual. É comum ouvir “...vamos cantar o ponto do Orixá tal”. Uma das mucambas15 acende a vela de sete dias de coloração verde pois, segundo o sacerdote, este é o tempo em que o anjo de guarda tem que ficar iluminado para maior proteção do iniciando. Após o sacerdote ter riscado o ponto volta-se para os presentes, a fim de que eles possam visualizar os símbolos ali marcados. A pequena bacia de barro é colocada na frente do iniciando ajoelhado, imóvel, esperando o andamento da obrigação de cabeça baixa. Primeiro sua cabeça é lavada com água e sabão da costa, ao mesmo tempo em que o sacerdote começa a cantar um ponto característico dessa etapa do ritual: “Vou Lavar, vou lavar, Na Bacia de Ouro de Iemanjá”.

Essa cantiga é entoada em todos os bastimos, independentemente do Orixá do iniciando, sempre acompanhada pelo som de três atabaques. Ela é repetida inúmeras vezes por todos os presentes até o término da lavagem da cabeça. Enquanto isso, o sacerdote pede para que o mau saia da vida do iniciando, e que os Orixá venham abençoá-lo. Em seguida, o sacerdote derrama lentamente cerveja branca – a bebida do Orixá (Oxóssi) – sobre a cabeça do iniciando, sempre orando e pedindo coisas boas para ele. É ainda derramado champanhe – pertencente ao Orixá Iemanjá – sobre sua cabeça, por ele ser filho desse Orixá também. As guias também são submersas na mistura de bebidas que estão depositadas no alguidar com objetivo de cruzá-las16.

Na seqüência do ritual, uma das mucambas recolhe a bacia que foi usada como coletora da bebida e da água jogadas sobre a cabeça do iniciando, e o sacerdote ordena que seja levada à casa do Orixá17. É cantado um ponto para o Orixá do novo iniciando, que conclui essa cerimônia com o semblante sonolento. Levanta-se com certa dificuldade, cambaleando de um lado para o outro. De repente entra em transe, tomado por seu orixá Oxóssi, e é aplaudido por todos os presentes. Logo em seguida, o Orixá deixa o corpo do iniciando e uma das mucambas corre até ele, envolvendo sua cabeça com um torço branco. O sacerdote verifica se o novo adepto está passando bem e segue normalmente a gira, cantando para que os demais Orixá venham incorporar em seus cavalos (médiuns).

A partir daí começa o chamado desenvolvimento do médium, período em que ele se prepara para realizar sua primeira obrigação para seu Orixá – de uma série de sete obrigações além do batismo que virão com o tempo, determinadas pelo sacerdote do templo. Tal desenvolvimento consiste tanto de um aprendizado espiritual quanto material, pois o novo médium terá que aprender as normas e os princípios básicos da religião e do templo em específico.

O processo seguinte, a Iniciação, se divide em duas etapas. A primeira é o camarim18 que corresponde a três dias de recolhimento, oferecido ao Orixá dono da cabeça. Depois disso vêm os preceitos19, com duração de uma noite de recolhimento, que deverão ocorrer, sucessivamente, ano a ano, até se completarem as sete linhas (maneira pela qual são distribuídas as divindades), que são: Oxalá, Iemanjá, Iansã, Oxóssi, Xangô, Ogum, Cosme e Damião. Dentro dessas linhas há ramificações, como é o caso da linha de Iemanjá, chamada também de linha das águas, que concentra todas as linhas de Orixá feminino, subdvidindo-se em Linha de Nanã, de Oxum e de Iemanjá.

Para um médium passar dessa condição para a de Yao20 deve atender a alguns requisitos. Um deles é o chamado enxoval, o qual consiste em: roupas íntimas virgens (sem uso); escova de dente; pasta dental; sabonete; papel higiênico; toalha de banho e rosto; um jogo de lençol (4 peças); travesseiro; dois lençóis brancos sendo um de casal e um de solteiro; prendedores (usados para prender os lençóis fazendo uma espécie de biombo); uma esteira; um prato; uma colher; um copo ou caneca; alfinetes; guias (colares); cobertor; caderno; lápis; cabides; uma camiseta e uma calça branca; uma roupa especial de “gala” do Orixá; e todos os ingredientes usados para o preparo das comidas dos Orixá que serão solicitadas durante toda a cerimônia, sendo que o iniciando deverá deixar uma importância em dinheiro com o sacerdote para que o mesmo possa comprar o que for solicitado. Todas as peças do enxoval deverão ser marcadas com os nomes ou iniciais do iniciando, para que não se misturem com as dos seus irmãos.

Estando completo todo o material solicitado dá-se início à cerimônia. Os iniciandos concentram-se no meio do salão principal do templo para ouvir bençãos e recomendações para os três dias que virão. Ouvem as regras que terão de cumprir para o perfeito desenrolar da cerimônia. As regras são as seguintes: não falar; não levantar (sem que esteja com a toalha cobrindo a cabeça); não pegar nada da mão de ninguém (a pessoa deverá colocar no chão); para solicitar algo só escrevendo em um pedaço de papel e colocando no chão do lado de fora do biombo; não sair do camarim21; se acaso tiver que sair para ir ao banheiro, bater palmas três vezes e esperar a guardiã22; não olhar no espelho e nem diretamente nos olhos de ninguém; não pegar em metal.

Antes do ritual, o iniciando toma um banho simplesmente para higiene pessoal, sem uso de qualquer tipo de infusão de ervas, durante os três dias de duração do camarim.

O sacerdote solicita, então, que os candidatos a Yao se concentrem no meio do templo e pede a eles que esqueçam a vida lá fora, que limpem o corpo e a alma, para o Orixá dono de suas cabeças poder agir em suas vidas. Salienta que eles perderam seus nomes e, quando saírem do camarim, terão uma nova vida, um novo nome. Observa que o camarim não é somente as horas em que eles ficarão recolhidos, mas para vida toda. Alerta-os para não comentar com ninguém algo estranho que possam ver durante esses três dias de recolhimento, pois o Orixá pode trazer ao Camarim o “axé de visão”, provocando nos iniciandos visões, mensagens que só dizem respeito a eles mesmos. Se acaso comentarem, o Orixá poderá se ofender com essa atitude. Outra lembrança feita pelo sacerdote é que eles devem aproveitar ao máximo essa experiência, pois estão gastando dinheiro com ela. O sacerdote faz um último alerta, dizendo que após a reza e as benções os iniciandos não devem mais falar, e inicia a seguinte cantiga: “Ogum esta no aloni, Ni aloni ka i ango“ (vai de mudando o nome do orixá até cantar para todos).

Na seqüência, o sacerdote ora, pedindo proteção de todos os Orixá. Reza um Pai Nosso, uma Ave Maria, um Glória ao Pai e evoca os Orixá, num canto cuja tradução para o português não é permitida: “Fala mameto Kai ango, Omulu quando come lembra do ile. Fala mameto Kai ango, Omulu quando como lembra de tate”.

Nesse momento os iniciandos pedem as bênçãos com uma toalha branca sobre a cabeça e se retiram para os camarins. Eles permanecerão confinados durante três dias até o sábado, quando se dará a cerimônia de levante de camarim. Nessa cerimônia eles serão apresentados para a comunidade em geral como novos iniciados.

Aproximadamente às 16:00 horas no sábado, é feita a mesa dos orixá, onde são colocadas sobre uma toalha branca no chão uma grande quantidade de frutas, é cantada a seguinte cantiga: “Terreiro de Preto Velho tem uma festa de Yao, tem Yao de Oxossi” (e vai mudando os nomes dos orixá) e as frutas são distribuídas pelos Yaos às pessoas convidadas, depois os iniciandos voltam para o recolhimento até o levante de camarim.

O ritual do levante de camarim se inicia por volta das 20:00 horas, com uma cantiga ao orixá Oxóssi, por ele ser o dono da cabeça do sacerdote. Em seguida, um dos médiuns mais graduados entra no salão principal do prédio com o turíbulo23, defumando o templo e as pessoas presentes.

A festividade do levante de camarim se inicia às 20:15 horas, aproximadamente, com a defumação de todos os presentes e do templo como um todo. São feitas as preces de abertura com o templo em clima de festa, muito corre-corre para os últimos detalhes. Este é o clímax da iniciação. Estarão presentes os mais velhos membros da casa, pessoas de outras templos e casas de Orixá. O próprio sacerdote reconhece a tensão que seus preparativos provocam, dada a sua importância.

Para essa cerimônia o sacerdote usa uma roupa em reverência ao Orixá que está sendo levantado: uma túnica longa até os pés, com predominância das cores verde e branca, usando um cocar sobre a cabeça. Com essa vestimenta ele destaca o seu grau hierárquico, pois ela é a única que vai até os pés. Os demais participantes da cerimônia usam camisas de coloração diversa, todas curtas.

O sacerdote inicia a cerimônia com uma cantiga de Oxóssi e desce por uma escada interna que dá acesso ao segundo andar do templo. Minutos depois começa um badalar de sino no lado de fora do templo, na direção da porta de entrada. Quatro pessoas aparecem na porta, segurando um Ala24, simbolizando uma cobertura, uma proteção.


As pessoas que seguram o Ala usam, por cima de suas vestes ritualísticas, uma espécie de sobre-roupa de cor roxa com uma cruz bordada em dourado, lembrando as vestes usadas pelos padres católicos no advento da Semana Santa. Sob o Ala está um dos iniciandos, agora já iniciado, devidamente paramentado com as vestes, armas e apetrechos do seu Orixá. O grupo começa a adentrar no templo, num contexto de emoção crescente, na medida em que o iniciado vai se aproximando da porteira25. Então, o sacerdote ergue uma das mãos e, quase automaticamente, os atabaques que tocavam fazem silêncio, juntamente com a cantiga que estava sendo entoada. Outra cantiga é entoada, enquanto o iniciado começa a adentrar lentamente no espaço do sagrado, cambaleante, quase caindo de um lado para o outro. Num movimento mais brusco inclina-se para frente e para trás, sendo assim montado (incorporado) por seu orixá. Ele dá um grito longo e começa a dançar e a imitar gestos, como se estivesse atirando flechas; a cada flecha um novo grito. Dirige-se ao centro do templo, a fim de que seja colocado sobre sua cabeça um cocar de penas de coloração verde. Nessa cerimônia, o iniciado não usa camisa, somente um short coberto por penas, simbolizando Oxóssi sincretizado por caboclos e índios.
Na seqüência, o iniciado se dirige até o altar, onde ajoelha e repete novamente os gestos de atirar a flecha, repetindo mais duas vezes esse gesto na frente dos atabaques e da porteira, agora no sentido de dentro para fora, a fim de cumprimentar os visitantes também. Várias cantigas são entoadas em louvor a Oxóssi e o iniciado dança por todo o salão, cumprimentando os mais velhos da casa e sendo cumprimentado pelos mais novos.
O iniciado, incorporado por seu Orixá, é, então, colocado na roda a que pertence os já iniciados, ou seja, a roda de dentro, e ali fica dançando, já sem movimentar-se tanto. O sacerdote solicita à Mãe da casa (sua possível sucessora), que vá buscar outro iniciado. Ela repete o mesmo processo, descendo pela escada interna e aparecendo na porta da frente com mais um iniciado e os carregadores do Ala. O processo se repete até o ultimo iniciado entrar no templo.
As pessoas que estão cumprindo somente os preceitos passam por todo o processo descrito, mas não é dada tanta ênfase a elas. A cerimônia tem continuidade até todos os que foram recolhidos sejam apresentados.

Comparando-se o ritual original africano descrito por Verger (1991) com o da Tenda Espírita Pai João e aquele descrito pelos sacerdotes de Campinas e da Nigéria, percebo alguns ajustes importantes. No caso brasileiro, verifica-se uma redução no tempo de duração do ritual, no período de recolhimento, além de modificações nas vestimentas, no resguardo pós-iniciação, dentre outros. No caso da Nigéria, são verificadas transformações relacionadas as mudanças nas condições materiais de existência de sua população. Tenho como hipótese que isso seja resultado de um longo e complexo processo de transformações necessárias para a sobrevivência do ritual, levando em conta desde a localização dos templos até as diferentes formas de organização social, política e econômica dos contextos estudados. Entendo também que a Umbanda, apesar de usar os Orixá africanos em seus rituais, tornou-se no Brasil um ritual próprio, buscando uma harmonia entre a religião católica, o candomblé, o kardecismo e a religião Yorubá.

Esses são os resultados parciais de meu estudo etnográfico. O aprofundamento da pesquisa poderá trazer novas questões e revelar respostas a respeito da sobrevivência da tradição transformada Yorubá na cidade de Americana, e sua manifestação na Tenda Espírita Pai João, o que permitirá a reconstrução fiel de sua história, como me propus no início deste trabalho.


Referências Bibliográficas

ADEKOYA, Olumuyiwa Anthony. Yoruba: Tradição Oral e História. São Paulo: Terceira Margem, 1999, 176 pg.

PRANDI, Reginaldo. Os Candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São Paulo: Hucitec, 1991, 261 pg.

VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. São Paulo, Editora Corrupio Comércio Ltda, 1981, 295 pg.



1 Este estudo é parte integrante de Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Sociais, que vem sendo realizado como exigência para a conclusão do Bacharelado em Ciências Sociais no Instituto Superior de Ciências Aplicadas, ISCA, situado em Limeira, São Paulo.

2 Entendo por ajustes a maneira pela qual alguns rituais e cerimônias foram trabalhados a fim de sobreviver no contexto social em que vivemos.


3 Endereço: http://www.mestredidi.org

4 Sacerdote nigeriano que reside atualmente na Argentina. Entrevista concedida em abril de 2001.

5 Cargo acima do Babalarixa, cuja tradução seria o pai do segredo, segundo Ifa Senu.

6 Sistema de adivinhação usado por seus seguidores, segundo o qual são utilizados dezesseis búzios terra.

7 Entrevista concedida em abril de 2001.

8 Nome dado a uma infusão de diversas ervas e água; azeite de dendê, em alguns casos.

9 Nome dado às festas que são oferecidas nos templos após o término de uma cerimônia de iniciação.

10 Denominação dada nessa Tenda para pessoas que passaram apenas pela cerimônia de batismo, ressaltando o sincretismo com o espiritismo.

11 Espécie de bacia feita de barro, com 25 a 30 cm de diâmetro e 15 cm de altura.

12 Colares confeccionados com miçangas e outros apetrechos.

13 Desenhos e símbolos que representam determinado orixá.

14 Cerimônias que só incorporam as entidades da direita, excluindo o Exu dessas obrigações.

15 Um dos cargos atribuídos dentro da tenda para as pessoas que servem de apoio ao pai de santo.

16 Termo usado para dizer que o colar já está bento, sacralizado.

17 Um quarto onde estão assentados os Orixá.

18 Terminologia usada para referir-se a primeira cerimônia do processo iniciático e ao espaço físico onde o iniciando fica recolhido.

19 Denominação dada às cerimônias que deverão ser feitas após um ano de iniciação por um período de sete anos.

20 Denominação dada nesta tenda para as pessoas que já tenham feito a cerimônia do camarim.

21 Nesse momento a denominação camarim refere-se ao espaço físico. Local separado por lençóis geralmente de cor branca pendurados em arames ou cordas de plástico, formando uma pequena cabana, sem cobertura. Localizado neste templo, no andar inferior do prédio.

22 Pessoa mais graduada responsável para tal função.

23 Recipiente onde são colocadas brasas incandescentes para ser jogados os pós de defumação: incenso, mirra e benjoim.

24 Quatro pedaços de madeira roliço que tem na sua parte superior um pedaço de pano de cor branca amarrado, medindo aproximadamente 2,00 metros de comprimento por1,5 metros de largura.

25 Cerca que separa o espaço do sagrado e o profano, no templo.


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