. Acesso em: maio 2016.
Convento Santa Maria da Graça, Milão, Itália
Leonardo da Vinci. A última ceia, 1495. Afresco, 4,60 m × 8,88 m.
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O progresso das técnicas de reprodução e as alterações da percepção, segundo Benjamin, começam na fotografia e se aprofundam no cinema. Observe que a fotografia, ao contrário da pintura, não tem propriamente um “original”. Seu “original” era o negativo, que só se transformava em fotografia após a revelação, e hoje é o arquivo digital, que vira fotografia ao ser impresso. Como a condição de sua existência é a reprodução mecânica, que possibilita um número infinito de cópias, a fotografia já nasce questionando os conceitos de originalidade e autenticidade. Ela faz circular a imagem de objetos, paisagens, figuras humanas, mas também de obras de arte que eram únicas e só podiam ser contempladas por poucos, por isso mesmo, pareciam envoltas em uma espécie de “aura”. Pense, por exemplo, na Mona Lisa, de Leonardo da Vinci. Durante muito tempo, esse quadro foi visto apenas por aqueles que tinham o privilégio de visitar o Museu do Louvre, em Paris. Hoje, graças à reprodução fotográfica, a pintura de Da Vinci tornou-se presente no imaginário de pessoas de diferentes idades e classes sociais, em vários lugares do mundo. E, graças também à e fotografia, o sorriso enigmático da Mona Lisa pode estampar camisetas, panos de prato, tapetes, almofadas – a imaginação é o limite.
Darius Strazdas/Dreamstime.com
Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, quadro exposto no Museu do Louvre, em Paris (França), 2015.
Chris Dorney/Dreamstime.com
Visitantes fotografando a obra Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, no Museu do Louvre, em Paris (França), 2013.
Debby Wong/Corbis/Fotoarena
Curtis Jackson, conhecido como 50 Cent, no Festival de Música iHeartRadio. Las Vegas, Nevada (Estados Unidos), 2014.
Cultura de massa e indústria cultural
Entre o final do século XIX e a Primeira Guerra Mundial, aproximadamente, ocorreram importantes mudanças que contribuíram para promover novos estilos de vida e novas formas de pensar. Esse curto período conhecido como Belle Époque – assim chamado por causa da paz que as nações europeias gozavam com acentuado desenvolvimento tecnológico e prosperidade econômica – foi propício à ostentação do luxo e à consolidação de uma cultura burguesa. As revoluções que atravessaram o século XIX deixaram marcas profundas na vida política e social dos países europeus. Essas experiências contribuíram para que setores dirigentes – temerosos com a possibilidade de eclosão de novos processos revolucionários – colocassem em andamento políticas sociais no âmbito do trabalho, da seguridade e da educação pública, a fim de conter a agitação das classes trabalhadoras. No início do século XX já se notavam os efeitos dessas políticas, por exemplo, a queda da taxa de analfabetismo da população.
O aumento do letramento e o contexto econômico favorável que levou à melhoria das condições de vida favoreceram a penetração dos meios de comunicação em todos os segmentos sociais – inicialmente, através da imprensa e do rádio. Assim, as diversas manifestações artístico-culturais foram difundidas em larga escala e a uma velocidade sem precedentes. Esses acontecimentos contribuíram para o advento da chamada cultura de massa, ou seja, um tipo de configuração cultural que abrange grandes populações e difere das culturas particulares dos grupos sociais ou da cultura nacional. A sua difusão ocorre por meio dos veículos de comunicação de massa – as mídias.
Na década de 1920, alguns intelectuais alemães começaram a falar de uma indústria cultural, ou seja, de redes de mídias que produziam, distribuíam e transmitiam o conteúdo artístico-cultural visando ao lucro. Um aspecto que chamava a atenção desses intelectuais era a forma como as massas lidavam com as informações veiculadas pelos meios de comunicação e seu comportamento acrítico diante das campanhas publicitárias. A particularidade do produto da indústria cultural seria o enfraquecimento da arte erudita e da arte popular, pois, ao transformar a cultura em mercadoria – sujeita às leis da oferta e procura –, mantinha o público passivo, acrítico, desencorajado a buscar novas experiências, conformado ao conhecido e já experimentado. A arte que se caracteriza por se opor à sociedade – por expressar suas incertezas, contradições e sonhos – estaria perdendo essa capacidade, pois sua mercantilização a transformava em mero reflexo da vontade imediata do consumidor.
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Para Benjamin, o cinema aprofunda as transformações trazidas pela fotografia. Com suas técnicas de filmagem, montagem e edição – close-up, câmera lenta, flashback etc. –, o cinema altera drasticamente nossa percepção do tempo. Com o cinema, aprendemos a incorporar descontinuidades e nos exercitamos como se estivéssemos numa verdadeira máquina do tempo. Se as galerias eram “mundos em miniatura”, o cinema é “o mundo em pedaços”. Um mundo de fantasia, de simulação, de reconstrução e de reapresentação da realidade. Outra coisa que o cinema altera é a concepção de autoria. Além do diretor, há tantas pessoas envolvidas na produção de um filme – os atores, o roteirista, o cinegrafista, o responsável pelos efeitos especiais etc. – que não cabe apontar um único autor.
Com a fotografia e o cinema, a arte saía dos palácios e museus para atingir um número infinito de pessoas. Estabeleceu-se então uma nova forma de interação entre o público e a produção artística, o que gerou uma grande transformação nas relações da arte com seu público consumidor. Ao lado do desenvolvimento de mídias como o rádio e a televisão, a reprodutibilidade técnica criava assim as condições para o nascimento de dois fenômenos bastante atuais: a cultura de massa e a indústria cultural.
Benjamin estava interessado em refletir sobre as alterações ocorridas não apenas nas maneiras de produzir imagens, mas também nas formas de perceber o mundo. Pense em como as pessoas deviam perceber o próprio rosto antes de o espelho se tornar um objeto comum. Elas podiam se utilizar de outras superfícies refletoras, mas certamente obtinham uma imagem menos definida de si. Hoje, ampliando uma fotografia nossa, podemos ver cada detalhe de nosso rosto, cada pequena marca, cada poro. Usando ferramentas de manipulação de imagens podemos ainda alterar detalhes de nosso retrato ou compor imagens inexistentes na realidade, mas que parecem muito “reais” a quem as observa.
Andy Warhol e a Pop Art
A assim chamada Pop Art (abreviatura para Popular Art, ou “Arte Popular”, em português) foi um movimento artístico surgido no final da década de 1950, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Inspirados na cultura de massa, os artistas ligados ao movimento se aproximavam da estética da publicidade para ironizar o consumismo que marcava, já naquela época, a cultura ocidental.
Um dos nomes mais importantes da Pop Art foi, sem dúvida, o norte-americano Andy Warhol. Graduado em design, Warhol começou sua carreira como ilustrador de importantes revistas, como Vogue, Harper’s Bazaar eThe New Yorker, além de fazer anúncios publicitários e displays para vitrines de lojas. Nos anos 1960, já bastante conhecido por seu trabalho como designer gráfico, passou a dedicar-se às artes plásticas. Suas obras rapidamente ganharam fama por carregar temas e conceitos do mundo da publicidade, como o uso de cores fortes e brilhantes e o emprego da serigrafia (técnica de baixo custo usada na reprodução em massa de uma imagem impressa). Estampando repetidamente itens como garrafas de Coca-Cola e latas de sopa Campbell’s, Warhol levava para o campo artístico temas do cotidiano, ironizando o consumismo e sua relação com a publicidade. No mesmo sentido, fez também séries de rostos de celebridades como Marilyn Monroe, Elvis Presley e Che Guevara, mostrando, por meio da reprodução mecânica das imagens, a transformação de mitos em produtos da cultura de massa.
Fotografias: www.bridgemanart.com/Fotoarena, licenciada por © The Andy Warhol Foundation for the Visual Arts, Inc./ AUTVIS, Brasil, 2016.
Andy Warhol. Lata de sopa Campbell’s em sacola de compras. Imagem em saco de compras, 1966. 49 cm × 43 cm.
Andy Warhol. Mosaico de Marilyn Monroe, 1964.
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Graças à invenção de novos instrumentos – espelho, gravador, microscópio, luneta, câmera fotográfica, cinema, computador –, cada época histórica altera a percepção que os seres humanos podem ter da realidade. Benjamin analisou bastante o impacto das invenções na vida das pessoas, ressaltando não tanto seu aspecto “técnico”, mas seu aspecto “existencial”. Um bom exemplo é o da transmissão da memória. As sociedades ágrafas, ou sem escrita, que não dispõem de dispositivos tecnológicos de gravação e difusão da informação, têm uma relação com a memória muito diferente da nossa. Nessas sociedades, a memória está diretamente ligada à transmissão oral dos fatos dignos de serem lembrados e ao compartilhamento da informação entre os mais velhos e os mais jovens. Nossa relação com a memória é outra. Quando queremos nos recordar de um evento coletivo do passado, fazemos uma pesquisa nos livros e nos jornais da época – sem falar na internet. Para nos lembrarmos de nossos primeiros anos de vida, recorremos aos álbuns de fotografias e aos vídeos feitos por nossos familiares. Isso não quer dizer que tenhamos perdido o gosto pelas histórias que nos contam nossos avós, que não compartilhemos oralmente fatos passados ou que não tenhamos mais a experiência afetiva da memória. Mas, como nos diz Benjamin, algo muito importante mudou, primeiro com a introdução da escrita, depois com as inúmeras ferramentas de busca e de difusão da informação que encontramos a nosso dispor. Já não há necessidade de estar no mesmo espaço físico aquele que busca a informação e aquele que a transmite. No caso da internet, muitas vezes nem sabemos de onde veio uma informação capaz de alcançar milhares de pessoas.
Benjamin sempre procura, nos fenômenos sociais que observa, ponderar o que há de positivo e de negativo. Ele reconhece, por exemplo, os benefícios que a reprodução técnica oferece a um contingente maior de pessoas em termos de ampliação do acesso às obras de arte e de preservação delas. Sua análise, de maneira geral, permite-nos ver a realidade como uma estrada que se abre em vários caminhos possíveis. Se isso muitas vezes complica o entendimento de suas reflexões, certamente as torna mais desafiadoras e interessantes.
Expressionismo
A Belle Époque caracterizou-se por intenso desenvolvimento tecnológico. No campo artístico, os exemplos mais marcantes foram o surgimento da fotografia e do cinema, que acabaram por desencadear uma profunda reflexão sobre a arte. Diante da possibilidade de capturar a realidade (estática ou em movimento) por meio de processos mais simples, ágeis e reprodutíveis, quais razões haveria para a pintura, literatura, escultura, dança, teatro, música, enfim, para todas as manifestações artísticas continuarem imprimindo realidade às suas obras?
Foi com base nessa reflexão que se desenvolveu, no início do século XX, na Alemanha, um movimento cultural que procurou ultrapassar as concepções impressionistas da arte buscando novas linguagens para que o artista pudesse se comunicar com seu público. Esse movimento ficou conhecido como Expressionismo e, embora tenha perpassado todos os campos artísticos, teve na pintura seu terreno mais fértil. O Expressionismo constituiu-se, primeiro, num estilo que preconizava a deformação da realidade com o objetivo de expressar as emoções do artista em relação à natureza e ao ser humano retratando seu mundo interior. O movimento rejeitava a descrição objetiva da realidade, ou seja, a cópia do real. A ruptura com os pressupostos da arte impressionista fez com que o Expressionismo e todos os movimentos artísticos associados (Fauvismo, Cubismo, Surrealismo, arte abstrata) se tornassem sinônimos de arte moderna e de vanguarda.
Os vanguardistas queriam que suas obras expressassem o inconsciente coletivo da sociedade que representavam e que os espectadores participassem ativamente da compreensão de suas obras. Após a Segunda Guerra Mundial, o Expressionismo desapareceu como estilo artístico, mas continuou influenciando muitas correntes artísticas da segunda metade do século XX.
© ENSOR, JAMES/Licenciado por AUTVIS, Brasil, 2013. Menard Art Museum, Komaki, Japão/ Fotografia: DeAgostini/Glow Images
James Ensor (1860-1949). Autorretrato com máscaras, 1899. Óleo sobre tela, 117 cm × 82 cm.
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Por que tiramos e postamos tantos selfies?
O ato de tirar um autorretrato e publicá-lo para que todos possam ver talvez diga mais sobre a natureza humana do que sobre um suposto narcisismo da era digital.
É uma tradição: anualmente o Oxford Dictionary escolhe um termo da língua inglesa que considera a “palavra do ano”. São conhecidos os debates entre os linguistas da casa ao redor do termo da vez, que raramente é unânime. Não foi o que aconteceu em 2013. “A decisão foi unânime, quase não houve discussão”, escreveu a equipe da secular publicação britânica em seu blog oficial. A palavra de 2013 foi “selfie”. A palavra em si não é nova: há registros do uso do termo “selfie” para definir uma foto de si mesmo sendo usada em 2002, em um fórum australiano. Se a palavra não é nova, a ideia de tirar o próprio autorretrato é muito menos: as pessoas tiram selfies desde antes da chegada da câmera digital, reproduzindo uma expressão artística histórica — afinal fotógrafos e pintores os produzem há séculos. O primeiro selfie da história é atribuído ao fotógrafo Robert Cornelius, que em 1839 tirou uma foto de si mesmo. [...]
O que mudou em 2013 é que nunca foram tirados tantos selfies. A terceira tag mais popular do Instagram é #me e a lista das celebridades que tiram autorretratos e os publicam on-line saiu da esfera pop, chegando até a líderes políticos [...].
A psicóloga Pamela Rutledge, que analisa o impacto das redes sociais e da tecnologia na sociedade, [...] é otimista sobre a maneira como nós lidamos com estas formas de exposição on-line e diz que é forma de contato e comunicação. [...] “Dizer que a cultura dos selfies pode impactar a personalidade dos adolescentes e torná-los mais egocêntricos é exagero”, diz. “O impacto social não tem a ver com selfies, mas com presunções de agentes individuais e controle e com quem tem direito do quê. É a primeira vez na história que as pessoas podem ser, ao mesmo tempo, o agente e o artista”, conclui.
“Ao combinar um meio conveniente e ágil de produzir fotos com uma conexão permanente e rápida à rede de amigos, o uso da fotografia como veículo de conversas entrou na vida das pessoas com surpreendente naturalidade”, analisa o fotógrafo Mario Amaya. [...] O clichê “uma imagem vale mais do que mil palavras” não é um clichê à toa.
Mas que ninguém decrete morte ao texto escrito! O sociólogo Ben Agger, da Universidade do Texas, diz que essas formas de comunicação já convivem harmoniosamente e vão continuar assim. “[...] O desafio é ler, interpretar e desvendar imagens para enxergar o ‘texto’ que elas realmente contam”, propõe. Ou seja, um selfie pode ser muito mais do que um selfie e talvez, instintivamente, todos nós saibamos interpretar as mensagens por trás dessas imagens. Afinal, se não fosse o caso, não estaríamos cercados por estas fotos.
FREITAS, Ana. Por que tiramos e postamos tantos selfies. Galileu, 21 fev. 2014. Disponível em
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