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(49) Douglas Fischer, O princípio da ampla defesa e as condutas com intuito meramente protelatório no procedimento processual penal, in RT, São Paulo, Ano 88, vol. 761, março de 1999, p. 509-512. Como anota Kaethe Grossmann (op. cit., p. 283), o contempt of court (falta de res- peito aos tribunais), na base do dever de dizer a verdade, foi sempre uma característica do processo inglês, pautado na sinceridade e Iealdade processual, sem que houvesse necessidade de um preceito categórico. O direito americano, nas unidades da Federação que adotaram o contempt of court, a exemplo do Estado de NovaYork, reconhece, sob o mesmo aspecto, um dever de veracidade.
(50) Ripert, op. cit., p. 167.
(51) Planiol, op. cit., tomo II, p. 337. Assim, segundo a jurisprudência do Tribunal do Reich, fartamente citada por Ennecerus, a greve, o lock-out
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intenção única e exclusiva de prejudicar, sem nenhum proveito pró- prio.52 Haveria aqui um misto de investigação e prudência.
Ulderico Pires dos Santos, escrevendo no ano em que o Código de Processo Civil de 1973 entrou em vigor, assume posição nitidamente objetivista. Para ele, o novo Código proscreveu a prática da ação antijurídica no exercício do direito subjetivo, contrária às normas do convívio social. Diz que a questão do abuso do direito na demanda deve ser resolvida na esfera dos princípios gerais do direito e não no campo da responsabilidade civil. Perfilhando-se à tese sustentada por Roberto Goldschmidt (vista no capítulo anterior), Ulderico Pires entende que o ponto central de uma teoria do abuso do direito reside no conceito de antijuridicidade e não de culpabilidade. Reconhece, entretanto, que à falta de uma orientação unívoca, viriam à baila novamente discussões acerca da teoria a ser aplicada no caso de infringência da regra dos arts. 14,16,17 e E a doutrina, a propósito, tomou orientação subjetivista.54
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e o boycott, principais armas na luta de classes e salários, não são imorais pelo simples fato de exercer pressão econômica e provocar danos para o empregador, pois, se assim fosse, ter-se-ia de proscrever toda luta dos trabalhadores. Somente o emprego de meios imorais, com a divulgação de informações falsas e provocativas, ou mesmo a persecução de finalidades reprováveis, tais como a vingança e a aniquilação econômica do empregador, configurariam o abuso do direito (Tratado de Derecho Civil, vol. 2, 2a Parte, 3. ed., Barcelona, Bosch, Casa Editorial, 1970, p. 1.085).
(52) Nesse sentido, ver Ripert (op. cit., p. 178) e Planiol (op. cit., p. 337).
(53) Ulderico Pires dos Santos, Ligeiros traços sobre o dano processual no novo Código de Processo Civil, in Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano 70, abril, maio e junho de 1974, vol. 246, fascs. 850-852, p. 316-319.
(54) Moacyr Amaral Santos, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil (adaptadas ao novo Código de Processo Civil), 3. ed., vol. 2, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 277-281; Hélio Tornaghi, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 1, São Paulo, RT, 1974, p. 150-155; Caio Mario da Silva Pereira, instituições de Direito Civil, vol. 1, 1 9. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 998, p. 429-43 1; Arruda Alvim, Resistência injustificada ao andamento do processo, in Julgados dos Tribunais de Alçada Civil de São Paulo, São Paulo, Ano 1 5, vol. 66, Lex, 2.° bimestre, março
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A exposição de motivos do Projeto de Lei que se transformou no Código de 73, ao tratar das inovações relativas ao deveres e responsabilidades das partes e de seus procuradores, deixou de tomar posição a respeito da polêmica entre subjetivistas e objetivistas.55 De qualquer forma, a intenção, como elemento conotativo e denotativo da má-fé processual, aparece, textualmente, nos incisos 11, 111 e IV do artigo 17 do Código de 73. Nos incisos I, V, VI e VII, vislumbra-se alusão genérica à culpa grave ou ao erro grosseiro, equiparado ao dolo, que surge, respectivamente, nas expressões cuja falta de fundamento não possa razoavelmente desconhecer; 56 resistência injustificada; proceder de modo temerário e provocar incidentes manifestamente infundados.57
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e abril, 1981, p. 13-22. Para Celso Agrícola Barbi, mesmo nas hipóteses em que a lei deixa de fazer referência à intencionalidade, está implícita a noção de culpa grave (Comentários ao Código de Processo Civil, 6. ed., vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 1991, p. 102). No mesmo sentido alinha-se Yussef Said Cahali (Honorários Advocatícios, São Paulo, RT, 1978, p. 43). Em verdade, os processualistas, tanto quanto os civilistas, inspiraram-se na tradição do direito francês (a propósito, vide nota 15 da seção anterior).
(55) A respeito, v. o Capítulo IV, item 111, alínea a, 1 7, da Mensagem 2 1 0, de 02 de agosto de 1972, encaminhada ao Congresso Nacional.
(56) Entende-se que a expressão fundamento, utilizada pelo Iegislador, faz referência às questões de fato e também às questões de direito, de onde se conclui que o erro de direito, se inescusável, é incompatível com a boa-fé.
(57) Hélio Tornaghi (op. cit., p. 152) diz que o Iegislador de 1973 evitou a expressão lide temerária, porquanto esta não é compreensiva do dolo, preferindo, em seu lugar, o termo litigância de má-fé. O texto original do Código de 73 (Lei Federal 5.869, de 1 1 de janeiro de 1973), é o seguinte: Art. 16. Responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente. Art. ¡ 7. Reputa-se Iitigante de má-fé aquele que: T — deduzir pretensão ou defesa, cuja falta de funda- mento não possa razoavelmente desconhecer; 11 — alterar intencional- mente a verdade dos fatos; 111 — omitir intencionalmente fatos essenciais ao julgamento da causa; IV — usar do processo com o intuito de conseguir objetivo ilegal; V — opuser resistência injustificada ao anda- mento do processo; V1 — proceder de modo temerário em qualquer inci-
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Aliás, como observa Alexandre de Paula, as disposições dos artigos 16 e 17 do Código de 73, somadas àquela do artigo 18 (que prevê o dever de pagar honorários advocatícios, além de custas e despesas processuais à parte lesada pela litigância de má-fé), nada mais fazem do que repetir os preceitos do art. 3.° e parágrafo único, bem como do artigo 63, § 1 .°, ambos do Código de 3958 Na orientação do
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dente ou ato do processo; VII — provocar incidentes manifestamente infundados. Como registra Alcides de Mendonça Lima (op. cit., p. 60 e 6 1), estes artigos não podem ser dissociados dos preceitos dos arts. 14 e 15. Diz o art. ]4 que Compete às partes e aos seus procuradores: I— expor os fatos em juízo conforme a verdade; 11- proceder com lealdade e boa-fé; 111- não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; IV- não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito. O artigo 15, por sua vez, dispõe: E defeso às partes e a seus advogados empregar expressões injuriosas nos escritos apresentados no processo, cabendo ao iuiz, de oficio ou a requerimento do ofendido, mandar riscá-las. Segue o parágrafo único: Quando as expressões injuriosas forem proferidas em defesa oral, o juiz advertirá o advogado que não as use, sob pena de lhe ser cassada a palavra. Como será possível ver mais adiante, o texto dos artigos 17 e 18 sofreu algumas modificações, respectivamente, com o advento da Lei Federal 6.771, de 27 de março de 1980, e da Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1994. Diga-se ainda que a lei Federal 10.358, de 27/12/01, inseriu mais um inciso, além de um parágrafo único no artigo 14, no qual o legislador dispôs sobre a aplicação da multa dc 20% à parte que deixar de cumprir com exatidão os provimentos mandamentais, criando obstáculo à antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional. Na época da tramitação do Anteprojeto, a doutrina já assinalava uma tendência de recrudescimento da repressão ao abuso do processo (Sidnei Agostinho Beneti, A segunda fase da reforma processual civil, in Caderno de Doutrina, julho-agosto de 1999 — encarte da Tribuna da Magistratura, órgão de imprensa da Associação Paulista dos Magistrados, São Paulo, p. 139-143).
(58) Alexandre de Paula, Código de Processo Civil Anotado, 4. ed., São Paulo, RT, vol. 1,1988, p. 96-99. No mesmo sentido, v. Alcides de Mendonça Lima, (op. cit., p. 60 e 61 ), Yussef Said Cahali (op. cit., 37) e José Carlos Barbosa Moreira (Responsabilidade das partes por dano processual, in Revista de Processo, São Paulo, Ano 111, abril-junho de 1978, ed. 10, p. 21 e 22). Os autores citados registram que o legislador brasileiro se inspirou no art. 456 do Código de Processo Civil português. Assinala
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Código atual59 também prevalece a diversidade de fundamento, quanto à condenação ao pagamento das despesas e dos honorários advocatícios, no caso de sucumbência e litigância de má-fé. Como diz a Exposição de Motivo, lembrando Chiovenda, o princípio do sucumbimento é o fato objetivo da derrota,6° ao passo que a litigância de má-fé implica a imposição de sanções processuais.
Subsiste, portanto, a orientação da doutrina ao tempo do Código de 39,61 mormente à vista do disposto no artigo 14, 11, do Código
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Alexandre de Paula que o Código de 73 não reproduziu a sanção prevista no artigo 63, § 2.° (condenação no décuplo das custas), e nem a previsão contida no § 3.° (comunicação à autarquia corporativa), muito embora, quanto a esta última, houvesse previsão no art. 24 do Projeto enviado ao Congresso Nacional. Arruda Alvim, bem por isso, sustenta que o artigo 1 6 não se aplica ao procurador das partes, mas somente aos sujeitos do processo. Se a parte tiver sido lesada pelo advogado, haverá de voltar-se contra ele em ação própria (Código de Processo Civil Comentado, São Paulo, RT, vol. 11, p. 147, e Resistência injustificada ao andamento do processo, in Julgados dos Tribunais de Alçada Civil de São Paulo, São Paulo, Ano 15, vol. 66, 2.° bimestre, março e abril de 1981, São Paulo, Lex, p. 18 e 19). A atuação abusiva do advogado está disciplinada no Estatuto da Advocacia (art. 34, incisos VI, IX, X e XIV). Em alguns casos, a conduta abusiva do advogado dá lugar à responsabilidade civil (art. 32, parágrafo único, da Lei 8.906/94). Por isso, o Código de Ética dispõe que o advogado não deve fazer alegação grave, quer implique juízo de fato ou juízo de valor, sem autorização, por escrito, do cliente, sob pena de responsabilidade solidária (Código de Etica Profissional, Seção IV, inciso 11, alínea c). A propósito destas questões, colhe a atual redação do art. 14, parágrafo único, do CPC.
(59) O atual art. 1 8 prevê o pagamento de multa e indenização, além do valor dos honorários e das despesas processuais, no caso de Iitigância de má-fé.
(60) Capitulo IV, item 111, alínea a, 17, da Mensagem 210, de 02 de agosto de 1972, encaminhada ao Congresso Nacional. O registro quanto à unidade da orientação, entre os Códigos de 39 e 73, naquilo que diz respeito à diversidade de fundamentos da condenação com base na sucumbência e na Iitigância de má-fé, também é feito por Helio Tornaghi (op. cit. p. 1 52) e por Alcides de Mendonça Lima (op. cit., p. 59).
(61) J. M. de Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, vol. 1, Rio de Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 85-1 13
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de 73. Sucede apenas que este Código foi mais explícito quanto às condutas abusivas do réu ou interveniente. Tanto quanto o autor, responderão por perdas e danos nas hipóteses de emulação, mero capricho ou erro grosseiro. Age por espírito de emulação aquele que, malgrado a convicção do próprio direito, conduz-se no processo apenas com o objetivo de prejudicar o outro, sem nenhum proveito próprio. Limítrofe é a noção de mero capricho. Aqui, a caracterização do uso anormal do processo independe da existência do real proveito que a parte possa retirar de sua conduta processual. A par- te que desenvolve estratégias de coação, infundindo temor no espírito do adversário, tanto poderá estar agindo por emulação como por simples capricho. Pontes de Miranda admite que a noção de mero capricho alude a estado psíquico que a própria psicologia dificilmente fixaria. Vai da puerilidade à teimosia, da teimosia à maldade insistente, à crueldade.62 Por último, o erro é ato involuntário. Quando grosseiro, a doutrina costuma equipará-lo ao dolo. A Iitigância de má-fé compreenderia, então, as condutas dolosas, acima descritas, e também a lide temerária, que diz com a conduta culposa.
Assim, a despeito das dificuldades em estabelecer a intenção abusiva e conquanto o Código de 73 houvesse sublinhado o caráter publicístico do processo, 63 certo é que o exame do exercício anormal
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e 268-27 1; Pontes de Miranda, Comentárjos ao Código de Processo Civil, tomo I, 2. ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1 958, p. 145- 154; Pedro Baptista Martins, Comentárjos ao Código de Processo Civil — Decreto-Lej 1.608, de 18 de Setembro de 1939, vol. 1, Rio de Janeiro, Revista Forense, p. 34-49 e I 94-2 1 1.
(62) Pontes de Miranda, Comentárjos ao Código de Processo Civil, tomo I, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 146.
(63) Como diz a exposição de motivos do Projeto, O processo civil é um instrumento que o Estado põe à disposição dos litigantes, a fim de ad- ministrar ajustiça. Não se destina a simples definição de direitos na luta privada entre os contendores. Atua, como já observava Betti (Diritto Processuale Civile, pág. 5), não no interesse de uma ou de outra parte, mas por meio do interesse de ambos. O interesse das partes não é senão um meio, que serve para conseguir a finalidade do processo na medida em que dá lugar àquele impulso destinado a satisfazer o interesse pú- blico da atuação da Iei na composição dos conflitos. A aspiração de cada
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do direito de demanda, no sentido lato, pressupõe, no mais das vezes, a investigação do dolo ou da culpa. O legislador, quiçá impressionado com a acirrada controvérsia em torno do conceito de boa- fé e de bons costumes, preferiu estabelecer limites ao poder do órgão jurisdicional que, em tese, somente está autorizado a ultrapassá-los nas hipóteses expressamente previstas em lei. 64 A propósito da conduta das partes, é possível falar em abuso processual tanto no que concerne ao conteúdo das alegações, quanto naquilo que diz respeito à forma por que as partes atuam no processo.65 Trata-se, respectivamente, do dever de veracidade e da obediência às chama- das regras do jogo.
A distinção proposta cumpre apenas função metodológica, por- quanto há de se reconhecer pontos de interseção entre o dever de dizer a verdade e o dever de respeitar as regras do processo. E certo
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uma das partes é a de ter razão; a finalidade do processo é a de dar razão a quem efetivamente a tem. Ora, dar razão a quem a tem é, na realidade, não um interesse privado das partes, mas um interesse público de toda a sociedade (Cap. 111, item 1, 5, da Mensagem 210, de 02 de agosto de 1972).
(64) Diz-se em tese porque à questão do abuso processual interessa muito mais o aspecto valorativo do que o psicológico. Esta percepção vê-se confirmada em alguns trabalhos doutrinários e julgados. José Carlos Pestana de Aguiar Silva, na base de sua experiência como Titular da 5 a Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, diz que age com abuso do direito previsto no art. 3.° do Decreto-Lei 9 1 1/69 o credor fiduciário que apreende o bem extrajudicialmente, cuidando depois para que o oficial de justiça, através de certidão, em cômoda diligência, ratifique o ato clandestino. Ainda que não configurado o objetivo ilegal ou a intenção maliciosa, é certo que esta convalidação, de duvidosa validade, poderá trazer prejuízos ao fiduciante, no momento da apuração do saldo deve- dor, por exemplo (Do abuso de direito do credor na alienação fiduciária, Revista Jurídica, Porto Alegre, 92, 1979, p. 89-91).
(65) A tipologia adotada tem como base, com algumas modificações, a classificação proposta por José Carlos Barbosa Moreira, a quem cabe, na doutrina brasileira, o mérito de ter desenvolvido um tratamento sistemático da questão relativa ao abuso do direito no processo civil, como posta pelo Código de 73 (Responsabilidade das partes por dano processual, in Revista de Processo, São Paulo, Ano 111, abril-junho de 1 978, ed.l0,p. 15-31).
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que vige, a partir do Código de 73, o princípio dispositivo, reflexo do direito material das partes, de natureza privada, no andamento do processo. Levado às últimas consequências, implicaria a impossibilidade de o juiz ocupar-se de fatos que a parte não quer lhe sub- meter. Todavia, como observa Chiovenda, é impróprio cogitar de limites estanques entre o princípio dispositivo e o princípio inquisitório, que se temperam, em proporção diversa, conforme os tempos e os lugares.66
As regras do processo servem, segundo orientação declarada na Exposição de Motivos, à atuação da lei na composição dos conflitos. Trata-se de concepção disposta a conciliar as diversas teorias que buscam explicar a finalidade do processo. Para alguns, o pro- cesso visa à tutela dos direitos subjetivos ameaçados ou violados. Outros, sustentam que se destina à atuação do direito subjetivo. O legislador, de forma eclética, adotou posição segundo a qual o pro- cesso procura a satisfação do interesse social da paz jurídica, através da aplicação da lei ao caso concreto; não basta a composição, qualquer que seja, contanto que ponha termo à lide, como sucedia nos tempos primitivos, na fase embrionária do processo; não se quer a paz a qualquer custo, mas sim dar razão a quem efetivamente a tem, segundo os ideais de justiça reconhecidos pela norma.67 As regras processuais, orientadas à consecução destes objetivos, têm de se guiar pelo dever da verdade.
Os princípios éticos inscritos na norma do artigo 14 e incisos do CPC de 73 são regras orientadas, precisamente, pelo dever da
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(66) Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, vol. 11, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 345. Como registra AIcaIá-Zamora y Castilho, será muito difícil, senão impossível, encontrar códigos que correspondam única e exclusivamente a um destes rótulos (Estudios de Teoria General e Historia del Proceso, tomo 11, números 1 2-30, México, Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de Investigaciones Jurídicas, 1974, p. 261 e 262). No mesmo sentido, v. Eduardo J. Couture, Estudjos de Derecho Procesal Civil, 2. ed., tomo 111, Buenos Aires, Ediciones Depalma, 1978, p. 246.
(67) Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, vol. 1, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 37-46.
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verdade. Falta com este dever a parte que declara alguma coisa diversa daquilo que está no seu pensamento, consciente de que assim o faz. Na tradição dos latinos, importa considerar não só a conformidade de um relato com os fatos, mas a vontade, o querer. O mentiroso é aquele que burla o intelecto, comunicando algo diferente daquilo que está em sua mente. Daí o substrato ético das disposições contidas no art. 17, incisos I, 11, 111, IV, V e VII, do Código de 73, que se orientam pela veritas dos latinos.68 Neste termos, o que se tem aqui não é propriamente uma disputa entre realismo (uma coisa é verdadeira porque corresponde à realidade extema) e idealismo (uma coisa corresponde à realidade externa porque é verdadeira), mas sim a dimensão da vontade que deseja a verdade ou a mentira, o que coloca o direito no campo de uma razão prática. Essa orientação viu-se um tanto alterada pelas modificações que a Lei 6.771, de 27 de março de 1980, operou em algumas regras contidas naquele artigo.
Assim é que o atual inciso I do artigo 17, no Iugar de fixar-se em um aspecto subjetivo de difícil apreensão (deduzir pretensão ou defesa, cuja falta de fundamento não possa razoavelmente desconhecer) coloca a questão da verdade em bases mais objetivas (deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso). Suprimiu-se o advérbio intencionalmente do texto do inciso 11, com o que o legislador abandonou o psicologismo contido na fórmula anterior. A regra do inciso 111 desapareceu, o que implicou a reordenação dos subsequentes. Esta supressão tem importantes desdobramentos, que serão analisados na última seção do
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(68) Registre-se que o autor do Anteprojeto do Código de 73, citando, en ¡)assant, a concepção dos gregos (a verdade é a relação entre aquilo que se afirma e o que está na própria coisa e que assim se apresenta à razão — aletheia) bem como a concepção dos Iatinos (a verdade não se refere às coisas, mas à conformidade do relato com os fatos acontecidos, o que também se insere no campo da vontade, do querer — veritas), consigna que a alteração da verdade, segundo o Iegislador brasileiro, consiste na inadequação entre a afirmação e a realidade. Sustenta, entretanto, em diversas passagens, uma concepção subjetivista de verdade (Alfredo Buzaid, Processo e verdade no direito brasileiro, in Revista de Processo, Ano XII, 47,julho a setembro de 1987, p. 92-99).
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presente capítulo. Por ora, importante é o registro de que a lei processual, pouco a pouco, foi-se afastando da prova subjetiva referente ao ânimo emulativo do litigante (muito embora se tenha de reconhecer que essa orientação ainda subsiste em alguns dispositivos, do que é exemplo a regra do art. 17, inciso VII, do CPC).
Mas a apreciação da forma pela qual as partes atuam no processo nem sempre está relacionada ao conteúdo das alegações. Muitas vezes o legislador mostra-se mais preocupado com a correção for- mal, com a obediência a regras ad hoc — que têm por escopo a garantia da decisão — do que propriamente com a realidade objetiva. Trata-se de normas de correção interna do sistema processual, que desenvolve uma lógica particular, como acontece nos jogos, que necessariamente têm de ter um desfecho, por maior que seja o número de Iances ou partidas. Assim sucede nos casos em que a lei, no lugar de aplicar uma sanção processual, elimina ou simplesmente desconsidera os efeitos produzidos pela conduta processual incorreta (arts. 181, 243, 245 e 808, 11, todos do CPC de 73).69 Aqui, não tem sentido cogitar de responsabilidade. Trata-se de simples ônus processual.70
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(69) Não se há de perder de vista, entretanto, que, se em qualquer dos casos enumerados, ficar configurada litigância de má-fé, conforme definida no artigo 17 do CPC, a parte responderá por perdas e danos (art. 16).
(70) José Olímpio de Castro Filho pensa de forma diversa, classificando a nulidade como uma das formas de sanção (op. cit., p. 193 e 209). Diz o mesmo, quanto à inexistência dos efeitos da interrupção da prescrição, nos casos em que a citação deixa de ser feita a certo prazo. O instituto da preclusão, na ótica do processualista mineiro, também é pena. Parte o autor do pressuposto (diga-se, nem sempre verificado) de que a parte teria agido com malícia, obstando à celeridade do processo, pelo que caberia condenação nas penas de litigância de má-fé (op. cit., p. 154). A posição do processualista mineiro, todavia, não está orientada pela moderna doutrina, que distingue claramente ônus e dever processual. Assim é que o dever como obrigação que é, limita o livre-querer da parte. Por contrapor-se à noção de conduta processual antijurídica, o conceito de dever processual está de certa forma ligado à idéia de sanção (mas não necessariamente). Neste ponto, aliás, reside a dificuldade de extremar o campo jurídico e o campo moral). De outra parte, o ônus processual não implica a idéia de obrigação. Trata-se de um encargo,
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