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palavra, numa determinada comunidade, passa a provocar nos ho- mens certas idéias de maneira tão pronta e constante, que eles se põem a supor a existência de um vínculo natural.33
A semiótica moderna, entretanto, faz restrições a esse ponto de vista. A separação entre idéias e palavras, como se aquelas pudessem existir independentemente destas, desconsidera o fato de que a significação não vem apenas da percepção das coisas. Ela é, sim, o resultado da conjugação entre significante (palavra) e signficado (idéia).34 Na Semiologia de Sausurre, por exemplo, a palavra arbitrário não significa que o plano de expressão dependa da livre escolha do falante, visto que nenhum indivíduo pode mudar o signo estabelecido pelo seu grupo lingüístico. Arbitrário quer dizer imotivado, já que o significante não guarda nenhum vínculo natural
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(33) John Locke, Ensayo sobre el entendimiento humano, Bogotá, Fondo de Cultura Económica, 1994, Livro Terceiro, Cap. 11, § 8, p. 397 e 398.
(34) A crítica é feita por Winfried Nöth (op. cit., p. 47), na base da semiótica de Sausurre. A semiologia de Sausurre vem exposta no seu Curso de Linguística Geral, obra póstuma que reúne apontamentos das aulas que ministrou na Universidade de Genebra, como compilados por alguns de seus discípulos. Para ele, a Iíngua é um sistema de signos que, por sua vez, exprimem idéias. A relação entre significante (palavra) e significado (idéia) é estabeiecida com base em um sistema de regras (língua). O signo é, assim, uma coisa dupla, constituída de dois termos. Todavia, a idéia que o signo exprime não tem um sentido metafísico, como aquele que se pode encontrar em Platão. Ela não é anterior à palavra. O signo é um artifício comunicativo, do qual se valem dois seres humanos, dentro de uma determinada sociedade (Ferdinand de Saussure, Curso de Lingüística Geral, São Paulo, Editora Cultrix, s/d, Introdução, Cap. 3; Primeira parte, Cap. 1, p. 1 5-25 e 79-84). Para Umberto Eco, Saussurrejamais definiu claramente o significado, deixando-o a meio caminho entre uma imagem mental, um conceito e uma realidade psicológica; em compensação, sublinhou energicamente o fato de o significado ser algo relacionado à atividade mental de indivíduos no seio da sociedade. Contudo, segundo Saussurre, o signo exprime idéias e, mesmo aceitando-se que ele não estava pensando numa acepção platônica do termo idéia, persiste o fato de que suas idéias eram eventos mentais em uma mente humana (Umberto Eco, Tratado Geral de Semiótica, São Paulo,Editora Perspectiva, 1976, ColeçãoEstudo, p. 10).
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com o significado, nem mesmo na Iinguagem onomatopéica.35 A dimensão social do uso da linguagem aparece, em Sausurre, na referência ao símbolo dajustiça. A balança não poderia ser substituí- da por um objeto qualquer, um carro, por exemplo. Daí porque o símbolo nunca é completamente aleatório.36 A mais disto, conquanto Locke houvesse acentuado o aspecto referencial em sua teoria do conhecimento, certo é que ele não cuidou de diferenciar com muita clareza a experiência sensual e a experiência racionaL Não se sabe se os conceitos são resultado de processos lógicos ou percebidos pela intuição. E difícil dizer o que se tem na mente ao pronunciar determinada expressão. Não há como conceber uma idéia da palavra de ou do, independente da palavra mesma, das funções gra- maticais que ela desempenha. Ao sustentar que o aparecimento da idéia de abuso do direito dá lugar à emissão da expressão abuso do direito (e vice-versa) o idealismo empirista de Locke não consegue explicar a hipótese de a expressão estar sendo enunciada fora do contexto usual. Neste caso, ficaria difícil saber a que idéia corres- ponderia a expressão.
Berkeley e Leibniz foram dois críticos do Ensaio sobre o en- tendimento humano. Todavia, o idealismo de suas teorias também não permitiu ultrapassar as dificuldades acima apontadas. Leibniz sustenta que Deus não só inspirou o desejo dos homens de relacio- nar-se como também lhes deu o dom da palavra, faculdade que os une, instrumento do qual se servem para representar e explicar as idéias. Fruto dessa sociabilidade, a palavra foi formada e aperfeiçoada progressivamente. Há povos, contudo, a exemplo dos chineses, que variam suas palavras, em número reduzido, através de tons e acentos. Por isso, um célebre matemático, Gólio, acreditava que a língua dos chineses é artificial, ou seja, inventada pelo homem para
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(35) Saussure, op. cit., p. 81-84.
(36) Idem, p. 82. Ao sustentar que a escolha do significante tem condicionamentos sociais, Saussurre afasta-se da concepção platônica, que se pode ver em Crátilo, vale dizer, de um convencionalismo radical, fundado em uma petição de principio, pois não se concebe como o homem poderia ter estabelecido convenções lingüísticas sem antes conhecer a linguagem (William P. Alston, op. cit., p. 89).
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que as diversas nações daquele país pudessem comunicar-se. Enfim, na concepção idealista de Leibniz, as palavras também são si- nais das idéias. Tanto quanto Locke, ele acredita que o sentido não brota de um nexo natural, pois, fosse assim, haveria uma única língua entre os homens. Trata-se de uma convenção arbitrária, na expressão do filósofo alemão. Como sinais das idéias, as palavras não se aplicam às coisas mesmas, que às vezes o homem nem co- nhece. Deus possui as idéias das coisas antes de criar os objetos dessas idéias e nada impede que ele possa comunicá-las aos seres dotados de inteligência. Aliás, não há nem sequer demonstração de que os objetos dos sentidos estão fora de quem os percebe.37
Para Berkeley, não se pode falar na existência de um mundo físico independente das idéias, na existência de coisas anteriores às experiências sensoriais, como supunha Locke. Daí porque é in- sustentável a afirmação de que ao homem só é dado perceber a cópia dos objetos, mas nunca os objetos reais. A tese de Locke traz ínsito o germe da contradição, pois ao defender que é impossível conhecer o mundo, está fazendo afirmações sobre ele. O que existe é uma série ordenada de percepções (conhecida comofamília de ex- periências sensoriais), que permite ao homem conhecer o objeto.
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(37) Wilhelm Leibniz Gottfried, Novos ensaios sobre o entendimento huina- no, Livro 111, As palavras, São Paulo, Abril Cultural (Coleção Os Pen- sadores), 1980, p. 2 1 l, 212, 215, 218, 222, 231, 235 e 236. Conforme anota Luiz João Baraúna, que traduziu a obra para o português, Jorge Dalgarno, autor de Arte dos Sinais, Característica Universal e Língua Filosófica (1661), e John Wilkins, que escreveu um manual de corres- pondência codificada, intitulado Mercury (1641), ambos citados por Leibniz, exerceram influência indiscutível sobre o seu projeto de uma língua universal (Leibniz, op. cit., p2 1 5). Quanto à onomatopéia, Leibniz sustenta, na base de diversos exemplos da língua alemã, do francês e do espanhol (os quais fazem lembrar as elucubrações de Platão, em Crátilo), que haveria boas razões para supor algo de natural na origem das palavras. Todavia, um estudo etimológico mais aprofundado permitiria concluir — ainda segundo Leibniz — que devido a muitos percalços e mudanças, as palavras, em sua maioria, estão profundamente alteradas e se acham bem longe da sua pronúncia e da sua significação primor- diais (Leibniz, op. cit., p. 215 a223).
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As alucinações são experiências sensoriais desconectadas, soltas, não ordenadas, razão pela qual as pessoas beliscam o próprio cor- po, na tentativa de saber se estão acordadas. Neste aspecto, o mem- bro do tato, na expressão de Berkeley, é fundamental para que se possa falar em experiência verídica. O espelho pode enganar quanto à imagem que reflete, mas ao tocá-lo será possível saber que ali não está a mesa inicialmente reconhecida na base do sentido visual. Enfim, para essa forma de idealismo, a existência de um objeto não percebido é uma contradição. Daí porque esse estpercipi.38 Berkeley admite a existência de uma causa para as experiências sensoriais. É graças a Deus que as experiências ocorrem de maneira ordenada e não caótica, a exemplo do que sucede nas alucinações. A esta altu- ra, tem-se de indagar como podem os homens, limitados a conhe- cer apenas as experiências sensoriais, atribuí-las a Deus. Vê-se que Berkeley fundou sua teoria em urna entidade, que trata por espírito, distinta da experiência. Não é difícil reconhecer aqui o solipsismo presente nas formas extremas do idealismo, pois se é certo que nada existe senão no meu espírito, seria eu o único a existir, já que não conheço os outros a não ser pelas minhas próprias idéias.39
O idealismo ontológico de Berkeley, como desenvolvido nos Princípios do conhecimento humano, implica, sob o ponto de vista da teoria da linguagem, uma posição nominalista. Como as sensa- ções não existem a não ser na mente de quem as percebe, tudo o que se dá no mundo interpretado como processo de semiose. Em vez de estabelecer relações de causa e efeito, Berkeley vê apenas rela- ções entre signos e coisas significadas. Com isto, todo o mundo natural é permeado de signos, de forma tal que o barulho que se ouve na rua não é causado pelo ruído dos automóveis, mas é apenas um signo dele.4° O empirismo radical do filósofo inglês irnplica reco- nhecer que tudo aquilo que não possa ser conhecido através das
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(38) George Berkeley, Três Dkílogos entre Hilas e Filonous em oposição aos céticos e ateus, in Berkeley, 3. ed., São Paulo, Abril Culural (Coleção Os Pensadores), 1984, p. 51-75.
(39) John Hospers, op. cit., p. 639-643, e Georges Politzer, op. cit., p. 44-54.
(40) Winfried Nöth, op. cit., p. 45 e 46.
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sensações é destituído de significado, o que leva a admitir que a expressão abuso do direito, empregada pelos juristas no decorrer de vários séculos, como visto nos capítulos anteriores, não tem nenhum sentido.
Nas suas Investigações acerca do entendimento humano, Hume persegue o firme propósito de demonstrar a impossibilidade de conhecer as coisas. Não se trata apenas de reduzir ao absurdo a teoria de seus predecessores, mas de demonstrar que até mesmo o eu que experimenta as coisas, como concebido por Berkeley, é um feixe de sensações. Igualmente, a existência de Deus, como inteligência planejadora, é inferencial, indireta e vaga, porque em se tratando a existência de uma questão de fato, só pode ser resolvida através da observação. Hume desenvolve um procedimento metodológico fundado em dois princípios. O primeiro deles diz que todas as idéias derivam, mediata ou imediatamente, de suas impressões correspondentes. Assim é que a percepção surge no espfrito humano a partir das impressões e das idéias, estas cópias daquelas. As idéias são pálidas imagens das sensações, das paixões, das emoções, enfim, das impressões.41 Apenas no caso das percepções simples é que as idéias guardam profunda semelhança com as impressões. As percepções simples não comportam divisões, mas podem compor percepções complexas. As idéias simples são cópias semelhantes das percepções simples; as idéias complexas, combinação de idéias simples (a exemplo de montanha de ouro), nem sempre guardam tal semelhança com as impressões correspondentes. Isto conduz a certas dificuldades, que acabam colocando em dúvida a própria validade das inferências lógicas. Assim, se é certo que todo efeito é distinto da causa, toma-se impossfvel localizar a impressão originária da idéia de causalidade. Enfim, jamais se poderia ter idéia de uma coisa que nunca se revelou aos sentidos.42
O empirismo solipsista de Hume recorre, todavia, a um segun- do princfpio, que consiste na liberdade da imaginação de transpor
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(41) David Hume, Investigação acerca do entendimento humano, São Paulo, Nacional e Edusp, 1 972 (Biblioteca Universitária, Série Primeira, Filosofia, 13), p. 15 e 16.
(42) Idern, ibidem.
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e mudar stias ideias. Esta Iiberdade não é obra do acaso, mas expressão de princípios universais que permitem uma sequência de ideias mais ou menos ordenada (associação). Estes principios universais são a semelhança (um retrato evoca a pessoa retratada), a contiguidade (à aproximação de sua casa, o homem sente mais próximas as coisas que se relacionam com ela) e a causalidade (na base da experiência, o homem desenvolve inferências).43 Decerto, nenhum objeto presente imediatamente à memória e aos sentidos permite uma inferência causal, uma idéia de conexão necessária entre eventos. Mas, ao observar a semelhança entre certo número de casos, o homem experimenta um sentimento que leva o espfrito a passar de um objeto àquele que usualmente o acompanha (transição de catisa e efeito).44 Vê-se que Hume se orienta por um idealismo subjetivo, ao transpor o problema da fundamentação da indução do plano do objeto para o plano do sujeito. Sob o ponto de vista lingüístico, este subjetivismo pode ser reconhecido na tese segundo a qual o significado das palavras está no plano das associações intramentais.45
Vê-se assim que para o idealismo apriorista, o abuso dos direitos processuais surge como puro pensamento, inserido no contexto de um direito natural, expressão permanente de uma razão subjetiva que dirige a conduta prática, de um moralismo jurídico no qual se guiam as normas e as decisões. As disputas animadas pela con- cepção subjetivista, que giram em torno de uma vontade orientada para prejudicar o outro no exercfcio inconsiderado de um direito, a
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(43) Idem, p. 20 a 56.
(44) Idem, p. 59 a 75.
(45) William P. Alston, op. cit., p. 1 00. Em outra passagem, o autor observa que este subjetivismo, comum a Locke, Berkeley e Hume, em que pesem as distinções que separam estes filósofos, pode ser resumido da seguinte forma: todas as idéias são cópias ou transformações de cópias das impressões dos sentidos. Portanto uma palavra somente tem significado quando se possa estabelecer uma associação entre essa palavra e uma idéia derivada da experiência sensorial. Neste sentido, todo significado deriva necessariamente da experiência dos sentidos (op. cit., p. 97).
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exemplo do que se vê na chamada teoria das imissões, presente no primeiro capítulo (seção 1.1), guardam a marca desse apriorismo, que foi superado inicialmente por John Locke. No idealismo empi- rista todo significado deriva da experiência, com o que certas categorias jurídicas, a exemplo do abuso dos direitos processuais, ca- recem de sentido. O idealismo empirista de Hume é também ceticismo. Como a existência do abuso do direito não pode ser observada enquanto realidade sensível, o que existe é simples ficção. Quanto a Locke, é certo, como dito há pouco, que ele considera o objeto, diferentemente do que se dá com Descartes, no que se pode- ria enxergar uma concepção referencial. Todavia, o seu realismo representativo é um idealismo genético, psicológico. Como observou Horkheimer, a teoria do conhecimento de Locke é exemplo de uma traiçoeira lucidez de estilo, que concilia as diferenças simplesmente apagando as nuanças. Nesse sentido, curioso observar que a doutrina política do filósofo inglês, longe de buscar um fundamento empírico para o estado de natureza do qual derivou o direito natural, procura uma compreensão racionalista, no que inspirou Rousseau, seu discípulo direto, e o próprio iluminismo.46 Bem por
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(46) Max Horkheimer, Eclipse da razão, São Paulo, Centauro, 2000, p. 35 e 36. O empirismo ingiês deitou raízes na elaboração de outros fïlósofos. Condillac, em seu Ensaio Sobre a Origem dos Conhecimentos Huma- nos, descreve a semiose como um processo que se desenvolve primitivamente a partirda experiência sensual imediata, alcançando níveis mais complexos através da percepção, consciência, atenção, reminiscência, imaginação, interpretação, memória e reflexão. Para Condillac, o uso dos signos é o princípio que revela a fonte de todas as nossas idéias. Tal como Locke, defende que a base da vida mental é constituída pelos signos. Mas esta gênese da cognição permite reconhecer, ao lado dos signos causais, que estabelecem a conexão entre o objeto e a idéia, a existência de signos naturais, que expressam sentimentos, e de signos institucionais, que são escolhidos arbitrariamente para representar as coisas na idéia (Etienne B. de Condillac, Essai sur lorigene des connaissances humaines, in E. B. de Condillac, Oeuvres philosophiques, vol. 1, Paris, Presses Université de France, 1 947, p. 1 . 1 1 8, Introdução, apud Winfried Nöth, op. cit., p. 5 1). E fácil identifïcar no sensualismo do fïlósofo fran- cês uma concepção referencial da linguagem, pois o signifïcado surge a partir da coisa real. A teoria da linguagem formulada por Condillac
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isso, o empirismo moderado de Locke, se bem não possa admitir um conceito de abuso como expressão da experiência, consente numa elaboração muito próxima do jusnaturalismo racional. Ao mesmo tempo em que desenvolve a noção de um direito subjetivo, fruto do individualismo liberal-burguês, o homem moderno ganha consciência da distinção entre direito e fato, com o que a teoria do
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inspirou um movimento que fïcou conhecido como ldéologie, cujo sentido prende-se ao exame das faculdades psicológicas, que tinha a fina- lidade de elucidar a origem e a formação das idéias, como propedêutica de todas as disciplinas científicas. Destutt de Tracy e o círculo de intelectuais ligados ao lnstitut de France buscavam, assim, fundar uma his- tória natural da mente, ou seja, pretendiam investigar e descrever a forma pela qual se dá o pensamento. Este é o único ponto que os une à tradição racionalista de Descartes, vale dizer, a busca de um método. No mais, os filósofos liberais do lnstitut afastam-se diametralmente dos postulados cartesianos, infensos que se mostravam a todo preconceito metafísico e religioso (Condillac, Helvétius, Degérando — Vida e obra, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1984, Coleção Os Pensadores, p. 7). A respeito do significado de idéologie para os integrantes do lnstitut, ver Anthony de Crespigny e Jeremy Cronin, Ideologias Políticas, Brasflia, UnB, 1 98 1, Coleção Pensamento Político, vol. 37, p. 6. Uma das principais características da filosofïa francesa do séc. XVII, além da oposi- ção a um racionalismo abstrato, fundado na razão inata, é a estreita Iigação que os filósofos iluministas mantinham com a vida pública. Embora os filósofos do século XVIII, a exemplo de Montesquieu, Voltaire, Diderot, DAlembert e Rousseau, também fossem racionalistas, eles o eram em medida diferente. Concebiam a razão como força que parte da experiência sensível, desenvolvendo-se juntamente com ela (Condillac, Helvétius, Degérando — Vida e obra, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1984, Coleção Os Pensadores, p. 7). Diderot, por exem- p1o, diferentemente do que sustentava o racionalismo cartesiano, dava particular importância à Iinguagem dos gestos, mais expressiva que a linguagem verbal, dada a sua tridimensionalidade, que difere da estrutura unidimensional da palavra. Para o semiólogo contemporâneo, Winfried Nöth, professor de Lingüística da Universidade de Kassel, é possível concluir que na perspectiva de Diderot, a Iinguagem provoca uma distorção da realidade. Esta distinção entre linguagem verbal e linguagem não-verbal terá repercussões na elaboração da semiótica moderna, refletindo, sobretudo, no conceito de ícone (Winfried Nöth, op. cit., p. 52).
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abuso se desprende das suas bases morais, às quais estava ligada por força do idealismo transcendente (Platão) e do idealismo apriorista (Descartes).
O mérito do idealismo moderno está em haver superado a concepção ontológica da Antiguidade, onde as idéias existem por trás das coisas, independentemente do sujeito cognoscente. Mas tem- se de reconhecer que há uma relação entre significante e significado que não inclui necessariamente a coisa real (teoria referencial) ou a idéia, como expressão sensorial carregada de materialidade (teoria idealista). As palavras são doadoras de um sentido que não brota delas próprias, mas sim do uso social que delas se faz. O signo abuso do direito não aponta para si próprio e tampouco para uma realidade empírica, que possa ser experimentada através dos sentidos, mas sim para outros signos, tais comojustiça, lealdade, correção, construídos de acordo com as práticas sociais. O significado, tal qual sucedia na retórica clássica, tem em conta a alteridade, a relação entre as pessoas. Esta passagem, que vai de uma concepção representativa para um sentido intersubjetivo da linguagem, exige o exame de outros pressupostos, que estão na fenomenologia.
3.3 A superação da dicotomia idealismo e realismo
Diferentemente do que supõe uma concepção representativa do significado, o pensamento não é uma atitude solitária. Esta crítica tanto vale para a perspectiva idealista como para o realismo ingênuo, que parte da possibilidade de uma perfeita correspondência entre o ser real e o ser pensado. A teoria referencial falha ao identi- ficar significado e coisa real, porque há categorias ideais que não têm correspondência no mundo sensível. A idéia de número não se confunde com o som da palavra um ou com a marca um, que se deixa sobre o papel. A idéia de Deus, por sua vez, não tem referência empírica. Há também categorias gramaticais, conhecidas como sincategoremas, que isoladamente não têm nenhuma referência, a exemplo das conjunções e dos verbòs auxiliares. Elas só ganham sentido no contexto de uma oração. Outrossim, é certo que duas expressões, a despeito de diferentes significados, podem ter o mesmo referente. E o que sucede, no clássico exemplo de Gottlob Frege,
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com Estrela da Manhã e Estrela da Tarde, expressões que ape- sar da diversidade de significados possuem o mesmo referente, qual seja, o planeta Vênus.47 As vezes ocorre de o significado ser o mes- mo, mas diversos os referentes. O pronome pessoal eu tem um único significado, mas referentes distintos, conforme seja a própria pessoa quem o emprega ou pessoa diversa.48 Bem por isso, o crité- rio de verdade não está na simples adequação do enunciado ao fato, vale dizer, em uma relação meramente semântica.49
A teoria idealista também é passível de críticas. Há aqui duas vertentes. Uma delas admite a existência da realidade objetiva, que é ideal por natureza, e outra concebe a razão como força que parte da experiência sensível.50 Se as pessoas guardassem seus pensamen- tos, seria bem possível prescindir das palavras. Trata-se, é claro, de uma hipótese cerebrina, porque o homem é um ser social. Mas é
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(47) Gottlob Frege, Lógica e filosofia da linguagem, São Paulo, Cultrix — Edusp, 1978, p. 67.
(48) O exemplo é de William P. Alston (op. cit., p. 30).
(49) Os realistas recorrem à noção de sinonimia, na tentativa de demonstrar a tese que estabelece uma relação direta entre palavras e coisas. Mas o fato de duas expressões designarem o mesmo objeto, conquanto necessário para dizer que são sinônimas, não autoriza a substituir uma por outra em contextos diferentes. Rosa de Hiroshima e bomba atômica, aparecem, no famoso poema de Vinicius de Moraes, com um único referente. Todavia, cada uma das palavras que compõem a expressão tem significados diferentes. Para Iembrar Shakespeare, na fala de Julieta, aquilo a que chamamos rosa não teria menos perfume se utilizássemos outra palavra. Enfim, não se pode confundir o signo com o referente. A propósito, v. Alaôr Caffé Alves, Lógica — pensamentoformal e arguÍnentação — elementos para o discursojurídico, São Paulo, Edipro, 2.000, p. 50-57.
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