Digitalizado e corrigido por



Yüklə 3,25 Mb.
səhifə9/20
tarix23.01.2018
ölçüsü3,25 Mb.
#40249
1   ...   5   6   7   8   9   10   11   12   ...   20

- Sinto muito que o senhor tenha de passar por tudo isto novamente, Sir

Adam. Esperemos que a outra parte seja razoável.

Na antecâmara, Smiddy fez um sinal ao Sr. Rudd para que entrasse em

contacto com o seu funcionário, o Sr. Bullick, acerca do pagamento. Smiddy

e Adam Kelno saíram do Templo e pararam diante do movimento do tráfego.

Táxis pretos e autocarros vermelhos corriam pela Strand, passando pela

estátua do grifo que delimitava o Tribunal do Templo. Do outro lado da

rua a enorme massa de pedra cinzenta do Tribunal de Justiça parecia encará-los.

- Fixe as minhas palavras, Sir Adam: nunca chegaremos até àquele tribunal.

Abraham Cady e

Editora Shawcross, L.da.

- Gráfica Humble L.da.



a/c David Shawcross

: Gracechurch Street, 25, EC 3



Hobbins, Newton e Smiddy

Procuradores

Chancery Lane, 32-B

Londres WC 2

Senhores:

Desde o nosso comunicado inicial, fomos instruídos pelo nosso cliente,

Sir Adam Kelno, médico, para lhes perguntar:

1. Se os senhores estão prontos a apresentar uma desculpa formal, em

tribunal aberto.

2. Quais as propostas que nos fazem, de indemnizar Sir Adam Kelno,

pelas despesas decorrentes deste caso.

3. O que se propõem fazer para que toda a edição do livro O Holocausto

seja retirada das livrarias e que garantias teremos de que, em qualquer outra

edição, o nome do Dr. Kelno não será mencionado.

4. Quais as propostas que pretendem fazer, no sentido de cobrir os danos

feitos ao nome honrado do nosso cliente.

Como essas declarações contra Sir Adam Kelno são totalmente sem

fundamento, é impossível imaginar uma mais grave acusação imposta a um

profissional na sua posição.

Como o nosso cliente requer uma declaração pública, é da praxe que lhes

enviemos uma intimação e desejamos tomar conhecimento do nome dos seus

procuradores para entrarmos em contacto com eles.

Sinceramente,

Hobbins, Newton e Smiddy.



Capítulo terceiro

Em Sausalito, Abraham Cady examinou as suas notas. Depois escreveu

para os arquivos, pessoas e sociedades históricas em Viena, Varsóvia, Nova

Iorque, Munique e Israel, para obter informações. O nome Kelno pouco

significara para ele no contexto do livro.

Em Londres, a pequena sala de conferências da Editora Shawcross tinha-se

convertido numa espécie de gabinete estratégico. Em primeiro lugar,

Shawcross guardou toda a história do processo de extradição de Kelno.

148

A sua primeira grande descoberta foi que Mark Tesslar estava ainda vivo



e era membro da equipa permanente do Centro Médico Radcliffe, em Oxford.

Os anos não tinham apagado ou distorcido os seus sentimentos. Aprofundando-se

nas acusações de Tesslar, sentia que elas eram basicamente

verdadeiras e isto impeliu-o a ampliar as suas próprias investigações.

Shawcross entregou ao seu genro Geoffrey Dodd e à sua filha Pam a

responsabilidade do andamento da editora. O seu filho Cecil estava também a

entrar no assunto. Shawcross utilizou-o como seu secretário particular na

investigação.

O ponto de partida era a condenação por crimes de guerra do coronel-médico

das SS, Dr. Adolph Voss, oficial-médico-em-chefe dos prisioneiros do

campo de concentração de Jadwiga. Infelizmente, Voss nunca tinha sido levado

a tribunal, pois suicidara-se na prisão. Não obstante, o promotor em

Hamburgo tinha uma lista de umas 200 boas testemunhas.

A condenação e as testemunhas em potencial já estavam mais velhas vinte

anos. Muitas tinham morrido e muitas outras, desaparecido. No entanto,

Shawcross tentou contactar com quantas pôde, numa correspondência em

várias línguas.

As paredes da sala de conferências estavam cobertas por grandes mapas a

mostrar o progresso de cada linha de inquérito.

Começou a chegar a Londres uma chuva de informações. A maioria não

era muito encorajadora e não abria nenhum caminho novo. Ninguém podia

identificar Adam Kelno e todos estavam de acordo em concordar que as

cirurgias efectuadas no Alojamento V eram absolutamente secretas.

Os inquéritos feitos na Polónia não obtiveram resposta. A Embaixada

polaca, em Londres, mantinha-se evasiva. Os cautelosos diplomatas dos

países da Europa Oriental abafavam os inquéritos na lentidão burocrática.

Afinal de contas, Abraham Cady era um escritor claramente anticomunista.

Passaram-se quatro meses. Nos mapas da parede todas as pesquisas

tinham resultado nulas. Apenas algumas pistas, as mais insignificantes e

vindas de Israel, mantinham ainda o projecto. ,

Aconteceu, então, um impacto.

Archibald Charles III, da Charles L.da, a homogénea associação de impressores,

sentado no seu elegante gabinete de trabalho, fumava e pensava

naquele aborrecido assunto.

O império dos Charles possuía quatro grandes impressoras nas Ilhas Britânicas,

uma floresta para polpa de papel na Finlândia, e um aglomerado de

sociedades espalhados por todo o continente.

O lucro que lhe advinha de Shawcross ocupava uma percentagem ínfima

na sua escrita comercial. No entanto, David Shawcross ocupava um lugar

muito especial. Era considerado um dos melhores editores de Inglaterra e era

um mestre em literatura. Além disso, tinha sido um grande amigo do pai de

Charles, que o elogiara sempre na presença do filho.

Conquanto que qualquer associação, de tipo comercial, fosse de pouca

importância para a dinastia Charles, a amizade particular continuara quando

o jovem Archibald ocupou o posto de director-gerente, e, mais tarde, o de

presidente. Shawcross sabia que podia sempre contar com o seu impressor

para pô-lo à frente dos outros editores, quando aparecia algum livro mais

importante.

Era um sujeito dinâmico, o jovem Charles. A sua firma estava sempre

com uma boa cotação no mercado de valores. Ele tinha uma visão dos

negócios, mais americana do que inglesa.

- O Sr. Shawcross está ao telefone - disse a sua secretária.

- Está lá, David! Aqui é o Archie.

- Como estás?

- Bem, obrigado. Gostaria de ver-te esta tarde.

- Está bem.

Era um sinal de grande respeito, sair do seu magnífico escritório e ir até à

mediocridade do escritório da Editora Shawcross. Imaculadamente vestido,

pois era o que os seus accionistas esperavam dele, foi até lá.

Ao chegar à modesta casa da Gracechurch Street, foi conduzido por uma

série de cubículos até à sala de Shawcross. Archibald estudou os mapas nas

paredes. Os fracassos estavam marcados com tinta vermelha, e os poucos

sucessos com estrelas azuis.

- Meu Deus, o que é isto?

- Procuro uma agulha num palheiro. Ao contrário do que diz a maioria,

se procurarmos com persistência, acabaremos por encontrar a agulha.

- Pensas continuar a publicar livros?

- Geoff e Pam estão encarregues disso. Teremos uma nova lista neste

Outono. Queres chá?

- Obrigado.

Shawcross acendeu um charuto quando chegou o chá.

- Quero falar-te sobre o caso Kelno - disse Charles. -Como sabes, eu

designei um dos melhores homens para analisar todo o material que me

mandaste. Já tiveste várias entrevistas com o velho Pearson a esse respeito,

não?

- Sim. É um bom sujeito.



- Deixámos todo esse material nas mãos dos nossos procuradores e

marcámos consulta na câmara, com Israel Meyer. Acho que concordarás

comigo em que ele é um dos melhores advogados para este tipo de causas.

Além do mais é judeu e será mais receptivo. Também pedi uma reunião do

conselho deliberativo da minha firma, para chegarmos a uma conclusão.

- Bem, eu não sei a que espécie de conclusão te referes - disse

Shawcross. Todos os dias nós sabemos mais alguma coisa a respeito de

Kelno. Não pode haver decisão, quando não há escolha.

- Não estamos a ver as coisas do mesmo modo, David. A minha firma

vai sair do assunto.

- Como?

- O nosso procurador entrou em contacto com Smiddy. Eles estão



dispostos a aceitar uma quantia abaixo das 1000 libras, e uma desculpa formal

em tribunal público. Sugiro que sigas o nosso exemplo.

- Archie, eu nem sei o que dizer. Não podes estar a falar a sério.

- Falo muito seriamente.

- Mas não compreendes que se eles nos separam, um por um, vão

destruir Abraham?

- Meu querido David, estamos a ser vítimas inocentes dum louco escritor,

que não se documenta antes de fazer as suas acusações. Porque é que te

hás-de sentir responsável por Cady ter cometido uma acusação contra um

importante médico inglês?

A cadeira rangeu no soalho de madeira quando David a empurrou para

longe da mesa de conferências. Levantou-se e colocou-se à frente dos mapas.

- Olha para isto, Archie. Chegou há alguns dias. Uma declaração dum

homem que foi castrado.

- Oh, David, eu não vou discutir contigo! Fizemos o que era necessário.

O Pearson, os nossos procuradores e o meu conselho de directores estudaram

toda a documentação e chegaram a uma unânime conclusão. ; . ,

- E tu, Archie? O que é que pensas disto tudo?

- Eu sou o presidente duma companhia.

- Mas tens uma dívida para com o público.

- Tolices! Todos os accionistas são iguais. Já aguentei quanto pude,

enquanto tu transformavas a tua firma numa agência de investigações. Não

fiz nada para dissuadir-te, nem te acusei de estares a meter-te nisto. Mas

agora digo-te: abandonas o caso.

Shawcross tirou o charuto de entre os dentes.

- Pedir desculpa a um degenerado que andou a cortar os testículos de

homens sadios? Isso nunca, meu caro! É pena que não leias algumas das

frases que saem das tuas impressoras.

Archibald Charles abriu a porta.

- Vamos estar contigo e com a Lorraine amanhã, para irmos ao teatro e

jantarmos, não é?

Não obteve resposta.

- Ora, homem, deixa-te disso. Não vamos deixar que este caso estrague

a nossa amizade, pois não?



Capítulo quarto .•••••••••: -• >^; ••••;•<”. -V”-” : ••

As relações de David Shawcross com o seu genro e com a sua filha estavam

a ficar frias. Era óbvio que eles pensavam que ele se entregava demais ao

caso Kelno. Para fazerem as pazes, Shawcross pensou que seria bom irem todos

passar o fim-de-semana na casa de praia de Ramsgate, em Kent.

A lista dos livros a serem lançados no Outono, estava muito restrita e não

havia nada de especial para a Primavera. Antigamente, naquele mesmo

período, Shawcross tinha o dom de descobrir algum talento escondido que se

transformava num grande sucesso. Mas agora, todo o tempo era pouco para a

enorme pilha de correspondência, para as traduções e para as tentativas de

encontrar um buraco que lhe permitisse ser acolhido nas embaixadas dos

países comunistas. Este ano Shawcross não produziria nenhum milagre.

Chegara em péssima ocasião para Shawcross, aquele caso do Kelno.

Ele estava a ficar velho e o que mais desejava era poder passar a maior

parte do seu tempo em Ramsgate, a trabalhar com os novos escritores e a editar

livros.


Geoff e Pam estavam a conduzir o negócio de maneira muito satisfatória,

e agora, com o seu filho Cecil na firma, a tradição familiar parecia estar

garantida.

Geoff e Shawcross caminhavam ao longo dos penhascos, como já se

tornara um hábito para ambos há mais duma década. Conversavam sobre

assuntos da firma, as encomendas de papel, os empregados, a paginação, as

encadernações, os contratos, os prazos de publicação, a Feira do Livro em

Frankfurt, a nova lista.

Shawcross enterrou a sua bengala na areia.

- Ainda estou magoado com a decisão de Archie.

- Talvez seja um aviso, David - disse Geoff.

David sentiu-se perturbado. Considerara sempre Geoff como um aliado e

esperava dele uma lealdade sem limites.

- Vamos a ser claros. O que é que se passa contigo, Geoff?

- Desde O Holocausto que não voltámos a ter um grande sucesso...

Abraham está longe de começar um novo romance e levará, para escrevê-lo,

algum tempo, talvez um ano, e nós levaremos mais uns seis meses para editá-lo.

Geralmente, quando chegamos a um impasse destes, você costuma

virar-se e aparece alguma novidade.

Shawcross resmungou e atirou para as ondas o seu charuto.

- Sei o que me estás a querer dizer. A solução é tentar uma fusão. Tens

alguma ideia a respeito de como? Vamos aliar-nos aos fabricantes de

toalhinhas higiénicas? Ou a uma companhia de sopa enlatada? Ou a algum

milionário do petróleo que quer que o seu filho idiota seja um editor?

159

- Seria o caso de aumentar a produção de 10 livros por ano para 30 e



conseguir uma opção dos Michener e Irving Wallace.

- Sempre esperei poder manter o negócio estritamente dentro da família.

Parece-me que não estavas a ser muito realista, não é?

- Bom, mas o pior é que ninguém quererá fazer a fusão ou sociedade,

enquanto tivermos esta acção sobre a cabeça.

- Não vou abandonar Abraham enquanto ele estiver envolvido no caso.

-Nesse caso, eu devo dizer-lhe uma coisa com toda a sinceridade.

Lambert-Phillips ofereceu-me um lugar para director.

- Como se atrevem a quererem levar-te? Aqueles safados nojentos!

- Bem, de certa forma, fui eu que me ofereci.

- Eu... eu não sei o que dizer.

- É uma posição como director-gerente, com um lugar no conselho deliberativo

e possibilidades de tornar-me accionista. Mais 1000 libras do que

ganho agora. Fiquei admirado.

- Não vejo porquê! És um dos melhores, Geoff. E Cecil?

- Deveria querer acompanhar-me.

David tentou esconder uma sensação de pânico. Abruptamente, todo um

pequeno mundo que ele criara com amor e integridade estava a desmoronar-se.

- Pam também vos vai acompanhar nisso?

- Não, não propriamente. Ela julga que o que devemos fazer é arranjar

um sócio novo e continuarmos com a Shawcross. Mas terá de resolver este

assunto do Kelno. Quero explicar-lhe porque é que falei sobre isto tudo com

Lambert-Phillips. Não foi realmente por uma questão de dinheiro. Foi porque

sei que nunca poderei preencher devidamente o seu lugar. Sei que sou um

bom gerente e editor, mas, por amor de Deus, David, a espécie de trabalho

que fez até hoje, não me sinto com competência para o fazer... nem tão-pouco

o Cecil. Nesta altura, é impossível.

Voltaram à casa da praia.

-Obrigado pela conversa, Geoff. Vou pensar no assunto.

Já tinha mais de dois centímetros a cinza do charuto de David. As provas

estavam apoiadas na sua barriga, há mais de meia-hora, sem que ele tivesse

coragem de lê-las.

Lorraine sentou-se à beira da cama, tirou-lhe o charuto da boca e deu-lhe

os comprimidos.

- Pam contou-me hoje tudo... enquanto tu andavas a passear com o

Geoff. O que é que achas que devemos fazer?

- É difícil dizer. Mas teremos de tomar uma decisão imediatamente.

Abraham chegará a Londres na próxima semana.

153

Capítulo quinto ; ;

O lugar que Abraham Cady mais gostava no mundo era a biblioteca de

Shawcross e o cheiro do couro de todos aqueles volumes encadernados em

vermelho-escuro, azul e verde, que constituíam uma incrível colecção de

primeiras edições. Quase todos os escritores mais importantes do século XX

estavam ali presentes. Abe sentia-se orgulhoso por ver que O Holocausto era

o exemplar mais grosso de todos os que Shawcross tinha publicado.

O procurador de Shawcross, Allen Lewin, chegou em seguida. Era um

homem inteligente para ser um procurador, pensou Abe, e completamente

fiel a David.

- Antes de entrarmos no assunto específico - disse Lewin, gostaria de

esclarecer um ponto. O que sabe realmente o senhor sobre o tal parágrafo do

litígio. Como foi que apareceu no seu livro?

Abe sorriu.

- Quando dou uma entrevista a um jornalista, ele escreve entre 300 a

400 palavras. Há sempre uma boa dúzia de erros. Num livro de 700 páginas e

com mais de 400000 palavras, cometi um erro. Admito que foi uma tolice.

Esta mesma informação já tinha sido publicada, anteriormente, sobre Kelno.

Ele fez parte da lista dos criminosos de guerra procurados. Depois de todas as

pesquisas que fiz, depois de ler todas as informações sobre as actividades dos

médicos indicados nos processos, creio que qualquer pessoa estaria pronta a

acreditar em qualquer coisa que se dissesse a respeito de qualquer um deles. O

que li sobre Kelno, em relatórios que poderiam ser aceitos como válidos,

combinavam completamente com tudo o resto que sabia sobre as atrocidades

cometidas pelos nazis. É claro que isto não me isenta de culpa.

- Abraham é o escritor mais íntegro e cuidadoso que conheço - interrompeu

Shawcross. - Este erro poderia ter acontecido com qualquer

pessoa.


- Preferia que tivesse acontecido com outra pessoa - disse Lewin-, e

de preferência pertencendo a outra casa editora. - Abriu a pasta e todos pediram

um uísque.

- O Sr. Cady e o Sr. Shawcross têm estado em constante comunicação,

portanto sabem de todos os nossos esforços independentes. Quanto à situação

da casa, Geoff e Cecil estão a planear sair, a menos que haja uma fusão ou

uma nova sociedade, o que não acontecerá enquanto este caso não estiver

resolvido.

- Não estava a par disso -disse Abe.

- Gostaria de explicar-lhe a situação fiscal da Shawcross, L.da, para que

compreenda como estamos a tentar chegar a uma decisão.

- Sinto ter de o incomodar com todo este palavreado, Abe - disse

Shawcross, mas a situação é mesmo séria.

- Continue.

154

- As novas listas, em curso e em projecto, darão bom dinheiro. O



Sr. Shawcross, como deve saber, não é um homem muito rico. O seu crédito

tem sido muito bom, nos bancos e com as impressoras, devido à sua reputação.

O activo actual da firma baseia-se nas listas antigas e nas novas séries

a serem lançadas. A melhor recomendação para uma fusão é o prestígio pessoal

do Sr. Shawcross.

“A sua fortuna - continuou Lewin - não é das maiores. E tudo isto fica

em suspenso durante um processo desta natureza.

”Sou judeu, Sr. Cady. Envolvi-me nisto tudo, sustentando todas as

consequências morais. Gastámos meses de trabalho nas pesquisas e agora

temos de enfrentar a sangue-frio a situação. Temos de fazer um balanço aos

riscos e às possibilidades de êxito. Temos vagas declarações de pessoas que dizem

terem sido operadas em Jadwiga, mas a única testemunha ocular com

quem contactámos é o Dr. Tesslar. Já pedi a três advogados para estudarem as

declarações do Dr. Tesslar. Todos concordaram que será uma testemunha

bastante vulnerável, sobretudo nas mãos de alguém como Sir Robert

Highsmith. Então começámos a informarmo-nos e conseguiríamos trazer até

Londres outras testemunhas. E se teriam valor. Não teremos muita chance

num tribunal inglês...

”E há ainda outros factores - continuou Lewin. - Kelno é um homem

de reputação reconhecida. As custas dum tal processo são espantosamente

altas. Tecnicamente, o Sr. Shawcross não possui nenhuma responsabilidade

no caso, em virtude do contrato que tem consigo. No entanto, se ele continuar

como co-réu e houver um julgamento contra si, Kelno irá atrás da

fortuna de Shawcross. Em primeiro lugar porque esta fortuna está aqui, em

Inglaterra. Qualquer acção de vulto poderá deixar o Sr. Shawcross em muito

má situação.

”Na presente instância, Richard Smiddy está pronto a adoptar uma atitude

razoável. Para conseguir livrar o Sr. Shawcross desta acção por danos e

prejuízos, custar-lhe-á a retirada das livrarias duma edição de mais de 30000

exemplares de O Holocausto, Isto por si só, já será um prejuízo bem grande.

Porém, pelo menos, ele poderá pensar num novo sócio. A minha própria

intuição diz-me que Kelno quer muito mais uma satisfação pessoal, do que

dinheiro. Será razoável, se lhe oferecermos um acordo. Se o senhor se mantiver

irredutível e perder em Inglaterra, ele poderá fazer exigências que

afectarão a vida de mais de 20 editores estrangeiros, e a responsabilidade será

sua.


- Está a sugerir que entre num acordo?

- Sim.


- Está bem - disse Abe -, gostaria de contratá-lo para meu procurador.

Lewin sorriu e concordou.

- Agora que é meu procurador, considere-se despedido - disse Abe, e

saiu.


Capítulo sexto

”Quero a minha motocicleta. Quero o vento a bater-me a 100 quilómetros

por hora. Quero os meus filhos. Ben é tranquilo. É isto o que o torna um

piloto de primeira. Ben acalma-me e Vanessa é tão meiga. Nem mesmo o

Exército de Israel conseguiu torná-la dura. Amo Londres. Até mesmo agora,

sinto-me bem aqui. Lembro-me de todas as ruas de Mayfair.

“Na próxima reincarnação vou ser inglês. Não, serei um daqueles poetas

rudes do País de Gales. Vou abrir caminho até Londres e apresentar peças nos

teatros do West End. Terei um invulgar apartamento em Chelsea, e ficarei

conhecido pelas homéricas farras, nas quais recitarei os meus poemas e beberei

mais do que qualquer um dos meus convidados.

”Bem, eu farei isto quando reincarnar, é o que peço, meu Deus. Mas

nesta vida, sou Abraham Cady, judeu, escritor. Olha bem para mim, Senhor.

Bebo demais. Cometi adultério 10 milhões de vezes. Tenho fornicado com as

mulheres dos outros homens. Olha para mim. Vamos falar agora seriamente,

Senhor. Pareço-me com algum irmão de Jesus? Então porque é que o Senhor

está a querer pregar-me numa das malditas das Suas cruzes? Porquê eu?

”Abandonei a minha profissão. O Senhor por acaso viu o contrato que

rasguei para poder escrever este maldito livro? E agora, que juntei uns

miseráveis dólares, é justo que vá à falência?

“Meu Deus, queria que os meus filhos estivessem aqui. Queria ter nascido

no País de Gales.”

- Está bem - disse Abe -, entrego-me. Onde é que eu estou?

- No meu apartamento - respondeu uma voz de mulher.

-NO Soho ou em Chelsea?

- Em nenhum dos dois. Em West l, Berkley Square.

- Estou impressionado.

Abe sentou-se com dificuldade e colocou a venda na vista. Então focalizou

com o outro olho. O quarto era uma amostra de dinheiro e bom gosto. A

mulher... uns 45 anos, encantadora, bem conservada, cuidada. Cabelos

castanhos e grandes olhos castanhos.

- Aconteceu alguma coisa entre nós? Quero dizer... bem, não se

zangue, mas perco sempre a memória quando fico bêbado.

- Não fez grande coisa.

- Onde me encontrou?

- No Bengal Club. Metido num canto, hirto. Foi a primeira vez na

minha vida que vi um homem sentado direito, a olhar em frente para mim e

completamente desinteressado. Então, perguntei ao meu companheiro quem

era o estranho homem com um olho e ele disse-me que era o escritor

Abraham Cady, e aí, está a compreender, não se pode deixar Abraham Cady

156

sentado, rígido e apático, com o seu único olho a brilhar como um sinal



vermelho!

- Jesus, você é muito engraçada.

- Olhe, para dizer a verdade, nós temos alguns amigos em comum e pediram-me

que tratasse de si.

- Que amigos? - perguntou Abe em tom de suspeita.

- Os nossos amigos do Palace Green, 2.

Ao ouvir a morada da Embaixada de Israel, Abe ficou sério. Durante

todas as suas viagens sempre soubera onde encontrar ”amigos” e os

”amigos” sempre sabiam como encontrá-lo. Os outros eram, muitas vezes,

indirectos.

- Quem é você?

- Sarah Wydman.

- Lady Sarah Wydman?

- Sim.


- É a viúva de Lord Wydman, do ramo londrino, dos Amigos da Universidade

Hebraica, Amigos de Technion, Amigos do Instituto Weizmann?

Ela concordou.

- Gostaria de lhe ser apresentado em circunstâncias mais agradáveis.

O sorriso dela era encantador.

- O que é que acha que vai conseguir beber?

- Sumo de laranja. Litros e litros.

- Poderá arranjar-se na casa-de-banho do quarto dos hóspedes.

- Está tudo preparado para mim?

- Nunca se sabe quando vamos encontrar um escritor a precisar de cuidados.

Abe conseguiu levantar-se. A casa-de-banho dos hóspedes estava muito

bem equipada, especialmente para um amante. O homem tinha ali tudo do

que necessitava. Máquina de barbear, loção para depois da barba, uma escova

de dentes nova, embalagens de Alka-Seltzer, pó-de-talco, roupão de banho,

chinelos e desodorizante. Depois dum bom banho de chuveiro, ele reviveu.

Lady Wydman pousou o Times e os seus óculos ficaram suspensos ao

pescoço por uma fina corrente dourada. Abe bebeu o primeiro copo de sumo

de laranja.

- O que é que está a acontecer, Lady Sarah?

- Trate-me por Sarah. Há um forte pressentimento, entre a nossa gente,

de que Kelno é culpado de muitas das coisas terríveis que aconteceram

em Jadwiga. Pediram-me para me interessar pelo assunto. Sou um membro

bastante activo da Comunidade Judaica.

- Ora bem, Sarah, eu tenho um problema.

- Eu sei. Será que o nome de Jacob Alexander significa para si alguma

coisa?


- Sei que é um procurador de renome, aqui em Londres, e que é judeu.

157


- Ele está sempre envolvido nos assuntos da nossa gente. Há um grande

interesse em mantê-lo, a si, nesse litígio.

- Porquê? Será que os judeus estão a querer um novo mártir?

- Parece que surgiram algumas testemunhas novas, bastante interessantes.

O Bentley de Lady Wydman passou pelo campo da Escola Lincoln. No

grande parque, um dos maiores da Europa, as enfermeiras da Escola Real de

Cirurgiões jogavam netball durante o período de descanso, e os médicos aproveitavam

as suas horas de folga para um rápido jogo de ténis. Nos muros da

Searle Street havia cartazes a mostrar o lugar onde, antigamente, ficavam as

cancelas que impediam o gado de pastar no Holborn.

Entraram na Escola Lincoln através da New Gateway e logo atrás do

Grande Vestíbulo começaram a aparecer os imensos jardins e alamedas.

A maior parte da Escola Lincoln estava alugada aos procuradores. Os

advogados tinham escritórios. Os causídicos tinham câmaras. Os escritórios

de Alexander, Bernstein e Friedman ocupavam o andar térreo e o primeiro

andar de Park Square, n.º 8. Um porteiro-adjunto, de chapéu alto, fez sinal a

Lady Wydman para que entrasse e estacionasse o seu Bentley. Abe seguiu-a

por um labirinto de pequenos escritórios, com as tábuas do soalho a rangerem

sob os seus pés, as paredes cobertas de estantes abarrotadas de papelada e de

livros, de recantos sombrios e escadas antigas, tudo isto uma série de lembranças

de outras épocas. Era assim o escritório de Alexander, Bernstein e

Friedman, Comissários de Juramentos.

A secretária de Alexander, uma jovem de mini-saia, chamada Sheila

Lamb, entrou na pequena sala de espera, inundada por antigos exemplares do



Punch.

- Por favor, sigam-me, sim?

Jacob Alexander levantou-se da cadeira, junto à escrivaninha. Era um

homem alto e esguio, com uma vasta cabeleira grisalha, o que lhe dava o aspecto

dum profeta bíblico. Cumprimentou Cady com muita efusão. A sua voz

era baixa e grave, como a de todos os rabinos.

Sheila Lamb ao sair fechou a porta atrás de si.

- Já temos conversado muito, e pensamos que seria inteiramente

absurdo fazer um acordo com Adam Kelno e desculparmo-nos em tribunal

aberto - disse Alexander. - Para nós seria o mesmo que pedir desculpa aos

nazis pelo que sofremos nos campos de extermínio.

- Estou perfeitamente ciente de todas essas implicações - disse Abe.

- Também tenho pensado a respeito das nossas probabilidades.

Contou-lhe depois toda a entrevista com o procurador de Shawcross e as

suas profecias desastrosas.

- Infelizmente, Sr. Cady, o senhor é um símbolo internacional, tanto

158

para os judeus como para os não-judeus. O homem que escreveu O Holocausto



tem de assumir certas responsabilidades.

- E que espécie de apoio vou eu ter?

Alexander encolheu os ombros.

- Isso vai ser muito problemático.

- Não tenho meios de arcar com as despesas.

- Nem nós, tão-pouco - disse Alexander. - Mas se enfrentarmos o libelo,

creio que arranjaremos fundos.

- E se a decisão for contra?

- Há sempre a possibilidade da falência.

- Estou a ouvir muitas vezes essa palavra. Acho que estão a exigir

demais, de mim. E nem, ao menos, tenho a certeza da culpabilidade de

Kelno.


- E se o convencer de que ele é mesmo culpado?

Abe estava preocupado. Até essa altura, esperara uma saída honrosa. Mas

se lhe mostrassem alguma evidência concreta, teria de lutar. Lady Wydman e

Alexander olhavam para ele, especulativamente. Era este o homem que

escreveu O Holocausto? A sua coragem seria apenas ficção?

- Penso que qualquer um pode ser herói, quando isso não custa alguma

coisa - disse Abe. - Gostaria de ver as provas que dizem ter.

Alexander carregou na campainha e Sheila Lamb atendeu.

- O Sr. Cady e eu vamos para Paris. Queremos passagens no avião das

seis, e dois quartos no Hotel Maurice. Contacte o Sr. Edelman, em Paris, e

comunique-lhe a hora da nossa chegada. Peça-lhe que entre em contacto com

Pieter Van Damm e lhe diga que chegaremos hoje à noite.

- Sim, senhor.

- Pieter Van Damm! -murmurou Abe.

- Isso mesmo! - respondeu Alexander. - Pieter Van Damm!

Capítulo sétimo

Pieter Van Damm cumprimentou-os calorosamente quando chegaram ao

sumptuoso apartamento do Boulevard Maurice Barres. Com eles tinha ido

também Samuel Edelman.

- Sinto-me honrado - disse Adam, ao apertar a mão do famoso

violinista.

- A honra é toda minha.

A empregada pegou-lhes nos sobretudos e nos chapéus.

- A minha mulher e os nossos filhos estão no campo. Entrem, entrem.

Um escritório enorme estava com as paredes cobertas por fotografias de

reis, rainhas e presidentes, a posarem junto do homem que muitos afirmavam

159


ser o maior violinista do mundo. Junto da sua estante de música estava aberto

um enorme e antigo piano ”Pleyel” e páginas e páginas de música espalhavam-se

em cima dele. Van Damm mostrou-lhes um par de violinos

”Amati”, com o orgulho infantil de quem se sente envaidecido com o

próprio renome.

Sentaram-se em sofás e poltronas junto à janela com vista para o Bosque

de Bolonha, e serviram-se de conhaque e uísque.

-L’Chiam-disse Van Damm.



-L’Chiam - responderam.

Van Damm pousou o copo sobre a mesa.

- Acho que devo começar pelo princípio. Eu tinha 24 anos quando a

guerra rebentou. Estava casado, tinha um filho e era o primeiro-violino da

Orquestra Sinfónica de Haia. Nessa altura o meu nome era Menno Donker.

Conhece a história a nosso respeito e como fomos obrigados a escondermo-nos.

Os alemães começaram a apanhar-nos no Verão de 1942 e

depois seguiu-se a deportação, em larga escala, no Inverno e na Primavera de

1943.

Van Damm parou por um momento, angustiado com a lembrança.



- Fui deportado no Inverno de 1942 num vagão para gado, sem

aquecimento. O meu filho morreu congelado. A minha mulher foi levada

para o compartimento de selecção das câmaras de gás, mal chegámos a

Jadwiga.


Abe mordeu os lábios e fez força para não chorar. Não importava o

número de vezes que ouvisse aquelas histórias, porque elas sempre o dilaceravam.

- O senhor falou disto tudo muito bem no seu romance - disse Van

Damm, continuando. - Fui escolhido para trabalhar no alojamento médico.

Adam Kelno era o chefe dos prisioneiros-médicos, e eu tinha as funções de

secretário-enfermeiro. Organizava os arquivos, fazia a lista dos remédios, lavava

o chão, enfim, fazia tudo o que aparecesse.

- Então lidava diariamente com Kelno?

- Sim. No Verão de 1943 fui procurado por um prisioneiro checo

chamado Egon Sobotnik. Ele era membro do movimento clandestino e pediu-me

que os ajudasse, falsificando certidões de óbito, fazer contrabando de

remédios e coisas mais ou menos desta natureza. Concordei, é claro. O trabalho

oficial de Sobotnik era controlar os registos das experiências levadas a

cabo no Alojamento V. Conseguimos, os dois, compilar uma espécie de

diário sobre o Alojamento V e mandá-lo, aos poucos, para fora do campo.

- Alguma vez esteve no Alojamento V?

- Só para ser operado. O Kelno descobriu a minha actividade e fui

transferido para o Alojamento III. Era onde estava o material humano, para

experiências. No princípio fui encarregado de cuidar de seis rapazes holandeses

que tinham os testículos esterilizados por uma prolongada exposição aos

raios X. Era uma das partes dum plano experimental de esterilização de todos

160


os judeus. Você escreveu a este respeito, também. Nós ficávamos no andar de

cima do alojamento e as mulheres ficavam no andar de baixo. Parece que eles

fizeram também a experiência com os raios X, nas jovens.

”Na noite de 10 de Novembro de 1943 - a voz de Van Damm tremia,

catorze de nós fomos levados do Alojamento III para o Alojamento V. Oito

homens e seis mulheres. Eu fui o primeiro. Sou um eunuco, senhor Cady.

Adam Kelno tirou-me os dois testículos.”

Abe sentiu vontade de vomitar. Levantou-se rapidamente e virou as costas

aos outros dois. Van Damm olhou para o copo de conhaque e, lentamente,

bebeu um golo.

- Quando ele lhe fez isso era um homem são?

- Era.


- O Dr. Mark Tesslar estava na sala de operações?

- Como lhe contei, fui o primeiro e Tesslar ainda não estava lá. Depois

soube que havia tanta agitação, que eles o mandaram para lá, para acalmar as

vítimas. Desde essa altura foi Tesslar quem cuidou dos homens. Não creio

que tivesse sobrevivido sem ele. Uma mulher, também médica, Maria Viskova,

cuidava das raparigas, no andar de baixo. Também havia uma médica

francesa que, de tempos a tempos, as visitava.

- Conseguimos entrar em contacto com ambas - disse Alexander.

Van Damm contou o resto da sua história, numa voz sem vibrações.

Depois da libertação ele voltou à Holanda, onde soube que toda a família

tinha sido exterminada.

Então, dirigiu-se a Paris, pois precisava de cuidados médicos, e foi atendido

por um bondoso médico. A princípio queria estudar para rabino, mas a sua

mutilação e as consequências dela eram tão óbvias, que tornaram esse

caminho impossível.

Menno Donker estava a sair dos limites da sanidade. Conseguiu equilibrar-se

porque recomeçou a tocar violino. Com a ajuda do médico tão devoto

e a receber um tratamento hormonal, pôde readquirir uma aparência mais

normal. A barba começou a crescer e a voz ficou menos fina. Sempre auxiliado

pelo médico, começou a tocar. Aqueles sons de infinita nostalgia, que

marcavam a sua interpretação, nasceram nos abismos da tragédia. O público

reconheceu o seu talento em pouco tempo. Era uma espécie de milagre que

um eunuco tivesse aquele vigor viril, que é o requisito indispensável dum

grande virtuoso.

Depois conheceu a filha duma importante família judaica e de educação

ortodoxa. Apaixonaram-se duma tal maneira, que parece impossível no

mundo de hoje. Foi uma união espiritual e religiosa. Ele conseguiu manter em

segredo o seu drama, por algum tempo, mas acabou por ter de lhe contar.

Apesar de tudo, ela amava-o e queria casar com ele. Ao fim duma amarga

luta com a sua consciência, foi procurar os pais dela e eles, como judeus religiosos,

concordaram com a realização dum contrato de casamento secreto,

pois sabiam que a união nunca poderia ser consumada fisicamente.

161

É voz corrente que os Van Damm são um casal feliz e perfeitamente dedicados



um ao outro. Por duas vezes, eles afastaram-se da sociedade para um

sabático dum ano de duração, e em qualquer das vezes regressaram com uma

criança adoptada. Para o mundo e para as crianças os Van Damm são os pais

naturais das crianças.

Alexander e Edelman choravam abertamente quando Pieter Van Damm

acabou de contar a sua história. Abraham Cady, a encarar agora o jornalista

experiente, ficou sentado, com o rosto impassível.

- E mudou o nome para Van Damm quando começou a sua carreira como

concertista.

- Sim, porque era um nome de família.

- O que é que aconteceu a Sobotnik, ao diário que passou cá para fora e

aos relatórios cirúrgicos?

- Desapareceram. Egon Sobotnik ainda estava vivo quando Jadwiga foi

libertada, mas depois desapareceu.

- Viraremos o mundo de pernas para o ar até o encontrar - disse

Alexander.

- O que acaba de nos contar trará a infelicidade e a tragédia à sua mulher

e aos seus filhos. E poderá prejudicar a sua carreira.

- Julgo que sei muito bem quais são as consequências.

- E está disposto a dizer isto tudo num tribunal?

- Sou um judeu. Sei quais são os meus deveres.

- Quando Kelno lhe fez aquilo, ele mostrou alguma hesitação ?

- Ele foi brutal.

Abraham Cady não era o tipo de homem que procura proteger-se, no

entanto sentiu-se ao mesmo tempo esmorecido e envergonhado de ter querido

recuar. Agora, a tensão e a tristeza assaltavam-no.

- Tem mais alguma pergunta a fazer? - perguntou Alexander.

- Não - suspirou Abe -, não.



Capítulo oitavo

Mal voltou de Paris, Abe combinou um encontro com Shawcross e os

seus procuradores. Foi um pesadelo. Discutiram durante horas.

Até mesmo com o testemunho de Van Damm, Lewin lutava para não

deixar que Shawcross entrasse no litígio. Jacob Alexander discordava,

porque, dizia ele, Shawcross tinha tido um lucro muito grande com a tiragem

de O Holocausto e com os outros romances de Cady. Devia agora arcar com

parte da responsabilidade, já que era razoável esperar-se isso dele.

Uma dúzia de conferências paralelas, foram levadas a efeito.

162


- Já chegaram até onde podiam ir - disse Shawcross. - Abe está disposto

a chamar a si próprio o impacto total de qualquer decisão contra nós.

Não se pode pedir mais.

- Ele pode assinar um contrato a afirmar isso. Mas se ele decidir não o

cumprir?

- Ora, seja sensato. A demissão de Geoff Dodd está em cima da sua

mesa.

Eles reuniram-se na sala de conferências. Shawcross recusou a oferta



duma chávena de chá. O charuto apagado estava pendurado nos seus lábios e

ele evitava olhar para Abe.

- Fui aconselhado a retirar-me do caso - disse Shawcross.

- O quê? Nem vai, tão-pouco, fazer um sermão sobre a integridade?

Sempre foi muito bom nestas coisas - disse Abe, ao sentir a raiva a crescer

dentro dele.

Alexander agarrou Abe.

- Desculpem-nos por uns instantes, senhores - disse, enquanto levava

Abe para a sala de espera. Abe apoiou-se à parede.

- Meu Deus... - sussurrou.

A mão firme de Alexander pousou no seu ombro e ficaram em silêncio,

durante alguns momentos.

-Fez o que pôde - disse Alexander. - Tenho estado a fazer dois papéis:

o papel de judeu e o de um amigo. Quero falar-lhe agora como a um irmão.

Não teremos hipótese nenhuma se Shawcross abandonar o assunto.

- Só consigo pensar na minha visita a Jadwiga - disse Abe. - Vi a sala

onde eles foram operados. Vi as marcas das unhas que arranharam, naquele

último espasmo de vida, as paredes de cimento das câmaras de gás. Cos diabos,

quem é que tem escolha? Fico a pensar, a pensar que isso aconteceu com

o Ben e com a Vanessa. Acordo e ouço-a a gritar na mesa das operações. Para

onde vou eu depois disto, Alexander? Um herói de pés de barro? O meu filho

está a voar para Israel. O que é que lhe vou dizer? Em todo o mundo os jovens

estão a olhar para nós e querem saber quem é que vai defender a humanidade.

Eu, pelo menos, tenho mais hipótese do que teve Pieter Van Damm. Não vou

desculpar-me perante Adam Kelno.

O Sr. Josephson, chefe do escritório da Alexander, Bernstein e Friedman

há mais de vinte anos, sentou-se à mesa em frente do seu preocupado chefe.

- Cady decidiu enfrentar sozinho a acusação - disse Alexander.

- É arriscado - respondeu o velho empregado.

- De facto, é. Estou a pensar em quem devo escolher para nos defender.

Thomas Bannister. Há vinte anos, ele foi contra Kelno, no processo de

extradição.

Josephson sacudiu a cabeça.

- Tom Bannister é o melhor de Inglaterra – concordou, mas quem é

que vai agarrar o touro à unha? Ele anda tão envolvido na política, que não

tem aparecido no tribunal nestes últimos anos. De qualquer modo, penso que

ele gostaria dum caso como este.

- Foi o que pensei. Telefone ao velho Wilcox - disse Alexander, referindo-se

ao empregado de Bannister.

- Não posso prometer nada.

- Bom, mas pelo menos não custa nada tentar.

Josephson, já ao pé da porta, voltou-se.

-Abraham Cady é doido?

- Os americanos diriam que ele é zaruca.

Wilcox era um bom conhecedor das técnicas judiciais. Começara a

carreira há 40 anos, como moço de recados e fora progredindo, sempre a trabalhar

no Templo.

Durante 35 anos tinha trabalhado nas câmaras do Paper Buildings, no

Templo Interior, e tinha entrado para lá na mesma altura em que Thomas

Bannister começara a sua carreira como “júnior”. Durante todo esse tempo

acompanhara o seu chefe e ajudara-o a alcançar uma posição sem paralelo nos

tribunais. A seguir, ”usando a seda” como Conselheiro da Rainha e depois,

sempre a subir no plano político, até ser nomeado Ministro do Gabinete.

Estava agora apontado como o futuro Primeiro Ministro de Inglaterra. Nas

câmaras, com sete “juniores” promissores, com um lucro de dois e meio por

cento, Wilcox era um dos mais abastados funcionários do Templo Interior. O

nome de Thomas Bannister era sinónimo de total integridade, até mesmo

num lugar onde a integridade era um modo de vida. Solteirão inveterado,

morava num apartamento no Templo Interior.

No fim de ter cumprido com eficiência o seu período no ministério, estava

à espera duma indicação para ser o próximo líder do partido. O seu nome era

cada vez mais e mais citado.

Como era da praxe, as duas velhas raposas, Wilcox e Josephson, travavam

um renhido duelo.

- Bem, o que é que o traz aqui, Sr. Josephson?

- Uma coisa importante, realmente muito importante.

Isto induzia-o a uma choruda percentagem. Mas Wilcox sabia as regras

do jogo. A sua arma era a indiferença.

- Somos os procuradores de Abraham Cady, acusado por Sir Adam

Kelno.


- Vai ser um caso sério. Nunca pensei que ele fosse contestar. Diga-me,

qual dos dois cavalheiros está a pensar contratar?

- Thomas Bannister.

- Ora, ora, não está a falar a sério.

- Estou a ser extremamente circunspecto.

- Poderia arranjar-lhe o Devon. É um rapaz de futuro. O mais inteligente

”júnior” destes últimos vinte anos.

- Queremos o Bannister. Todos os advogados são obrigados a aceitar um

caso, desde que sejam pagos.

- Seja compreensivo - protestou Wilcox. - Nunca procurei designar

alguém da sua firma, nem de qualquer outra firma de procuradores. Este caso

poderá afectar a carreira de Bannister.

- Só posso dizer-lhe que lamento imenso.

Capítulo nono

- Quer uma bebida, Tom?

- Gostaria imenso.

O motorista abriu a porta. Lady Wydman desceu, seguida por Thomas

Bannister.

- Morgan, espere pelo Sr. Bannister e leve-o de regresso ao Templo.

- Por favor, deixe-o ir embora. Gostaria de andar um pouco e depois

apanhar um táxi. Nos dias que correm, quase que não tenho oportunidade

para andar por Londres.

- Como quiser.

- Muito boa noite, Sr. Bannister. Boa noite, minha senhora. A que

horas vai precisar de mim?

- Depois do meio-dia. Tenho de ir à casa Dior ver um vestido.

Ela ofereceu um conhaque a Bannister, que o aqueceu entre as mãos,

como era seu costume.

- À sua saúde!

- À sua.

- Foi uma noite encantadora, Sarah. Já não me lembro de ter passado

horas tão agradáveis. Sou um idiota em não lhe dar atenção e obrigá-la a

convidar-me para sair. Mas tenho tido realmente muito trabalho.

- Eu compreendo perfeitamente, Tom.

- A minha sorte é não poder dizer-lhe que não.

- Espero que nunca possam.

Bannister sentou-se e esticou as pernas.

- Agora que já me deu de comer e beber, quero saber o que é que vai

pedir-me, que não lhe possa negar.

- É o processo de acusação entre Sir Adam Kelno e Abraham Cady.

Tenho a certeza que sabe muito bem porque é que estou interessada. Jacob

Alexander é o representante de Cady.

165


A fisionomia normalmente carrancuda de Bannister traiu-o.

- Parece-me que vi o Josephson nas câmaras, aqui há dias.

- Viu, sim. Não temos conseguido chegar perto de si. Julgo que o partido

quer metê-lo num saco de plástico e congelá-lo até às eleições.

- Tenho tido imensos problemas com eles por causa disso. Não sei que

espécie de primeiro-ministro querem que eu seja, se me fazem evitar todas as

polémicas.

- Pode estudar o caso?

- Claro.

- Ainda outra coisa, Tom. Se se decidir a aceitar o caso, eles vão ser

muito pressionados. É um género de assunto que não poderia ser combatido

por um homem só. É caso para uma grande empresa, ou um governo.

Bannister sorriu. Os seus sorrisos eram pouco frequentes e passageiros, o

que os tornava mais preciosos.

- Está muito interessada nisto. Diga-me, Sarah, que espécie de homem é

esse tal Abraham Cady?

- Tem os maus modos dum capataz de descarregadores, dentro duma

pensão. Inocente como um bebé. Berra como um touro. Bebe como uma

esponja. E é terno como um cordeirinho. Não é um cavalheiro britânico.

-Pois é. Às vezes os escritores são assim. Gente estranha.

Era impossível deixar de sentir que se entrava num santuário quando se

subia os degraus de pedra antiga do Paper Building, em direcção às câmaras

de Thomas Bannister.

O seu escritório era mais elegante do que o dos seus colegas. Confortável e

bem decorado, exceptuando os inestéticos aquecedores eléctricos no chão.

Bannister e Cady, dois competentes profissionais, mediram-se com

curiosidade, enquanto Alexander os observava sob tensão.

- Ora bem - disse Thomas Bannister. Realmente Kelno é culpado.

Não vamos deixá-lo sair ileso, pois não?

Houve um visível alívio.

- Estamos todos conscientes de como será difícil e árdua a tarefa a que

nos propomos. A maior carga de responsabilidade durante este próximo ano

recairá sobre si, Alexander.

- Saberei ter suficiente energia. E não estamos a lutar sem aliados.

- Senhores - disse Abe. -Sei que vou contar com a melhor representação

possível. Não tenho a menor ideia de lhes dizer como devem conduzir este

caso. Mas há uma condição. Em circunstância alguma, quero que Pieter Van

Damm seja chamado a testemunhar. Sei que isto vai aumentar o nosso trabalho,

mas prefiro perder, se este for o preço da vitória. É a minha primeira e

única exigência.

Alexander e Bannister olharam-se entre si, murmurando. A admiração

que sentiam pelo gesto de Abe confundia-se com a perplexidade de verem

166

fugir o seu mais forte apoio legal. “No entanto”, pensou Bannister, “tudo o



que estamos a fazer é por uma questão de princípio. Gosto deste tal Cady.”

- Faremos o possível - afirmou.

- Tem forçosamente de partir amanhã? - perguntou Lady Wydman.

- Quero ir ver Ben, a Israel - respondeu Abe. - Vanessa vai regressar

comigo a casa. Tenho de começar a trabalhar.

-Vou sentir imenso a sua falta - disse ela.

- Eu também.

- Posso fazer uma cenazinha?

- É mulher. É um privilégio vosso.

- Sabe que o adoro, mas sou muito orgulhosa para suportar ser apenas

mais um espécimen da sua colecção. Também sei que me portaria como uma

tola. Apaixonar-me-ia por si, transformar-me-ia numa fêmea ciumenta que

faz cenas para obrigá-lo a um compromisso, e todas essas malditas coisas que

as mulheres fazem estupidamente, e que detesto tanto. Sei que não poderia lidar

consigo, o que realmente me deixa triste.

- É bom ouvir isso - disse ele, prendendo-lhe as mãos nas suas.

Tenho um problema, Sarah. Não sou capaz de dar a uma mulher todo o amor

que sinto em mim. Só consigo isso com os meus filhos. Também sou incapaz

de receber a espécie de amor que uma mulher como você me pode dar. Nem

mesmo num jogo, consigo entregar-me. O que se passa connosco é um jogo

deste género: dois chefes e nem um só índio.

-Abe.


- Sim.

- Quando voltar, para o julgamento, vai precisar de mim. Estarei aqui

para o aquecer.

- De acordo.

Ela atirou-se para os braços dele.

- Oh, como eu lhe estou a mentir. Estou doida por si, seu filho-da-mãe.

Ele abraçou-a muito ternamente.

- A primeira vez que o vi, compreendi que havia alguma coisa muito

especial em si. Você é uma senhora. Um cavalheiro deixa à sua dama a sua

dignidade.

- Preparem a minha conta. Vou embarcar dentro duma ou duas horas.

- Sim, senhor Cady. Foi um prazer tê-lo connosco. Sabe, alguns dos

empregados compraram exemplares do seu livro. Veria algum inconveniente

em autografá-los?

- Claro que não. Mande-os para o meu quarto, com os respectivos nomes

escritos num papel.

- Muito obrigado, senhor Cady. Está um cavalheiro no bar à sua espera.

167


Pouco depois Abe sentou-se ao lado de Shawcross e pediu um uísque com

soda.


- Mudei de ideias - disse Shawcross.

- Porquê? - perguntou Abe.

- Realmente não sei. Não consigo esquecer Pieter Van Damm. Bem,

Abe, o que quero dizer é que jogo limpo é jogo limpo. É a única forma de se

viver. Cos diabos, eu sou um inglês.

-L’Chiam!

- Saúde. Dê cumprimentos meus ao Ben e à Vanessa e, por favor,

quando voltar, não se preocupe com este maldito processo Kelno. Despache-se

com o seu novo romance, para que possamos editá-lo o mais rapidamente

possível.

- Pode ouvir-me por um minuto? - pediu Abe. - Shawcross, você é

exactamente o que Deus pensou fazer, quando criou os editores.

- É muita generosidade da sua parte dizer-me isso. Disse ao Geoff, à Pam

e ao Cecil que ficaria do seu lado. Retiraram os pedidos de demissão e vão

continuar comigo.

- Isso não me surpreende. São boas pessoas. Antes de tudo isto terminar,

muitos homens e muitas mulheres terão de mostrar o que são.



Capítulo décimo

Fevereiro de 1966

O trabalho de Sir Adam Kelno foi muito bem recebido e profundamente

acatado pelo Royal College of Surgeons, em Edimburgo. Não era um orador

muito inspirado, nem possuía uma boa fluência da língua inglesa mas, apesar

disso, era uma autoridade em desnutrição, em administração de medicina

para as massas e em problemas da resistência humana sob condições desfavoráveis.

Embora a sua carreira profissional continuasse a correr tranquilamente na

pequena clínica de Southwark, entre gente simples, ele escrevia e fazia

constantemente conferências sobre as suas especialidades.

Considerava as suas idas a Edimburgo como feriado, pois gostava de atravessar

a Inglaterra no automóvel, sem pressas e sem um horário rígido.

Ao deixarem as zonas centrais de população, os campos multiplicavam-se,

selvagens e vazios. Ângela aumentou o aquecimento do carro e

serviu chá, que tinha num termo. Adam podia guiar todo o dia naquela

languidez da Escócia e sentir um prazer completo no descanso das longas

horas de trabalho em Londres.

Ao entrar numa aldeia de casas de tecto de sapé, diminuíram a marcha, já

168


que o gado estava aglomerado na rua principal e era conduzido por uns

quantos cavaleiros escoceses, que o levavam a pastar.

O cheiro do estrume chegou até dentro do carro.

Por um instante, Adam sentiu-se na Polónia, na sua aldeia natal. Não era

parecida com esta, é verdade. A sua aldeia era maior, mais verdejante, mais

pobre e mais primitiva. Mas todos os campos, todos os camponeses e todas

aquelas aldeias faziam-lhe vir à memória lembranças esquecidas.

Um terceiro cavaleiro galopou à frente do carro e obrigou-o a parar.

Também havia um menino duns doze anos, montado a cavalo e dois cães

corriam a morder os tornozelos das vacas.

“Então, aí vou eu. Este homem animalesco poderia ser o meu pai. Pobre,

pobre menino. Que sorte poderá ter num lugar como este? Que hipóteses tive

eu? E o meu pai, com uma mentalidade tão dura, tal como as rochas nos

campos solitários.

“Esporeia o cavalo, rapaz! Corre, corre para bem longe. Vai para a cidade

e salva-te.

”Pai, eu odeio-o!”

Adam meteu a primeira e seguiu o gado, devagar.

“Escondo-me no feno. O meu pai entra no paiol a chamar por mim. Dá

pontapés no feno, encontra-me e tira-me de lá. Sinto o hálito da aguardente

misturada ao cheiro a alho, que ele exala. Aos pontapés, põe-me de joelhos.

Bate-me, até ter de parar para respirar.

“Senta-se à minha frente na mesa, a cheirar mal e a cambalear. A sopa de

beterraba e o molho da carne escorrem pela sua barba suja e ele enche a boca

de comida. Tal como um animal. Arrota, lambe os dedos e queixa-se de que

deve dinheiro ao judeu da aldeia. Todas as pessoas na aldeia devem dinheiro

ao judeu.

“Agarra-me, abana-me e ri do meu medo. Porque é que ele não bate nos

meus irmãos e irmãs? Porque é que sou só eu a apanhar? Porque é a mim que

a minha mãe ama, mais do que aos outros, é essa a razão.

”Através das frinchas da parede que separa os nossos quartos, vejo-o nu.

O seu pénis é enorme e negro, cheio de veias e horrendo. Brilha, com aquilo

que saiu da minha mãe. Coça-se e brinca com os enormes testículos.

”Odeio o seu pénis e os seus testículos! Fazem chorar a minha mãe,

quando a penetra. Ele grunhe como um porco, quando está em cima dela.

”Se eu tivesse coragem, pegava numa pedra e esmagava os seus testículos.

Cortar-lhos-ia com uma faca.

“Gostaria tanto de dormir agarrado à minha mãe. Como fazia antes de ter

crescido. Os seus seios eram grandes e quentes e eu tocava-os com as pontas

dos dedos. Ela não se importava, eu era tão pequeno. Deixava-me esconder

nas suas saias, levantava-me e encostava-me ao seu peito.

“Mas ele descobre-me, arranca-me a ela, espanca-me e enxota-me. Estou

sempre todo arroxeado das pancadas dele.

“Tenho de fugir para a cidade, onde ele não me encontrará jamais.

“Cai a neve, que cobre todo o chão, e eu estou de pé junto do túmulo da

minha mãe. Ele matou-a, como se o tivesse feito com as suas próprias mãos.

“Agora já está velho e não pode bater-me, e os seus negros órgãos genitais

já não funcionam.”

- Adam! Adam! ;

- O quê? Ha... hein...

- Adam!

- O que é ? ;



- Estás a acelerar muito... Quase que ultrapassas os 120...

- Oh, desculpa. Estava tão longe daqui.

Como sempre, a clínica estava cheia de gente. Terrence Campbell viera

passar alguns dias em casa e, por isso mesmo, tudo corria bem. Terry começaria

a estagiar no Guy’s Hospital, no Outono. Seria muito bom tê-lo sempre

perto. O rapaz trabalhava com Adam durante o dia, dando injecções, fazia

testes no laboratório e diagnósticos, consultando-o a respeito desses assuntos.

Por índole, ele era um médico.

O último doente retirou-se e eles ficaram a conversar no escritório.

-O que é que achas disto? - perguntou Adam, ao apontar para uma radiografia

no painel iluminado.

Terry estudou-a.

- Sombras. Uma mancha. Tuberculose?

- Tenho a suspeita de que é cancro.

Terry olhou para a ficha técnica.

- Pobre mulher... Quatro filhos.

- O cancro não tem consciência - respondeu o Dr. Kelno.

- Eu sei. Mas o que será das crianças? Terão de ir para um asilo.

- Há já algum tempo que queria conversar contigo a respeito destas

crianças. É a única faceta da medicina para a qual pareces não estar preparado.

Para te tornares um bom médico, tens de estabelecer limites a ti próprio,

que te capacitarão para enfrentares a morte até do teu melhor amigo. O médico

que se envolve emocionalmente com os seus pacientes, não consegue

resistir.

Terry abanou a cabeça, como se quisesse perceber, mas continuava a

olhar para a radiografia.

- Pode ser que não seja cancro - prosseguia Kelno. - Talvez seja operável.

Há ainda outra coisa que te quero mostrar. - Abriu a gaveta e mostrou

a Terry um documento de aspecto legal, com um cheque de 900 libras preso a

ele.


170
- O que é isso?

- Um desmentido dos impressores, que vai ser lido em tribunal público.

E ainda há mais. Os procuradores de Shawcross contactaram com Smiddy,

para negociar um acordo. Ouvi dizer que Cady esteve em Londres e voltou

para os Estados Unidos, um tanto à pressa.

- Graças a Deus, rapidamente estará tudo terminado.

- Ainda bem que tu e Stephan me fizeram resolver este caso para sempre.

Agora irei atrás de todos os editores que estão a imprimir este nojento livro de

Cady, em qualquer país. Particularmente os americanos vão pagar bem caro.

- Doutor - disse suavemente Terry -, quando começou este processo,

foi por uma questão moral. Parece-me que quer continuá-lo por vingança.

- E que mal há nisso?

- Vingar-se, pelo prazer da vingança, é um mal.

- Não me venhas com citações dos filósofos de Oxford. O que pensas que

esse Cady merece, pelo que me fez?

- Se ele reconhecer que cometeu um erro e quiser redimir-se, penso que

deve adoptar uma atitude caridosa. Não pode persegui-lo por toda a parte.

- Foi esta a espécie de caridade que recebi em Jadwiga e em Brixton.

Nem mais, nem menos. Olho por olho, é o que eles dizem.

- Mas o senhor não compreende que, ao adoptar um comportamento

desses, coloca-se na posição dum... bem, dum nazi?

- Julguei que estivesses orgulhoso deste resultado.

- E estou, doutor. Mas não se destrua ao buscar a vingança. Não acredito

que isso agradasse ao Stephan, como não me agradaria a mim.

Sir Robert Highsmith podava as roseiras e deixava apenas as mais fortes

para que desabrochassem na Primavera. Cuidava do seu jardim em

Richmond, Surrey, com uma desatenta dedicação.

- Querido, o chá está na mesa - chamou Cynthia.

Ele tirou as luvas e dirigiu-se para a estufa do seu pequeno solar, que tinha

sido a casa do guarda duma casa de campo da realeza, há 200 anos atrás.

- As rosas serão lindas este ano - resmungou.

- Robert - disse a mulher -, ultimamente, andas muito desatento.

- É o caso Kelno. Uma coisa muito estranha.

-Como? Pensei que tivesse sido encerrado.

-Eu também o pensei. Mas o velho Shawcross fez marcha-atrás, agora

que parecia que ele ia a tribunal com o pedido de desculpas. Esse tal Cady veio

a Londres e vai contestar o processo Shawcross está com ele novamente. E o

que é mais espantoso, é que Tom Bannister aceitou a causa.

- Tom ? Mas isso não será muito arriscado para ele ?

-De facto, é.

- Acreditas que Sir Adam te disse tudo quanto se passou ?

- É caso para se conjecturar, não é?



Capítulo décimo primeiro

Jerusalém, Abril de 1966

O Dr. Leiberman atendeu ao toque da campainha da porta do seu apartamento,

na Rua David Marcus.

- Sou Shimshon Aroni - disse-lhe o homem que estava na sua frente.

- Esperava que me encontrasse.

Aroni, o famoso caçador de nazis, acompanhou o médico até ao seu escritório.

Eram enganadores os seus 68 anos. Aroni era altivo e escondia a sua

astúcia por detrás dum rosto enrugado e duro. Franz Leiberman contrastava

com ele, pois era suave e paternal.

- Li as histórias que publicou em jornais e revistas. Quem conseguiu

encontrar?

- Moshe Bar Tov no Kibbutz Ein Gev. E deu-me o nome de outros. Ao

todo, quatro homens e duas mulheres que o senhor tem tratado, durante

todos estes anos. O senhor sabe o que está a acontecer em Londres. Vim

procurá-lo por causa da sua relação com essas pessoas. Seria mais fácil

convencê-las a testemunhar, se o seu médico cooperasse.

- Mas não vou cooperar. Eles já sofreram bastante.

- Sofrer? Se se nasce judeu, sofre-se. Nunca se deixa de sofrer. E o

senhor e a sua família? Quantas pessoas perdeu, Dr. Leiberman?

- Meu caro Aroni, o que é que quer? Fazê-los desfilar como animais?

Falar num tribunal sobre as suas mutilações. As mulheres sofrerão mais.

Com os cuidados que têm recebido, com o carinho das famílias, elas podem

levar aparentemente uma vida normal. Mas o que lhes aconteceu está enterrado

lá dentro delas, num escuro porão. Poderão ficar traumatizadas se

forem obrigadas a trazer tudo isso ao de cima.

-Será trazido à tona. Nunca permitiremos que aquilo tudo seja esquecido.

Vamos contar tudo ao mundo inteiro, sempre que se apresentar uma

oportunidade.

- Os anos endureceram-no. Foi essa caça aos criminosos de guerra. Na

minha opinião, tornou-se num vingador profissional.

- Talvez tenha enlouquecido -disse Aroni -, quando a minha mulher

e o meu filho me foram arrancados, no centro de selecção de Auschwitz. O

que tem de ser feito, será feito. Terei de vê-los sozinho, ou o senhor

cooperará?

Franz Leiberman sabia que Aroni era um investigador incansável. Não

desanimaria; levá-los-ia, um por um, ao tribunal. Se fossem juntos, como

um grupo, pelo menos encorajar-se-iam mutuamente.

Alexander, Bernstéito

Procuradores

Park Square, 8

Lincoln’s Inn

Londres WC 2

30 de Abril de 1966

Shalom, Alexander.



Estou em francos progressos. Encontrei seis vítimas, cujos nomes e

declarações junto envio. Convenci-os a irem a Londres para depor. Franz Leiberman

acompanhá-los-á. Será uma influência tranquilizadora.

Consegui informar-me sobre os nomes doutras duas vítimas. Ida Peretz,

Cardozo em solteira, que vive em Trieste. Amanhã vou procurá-la.

O outro chama-se Hans Hasse e mora em Haarlemmerweg, 126, em

Amesterdão. Espero que transmita esta informação à nossa gente em Haia.

Continuarei a apresentar relatórios, de acordo com o desenrolar dos acontecimentos.

Sinceramente seu,

Aroni


Polónia, Varsóvia, Zakopane, Maio de 1966

Nathan Goldmark tinha envelhecido apagadamente. Quando foi extinta a

sua posição como investigador da polícia secreta, no caso dos criminosos de

guerra, conseguiu insinuar-se na hierarquia da Secção Judaica do Partido

Comunista Polaco.

A maioria dos judeus polacos fora exterminada pelos nazis. Os poucos sobreviventes

tinham fugido. Uma ínfima minoria duns poucos mil, escolheu

permanecer, por causa da avançada idade e dos riscos duma mudança de vida.

Alguns ficaram por serem idealistas e acreditarem no comunismo.

Escritores como Abraham Cady acreditavam que os campos de extermínio

não seriam possíveis em países civilizados do Ocidente que não

aprovassem os métodos nazis. Não houve campos de exterminação na

Noruega, Dinamarca, Holanda, França ou na Bélgica, apesar de terem sofrido

a ocupação. Nem na Finlândia ou na Itália, embora fossem aliados da

Alemanha. No entanto, a Polónia tinha sido um lugar praticável para os

campos como Auschwitz, Treblinka e Jadwiga, devido à sua centenária tradição

de anti-semitismo.

Para poder apagar essa lembrança, a Polónia tinha tentado estabelecer

uma reputação nova, de apoio aos judeus, permitindo uma comunidade

judaica, como amostra para o mundo, de que as coisas tinham mudado com

o comunismo. Algumas sinagogas tinham sido mantidas intactas, e uma

pequena impressora judaica e um teatro nacional atestavam a existência,

agora miserável, do que antes fora uma comunidade de 3 milhões e meio de

judeus.


Ao usar os mesmos métodos nazis, de obrigar os judeus a caminharem

para a própria destruição, um ramo judaico independente do Partido

Comunista aceitara controlar e guardar os judeus para que formassem uma

população unida. Em vão tentavam dar vida ao teatro e à imprensa,

arrasando-os com a propaganda comunista.

Nathan Goldmark, um astuto político, cuja ética era a própria sobrevivência,

mesmo na servidão, foi muito usado como instrumento do regime.

O comboio em que viajava subia as montanhas dos Cárpatos, onde as

últimas neves do Inverno se retiravam para os campos glaciais. Zakopane,

além de ser uma estação de desportos de Inverno, era também um importante

centro de recuperação de tuberculosos.

Ele viera para encontrar-se com Maria Viskova, oficial-médica do sanatório

para operários, e pertencente àquele raro espécimen, o do judeu polaco

comunista, por idealismo. Como heroína nacional, ela escolhera trabalhar

longe de Varsóvia e dos Nathan Goldmark, os quais desprezava.

Os anos haviam suavizado o seu aspecto, dando-lhe essa doçura que alcançam

as pessoas que viveram terríveis tragédias. Era agora uma mulher

calma. Com 50 anos, Maria Viskova era bonita, apesar dos cabelos acinzentados.

Quando fechou atrás de si a porta do escritório, estava a cair lá fora

uma tardia chuva de Primavera, metade água e metade neve.

Nathan Goldmark tirou os agasalhos e curvou-se sobre a mesa, escondendo

as unhas roídas e puxando o colarinho para tapar o eczema do

pescoço.

- Estou aqui para falar-lhe sobre o caso Kelno - disse ele. - Chegou-nos

a notícia de que a senhora fora procurada por elementos do Ocidente.

- Sim, por uma firma de procuradores de Londres.

- A senhora conhece a nossa posição a respeito do movimento sionista

internacional.

- Goldmark, não me obrigue a perder o meu tempo nem o dos meus

clientes, com essas tolices.

-Por favor, camarada doutora. Viajei muito. Há vinte anos a senhora

assinou uma declaração contra Kelno. O comité considera a sua posição sem

validade.

- Porquê? Nessa altura, estavam bastante interessados no julgamento

dele, na Polónia. A minha declaração foi-lhe dada a si. O que é que os faz

mudar de opinião? Kelno não foi julgado pelo que fez.

- O assunto ficou encerrado porque o húngaro Eli Janos não reconheceu

Kelno no desfile policial.

- Sabe tão bem como eu, Goldmark, que o Dr. Konstanty Lotaki fazia as

mesmas operações que Kelno e que, provavelmente, foi ele quem operou Eli

Janos.

174
- Isso é pura especulação. Lotaki já se limpou da culpa e reabilitou-se ao



tornar-se um bom comunista.

- É da atribuição criminal o facto de Lotaki nunca ter sido obrigado a

responder pelos seus crimes. O que quer dizer isto tudo, Goldmark? Subitamente,

os culpados tornaram-se inocentes. 20 anos ou 20000 anos não

absolvem ninguém dos seus crimes. E Mark Tesslar, que viu Kelno cometer

esses crimes?

- O comité pensa que não pode dar crédito à palavra de Tesslar.

; -Porquê? Pelo facto de já não ser comunista, isso torna-o um men-

tiroso?

- Camarada doutora - argumentou Goldmark - só posso transmitir-lhe



a palavra do comité. Na altura em que tentámos pedir a extradição de Kelno,

os Ingleses tentavam desacreditar o legítimo Governo polaco. Hoje esperamos

a cooperação do Oeste. O comité pensa que será melhor não especular com

ódios passados. Kelno é agora um cavaleiro. Ao colaborar nesse julgamento,

a Polónia estaria a afrontar a Inglaterra.

Perante o ardor do olhar de Maria Viskova, Goldmark roía as unhas.

- Existe um outro ângulo da questão. Esse escritor, Abraham Cady, é

um provocador sionista e um inimigo do povo polaco.

-Leu O Holocausto, Goldmark?

- Não quero fazer comentários a esse respeito.

- Não se assuste, não vou denunciá-lo ao comité.

- Está repleto de injúrias, mentiras, provocações e propaganda sionista.

A neve caía fortemente. Goldmark, o mestre em evitar olhares, estava

quase dilacerado. Decidiu ir até à janela e fazer um comentário qualquer sobre

o tempo. A coragem de Maria Viskova era conhecida de todos. Estava fora de

questão a sua dedicação como comunista. Pensavam que, para bem do partido,

ela abriria essa prerrogativa e salvá-los-ia duma situação embaraçosa.

Como poderia ele relatar em Varsóvia a atitude dela? Pensou que talvez o

assunto fosse da competência da polícia secreta, pois poderia obrigá-la a calar-se.

Mas neste caso, os sionistas saberiam e arranjariam um escândalo ainda

maior.

- Estou a contar embarcar para Londres, na altura do julgamento. Quais



são as suas intenções, Goldmark?

- Isso é um assunto do comité.



Paris, Rambouillet, Junho de 1966

A casa da Dr.a Parmentier ficava a alguns quilómetros de Paris e era

discreta e elegante, como imaginara Jacob Alexander. Ele e Samuel Edelman,

o representante francês do movimento israelita, foram recebidos por um

velho criado que os levou até à sala de visitas. Depois foi chamar ao jardim

Madame Parmentier.




Yüklə 3,25 Mb.

Dostları ilə paylaş:
1   ...   5   6   7   8   9   10   11   12   ...   20




Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©muhaz.org 2024
rəhbərliyinə müraciət

gir | qeydiyyatdan keç
    Ana səhifə


yükləyin