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Ela já era bastante idosa, passava dos 70, mas no seu olhar brilhava a

malícia gálica. Sentaram-se todos numa sala de muito bom gosto, adornada

com fotografias do seu marido, dos seus filhos e netos, em molduras de prata.

Alexander desculpou-se pelo seu inadequado francês.

- Quando recebi a carta de Maria Viskova a dizer que lhes tinha dado a

minha morada, senti-me perturbada. Como podem ver, estou velha e

decrépita e nada bem de saúde. Não creio que os possa ajudar muito. Porém,

como foi a Maria que me pediu para os atender, aqui estou.

- Estudámos a sua actuação como prisioneira em Jadwiga e acreditamos

que pode ajudar-nos com o seu testemunho - disse Alexander.

Ela abanou os ombros, e enquanto falava, gesticulava muito.

- Só sabia das actividades de Kelno por ouvir dizer. Não posso jurar que

haja alguma verdade naquilo tudo.

- Mas a senhora é amiga de Mark Tesslar.

- Somos como irmão e irmã.

- É estranho que ele nunca tenha falado na senhora.

- Apenas obedecia ao meu desejo. Até receber a carta de Maria Viskova,

não via motivos para desenterrar o passado.

- Permita-me fazer-lhe uma pergunta.

- Tentarei não lhe dar uma resposta evasiva, como é costume aqui na

minha terra.

- O processo pode vir a depender, inteiramente, do testemunho de Mark

Tesslar. Qual é a sua opinião a respeito da capacidade dele? Podemos confiar

nele? Faço-lhe esta pergunta como uma consulta, visto que a senhora é

psiquiatra, Dr.a Parmentier. Gostaria duma informação imparcial, sem

preocupações com os laços de amizade.

- Para lhe falar em termos comuns, Sr. Alexander, acredito que o que o

Dr. Tesslar viu naquela enfermaria talvez lhe tenha afectado um pouco a

mente, devido então ao trauma sofrido.

- Temos de correr esse risco. E quanto às declarações de Kelno sobre

Tesslar praticar abortos antes da guerra, e depois no campo de concentração?

- Isso é fantasia de Adam Kelno. Quem conhece Mark Tesslar sabe o

quanto ele é humano. Ele saiu da Polónia para terminar os seus estudos na

Suíça, por causa do anti-semitismo. Tanto Maria Viskova como eu, poderemos

jurar que ele nunca praticou um aborto para os nazis.

- A senhora iria a Londres?

- Tenho pensado muito a esse respeito. Já falei com o meu conselheiro

espiritual e rezei para que a Divina Providência me orientasse. Como cristã,

terei de depor.

Desaparecera o brilho do seu olhar e ela estava cansada. Lentamente,

dirigiu-se até a um vaso de flores, apanhou duas rosas cor de chá e colocou-as

na lapela do casaco de cada um dos dois homens.

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- Em Antuérpia, há uma mulher que foi operada naquele dia. Depois da

guerra, submeti-a a um tratamento psiquiátrico, durante vários anos. É uma

mulher de carácter. A sua cicatriz nunca desaparecerá, mas sei que ela não

me perdoaria se não os levasse até junto dela.

, Capítulo décimo segundo

Millie trouxe a correspondência da manhã. Abe olhou para os sobrescritos

e sorriu. Havia uma carta de Vanessa. Guardá-la-ia para o fim.

Abriu uma carta do seu editor francês, que vinha cheia de lamentos,

mas incluía um cheque de 2000 dólares para as despesas do processo de

acusação.

Todos os seus editores já se tinham solidarizado. O primeiro a oferecer

5000 dólares fora o editor alemão, um anti-nazi militante, que tinha sido

sentenciado à morte por ter tomado parte no atentado contra Hitler e tinha

conseguido escapar da forca quando as bombas começaram a cair em Berlim, o

que lhe permitiu fugir da prisão.

Excepto os editores suecos, que apenas manifestavam a sua simpatia em

acalorados termos, todos tinham dado a sua contribuição.

Por fim abriu a carta de Vanessa.

Kibbutz Sede Boker

25 de Julho de 1966

Morningside Lane, 10

Sausalito

Querido paizinho: , :

Deves ter lido nas entrelinhas, desde que deixaste Israel, no Inverno.

Yossi e eu estamos profundamente apaixonados. O Verão no deserto foi

quente e húmido, mas não conseguiu diminuir o nosso vigor nem o sentimento

que temos um pelo outro.

Não sei porque é que isto me faz sentir tristeza. Julgo que é porque o meu

compromisso com ele põe fim a uma parte do meu passado, Yossi ainda vai

estar mais um ano ao serviço do Exército e depois terá de estudar na Universidade,

durante quatro anos. Vai ser uma longa jornada e eu não quero sobrecarregá-lo

com o casamento.

Está a custar-me imenso escrever as próximas linhas, pois elas vão dizer-te

que não vou voltar para os Estados Unidos. Com a situação a ficar cada

vez pior na fronteira, eu recuso-me a sair de Israel, mesmo que seja por

pouco tempo. É claro que farei uma excepção para me encontrar contigo

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em Londres, durante o julgamento. Imagino como será árduo escrever sozinho

o teu próximo romance, já que reparti contigo o imenso trabalho que te

custou O Holocausto. Sinto-me como se te tivesse abandonado.

O Ben pediu-me para escrever por ele, porque durante esta quinzena vai

estar em manobras fora daqui. Ele está o protótipo do oficial israelita, com um

enorme bigode, uma maneira de falar medonha e muito auto-suficiente. O

Ben não se prende a nenhuma pequena, em particular, até parece que gosta

delas todas. Parece-se contigo neste aspecto, sabes!

Ele também irá tentar obter uma licença para poder estar contigo em

Londres, na altura do julgamento. Por isso avisa-nos da data exacta.

Yossi nunca saiu de Israel. Gostaria que ele pudesse acompanhar-nos,

Paizinho, espero não te ter magoado muito.

A tua filha que te ama muito,

Vanessa.


3 de Agosto de 1966

Minha querida Viny:

Mentiria se te dissesse que não me senti desapontado, mas concordo

plenamente com a tua decisão. Não gostaria nada de ter uma filha que não

soubesse o que quer. É em alturas como estas que mais lamento ter-me

separado tantas vezes de vós por causa do meu trabalho, mas acho que

recuperámos esse tempo nas ocasiões em que estivemos juntos, e que tanto

contribuíram para que tivéssemos uma tão boa convivência.

Quanto mais perto estou de começar este novo livro, mais vejo o pouco

que sei. Já não sou suficientemente novo para saber tudo. Só as crianças

estudantes parecem saber todas as respostas, mas são muito, muito intolerantes.

Diverte-me pensar que este movimento contra a ordem estabelecida será a

ordem estabelecida de amanhã. Dentro de poucos anos os radicais de agora

terão de ponderar e tomar as rédeas do governo. A despeito de todas as inovações,

irão amar, casar, ter filhos, lutar para manter as famílias e esperar

por momentos de paz. Então, repetir-se-á o mesmo de hoje.

Mas, que acontecerá quando herdarem a ordem estabelecida? Saberão ser

tão tolerantes com os revoltados, os viciados, os marginalizados e tudo o resto

que aparecerá por ai e que só Deus sabe? Escuta, na minha opinião já era

tempo deles serem mais tolerantes connosco, pois temos uma pequena

contribuição a dar-lhes.

Realmente o meu desejo é que tivessem um herói que não fosse um anti-herói.

Qualquer coisa que merecesse ser imitada e alcançada, em vez da “divina

missão de tudo arrasar. Algo como tu e o Ben encontraram.



Parece que o julgamento só será na Primavera. Passo a vida a ouvir as

mais recentes notícias que me levam a crer haver, brevemente, uma nova

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encrenca com os árabes. Enfim, é o preço do nosso judaísmo: o de vocês, aí

em Israel; o meu, à minha espera em Londres. Será que nos deixarão tranquilos

algum dia?

O meu carinho para todos vós. Diz ao teu Yossi que eu lhe escrevi a dizer

para que estude muito e não se esqueça de fazer os deveres de casa.

Papá.


Capítulo décimo terceiro

Mary Bates vestiu a mini-saia por cima da meia-calça e puxou o fecho das

botas, que lhe davam até ao joelho. Terrence Campbell, deitado na cama,

observava-a. Gostava de a ver vestir-se, principalmente quando ela se sentava

em frente do espelho, sem soutien, a pentear o longo e louro cabelo. As

mini-saias são coisa de doidas, pensava. Elas deviam ter o rabo gelado, mas já

que era para se ver, Terry gostava muito de olhar.

Mary sentou-se na beira da cama. Ele levantou o cobertor, a convidá-la.

- Amor, não posso! - disse Mary.

- Só um instantinho.

- És um menino levado da breca. Vamos, sai da cama! Vais chegar

atrasado à tua primeira aula.

- Só um abraçozito.

Ela puxou para trás os cobertores e mordeu-lhe as costas nuas,

carinhosamente.

- Jesus, está frio! - gemeu Terry.

- Olha só para a tua pobre coisinha enregelada.

- Aquece-a!

- Hoje à noite, está bem?

Saiu da beira da cama, antes que ele a agarrasse e dirigiu-se ao fogareiro,

no canto oposto do quarto. Era apenas uma divisão, com uma pseudo casa-de-banho,

mas Mary conseguira arranjá-la dum modo bastante agradável.

Era a casa deles. Após um ano, em que Terry vinha de Oxford para encontrar-se

com ela e fazerem amor em carros estacionados, nos sofás das salas

de casas alheias e em hotéis baratos, tinham algo deles.

O quarto era perto da Old Kent Road e Terry podia ir a pé até ao Guy’s

Hospital and Medical College, onde começara os seus estudos. Terry tremia

de frio, enquanto tomava o café. Mary era uma péssima cozinheira. Seria

ideal se Mary e a Sr.a Kelno se tornassem amigas, e Mary aprendesse a cozinhar.

- Nós vivemos num país completamente selvagem - resmungou

Terry. - Aqui, no mundo ocidental e em pleno século XX, era de se esperar

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que os apartamentos tivessem aquecimento central e água quente nas torneiras.

- Um dia, teremos assim um apartamento.

O amor entre a juventude pode esquecer estes pequenos desconfortos e

eles amavam-se há mais dum ano.

- Depois das aulas vou directamente para a casa dos Kelno - disse ele.

Isto já era um ritual de todas as semanas e ele esperava-o com ansiedade,

porque representava uma variante à magra dieta em que viviam.

- Irás lá ter, depois do trabalho? - perguntou ele.

- Não posso ir nesta noite, Terry. Combinei com a minha irmã irmos ao

cinema.


Terry fez uma careta. A torrada parecia pedra. Partiu-a, barrou gema de

ovo por cima e mastigou-a.

-Há três semanas que não vais comigo ver os Kelno.

- Terry, por favor não vamos recomeçar a discutir. - Suspirou e segurou-lhe

na mão. - Amor, já falámos sobre isso uma dúzia de vezes. A minha

família não quer saber de mim. Sir Adam também não gosta de mim, e muito

menos que vivamos juntos.

- Que diabo, ele terá de te respeitar, Mary! Escrevi ao meu pai a falar de

ti. Os meus pais tiveram dois filhos antes de se casarem e garanto-te que se

amavam. Vamos lá, telefona à tua irmã e diz-lhe que não podes sair com ela.

- Mas nós não temos telefone.

- Telefona-lhe do emprego.

- Terry, Sir Adam não quer que nos casemos. Sou apenas uma empregada

de balcão, e por isso ele acha que não sirvo para ti.

-Palermices.

”Apesar de tudo, era verdade”, pensou Terry. Muitos dos seus amigos

tinham casos assim. Rapazes que estudavam no Guy’s. As namoradas deles

até os mantinham. Quando se formou em Oxford e veio para Londres, tinham

combinado que não cederiam perante a hipocrisia e que iriam morar juntos.

Sim, porque as famílias queriam sempre que se casassem. O casamento é

sinónimo de respeitabilidade. Para eles, esta era uma ideia já ultrapassada.

Os pais pretendiam que os seus filhos fizessem uma escolha, de acordo

com as suas situações. Afinal de contas, que espécie de raparigas eram essas

que largavam as famílias para irem viver com os rapazes numa água-furtada?

Não eram, evidentemente, o tipo de noras desejadas.

E a despeito de todas as declarações de independência, o que todas as

miúdas queriam, na verdade, era casar. Realmente, não havia nada de inédito

naquilo tudo. (

O jantar foi servido mais tarde, porque Adam Kelno tinha comparecido

a um beberete em sua homenagem. Nas últimas semanas tinha havido

uma quantidade enorme de almoços, jantares e festas. A velha comunidade

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polaca, de Londres, estava agora a reviver, já que tinha uma causa e, embora

estivessem a viver permanentemente em Inglaterra, continuavam a sonhar.

Era assunto de honra para os polacos o processo de acusação. Também se

contavam entre os seus simpatizantes, ingleses de alta linhagem. Disfarçadamente,

Adam sentia-se glorificado nesse papel de herói.

- Espero - disse Ângela - que Mary saiba que a queremos cá.

- Gostaria que a senhora lhe telefonasse e lhe dissesse isso mesmo sugeriu

Terry.


- E ensina-a a cozinhar - disse Adam. - Tu pareces um saco de ossos!

- Todos os estudantes de medicina parecem vítimas de desnutrição disse

Terry. - Não se lembra?

Depois do jantar houve uma certa calma. Adam tinha feito conferências

no Guy’s e sentia-se profundamente interessado pelos estudos de Terry. No

primeiro ano, ele dedicava-se mais à química, física e à biologia. Por enquanto,

não havia nada de grande interesse.

Para evitar de falar de Mary Bates, Adam fez um ataque generalizado aos

problemas da nova geração.

- Quem tem de resolver os problemas resultantes de doses exageradas de

LSD, tentativas de aborto e doenças venéreas? - perguntou a Terry. -Eu!

Tenho a clínica cheia destes casos. A moral desapareceu.

- Bom, tenho de me ir embora.

- Também não compreendo o Stephan. Aliás, não compreendo nenhum

de vós.

Capítulo décimo quarto

Um dos sistemas primordiais da máquina jurídica britânica, é o sistema do



master. Os masters são uma espécie de juízes assistentes. O master tem de ter

diploma de advogado há mais de doze anos, para ser nomeado como tal. É ele

quem prepara e dá as normas para um julgamento. Passam os dias nas

câmaras de justiça das Cortes Reais, a analisar a papelada com que os advogados

inundam todos os tribunais, de todo o mundo.

Eles estabelecem o número de testemunhas permissíveis em cada caso, a

altura em que cada caso deverá ser julgado, o prévio questionário de cada testemunha

e os alvarás das ordens, para que os documentos sejam apresentados.

Nalgumas circunstâncias, julgam causas.

São sempre preciosos e rápidos os seus julgamentos, concisos quanto a

aplicação da lei e, só muito raramente, são desautorizados nos tribunais,

posteriormente.

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As Câmaras dos Masters ficam em redor duma ampla sala chamada Bear



Garden, local onde os procuradores se reúnem para as audiências. Velhos e

novos, com cabelos curtos e compridos, trajam calças com listas.

O master senta-se atrás duma espécie de balcão e chama a todo o instante

os procuradores adversários. Analisa os documentos deles e pergunta-lhes o

que desejam.

Por vezes, os procuradores discutem. Neste caso, um master astuto dirá:

- Algumas coisas estão tão claras, que não há motivo para discussão.

Quando isto acontece, os procuradores voltam para o Bear Garden sabendo

que uma das partes está a desperdiçar o dinheiro do seu cliente e o

tempo do juiz. Disto pode resultar um imediato acordo e uma acção é, assim,

sumariamente resolvida.

Antes duma acção aparecer no tribunal, o master já determinou as condições

dos debates verbais.

Em deferência à importância de Thomas Bannister e Sir Robert Highsmith,

advogados de renome, e pela importância do julgamento de Kelno

contra Cady, o master Bartholomew conduzirá o assunto na sua própria

câmara. Nela começaram as primeiras indagações referentes à aceitação de

certas testemunhas e documentos.

As formalidades foram postas de lado no Inverno de 1966-67. Tanto as

câmaras de Tom Bannister como o seu apartamento, estavam sempre repletos

de visitas políticas. Era inadequado o escritório de Alexander, na Escola

Lincoln, para receber o ror de dados e declarações que vinham de todo o

mundo, por causa de todos aqueles corredores e cubículos. Houve unanimidade

em que a biblioteca de Shawcross deveria transformar-se no centro das

operações. Duma forma sem precedentes, reuniam-se todas as semanas, para

estudarem minuciosamente a correspondência, discutir a estratégia e tomar

decisões.

O primeiro ponto a ser resolvido era a escolha do advogado ”júnior”. A

tradição mandava que o procurador escolhesse o ”júnior” mas, em face dá

importância de Bannister, esperaram por uma indicação dele. Esta recaiu sobre

Brendon O’Conner, um brilhante e sentimental idealista. O’Conner e

Bannister representavam opostas escolas de advocacia, mas o ”júnior” era

um incansável pesquisador e, logo portanto, foi óbvia a sensatez daquela

escolha.


O libelo pertencia a uma das seis categorias não-criminais, nas quais,

qualquer uma das partes, poderia exigir o julgamento por tribunal com júri.

Em assuntos civis isto era muito raro. O júri ou a ausência dele, tem sido motivo

de perplexidade para os advogados, desde a concepção da lei. Os jurados

podiam ser astutos ou tremendamente aborrecidos, ou até entrarem num

acordo quando pressionados, nos debates da sala de jurados. Novamente eles

concordaram com Bannister, quando ele afirmou que ninguém conseguia

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enganar doze ingleses, e o ”júnior” apelou para o master, a fim de seleccionar

o júri. Automaticamente, a apelação foi concedida.

A lista das testemunhas aumentava potencialmente. Nas mãos de

Bannister e O’Conner um caso simples podia transformar-se em algo muito

importante. No entanto, havia uma dúvida, uma única, bastante óbvia para o

observador interessado e esta era o testemunho do Dr. Mark Tesslar. Era uma

testemunha altamente vulnerável.

O mais acertado seria recorrer a Pieter Van Damm, mas as instruções de

Cady eram bem concisas, neste sentido. O violinista não seria envolvido.

Havia uma esperança longínqua, que poderia ser a salvação de todos, a

qual seria o testemunho de Egon Sobotnik, o empregado da enfermaria em

Jadwiga. Se estivesse vivo, era preciso encontrá-lo e convencê-lo a testemunhar.

Se, se, se... Todos os indícios que levavam a Sobotnik tinham sido

pesquisados e todos tinham falhado. Até o implacável Aroni, que agora se

dedicava completamente a esta busca, ainda não conseguira nenhuma pista

nova.


No seu relatório ao Conselho, Jacob Alexander preparou um impressionante

documento que continha as declarações de todas as testemunhas

encontradas e outros assuntos de relevo.

O relatório começava no ano de 1939, quando a Polónia foi atacada pela

Alemanha e depois apresentava alguns apontamentos sobre as anteriores actividades

de Kelno, acompanhando-o até à prisão de Jadwiga, como médico-prisioneiro.

O documento narrava que, em meados da guerra, dois nazis, o

coronel-médico das SS, Dr. Adolph Voss e o coronel-médico, Dr. Otto

Flensberg, também das SS, tinham sido induzidos por Himmler a fundar um

centro experimental em Jadwiga, usando seres humanos como cobaias. As

experiências principais de Voss dirigiram-se para a procura dum modo de

esterilização maciça dos judeus e de outras pessoas que os nazis considerassem

como “não tendo condições para uma vida normal”. Estas pessoas

esterilizadas poderiam ser utilizadas como mão-de-obra para o Terceiro Reich

e teriam a sua procriação controlada, a fim de manter constante o número de

escravos. Os restantes seriam exterminados.

O relatório citava uns 50 livros e vários julgamentos de criminosos de

guerra como referências. Voss tinha-se suicidado antes do julgamento e

Flensberg fugira e refugiara-se num país africano, onde estava a viver e a

[exercer clínica. Vários assistentes e enfermeiros de Flensberg tinham sido

[julgados. Metade foram enforcados e a outra metade cumpria a pena de

prisão.


Como assistente de Voss, nas suas experiências, foram indicados três

médicos-prisioneiros, Adam Kelno, Konstanty Lotaki e um judeu, Bons

[Dimshits.

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O relatório continha um estudo pormenorizado das experiências levadas

a efeito, dos métodos usados e dos médicos que se haviam recusado a cooperar.

Ao fim de ter sido revisto todo o material, pesados todos os argumentos e

estudadas as várias formas de defesa, foi apresentado um pedido de ”Justificativa”,

argumentando que o que se encontrava n’O Holocausto era

realmente verídico. O pedido começava por admitir que os acusados eram o

autor e o editor do livro. Declarava, também, que eles não estavam aptos a

sustentar a acusação ”das 15 000 experiências sem anestesia”. Contestavam

não ser assim tão importante o número exacto, pois podiam provar que muitas

experiências tinham sido feitas duma maneira brutal, o que justificava os

acusados quanto à acusação de libelo.

Abraham Cady chegou a Londres na primeira semana de Abril de 1967.

Vanessa já estava à espera dele. O noivo dela e Ben chegaram depois, vindos

de Israel.

Samantha tinha-se casado novamente, com um aristocrata rural, Reggie

Brooke, que lidava bem com cavalos, sabia de agricultura e contabilidade. Os

anos tinham diminuído a sua amargura relativa a Abraham. Quando soube

que ele estava em Londres, ofereceu-lhe o seu apartamento em Colchester,

por tempo ilimitado.

A secretaria da Coroa do Supremo Tribunal comunicou ao delegado de

Londres que 75 pessoas seriam intimadas, no livro dos jurados.

Pelo processo de sorteio, o subdelegado seleccionou um grupo, e os jurados

destacados foram informados, tendo sido publicada para inspecção uma

lista dos seus nomes.

É muito raro em Inglaterra recusar-se um jurado, porque é necessário

abrir um processo de impugnação contra a pessoa do jurado. Assim, não há

uma desnecessária argumentação que roube dias ao precioso tempo da Corte.

O júri é, consequentemente, aceito automaticamente.

Em Israel esperavam a iminente viagem quatro homens inquietos, duas

mulheres e o médico do grupo.

A Dr.a Maria Viskova tirou o seu passaporte em Varsóvia.

Em Rambouillet, Bruxelas, Trieste, Sausalito, Amesterdão... as dúvidas

torturavam e os pesadelos ressurgiam. Daí a pouco tempo algo aconteceria e

todo o passado seria revivido.

A hora do julgamento aproximava-se e nenhuma das partes procurava

negociar um acordo. O processo que nunca ”iria à Corte”, estava quase a ser

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julgado e ambas as partes faziam suposições a respeito do que realmente se



passara.

A equipa de Cady continuava a procurar intensamente Egon Sobotnik, o

empregado da enfermaria em Jadwiga.

Em Oxford, o Dr. Mark Tesslar afastou-se do microscópio e endireitou os

óculos. A sua mão não tremeu, o que era realmente extraordinário num

homem que acabava de verificar a evidência do próprio cancro.

- Lamento muito, Mark - disse-lhe o colega. - Acho que devemos fazer

uma laparotomia, o mais breve possível.

Tesslar encolheu os ombros.

- Depois de dois ataques de coração, não acredito que possa resistir a

isso. Quero que seja você a operar-me, Óscar. Quer seja ou não, um processo

de metástase, ainda não tenho muitas dores. Terá de me manter vivo até eu

testemunhar. Depois, discutiremos o que é que se poderá fazer.
Quarta Parte

O JULGAMENTO



Capítulo primeiro

16 de Abril de 1967

Tribunal da Rainha, Sala 7

Supremo Tribunal de Justiça

Divisão do Tribunal da Rainha

perante o Sr. Ministro Gilray :

Sir Adam Kelno, médico, contra Abraham Cady e outros,

Jesus, Salomão e o Rei Alfredo eram as figuras principais na entrada das

Cortes Reais da Justiça, que se erguia imponente onde o Strand se torna Fleet

Street, em Temple Bar. Estes três eminentes personagens eram acompanhados

por um cortejo de 24 bispos e sábios de menor importância.

Ao fundo, Moisés dominava, no lado que dava para Carey Street, um

quarteirão distante.

A torre do sino, que se levantava 50 metros acima do pátio do Sino,

ostentava uma grandiosidade que poderia ser descrita como neogótica,

neomonástica e neovitoriana. Uma mistura sem sentido de espirais e torres,

vitrais e guaritas em forma de cone com tecto inclinado e ameias, esculturas

ornamentais normandas, saliências e reentrâncias, tudo em imensos blocos

de pedra cinzenta, enegrecida por anos de fumaça.

De cada lado da entrada ficavam as salas de vestir dos advogados. Do lado

esquerdo ficavam as câmaras. Na entrada do grande vestíbulo, pavimentado

de mosaico, ficava exposta a lista das causas do dia. O vestíbulo, com os seus

100 metros de comprimento e 24 de altura, está todo ornado com estátuas de

gente de renome. Em volta do tecto abobadado, de pedra escura, abria-se uma

série de janelas ogivais de vidro colorido, ostentando os brasões de todos os

Lord Chancellors da Inglaterra.

O escritório do Tipstaff ficava num balcão ao fundo do vestíbulo. Antigamente

este era o cargo de um oficial que carregava um bastão curvo

simbolizando a sua função. Hoje, um sargento é encarregado de manter a

ordem no recinto do tribunal

Todo este complicado edifício ocupa um imenso terreno, ladeado pelas

igrejas de St. Dunstan no lado oeste e St. Clement Danes, antigos templos de

altura elevada.

O tribunal tem a aparência de um planeta gigante e os seus satélites são as

escolas que o cercam e Chancery Lane.

O primeiro tribunal de leis foi em Westminster Hall, e data do século

XIII. Foi lá que Carlos I e o mártir Thomas More tiveram os seus

julgamentos fictícios. Também foi lá que se fez história com a instalação de

Cromwell e a condenação de Guy Fawkes e Essex. Agora os grandes

governo, reis, rainhas e primeiros-ministros, são velados, antes

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enterrados na Abadia, em frente. O prédio ficou obsoleto e inconvenientemente



localizado, sendo o tribunal, na época vitoriana, transferido para

mais perto das Escolas de Direito.

Thomas Bannister e Brendon O’Conner, já de cabeleiras postiças e togas,

atravessaram o Strand, passando por um grupo de jornalistas atarefados.

Entraram no tribunal, subindo as escadas até à sala de consultas, do lado

oposto ao QB VII, onde já se encontravam Jacob Alexander, o Sr. Josephson

e Sheila Lamb.

Agora Sir Highsmith e o seu ”júnior”, Chester Dicks, de chapéu de

coco, calças listradas e guarda-chuva debaixo do braço, carregando maletas

azuis e vermelhas, com as suas togas de fazenda vulgar e de seda, dirigiram-se

para a sala dos advogados.

Sir Adam Kelno chegou com a sua esposa e Terrence Campbell. Nas suas

mãos tinha um telegrama de Stephan.

- Ali vão Cady e Shawcross.

-Sr. Cady, pode-nos dizer algumas palavras sobre...?

- Sinto muito, amigos. Ordens estritas. Nenhum comentário.

- Quem é a moça?

, -Acho que é a filha de Cady.

Samantha e Reggie Brooke chegaram sem serem notados.

Os atendentes, os repórteres do tribunal, os associados, os jornalistas e os

espectadores circulavam em volta do QB VII, esperando pela hora do início

do julgamento.

Um estreito corredor separa a fileira de câmaras de juízes do resto dos seus

tribunais. O juiz Gilray ajeitou a sua cabeleira postiça e a sua gola de arminho

na toga vermelha. Gilray, com a sua cara de falcão, tinha sido treinado para

manter uma aparência de frieza e apatia, um papel de juiz que ele gostava de

representar. Muitos juízes e advogados procuravam ser sócios do Clube

Garrick, onde poderiam ter relações com a gente de teatro, já que se sentiam

um pouco artistas e o tribunal era o seu palco. Isto era mais verdadeiro ainda

com respeito aos advogados especializados em acções de libelo, que eram, na

sua maioria, actores frustrados.

O tribunal encheu-se vagarosamente pelas duas entradas, depois de se ter

passado por salas adornadas com cortinas verdes. À frente dos que entravam

estava a tribuna da Rainha, sobre um estrado, abaixo do qual ficavam as tribunas

dos associados, dos procuradores, dos advogados, da imprensa, do júri

e os bancos dos espectadores. Tudo era forrado com madeira escura, e lá no

alto das paredes havia uma série de janelas, como as das catedrais, dando para

um balcão. Um par de candelabros com as cúpulas em forma de sinos balançavam

pendurados na abóbada de pedra, e a monotonia da madeira das paredes

era quebrada, aqui e ali, por um corrimão de ferro forjado, por uma ou outra

estante com livros de leis e por um implacável relógio.

190


Cady e Shawcross tomaram os seus lugares atrás de Brendon O’Conner,

na primeira fila do banco dos espectadores. David deu uma cotovelada em

Abe e indicou-lhe a fila onde se encontrava Ângela Kelno e um bonito rapaz,

Terrence Campbell.

Abe sorriu para Samantha e Vanessa, que vieram sentar-se atrás dele com

Lorraine Shawcross, Geoff, Pam e Cecil Dodd. Então, ele voltou-se para a

tribuna do procurador onde se sentava Adam Kelno, completamente tranquilo.

Abe já tinha entrevistado uma infinidade de pessoas e soube descobrir

uma falha naquela muralha de calma aparente, quando Adam se virou para

trás procurando pela mulher e pelo filho.

Subitamente, Kelno e Cady cruzaram os olhares. No primeiro instante

eles mediram-se com hostilidade, depois com interesse, cogitando um sobre o

outro. Abe continuou a sentir raiva, mas Adam parecia pensar: ”O que

estamos a fazer aqui?”

A sua atenção foi desviada pela entrada dos jurados. Oito homens e quatro

mulheres. A aparência de todos era completamente vulgar. Doze homens e

mulheres vulgares que poderiam ser encontrados em qualquer rua.

Uma última onda de sussurros entre os advogados e os procuradores e um

ruído de papelada que estava a ser manuseada.

- Silêncio!

Todos se levantaram quando o Reverendíssimo Sr. Ministro Anthony

Gilray entrou por uma porta atrás da tribuna da Rainha. Toda a corte se

curvou perante ele quando se sentou numa cadeira de couro de espaldar alto.

Sir Robert Highsmith pôs-se em pé e começou a conversar com o juiz,

informalmente, comentando que aquele seria um processo demorado.

Thomas Bannister levantou-se. Tinha uma estatura normal e um aspecto

muito comum entre os Ingleses: a sua força vinha de dentro. A sua voz era

suave e parecia monótona, conseguindo-se até apanhar-lhe a cadência. Ele

concordou que o julgamento seria longo.

Gilray virou a sua cadeira em direcção aos jurados e recomendou-lhes

atenção para o assunto que seria árduo. Não houve réplica.

- Gostaria de perguntar-lhes se algum dos senhores perdeu parentes em

campos de concentração?

Tanto Bannister como O’Conner puseram-se de pé. Bannister olhou por

cima do ombro para o seu “júnior”, a fim de comunicar-lhe que este assunto

era da sua competência.

- Se o Meritíssimo estabelece esta espécie de condição para o júri, então

nós também devemos estabelecer condições opostas, isto é, saber se existe

qualquer espécie de simpatia pelos médicos, pelos cavaleiros, pelos antigos

nacionalistas polacos... toda uma gama de condições.

- O que desejo deixar claro - disse o juiz - é que não pretendo impor

um sofrimento desnecessário a alguém que tenha perdido parentes em campos

de concentração, obrigando-o a assistir a revelações que ocorrerão neste

tribunal.

191

- Nesse caso, nada tenho a contestar.



Não houve nenhuma resposta do júri e todos foram juramentados.

O relógio soava audivelmente, por entre as filas de livros colocados nas

estantes, ao longo das paredes, quando Sir Robert Highsmith abriu a sua

documentação em cima da mesa à sua frente e, esticando o corpo, colocou as

mãos nos quadris. Estudou o júri atentamente, pigarreando para clarear a

voz. No tribunal inglês, o advogado é obrigado a permanecer atrás da sua

tribuna, o que lhe limita a mobilidade e gesticulação. Já que não pode

movimentar-se por todo o tribunal, precisa de ser um orador fluente, com

boa dicção e um modo de falar conciso e facilmente inteligível.

- Meus senhores, membros do júri - começou Highsmith. - Esta é

uma acção de danos por libelo. Um libelo, eu sugiro, tão prejudicial como

jamais houve em qualquer outro tribunal inglês. Vamos ter que nos situar

fora da Inglaterra de 1967, com todo o seu conforto, e voltarmo-nos para o

pesadelo de um campo de concentração nazista, que teve a sua existência há

duas décadas, num cenário infernal. O inferno mais terrível que o homem já

construiu.

Ele mostrou um exemplar de O Holocausto e abriu-o, com lentidão estudada,

na página 167. Passou-se outro momento enquanto ele olhava para

cada homem e mulher do júri, separadamente. Então começou a ler pausadamente.

- ”De todos os campos de concentração nenhum foi mais infame do que

o de Jadwiga. Foi aqui que o coronel-médico Adolph Voss, das SS, organizou

um campo de experiências com o propósito de criar métodos de esterilização

em massa, usando cobaias humanas, e o coronel-médico Otto Flensberg,

também das SS, e os seus assistentes levaram a cabo estudos igualmente

horripilantes com os prisioneiros. No notório Alojamento V, uma cirurgia

experimental secreta era dirigida pelo Dr. Kelno, que perpetrou mais de

15 000 operações experimentais sem anestesia.” Senhoras e senhores do júri,

deixem-me repetir esta passagem... ”mais de 15000 operações experimentais

sem anestesia.”

Fechou o livro duma só vez e bateu na mesa com ele, os seus olhos estavam

fixos no tecto.

- Como!? - exclamou. - Como se pode fazer uma tão horrível e

condenável acusação, uma injúria tão infame! -disse, acentuando os seus

erres e firmando-se nas pontas dos pés, esmurrando o ar como um lutador de

boxe. - Que maior libelo se pode levantar contra um médico cuja reputação

fica muito além dos limites da sua clínica. Gostaria agora de ler as palavras

escritas no Relatório de Danos do Queixoso. Sugiro, portanto, que os

senhores recebam este volume, dos autos.

- O senhor tem alguma objecção a fazer, Sr. Bannister? - perguntou o

juiz.


- Gostaria de saber o que vai ser entregue ao júri.

- Os autos - respondeu Highsmith -, o volume dos autos.

192
Thomas Bannister agarrou no volume e entregou-o a O’Conner, que o

folheou e depois murmurou-lhe algumas palavras.

- Nós estamos de acordo, mas com algumas reservas. Houve um bom

número de interrogatórios preliminares e adenda e poderá haver outros

aspectos relevantes.

Cada um dos jurados recebeu um volume. O juiz Gilray pediu-lhes que

não o lessem por sua própria conta. Este era o primeiro passo no que seria um

confuso caminho para a sua educação jurídica.

- Numa acção de libelo - prosseguiu Highsmith -, o queixoso tem que

provar três coisas. Primeiro, que os acusados publicaram essas palavras.

Bem, eles não o negam. Em segundo lugar, referir-se-iam as palavras ao meu

cliente? Também não há contestação para isto. E, finalmente, são as palavras

difamatórias? Nós teremos que provar isto a menos que os acusados admitam

que tenha havido difamação. Tecnicamente, a minha causa está demonstrada

e eu deveria dizer, vamos, agora provem o que dizem. Mas eu pretendo

chamar a depor Sir Adam Kelno e deixar que os senhores julguem o carácter

deste homem, e portanto, a extensão da injúria à qual foi submetido.

Highsmith tornou-se cínico.

- Ah, bem, a defesa diz que o número de 15 000 não é realmente exacto

e também não há a certeza de que ele tenha operado sem anestesia. Bem, eles

dizem, algumas dezenas ou algumas dúzias. Reparem só, realmente não têm

a certeza de nada. Os senhores terão de tomar em consideração que Sir Adam

Kelno não era um alemão, não era um nazista, mas era um prisioneiro de

guerra polaco. Um aliado, submetido a toda a sorte de terrores e a salvo,

apenas, pelo simples facto de ser um médico competente. Ele usou essa

competência para salvar vidas humanas. Foi um aliado cuja bravura pessoal

salvou milhares de vidas. Sim, vou usar-me desta palavra “milhares” em voz

bem alta, milhares de vidas salvas da doença e da morte. O facto é que Sir

Adam Kelno operou e assistiu a milhares de operações, mas foram todas

necessárias e conduzidas de maneira adequada; além do mais, ele arriscou a

própria vida como membro do movimento clandestino.

Sir Robert Highsmith passou a narrar a fuga de Kelno para a Inglaterra, a

sua consagração como cavaleiro, a sua contribuição em prol da medicina.

- Este homem veio aqui para limpar o seu nome. Os impressores deste livro

disse ele, agarrando o livro e mostrando-o com um gesto amplo,

reconheceram o erro que tinham cometido e desculparam-se formalmente.

Era de se esperar que Abraham Cady e David Shawcross fizessem a mesma

coisa, em vez de nos obrigarem a passar por este penoso caminho. Os

senhores formam um júri britânico e é vosso dever alvitrar sobre a severidade

do crime que se cometeu, a injúria contra um homem inocente.



Capítulo segundo

- Sir Adam Kelno.

Ele levantou-se da mesa dos procuradores e, sorrindo levemente em

direcção a Ângela e a Terry, dirigiu-se para o banco das testemunhas, que

ficava do lado esquerdo da tribuna da Rainha, directamente por cima das filas

reservadas para a imprensa.

- Em que Bíblia prefere, o senhor, fazer o seu juramento?

- Eu sou católico romano.

- A Bíblia Douay, por favor.

O juiz dirigiu-se a Kelno.

- Presumo que o senhor ficará bastante tempo no banco das testemunhas.

Sugiro que o atendente lhe traga uma cadeira.

- Obrigado, senhor.

Sir Robert Highsmith conduziu Kelno através de toda a sua história como

estudante de medicina, e depois, quando a guerra estoirou, e ele se juntou

ao movimento clandestino, até à sua prisão pela Gestapo, a terrível inquisição

e o internamento no campo de concentração de Jadwiga, no Verão de

1940.


- Nós fomos registados, conduzidos aos chuveiros, raparam-nos as cabeças

e depois fomos obrigados a usar o uniforme listrado.

- Qual era o trabalho que o senhor fazia quando chegou ao campo?

- Trabalhos diversos.

- Os alemães sabiam que o senhor era médico?

- Talvez sim, talvez não. Na confusão de milhares de escravos que eram

separados para trabalhos diversos, a minha ficha individual deve ter-se extraviado.

Eu tinha medo de dizer que era médico pois de acordo com a política

alemã exterminavam todos os polacos de nível superior.

- Mas o senhor mudou de opinião depois?

- Sim. Vi o sofrimento de muitos e percebi que poderia ajudar. Não podia

continuar a esconder que era médico.

- O senhor mesmo foi vítima daquelas condições primitivas, não foi?

- Tive febre tifóide por causa dos piolhos. Estive muito mal durante um

longo período. Quando fiquei bom, entreguei um formulário pedindo a integração

num dos agrupamentos médicos e fui aceito.

- Além do tifo, o senhor passou por outras misérias?

- Oh, sofri um grande número de indignidades.

- Quantas vezes?

- Um número imenso de vezes. Nós éramos punidos por toda a espécie

de delito, real ou imaginário. O cabo que nos vigiava, obrigava-nos a estar

sempre a correr. Não podíamos andar. A nossa punição habitual era sermos

obrigados a ficar de cócoras e andar assim, aos saltos, centenas de metros;

se não conseguíssemos, éramos espancados. Havia ainda as epidemias de

194

disenteria. Sofri também deste mal. Foi então que confessei que era médico.



Os alemães não conseguiam debelar a epidemia.

- E quando é que diminuiu?

- Permitiram-me organizar uma enfermaria cirúrgica num dos alojamentos.

Tratava o que podia ser tratado, como furúnculos, abcessos e

coisas do género.

- Agora, estamos a referir-nos ao ano de 1940. O senhor poderia fornecer-nos

uma descrição das condições gerais das facilidades médicas?

- Eram péssimas. Nós não tínhamos quase nenhum material para os tratamentos

e até chegámos a usar curativos de papel.

- Havia outros prisioneiros qualificados como cirurgiões a trabalhar com

o senhor?

- Ao princípio, não. Eu tive alguns assistentes. As camas do hospital

ficaram logo repletas com casos de hematomas.

- Poder-nos-ia explicar o que é isso?

- Feridas profundas, principalmente nas nádegas, ocasionando um

sangramento nos tecidos. Ficavam infectados. Isto afectava de tal maneira os

músculos, que os pacientes não podiam ficar nem deitados nem sentados,

nem de pé. Então fazia uma incisão para aliviar o sofrimento, colocando um

dreno, para que pudesse haver cicatrização.

- Qual era a causa desses casos de hematomas?

- As surras dadas pelos alemães.

- Dr. Kelno, durante este período o senhor praticou alguma amputação?

- Sim, de partes menores do corpo, como os dedos dos pés e das mãos,

devido à gangrena pelo congelamento. Havia também ossos fracturados, que

não tinham possibilidade de serem recuperados, isto tudo efeito das surras

atrozes dos alemães.

Highsmith tirou os óculos e curvou-se em direcção à testemunha.

- Dr. Kelno - perguntou em voz que crescia de volume, o senhor

operou alguma vez sem ser necessário?

- Nunca. Nem naquela altura, nem mais tarde. Nunca.

- Bem, agora uma outra pergunta. Durante esse tempo, de 1940 até

1942, como é que o senhor foi tratado?

- Fui espancado numerosas vezes.

- E quais foram os efeitos desses espancamentos?

- Feridas muito extensas. A dor era terrível. Eu tive muita febre e as

minhas pernas inchavam até que tive uma flebite e varizes, que só foram

removidas depois da guerra.

Quando é que as coisas começaram a mudar em Jadwiga?

Em meados de 1941, quando os Alemães atacaram a Rússia. Jadwiga

era um dos maiores centros de trabalho escravizado, que manufacturava

artigos essenciais para reforço dos Alemães. Eles descobriram que estavam a

Perder um tempo precioso para trabalhar com aquele tratamento brutal dos

prisioneiros e resolveram então adoptar medidas médicas mais adequadas.

195


- O senhor lembra-se de algum acontecimento que tenha precipitado

essa iniciativa?

- No meio do Inverno de 1941 houve uma onda de frio e tivemos

milhares de casos de pneumonia e gangrena, acho que por causa da exposição

das mãos ao frio. Não tínhamos remédio nenhum para lhes aliviar o sofrimento,

só podíamos dar-lhes água para beber. Eles ficavam estendidos no

chão dos alojamentos, quase sem espaço entre eles e morriam às centenas. Os

mortos não podem trabalhar nas fábricas, por isso os alemães mudaram os

seus métodos.

- Estou com uma certa curiosidade, Dr. Kelno. Os alemães tinham

alguma noção do número de mortos?

- Os alemães tinham uma verdadeira mania das estatísticas. Durante a

epidemia eles conseguiam mantê-los actualizados fazendo uma chamada

diária que começava às cinco e meia da manhã. Os vivos tinham que carregar

os mortos para fora dos alojamentos. Todos tinham que ser registados.

- Compreendo. Nós ainda havemos de voltar a este assunto mais tarde.

Então, depois da epidemia no Inverno de 1941, os prisioneiros tiveram direito

a uma enfermaria razoável.

- Mais ou menos. Nós não tínhamos material suficiente para construí-la,

e então, à noite, quando o campo ficava sem guardas das SS, saíamos aos

grupos e roubávamos o que podíamos. De qualquer modo, tudo se tornou

mais suportável e eu recebi ajuda de mais alguns médicos que ficaram sob a

minha chefia. Então pude organizar uma enfermaria bastante razoável no

Alojamento XX. Os médicos alemães que tinham sido mandados para trabalhar

connosco, eram muito pouco eficientes, de maneira que os médicos-prisioneiros

começaram logo a dar as ordens.

- E qual era a sua posição pessoal no meio disso tudo?

- Durante dois anos fui cirurgião-chefe, e depois, em Agosto de 1943,

tornei-me supervisor titular de todo o sector médico.

- Titular?

- Sim, pois o verdadeiro chefe era o coronel-médico Voss, das SS, e

qualquer dos outros médicos das SS tinha comando sobre as minhas actividades.

- Voss visitava-o com frequência?

- Ele costumava ficar a maior parte do tempo no Alojamento I e no V.

Eu afastava-me sempre de lá o mais possível.

- Por que razão?

- Ele dedicava-se a certos tipos de experiências.

Sir Robert mudou o tom da sua voz, avolumando-o para mostrar a importância

da pergunta.

- Foram guardados relatórios das suas operações e tratamentos?

- Eu insistia sempre em fazer relatórios muito precisos. Achei que era

importante para que mais tarde não houvesse dúvida a respeito da minha

actuação.

196


- Como eram guardados esses relatórios?

- Num registo cirúrgico.

- De quantos volumes?

- De vários volumes.

- Com a lista de todas as operações e tratamentos?

- Sim.


-E assinados pelo senhor?

- Sim.

- Quem tomava conta desta secção?

- Um funcionário médico. Um checoslovaco. Esqueci-me do seu nome.

Abe mandou um bilhete para Shawcross. Tenho vontade de ficar de pé e

gritar Sobotnik para ver se ele se lembra.

- O senhor sabe o que aconteceu aos registos?

- Não tenho a mínima ideia. Uma grande parte do campo transformou-se

num caos com a chegada dos russos. Agradeceria a Deus se esse registo

aparecesse para provar a minha inocência.

Sir Robert ficou em silêncio. O juiz virou-se, vagarosamente, para o

Dr. Kelno.

- Sir Adam - disse Gilray, com referência às provas relativas à sua

inocência. O senhor é o queixoso e não o acusado!

- O que eu quis foi que... bem, isto limparia o meu nome.

- Continue, Sir Robert -disse o juiz.

Highsmith procurou destruir rapidamente a impressão causada pela gafe

de Sir Adam.

- Bem, mas durante todo esse tempo o senhor foi mantido como

prisioneiro, trabalhando sob as ordens do Dr. Voss.

- Sim, sempre como prisioneiro. As SS possuíam enfermeiros que nos

vigiavam a todo o instante.

- O senhor pode dizer-nos qual é o significado de Jadwiga Oeste? ;

- Eram campos de exterminação.

- O senhor sabia disso?

- Toda a gente sabia. A história já o comprovou. Eu nunca fui lá, mas

tive conhecimento da sua existência através do movimento clandestino.

- E esses enfermeiros das SS tinham outras obrigações para além de

espioná-los?

- Seleccionavam os meus pacientes que haviam de ir para... Jadwiga

Oeste.


Houve um silêncio no tribunal. E mais uma vez só se ouvia o barulho do

relógio. Os Ingleses tinham, até então, tomado conhecimento disto tudo de

uma forma abstracta. Agora, perante eles, Sir Adam Kelno, branco como

cera, tinha levantado a cortina e representava novamente naquele palco de

horrores.

- O senhor deseja descansar? - perguntou o juiz.

197

- Não - disse Sir Adam. - Nem um só dia se passa na minha vida sem



que eu me lembre disso tudo.

Sir Robert respirou, segurando com ambas as mãos a gola da sua toga e,

baixando a voz, para que o júri tivesse que concentrar-se para ouvi-lo,

perguntou:

- E de que modo eram seleccionadas essas pessoas?

- Algumas vezes bastava que os alemães apontassem para alguém que

passava. Os que pareciam menos capazes de sobreviver.

- Quantos?

- Dependia do número dos que chegavam a Jadwiga Oeste, vindos de

fora. Havia uma quota para as câmaras de gás. Os da enfermaria preenchiam

essa quota. 100 pessoas por dia, às vezes 200 ou 300. Quando chegavam

milhares de húngaros, eles deixavam-nos em paz.

- A que distância ficava Jadwiga Oeste dos seus alojamentos?

- Uns cinco quilómetros. Nós conseguíamos vê-lo. E... sentíamos-lhe o

cheiro.

Abraham Cady viu-se de novo em Jadwiga e tudo aquilo revivia nele. Por



um momento teve remorsos pelo que estava a fazer com Adam Kelno. Como

poderia alguém no mundo aguentar aquilo?

- Bem, quando eles faziam a selecção, pintavam um número vermelho

no peito da vítima. Descobrimos que podia ser lavado. Substituíamos aqueles

por pacientes que tinham morrido durante a noite. Como os alemães não lidavam

pessoalmente com os corpos, conseguíamos ser bem sucedidos a maior

parte das vezes.

- Quantas pessoas puderam ser salvas dessa maneira?

- Umas vinte, em cada cem, no máximo.

- Durante quantos meses?

- Muitos meses.

- Seria razoável afirmar-se que os senhores puderam, desse modo, salvar

vários milhares de pessoas?

- Estávamos muito ocupados a salvar vidas, para podermos fazer esse

tipo de contagem.

- Havia outros métodos para enganar os alemães?

- Quando descobriram que estávamos a mandar os mortos para Jadwiga

Oeste, passaram a dar-nos listas de nomes que nós substituímos. Muitos dos

que hoje estão vivos ficaram com o nome dos que morreram, e, durante os

anos que estiveram no campo, usaram esses nomes. Sabíamos, através do

movimento clandestino, quando é que os alemães tencionavam fazer uma

selecção. Então, mandávamos os hospitalizados para esconderijos ou, se podiam

trabalhar, voltavam ao trabalho, provisoriamente.

- Quando o senhor fazia isso, tomava em consideração a religião ou a

origem nacional dessas pessoas?

- Uma vida era uma vida. Salvávamos os que tinham maiores possibilidades

de sobreviver.

198


Highsmith deixou que isto penetrasse nas consciências dos jurados, e

virou-se para Chester Dicks, seu ”júnior”, procurando alguma informação

necessária. Depois voltou-se para a tribuna.

- Dr. Kelno. O senhor alguma vez doou o seu próprio sangue?

- Sim, inúmeras vezes. Havia sábios, músicos, escritores, intelectuais,

que queríamos manter vivos a qualquer preço e, para isso, doávamos o nosso

sangue.

- Poderia dizer como eram as suas acomodações?



- Vivia num alojamento com outros 60 membros do nosso grupo de

trabalho.

- E a sua cama, como era?

- Era um colchão de palha e papel. Tínhamos um travesseiro, um lençol

e um cobertor.

- E onde faziam as refeições?

- Numa pequena cozinha a um canto desse mesmo quarto. , .

- Qual era a espécie de casas-de-banho de que os senhores podiam

dispor?

-Uma latrina, quatro pias e um chuveiro.

-E que espécie de roupas usavam?

-Um certo tipo de lona listrada.

-Com marcas apropriadas?

- Todos os prisioneiros tinham um triângulo cosido no lado esquerdo, à

altura do peito. O meu era vermelho, significava que eu era um prisioneiro

político, e tinha uma letra P sobreposta para se saber que era polaco.

- Desejava saber se, para além da exterminação em Jadwiga Oeste, havia

[outras formas de assassinato?

- Anteriormente já declarei que nos Alojamentos I e V havia um centro

de cirurgia experimental. Entre os Alojamentos III e II havia uma parede de

[cimento. Quando as câmaras de gás estavam muito cheias, um pelotão de

fuzilamento executava dezenas ou centenas de pessoas,

-Havia outros métodos?

- Sim. Uma injecção de fenol no coração. Matava instantaneamente,

-O senhor viu os resultados disso?

-Sim.


- Ordenaram-lhe alguma vez para dar uma injecção de fenol ?

-Sim. Um médico das SS, Dr. Sigmund Rudolf, um assistente do

coronel-médico Flensberg. Ele mandou-me dar injecções de glicose em

pacientes, mas eu senti o cheiro do ácido carbónico e recusei-me. Os doentes

ficaram apavorados e os guardas das SS espancaram-nos e amarraram-nos de

mãos e pés e o Dr. Rudolf administrou-lhes uma dose de 100 cc. Morreram

imediatamente.

- E o senhor foi punido por ter desobedecido?

- Sim. Sigmund Rudolf denunciou-me como cobarde e eu fiquei com os

dentes arrebentados.

199

- Voltemos por um momento, Dr. Kelno, aos Alojamentos I e V. Penso



que já ficou bem claro que o Dr. Voss e o seu assistente, Sigmund Rudolf,

eram os médicos principais. O senhor poderia dizer ao Meritíssimo Juiz e ao

júri que género de relação tinha com esses dois?

- Quase não tinha contacto com Flensberg. Voss fazia experiências com

a esterilização. Um dos seus métodos era a exposição maciça aos raios X.

Tanto para os testículos dos homens como para os ovários das mulheres. Trabalhava

com ele um médico judeu, um Dr. Boris Dimshits. Este deve ter ficado

a saber demais, pois acabou nas câmaras de gás. Logo depois, Voss

chamou-me, a mim e a um outro médico polaco, o Dr. Konstanty Lotaki, e

informou-nos que haveríamos de ser chamados, de tempos em tempos, para

operar no Alojamento V.

Finalmente, abria-se a porta do Alojamento V, ficando-se assim a

conhecer os seus atemorizantes segredos. Bannister e O’Conner tomavam

notas de todas as palavras. Gilray esforçava-se para disfarçar uma emoção

nova, que parecia querer apoderar-se dele.

- Continue, por favor, Sir Adam.

- Pedi a Voss que me dissesse que tipo de operação seria e ele disse-me

que deveria remover órgãos mortos.

- Qual foi a sua reacção a isso?

- Lotaki e eu ficámos muito perturbados. Voss não nos deixou dúvidas de

que seguiríamos o caminho do Dr. Dimshits, se não cooperássemos.

- Seriam mandados para a câmara de gás, se se recusassem?

- Sim.

-Tendo-se já recusado a injectar o fenol, o senhor não pensou em recusá-lo



novamente?

- O caso agora era bem diferente. Voss disse-me que os enfermeiros das

SS fariam as operações, se nós nos recusássemos. Resolvemos discutir o

assunto com todos os outros médicos-prisioneiros. Concluímos que seria a

sentença de morte de todos aqueles pacientes, se fossem operados pelos

enfermeiros. Como médicos competentes, Lotaki e eu poderíamos salvar

muitas daquelas vidas.

- O senhor disse que conversou com todos os outros médicos-prisioneiros?

- Todos, excepto Mark Tesslar. Tinha contra mim um ódio pessoal,

desde os nossos tempos de estudantes em Varsóvia. Mais tarde, em Jadwiga,

ele trabalhou com Voss nas suas experiências.

- Um momento... -interveio Thomas Bannister, levantando-se.

Adam Kelno saltou da sua cadeira, segurou a grade à sua frente e gritou:

- Eu não me calarei! É Tesslar, com as suas mentiras, quem me está a

envolver nesta conspiração comunista! Foi ele que me expulsou da Polónia!

Ele quer perseguir-me até ao túmulo!

- Obviamente - disse Thomas Bannister com suavidade - esta situação

clama por uma objecção; não creio que vá fazê-la agora. Não, para já.

200

- Bem, se o senhor não me vai pedir para fazer uma admoestação - disse



Gilray, então eu não a farei. Parece-me que está a haver um excesso de

emoção. Creio ser a hora exacta para findarmos por hoje.



Capítulo terceiro ,

Era quase meia-noite quando Terry chegou a casa da família Kelno.

- Aonde foste? - perguntou Ângela.

- Passeei por aí.

- Já jantaste?

- Não estou com fome. O Dr. Kelno ainda está acordado?

- Está sim, no escritório.

Adam Kelno estava transfigurado, rígido como uma estátua. Não ouviu o

rapaz bater à porta e entrar.

- Doutor...

Adam levantou os olhos, lentamente, e depois desviou o olhar.

- Doutor, eu estive a pensar. Quer dizer, estive a pensar sobre tudo o

que ouvi hoje. Estou a tentar entender. Acho que nenhum de nós pode

realmente fazer uma ideia de como era aquele lugar. É bem diferente, quando

se lê sobre tais coisas. Eu não sabia que era assim.

- Incomodou-te, não é, Terry? E olha, o que ouviste hoje foi a parte mais

suave...

- Meu Deus, doutor. - Ele deixou-se cair na cadeira, apoiando a cabeça

entre as mãos. - Se eu ao menos tivesse entendido o que estava a fazer. Estou

envergonhado comigo próprio.

- E é para estar. Se achas que não vais aguentar, é melhor não assistires

às outras sessões.

- Por favor, pare com isso. Já me sinto como se fosse o mais nojento

canalha. Engraçado como alguém como eu, que teve todas as oportunidades,

fica tão envolvido nos seus próprios problemas, no seu próprio mundo, no seu

próprio egoísmo, que perde o contacto com as necessidades de outras pessoas,

dos seus sofrimentos, dos seus sentimentos.

- Todos os jovens são egoístas - disse Adam -, mas a tua geração há-de

ganhar o prémio.

- Doutor, será que o senhor conseguirá perdoar-me?

- Perdoar-te? Ora, não foste tu quem levou os alemães a invadirem a

Polónia.


- Eu ainda hei-de recompensá-lo por tudo o que fez por mim.

- Basta que estudes e te tornes um bom médico. É isto o que o teu pai

esperou sempre de ti. É tudo o que eu espero como recompensa.

201


- Hoje tive uma conversa muito a sério com Mary, depois de termos saído

do tribunal. Chegámos a um entendimento. Eu quero morar aqui convosco,

enquanto durar o julgamento.

- Claro que isso é bom. Fico contente, Terrence. E Mary?

- Não sei. Não seria bom aumentar a tensão, trazendo-a para cá. Vamos

ver como iremos resolver as nossas vidas, depois de tudo isto terminar.

Ângela entrou, e disse:

- Vamos, vocês dois, venham, é preciso que comam alguma coisa.

Terrence abriu a porta. Quando Adam passou por ele, tocou-lhe ao de

leve no ombro. Terry atirou-se para os braços do doutor e chorou, como o

não fazia desde criança.

Lady Sarah Wydman chegou ao aeroporto de Heathrow às duas da madrugada.

O cansado funcionário alfandegário bocejou ante aquela imensa

bagagem e acenou para que passasse.

Morgan, o motorista, ajudou o porteiro a arrumar as malas no carrinho,

enquanto Jacob Alexander a abraçava.

- Jacob, não precisava de vir buscar-me a esta hora da manhã.

- Como foi a viagem?

- Como sempre.

O Bentley foi seguido por um táxi que levava o resto da bagagem. Atravessaram

o túnel e o trevo e entraram na avenida dupla que vai desembocar

no centro de Londres.

- Como está a correr a coisa?

- Bem, o primeiro assalto foi de Sir Robert, como era de se esperar. A

sua viagem teve sucesso?

- Sim. Algumas notícias sobre Egon Sobotnik? - perguntou ela.

- Nem sinal dele. Aroni já não parece ter esperanças de encontrá-lo.

- Então Abe terá que deixar Pieter Van Damm testemunhar.

- Não conseguimos demover Abe dessa resolução. Vim esperá-la porque

tinha que desabafar com alguém, Sarah. Estou preocupado com Mark

Tesslar. Fomos até Oxford para ver o seu depoimento e descobrimos que está

muito doente. Acaba de recuperar de um violento ataque cardíaco. De

qualquer modo, vamos ter que usar o tal Lotaki, aquele que fez algumas

operações com Kelno. Ele está em Liblin, na Polónia, e é cirurgião num dos

hospitais da cidade. Lotaki agora é um comunista e nunca sofreu nenhuma

perseguição. Podemos partir da teoria de que pode ser interessante para a sua

situação, na Polónia, se ele nos ajudar, agora, aqui. Talvez assim ele se

prontifique a testemunhar.

- Sim, mas se for mais conveniente para ele, talvez prefira testemunhar a

favor de Kelno.

- Já pensámos nisso tudo. Mas a situação é realmente desesperada.

Entraram em Londres e tomaram o caminho de Berkeley Square.

202

- Jacob, eu não vou estar


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