do mesmo
género.
- Ela veio sozinha?
- Ela vem a Londres de tempos a tempos, para representar os clientes nos
grandes leilões de arte, peças antigas, pedras preciosas... Francamente, Abe,
julgo que ela está um pouco fora da nossa categoria. Mesmo assim quer
conhecê-la?
- Vou pensar nisso.
Foram separados e absorvidos por grupos diferentes. Tolices. Tolices.
Tolices. Abe fingia ouvir e pensava. Então, lá do outro lado da sala, ela
sorriu-lhe.
Abe deu-se conta de que havia várias formas de ataque. Com uma vagabunda,
uma prostituta, a melhor táctica seria o tratamento elegante.
Com as que estavam na escala social intermédia, a actriz conceituada,
a dona de casa angustiada, a secretária sensual, a actrizinha ambiciosa, o
jogo já era outro: palavra ambíguas, nuances, promessas que não eram promessas.
Mas esta era uma mulher elegante. Laura Margarita Alba pertencia
àquela rara espécie de cortesãs a quem os homens pagam exorbitantes preços
para serem vistos com elas, e acham que esse dinheiro é o melhor empregue
do mundo. Abe decidiu jogar. Saiu da sua teia e caminhou para ela, que
conversava com um jovem femeeiro, cabelo louro, queixo atrevido, olhos
dum azul penetrante e com um fato completo de veludo e rendas. Ela estava
gentilmente desatenta, a acompanhar pelo canto do olho a vinda de Abe. Este
descobriu o nome do garanhão, bateu-lhe no ombro e disse-lhe que Shawcross
procurava por ele.
- Madame Alba -disse, sou Abraham Cady. Gostaria de fazer amor
com a senhora.
- Que interessante ideia - respondeu ela. - Aqui está a chave do meu
apartamento. Fica no Roof Gardens, do Hotel Dorchester.
Abe olhou para a chave.
- Está a brincar - disse.
- Antes de vir, eu tirei informações. Se não tivesse sugerido, iria eu
sugerir... ou prefere uns dias de conquista, antes do ataque?
- Você é o cúmulo.
- Eu admirava-o, quando era um escritor.
Muito engraçado. Foi Shawcross quem lhe encomendou estas piadas?
Não. Eu li os livros e depois vi os filmes. Vou sair dentro de meia-hora.
Deixe passar mais outra meia-hora e depois pode ir ao meu encontro. Estarei à
sua espera.
O jovem femeeiro interrompeu a conversa.
- Diga-me, que brincadeira foi aquela? Shawcross não estava à minha
procura. Que ideia foi essa? - reclamou indignado.
117
Abe voltou as costas a Madame Alba e enfrentou o garanhão. Levantou a
venda e mostrou o olho vazado.
- Quer transformar a brincadeira numa briga, rapaz? - perguntou.
O garanhão desapareceu.
- Céus! - exclamou Abe. - Paredes, tapete, colcha, tudo lilás!
- Adoro este apartamento. Combina com o meu cabelo preto.
- Antes que eu a conquiste, importa-se de arranjar-me uma bebida ?
- Abe olhou para o chão, bebeu um golo, e desviou o olhar para o sofá onde
ela se sentara, envolvida em rendas.
- Leva a mal se eu a tratar por Maggie?
-Não, até gosto. -
- Bem, Maggie, não há maior maçador no mundo, do que aquele que
tem uma longa e triste história para contar. Eu tenho. Penso que arranjaste
um péssimo companheiro. Francamente, eu devia estar com uma prostituta
do Soho. Não sou para ti.
- Eu vou para a cama por alguns motivos. Um deles, como sabes, são os
diamantes. O meu último benfeitor era um francês, duma indústria de aviões.
Tinha um ciúme muito pouco francês, e guardou-me a sete chaves durante
dois anos.
- Um brinde às nossas prisões de alto luxo. Porquê eu, Maggie?
- Ora, deves saber que és muito atraente. Além disso, eu tenho um fraquito
pelos autores. São uns rapazinhos a precisarem da mãe. E tu és o rapaz
mais triste que tenho visto.
- Será que vais ficar abraçada a mim toda a noite a dizer-me para não ter
medo, que tudo vai correr bem, e todas essas coisas que a minha mulher não
me diz?
-Vou.
- Cristo, esta nossa conversa está pior do que o livro que acabei de escrever.
- O que os críticos parecem ignorar, é que a vida é feita de frases repetidas.
- Estamos em 1962 -disse Abe. - Eu tenho 42 anos. Tenho um filho
com 18 anos e uma filha com 15. Já estou casado há mais de 20 anos. A
minha mulher é uma pessoa comum, que não devia ter-se metido com um
escritor. Não se pode exigir de alguém o que Deus não lhe deu. Ela não
conseguiu acompanhar-me. Já tive tantos casos, que nem sinto remorsos. Sei
que acabamos por pagar pelo que fazemos, e mais dia menos dia, vai cair-me
tudo em cima. E, com sinceridade, nem tiro nenhum prazer de todos estes
casos amorosos. Gostaria de ter um pouco de paz e condições para escrever o
que quero escrever.
”Eu tinha 20 anos quando escrevi o meu primeiro romance. Ontem,
118
22 anos depois, eu acabei um, que é uma verdadeira porcaria. Ao escrever
este livro, deitei fora todo o resto de auto-respeito e dignidade que ainda tinha.
”Olha para mim, Maggie. Camisa com monograma e venda no olho.
Sabes, anteontem foi Yom Kippur, um feriado judeu. O Dia do Perdão,
quando devíamos meditar sobre nós mesmos e sobre a vida. O meu pai, que a
sua alma descanse em paz, morreu num dia de Yom Kippur. Prometi-lhe
uma coisa que não fiz. Menti-lhe. Repara bem na minha maldita camisa com
monograma.”
Pela manhã, era Laura quem estava pensativa e de olhar longínquo. Ela
serviu o café.
- Não há nada tão delicioso como a expectativa dum caso amoroso
- disse -, e nada menos romântico do que vivê-lo. A menos que se encontre
um Abe Cady. É bom termos um homem que sabe como cuidar de nós. Foi o
que eu vi ontem no teu olhar, naquela recepção.
Abe abanou os ombros.
- É bom esclarecer quem é que vai mandar.
- Só um homem pôde tratar-me assim. O meu marido. Eu era muito jovem,
tinha pouco mais de 20 anos quando nos encontrámos. O Carlos tinha
50 anos. Eu já começara a frequentar o grupo dos ricaços. Pensei que o
casamento seria algo duro, mas que valeria a pena ter segurança. A minha
cama foi um campo de batalha, e ele era um mestre na táctica dessa guerra.
Abe, eu tenho uma casa muito bonita em Marbella, na Costa do Sol e tenho
duas semanas livres. Deixa-me cuidar de ti.
- Eu não quero conhecer a Espanha.
- O teu irmão já morreu há mais de 20 anos. Talvez seja uma boa ideia ir
ver o túmulo dele.
- Parece-me que estou a desprezar os meus ideais, um a um. ,Até mesmo
o facto de ficar com uma mulher como tu, é errado. A concubina dum
comerciante de munições, a ex-esposa dum fascista.
- Eu sei. O ódio disfarçado é o que torna tudo tão excitante. Sabes como
é que me informei a teu respeito? Por intermédio duma artista alemã que
foi tua amante. Como são estranhos os prazeres do amor-ódio. Querido, eu
peço-te por favor. Nós nem precisamos de sair de casa.
- Está bem. Vamos.
Amanhã. No voo da tarde para Madrid. Eu tenho um carro à minha
espera. Iremos para Málaga, onde passaremos a noite, e depois pela costa
chegaremos a Marbella.
O seu coração acelerou-se à menção dos nomes das terras espanholas,
inesperadamente, sentia-se curioso.
- Agora tenho de sair. Vai haver um leilão muito importante na Sotheby,
depois do almoço.
Ele segurou-a pelo pulso.
119
- Telefona e manda alguém fazer os lances por ti. Nós vamos voltar para
a cama.
Olharam-se muito tempo, nenhum a querer ceder.
- Está bem - concordou ela.
Capítulo décimo quinto
A Villa Alba, nos arredores de Marbella, desabrochava no tempestuoso
mar como um braço contorcido de rocha maciça, numa imensa variedade de
níveis e cascatas a espirrarem em brilhantes piscinas, e os tradicionais pórticos
espanhóis, os telhados e o pavimento, sempre sobre o vermelho, destacado
pelo exagerado uso do vidro, varandas e pátios. Era um lugar de
violento colorido, com grande abuso de arte moderna em contraste com peças
muito antigas, usadas com um moderado efeito, como uma tapeçaria, uma
estatueta ou alguma imagem em madeira.
A casa estava situada numa encosta seca, com terrenos planos em di-
versos níveis, ladeada por altos pinheiros, em espiral, na direcção do céu, e a
descerem pelas douradas encostas até ao mar. Aquelas areias já tinham sido
pisadas pelas hordas de Aníbal e por hordas de turistas de biquíni. Um lugar
de lendas e muros romanos, e de iates pertencentes aos milionários da inquieta
sociedade internacional. De violências góticas e mouriscas e, nos dias
mais próximos, de orgias. Apesar de todo o esplendor, a casa tinha um ar de
tristeza e Abe não encontrou em nenhuma das grandes salas um só retrato ou
lembrança pessoal. Era assim Laura Margarita Alba, estranha e solitária
como o mar.
Perto dali, o centro do vazio social era o Clube Marbella Beach, do
Príncipe Max von Honenhole-Langenberg. Laura fazia sentir a sua presença,
e era uma hostess fascinante para aquele mundo de gente bronzeada do sol, e
para a decadente aristocracia, cujas intermináveis e absurdas conversas reduziam-se,
geralmente, às especulações à volta de quem dormia com quem.
Mas, por enquanto, ela queria Abe só para si. Eles atacavam-se numa
fúria controlada, nascida duma fonte física e espiritual. Os longos e vazios
anos encontravam, subitamente, uma recompensa e eles entregavam-se um
ao outro até se esgotarem, e o tempo corria numa inebriação magnífica. A
mulher egoísta encontrava agora a quem se dar inteiramente, a sua vontade
governada pela dele.
Às vezes, a meio da noite, quando ambos se sentiam inquietos, sentavam-se
à beira da piscina, a apreciar os movimentos do mar, ou então
desciam a ladeira, até uma pequena casa de tecto de sapé, na praia, e ficavam
a conversar, à espera do amanhecer. Depois deitavam-se, na semiobscuridade,
a sentir a brisa fresca acariciar-lhes os corpos. Os empregados
120
moviam-se silenciosamente, e faziam conjecturas sobre o estranho homem
que invadira a vida da señora.
,Na segunda semana começaram ambos a pensar -embora não declarassem
mutuamente esse pensamento - que seria bom se pudessem continuar,
indefinidamente, aquela vida.
O idílio foi interrompido pela presença de Lou Pepper, o vice-presidente
executivo da Internacional Talent Associates, uma agência monolítica que
representava a maioria das pessoas com capacidade de criação no show
business.
Lou era um homem alto e magro, com um rosto sonolento, cuja carac-
terística predominante era possuir 70 fatos do melhor alfaiate de Nova Iorque.
Os seus 70 fatos eram todos de cor escura.
-Maggie, este é Lou Pepper, uma verruga no traseiro da humanidade.
- Guarde esse espirituoso diálogo para o seu próximo filme. Eu não voei
até aqui por gostar de si. Ora bem, ninguém me oferece uma bebida?
- Dá-lhe um copo de água. Diga-me agora como foi que me encontrou.
- A maioria dos escritores tem dois olhos. Por isso não são reconhecidos
pelo público. Todas as pessoas conhecem a sua venda.
- Vamos para o pátio. Vem tu também, Maggie. Quero que oiças tudo.
O Pepper é um executivo muito importante. Ele não faria uma viagem tão
longa, só para conversar com um mísero escritor.
- Sabe, señora Alba, Abe e eu não nos separámos de muito bom modo,
quando ele partiu de Hollywood há dois anos, depois de ter recebido o melhor
contrato que qualquer escritor já teve.
- Diga a Maggie aquilo que me disse a mim: que destruiria o contrato
que me arrancou, se eu desprezasse os seus serviços.
- Abe tem uma boa memória, mas até mesmo os agentes têm de ganhar
a vida.
-Porquê?
- Porque estou interessado em vender a sua nova obra.
Laura olhava dum para o outro, aborrecida por ver a hostilidade, o modo
ríspido com que se tratavam, e até ressentida com a intromissão. Até mesmo
com Abe, que o conhecia, Lou Pepper tinha de dar vazão à publicidade
egocêntrica que costumava fazer de si próprio, antes de entrar nos detalhes da
oferta.
- Assim que Milton Mandelbaum foi para a direcção do American Global
Studio, chamou-me imediatamente. ”Lou”, disse-me, ”vou ter de
depender muito de ti”. Milt admira-o muito, Abe, sempre o admirou. Ele
está sempre a falar da época em que trabalharam juntos em Londres, durante
a guerra. As missões em que voou consigo, e tudo o resto. Eu disse-lhe que
ia sair um novo romance de Cady. Ele reservou 10000 exemplares só para
ler o livro e poder resolver se o compra em primeiro lugar. Posso tirar o
casaco?
121
Tirou também os botões-de-punho e arregaçou as mangas. Estava a suar
debaixo dos braços. Era a maneira que tinha de se anunciar. Os contratos
eram a vida sexual dos agentes. Lou estava calmo. Isto significava que estava
seguro de si. Depois viriam a súplica, o choro, as promessas.
- Milton está interessado em si como pessoa, ele quer vê-lo florescer.
Fala até de participação nos lucros.
- Da maneira como o seu estúdio faz a contabilidade, nem... E Tudo o
Vento Levou daria lucro.
- Mas como escritor-produtor seria diferente.
- Mas, velhinho, eu não quero ser um produtor.
- Está a ser hipócrita, Abe. Porque escreveu, então, aquela droga? Para
a posteridade? Estava a sentir o cheiro dos dólares desde a primeira cena de
cama até à quinquagésima. Quer saber qual é a proposta?
Abe sentiu-se reduzido, cruelmente reduzido. O Lugar não ia enganar
ninguém.
- Qual é a proposta de Mandelbaum perguntou, num murmúrio.
- Bem... 200000, mais algumas cláusulas baseadas na venda. 200000
pelos seus serviços como escritor e produtor e 10 por cento do lucro. Nós
daremos alguma coisa aos editores para que o livro fique bastante tempo na
lista dos mais vendidos.
Abe meteu as mãos nos bolsos e andou até à beira do pátio, olhando o mar
azul lá em baixo, que ia e vinha, a insinuar-se ondulante nas rochas.
- Acho que isso vai tornar-me o puto melhor pago do mundo - resmungou
baixinho.
Lou Pepper, ao sentir que a coisa estava a pegar, aumentou a velocidade.
- Terá uma vivenda só para si, com todas as comodidades, lá no estúdio,
e os privilégios da sala de refeições dos executivos, e mais um carro à sua
disposição, com estacionamento privativo.
- Estou realmente comovido.
Lou continuou a falar com Abe, que se mantinha de costas.
- E passagem de primeira para Los Angeles, mais 2500 dólares por mês,
de ajuda de custos. Samantha já concordou em ir consigo.
Abe voltou-se bruscamente.
- Raios, quem lhe deu permissão para falar com Samantha? Está-me a
perseguir.
- Não mora em Inglaterra? Aonde devia eu ir? A China?
Abe riu tristemente e sentou-se, esmurrando a mão.
- Lou Pepper não atravessa quase meio mundo por uma miserável
comissão de 40000 dólares. A quem mais já deitou o laço nesta proposta...
actor principal, actriz principal, director, cameraman, compositor... todos os
que a sua companhia representa, posso garantir...
- Ora, não se comporte como se isso fosse uma coisa desonesta. Os
estúdios não têm astros nem estrelas nas suas folhas de pagamento. Cabe às
agências arranjar tudo num mesmo embrulho e entregar nas suas mãos.
122
Mandelbaum está interessado numa proposta completa, que possa entregar à
junta de directores.
- Maggie, tu pensas que o teu grupo aposta alto. O que Pepper tem aqui
é um pacote de 2 milhões de dólares. O que dá uma comissão de 200 000
dólares, mais as percentagens sobre o filme. Mas há um senão no assunto.
Nenhum astro ou estrela aceita uma proposta, sem saber quem vai escrever o
guião. Aí é que entra o trabalho de Lou. Conseguir o roteirista mais
comerciável da indústria do cinema... isto é, eu. Ele então ganha 200000 de
comissão, 50000 dos quais vão ser pagos aos escritórios de Genebra, da
International Talent Associates. E esse dinheiro vai acabar na conta do Sr. F.
Milton Mandelbaum.
- Tem um bocado de imaginação, Abe, e é isto que faz de si um escritor
tão bom. Dê a um homem meio milhão de dólares e ele cospe-lhe na cara
como se você fosse uma porcaria.
- Deu a Mandelbaum uma opção do meu próximo livro?
- Dos seus próximos três livros, Abe. Eu disse-lhe: Mandelbaum quere-o
totalmente. Nós todos queremos que seja um homem rico, Abe. Tenho
de fazer uns telefonemas para Los Angeles e Nova Iorque. Estou no Clube
Marbella. Pode torturar-se sozinho. Amanhã eu falo consigo.
Abe calcorreou o pátio num andar feroz, mas depois esmoreceu.
- Ele sabe que eu não tenho coragem para romper com o acordo. Se eu o
fizer, ele não deixará que eu venda o maldito livro a qualquer outro estúdio.
Desta forma, vou tornar-me a espécie de escritor com que Samantha sempre
sonhou.
Encheu um copo com uísque. Laura tirou-lhe o copo da mão.
- Não te embriagues esta noite! - disse.
- Estou a explodir! Vamos dar uma volta de carro.
- Vais matar-nos...
- Talvez seja exactamente o que eu quero. Vou sozinho.
- Não, eu vou contigo. Levarei alguma roupa para passar a noite.
Só voltaram à villa no dia seguinte, muito tarde. Tinham ido pelas estradas,
em louca velocidade, no Porsche de Maggie, até chegarem a Málaga.
Esperava-os uma meia dúzia de recados de Lou Pepper.
Laura abriu a porta da sala de estar. David Shawcross recebeu-os.
- Que diabo é isto? A Assembleia Geral das Nações Unidas? -perguntou
Abe.
- Ontem à noite, antes de saírmos, eu telefonei a David - explicou
Maggie.
- Devo dizer, Abe, que já fui melhor recebido até por prisioneiros de
guerra alemães.
123
-Maggie contou-lhe a história completa?
-Sim!
- Comentários?
- O seu comportamento é um excelente comentário. Sabe, Laura, ele
ama a família e continuaria a viver com a mulher para sempre, se ela o
deixasse seguir os seus próprios caminhos. Ele é um judeu e quer escrever sobre
judeus. Ele odeia o ar contaminado dos estúdios. Já vi uma série de escritores
serem apanhados nessa armadilha. E num belo dia, eles deixam de
escrever. Abe está a pressentir esse dia. É a sua sentença de morte e ele sabe
disso.
- Mas, e a alternativa, Shawcross? Não haverá venda do livro para
filmes. Lou Pepper encarregar-se-á disso. Samantha não concordará comigo
se eu quiser escrever um livro que me afaste de Inglaterra por uns dois anos.
Quando acabarmos os entendimentos com os advogados, estarei de novo no
zero. O que é que vamos fazer? Pedir a Maggie que empenhe os diamantes?
- Já falei com o meu banco e com os seus editores na América! Nós havemos
de aguentá-lo.
-Vocês?
- Sim, nós.
- Crê que eu ainda tenho estofo para tanto?
- Um escreve, o outro paga as contas.
- Não sei, Shawcross, não sei. Eu posso decepcioná-lo.
- Sempre achei que você era o tipo de judeu que não entraria vivo numa
câmara de gás.
O empregado veio dizer que o Sr. Pepper estava ao telefone.
- O que é que vai dizer-lhe?
- Se quer saber a verdade, eu nunca tive tanto medo; nem quando me
espatifei com o meu Spitfire.
Abe limpou a mão húmida de suor, agarrou o auscultador, deu um
suspiro e tossiu para clarear a voz.
- Abe, falei com Milt hoje de manhã. Ele quer demonstrar-lhe a sua boa
vontade. Mais 25000 dólares pelos direitos do romance.
Abe sentiu-se profundamente tentado em acabar tudo pela violência.
Olhou para Shawcross e para Laura.
- Nada feito - disse suavemente, e desligou.
- Amo-te, Abe. Pede-me para ir contigo. Não me deixes ficar.
- Não julgues que não sonhei com isso. Tivemos uma visão do paraíso.
Só um doido poderia supor que conseguiria viver assim o resto da vida. Tudo
o que se pode esperar é um instante de paz entre as batalhas. Já tivemos o
nosso. Os lugares para onde vou são quentes e sujos. Cansar-te-ias depressa.
Se adianta alguma coisa dizer isto, amo-te, Maggie.
124
Capítulo décimo sexto
”Samantha possuía uma boa dose de astúcia feminina, para fazer-me
andar a seu lado durante esses vinte anos. Ela não me prendeu pela paixão,
nem pelo sacrifício, nem pelo interesse no meu trabalho. Ela prendeu-me por
chantagem.
“Ela viu que o meu maior medo era a solidão. A solidão já me levara aos
braços de mulheres pelas quais eu não sentia nem desejo... Só para não passar
uma noite solitária.
”Ela também percebeu que os meus dois amores eram os meus filhos.
Ben e Vanessa. Samantha serviu-se do meu medo e do meu amor como armas
contra mim. Ela sabia que eu não aguentaria ficar sem os meus filhos.
”Na sua petulante segurança, ela dizia-me sempre que eu era livre para
partir e que não exigiria nada de mim. Eu era tão livre, tal como no caso de
Lou Pepper e Milton Mandelbaum.
“Quando desmoralizava e entrava em depressão, e não aguentava mais o
tipo de vida que levávamos, Samantha arranjava maneira de levar-me para a
cama. Ela era óptima na cama. Era uma delícia. Tal como coçar as orelhas
dum cão. E quase sempre era bem sucedida no seu intento, conseguindo
abrandar a minha raiva.
”Durante duas décadas esperei que acontecesse um milagre. Esperei que
ela compreendesse que me sentia infeliz e me dissesse para ir lutar contra os
meus moinhos de vento, que ela estaria a meu lado.
”Ao voltar de Hollywood com os miolos feitos em farrapos, supliquei-lhe
que arrendasse Linstead Hall. Poderíamos levar as crianças e ir conhecer os
estranhos lugares que atraíam a minha imaginação de escritor.
”Quem é que eu pensava que estava a enganar?
”As poucas vezes que Samantha me acompanhou nas viagens, ela detestou
o desconforto, os horários, os compromissos sociais. Passava os dias a
fazer compras. À noite eu estava tão preocupado com a pobre Samantha que
se aborrecia terrivelmente, enquanto eu fazia entrevistas, que até ficava
atrapalhado e perturbava o ritmo do meu trabalho. Estava sempre a desculpar-me
perante ela.
”Eu gostaria de escrever em Linstead Hall. Mas Samantha achava que a
minha contínua presença empatava a rotina da casa, e não queria aborrecer-se
com o receber os meus colegas e as minhas relações comerciais.
“Ouvia-a agora espantado. Em vinte anos ela não aprendera nada.
“ - Graças a Deus - disse Samantha - temos amigos como Lou Pepper.
A tua atitude deixou-o doente, e o pobre coitado está internado no hospital
com colite.
”Não sabia que podia ter-se colite na boca. Mas no caso de Lou estava
correcto. Ele regressara a Londres antes de mim e manobrara Samantha, até
lhe falara sobre a Laura. Disse-lhe que esse contrato seria o mais importante
125
da minha vida e quanto eu ganharia. Se ela quisesse salvar-me de futuras
Lauras Albas, eu não deveria ir sozinho para Los Angeles. O que ele queria
era uma permanente aliada, que me dobrasse caso me tornasse rebelde.
”Samantha mostrou-se disposta a salvar-me a despeito de mim mesmo,
ao ir morar numa mansão em Beverly Hills. Ela reforçou o discurso, com
uma adenda a respeito da sua frágil saúde, pois trabalhava demais e era muito
sóbria, e finalmente sobre como havia sempre estado a meu lado a encorajar o
meu trabalho.
”Seria bom se eu perdesse a compostura. Já fiz isso algumas vezes. Olhei
para ela e compreendi que seria sempre assim. Samantha era tão estúpida
quanto os seus cavalos o eram, e agora poderia dizer que não me transformaria
num escritor por sua causa, e que a despeito dela eu continuava a ser
um escritor.
”-Quero divorciar-me - disse-lhe.
”No princípio ela tentou dissuadir-me. Eu tinha viajado muito, estava
cansado, etc., etc. Eu mantive-me firme. Então ela começou a usar as suas
tácticas de especular com o meu medo. Eu ficaria só. As crianças virar-se-iam
contra mim. A minha culpa arrasar-me-ia. Quando percebeu que eu não
desistiria, ficou desesperada.
” - Estou a afogar-me, Samantha. Se continuo a levar esta vida, estou
perdido. Já escolhi, minha senhora, e vou lutar.
”Então, Samantha, que nunca tinha querido nada, ameaçou-me. Ficaria
sem um vintém.
” - Vou simplificar-te o trabalho - disse-lhe. - Podes ficar com tudo,
inclusive com os direitos do último livro. Acho que foste quem o inspirou. É
teu... tudo... Saio daqui sem um tostão.
”Tive de dizer ao Ben e à Vanessa o que tinha acontecido. Disse-lhes que
iria percorrer a Europa Oriental e depois, se tudo corresse bem, iria para
Israel. No Verão, eles poderiam ir encontrar-me lá.
”Aconteceu uma coisa curiosa. Eles insistiram em acompanhar-me a
Londres e assistir ao meu embarque.
”Quando deixei Linstead Hall quem ficou só foi Samantha.”
Capítulo décimo sétimo
A odisseia de Abraham Cady começou na União Soviética, onde o levaram
a percorrer as fábricas-modelo, os parques residenciais, a dança, os
museus, as creches experimentais, e as acrobacias dialécticas na união dos
escritores.
126
Nos metropolitanos, diante de rádios ensurdecedores, nos jardins públicos,
houve encontros clandestinos com judeus.
O seu pedido para visitar Prodno perdeu-se num caos burocrático. Ele viajou
até Kiev para ver os infames poços de Babi-Yar, onde 35000 judeus
tinham sido agrupados e trucidados, ao som dos aplausos dos ucranianos. Os
judeus de Kiev falaram com Cady.
A sua visita foi interrompida de maneira intempestiva e ele foi convidado
a deixar o país.
Com um novo passaporte, ele saiu de Paris para Varsóvia, onde agora se
tentava estabelecer uma nova perspectiva a respeito do massacre dos judeus.
Os Polacos tinham sido totalmente inocentes no caso, e adoptavam uma
política comunista de liberalidade em relação àquele povo, antes tão perseguido.
Abraham foi um triste peregrino quando visitou o campo de concentração
de Jadwiga, o lugar onde toda a família Cadyzynski tinha sido assassinada.
Estava tudo intacto. Era um monumento nacional. E a visita trazer-lhe-ia
anos de pesadelos, com as câmaras de gás e os fornos crematórios, que ele via
agora como os viram os guardas das SS e os judeus assassinados.
Também visitou os terríveis alojamentos, onde loucas experiências em vítimas
humanas foram levadas a efeito.
Começou a conversar com muita gente e a maior parte das pessoas
mostrou-se disposta a conversar com ele, novamente. Foi detido no Hotel
Bristol, em Varsóvia, durante uma refeição, e levado para a prisão, onde
ficou três dias, sob suspeita de ser um agente do movimento sionista. Foi
depois expulso da Polónia.
Aconteceu a mesma coisa em Berlim Oriental, onde a propaganda
afirmava que os Alemães orientais se tinham redimido, voltando-se para o
comunismo, enquanto que os da zona ocidental continuavam a sua política
verdadeiramente nazi. Na sua terceira visita a Berlim Oriental avisaram-no
para não voltar mais.
O próximo passo de Abraham Cady levou-o a Viena, onde uma grande
parte dos judeus sobreviventes tinha procurado asilo. De Viena foi para os
campos da Itália e depois para França, e navegou naqueles mesmos mares
onde os agentes de imigração clandestina tinham comprado os imprestáveis
barcos que tentavam furar o bloqueio inglês para entrar na Palestina.
127
Atravessou a famosa ilha de Chipre como um Lázaro ressuscitado, porque
fora ali que os Ingleses tinham estabelecido os campos de detenção, para a
massa de judeus refugiados que não conseguiam chegar até à Palestina.
Foi até à Alemanha e conseguiu entrevistar dúzias de ex-nazis, todos totalmente
ignorantes de tudo quanto se fizera na era hitleriana. Nem mesmo
as pessoas que viviam perto de Dachau se lembravam de ter sentido qualquer
cheiro diferente.
Nas ruas de Munique, Frankfurt e Berlim ele recriou a ”Noite de
Cristal”, aquele incrível assalto em massa aos judeus, levado a efeito pelos
”Camisas Castanhas”.
Ao fim de sete meses, Abraham Cady dirigiu-se a Israel, para o encontro
com o pequeno número de parentes que lá vivia. Depois percorreu o Estado de
ponta a ponta. Conseguiu, ao todo, mais de 1000 entrevistas, confirmadas
por mais de 3000 fotografias. Centenas de horas guardadas nos arquivos da
morte. Organizou uma colectânea de livros e documentos, e leu até que a sua
vista quase sofreu um colapso.
E aumentava a sua dívida para com David Shawcross.
Vanessa e Ben chegaram durante o primeiro Verão. Abe recebeu-os
duplamente satisfeito, pois já se cansara duma amante húngara que o
abandonou, enfurecida perante a invasão do seu ”território”.
No fim do Verão os filhos comunicaram-lhe, com muita simplicidade,
que não voltariam para Inglaterra,
- Porque não? O que é que a vossa mãe vai dizer?
- A mamã já está cansada de ser uma boa mãe. Ela não vai importar-se
- disse Vanessa.
-Não brinques, Viny - interrompeu Ben. - Nós vamos ficar porque
encontramos aqui o que o pai espera que o outros encontrem, com o seu livro.
Abe não tentou dissuadi-los, apesar de saber que o seu filho tencionava
treinar para ingressar como piloto na Força Aérea israelita. Porém, a verdadeira
razão, ele sentiu-o, era não o deixarem só enquanto ele escrevia
aquele livro. Toda a pesquisa tinha terminado e ele estava a sofrer uma grande
tensão ao preparar-se para começar a escrever.
Durante os dezasseis meses que se seguiram, Abraham Cady escreveu e
reescreveu mais de 2 milhões de palavras.
David Shawcross .-
Cumberland Terrace, 77
Londres NW 84
15 de Dezembro de 1964
Querido tio David:
Tenho de dar-lhe uma triste notícia. Mas, felizmente, agora tudo já está
melhor. Encontrámos o papá caído na praia, há uma semana, devido a um
colapso por esgotamento. Ele está internado num hospital de Tel Aviv, e a ser
tratado duma doença que eles chamam ataque cardíaco leve.
Durante os últimos três meses o papá escreveu freneticamente, quase
desligado do resto do mundo. Está obcecado pelo livro, e só deixava de escrever
quando os seus dedos se recusavam a bater nas teclas da máquina e a
sua mente já estava exausta demais para poder coordenar ideias. Muitas vezes
dormia sobre a máquina de escrever.
Tudo isto tem sido uma experiência que não esqueceremos. Todos os
dias, ao entardecer, reuníamo-nos no pátio externo e Vanessa lia-nos o trabalho
do dia. O papá ouvia sem interromper, anotando num caderno as
correcções que deveriam ser feitas. Dum certo modo, nós pudemos participar
da tensão emocional pela qual ele estava a passar.
O manuscrito está terminado. O papá quer apenas reescrever os três últimos
capítulos. Num sobrescrito separado vou enviá-lo.
Já falo hebreu com alguma facilidade. Espero poder começar o meu treino
aéreo o mais breve possível. Vanessa terminou o curso no ginásio inglês e deverá
ser chamada para um ano de serviço nacional. Ela não precisa de fazer
isto, mas duvido que recuse quando a chamarem.
Por favor, não se preocupe com o papá. Ele está a ser bem tratado.
O nosso carinho à tia Lorraine.
Ben Cady.
Telegrama
Abraham Cady
Kfar Schmaryahu Bet
Israel
15 de Janeiro de 1965
Li seu manuscrito. Acredito que conseguiu o que todo escritor aspira e
poucos realizam. Você escreveu um livro que vai viver, não só sobrevivendo a
si, mas através dos tempos. Seu amigo devotado David Shawcross.
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Abe já estava em Israel há mais dum ano, mas ele evitara o cemitério
perto de Haifa. Com o telegrama de Shawcross, ele achou que podia fazer uma
visita ao seu pai. Já era tempo.
Capítulo décimo oitavo
”O Holocausto foi publicado no Verão de 1965. Precisei de toda uma
vida para tornar-me um sucesso do dia para a noite. Agora, depois de ter
derramado o meu sangue para escrever o livro, os parasitas e os abutres sobrevoavam
à espera de abocanhar o seu pedaço. O mais voraz era Lou Pepper,
disposto a esquecer o passado.
“Ao entregar o manuscrito, no princípio do ano, senti um incontrolável
desejo de rever a América. Fiz um acordo comigo mesmo e aluguei uma casa
toda em vidro e madeira nas colinas de Sausalito, com uma magnífica vista
para a baía de S. Francisco. Este desejo de voltar à América já vinha a crescer
havia anos, na proporção em que aumentava a minha preocupação com tudo
o que estava a acontecer com as pessoas em toda a parte, ou seja, a capacidade
ou incapacidade do homem continuar a existir no planeta Terra.
“A zona da baía era o lugar onde tudo parecia estar a acontecer e onde
poderia ser previsto muito do futuro de outros países.
”Hoje em dia, para se cair num estado de depressão, é suficiente pensar
na desintegração maciça da terra, do ar, da água, e na podridão moral, na
cobiça, na corrupção e em toda essa lista enorme de vilezas humanas que até
agora não conseguíamos perceber tão claramente.
”O homem, essa ave de rapina, esse assaltante, esse destruidor, está face
a face com os seus crimes milenares. Haverá um Armagedão durante este
século. Tudo se precipita para um aterrador clímax.
”Se pudéssemos catalogar e fazer acusações de todos os abusos cometidos
pela raça humana, se pudéssemos contabilizar o que o homem recebeu e o que
ele está a dever, então ele teria de se declarar falido.
”Agora temos de enfrentar a assustadora pergunta: teremos ou não
chegado ao fim da existência? Os velhos deuses e a antiga sabedoria não nos
deram respostas. E a geração actual sente-se invadida por um desespero,
perante a futilidade de tudo.
“As grandes e pomposas guerras são coisas do passado. Há dois supremos
poderes no mundo actual e ambos podem levar-nos à aniquilação total.
Portanto, as futuras guerras terão de ser resolvidas em terrenos limitados e
dentro de rígidas regras.
”Já que está fora da ideia uma grande guerra, o homem tem de inventar
alguma coisa que a substitua. O ponto-chave da questão é que há um defeito
básico na raça humana e é este o impulso do homem para a autodestruição.
”Para compensar a impossibilidade da guerra, ele substitui-a por outros
perigos mortais. Poderá destruir-se contaminando o ar que respira, incendiando,
devastando e violentando, destruindo todas as instituições, todas
as regras de sanidade, exterminando as criações de animais, as sementes da
terra e do mar, e envenenando-se com as drogas e entorpecedores.
”As guerras formais e declaradas deram lugar a uma guerra contra si
mesmo e contra os seus irmãos. E a destruição está a ser muito mais rápida e
eficiente do que quando era efectuada no campo de batalha.
”O código de ética e muitos valores antigos têm sido postos de lado e
expulsos pelos jovens. Em muitos casos já vai sendo necessário limpar a nossa
sociedade da hipocrisia, do racismo e dos falsos valores sexuais. Mas no seu
delírio para derrubar tudo quanto é velho, os jovens também destruíram os
grandes valores e a antiga sabedoria, e não descobriram nada que os substituísse.
“Como escritor, que poderei fazer a este respeito? Receio que seja muito
pouco. Entre outras coisas, tenho visto aparecer uma certa insanidade que
perverte a literatura, a arte e a música, a fim de receber os elogios dos falsos
profetas. Notam-se o desespero e a confusão nisto tudo. Olhem para este
baile. Ouçam a doce música.
”Bom, a minha missão é escrever. Em termos de comparação, o que eu
desejo é o mesmo que querer tapar, com um dedo, uma represa com milhões
de buracos.
“Imaginei criar uma cidade fictícia e escrever acerca dela. A sua história e
o seu povo vistos sob diferentes aspectos, desde a sua fundação até ao seu
apogeu e depois o seu declínio. Seria uma contribuição este trabalho. O que
pretendia nesta história era isolar uma parte e, pelo estudo desta, chegar a um
conhecimento das outras partes.
”Tudo isto levará uns quatro ou cinco anos de pesquisas. A Vanessa está
quase a terminar o seu ano de serviço em Israel e encontrar-se-á comigo em
Sausalito para matricular-se na Universidade de Berkeley que, por coincidência,
já se tornou uma das minhas fontes de pesquisa.
”Ben? Ben é agora o Segen Mishne, tenente Cady, da Força Aérea de
Israel. Sinto-me orgulhoso. Também sinto medo. Porém, com o treino que
recebeu, penso que ele vai ser o melhor de nós os três.
”É um descanso saber que, ao descobrirem Israel, os meus filhos terão
um objectivo puro e inadulterado para viver: a sobrevivência do nosso povo.
”Porque, afinal de contas, o que salvará a humanidade será algo assim:
um grande número de pessoas a viver para alguma coisa de real importância.
”Hoje em dia, sou um conferencista muito procurado. Fui convidado
para um seminário de escritores e fizeram-me perguntas durante três dias
seguidos.
” - Claro, qualquer pessoa pode ser um escritor. Vou mostrar-lhe uma
coisa. Agarre numa folha de papel.
”- Como? Ora, é fácil, gaste os fundilhos das calças na cadeira.
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”Ou então:
• ”-Eu também sou escritor, mas não tive a sua sorte, Sr. Cady.
”Chegou a minha vez de falar, no banquete. Olhei para os rostos tensos e
atentos.
”-Aqui, quem quer ser escritor? - Levantaram-se todas as mãos.
Porque diabo, então, não estão em casa a escrever? - perguntei e fui-me
embora. Foi este o final da minha carreira como conferencista.”
”No entanto, os judeus descobriram-me. A caridade judaica foi sempre
um padrão de vida para o meu pai e para toda a minha família. Ajudar o nosso
povo foi a chave da nossa sobrevivência. É a essência de Israel. Lembro-me
que no princípio, nas lojas da Rua da Igreja, em Norfolk, havia sempre uma
caixinha, apushke, que fazia a colecta para qualquer coisa na Palestina.
”Bem, deixem-me contar uma coisa. Os judeus nunca estão sem uma
causa pela qual devam pedir dinheiro. Em 1965 falei para 116 deles. Este
assunto de falar é aborrecido. Eu detesto-o, desde as comissões de recepção
nos aeroportos, até às entrevistas na TV e os jantares íntimos com os grandes
magnatas. Fico tão apavorado quando chega a minha vez de falar, que tenho
de encher-me de bebida ou de tranquilizantes. De qualquer forma, desde que
O Holocausto foi publicado, sou muito solicitado e não sei dizer que não a
essas pessoas.”
A secretária de Abe, Millie, recebeu na sua sala Sidney Chernoff, que
representava a Einstein University, a segunda Faculdade judaica de
Chicago.
- O Sr. Cady telefonou a avisar que chega um pouco mais tarde. Deseja
esperar no seu escritório?
Então, era aqui que ele trabalhava! Chernoff estava encantado e observava
tudo. A velha cadeira de couro, a máquina de escrever arruinada, a mesa
coberta de lembranças, as fotografias dos filhos, com os uniformes de
Israel. Ia dar assunto para uma semana de conversas. Havia uma parede
toda de cortiça, onde estava pregada uma faixa: ”Cidade de Mark
Twain - Califórnia.” Pedaços de papel com nomes e datas, estatísticas, e grupos
de famílias e todo o sistema industrial, educacional, político e cultural da
cidade.
Imaginem só! Uma cidade criada pela mente dum homem. Numa comprida
mesa havia uma pilha de livros e documentos. Fotografias de toda a espécie,
a documentar vários aspectos da vida urbana, estavam espalhados por
cima de tudo. Também havia informações sobre o influxo das populações
minoritárias, sobre as greves e inundações, as revoltas e os métodos da polícia
e do corpo de bombeiros.
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A visita de Sidney Chernoff àquele santuário íntimo foi subitamente
interrompida por um barulho de motocicleta. Olhou pela janela e acompanhou
a vinda dum desses malucos do volante. Viu-o abrandar, desligar o
motor e saltar. Meu Deus! Era Abraham Cady!
Chernoff tentou mostrar uma atitude indiferente, quando o escritor se
apresentou, ao vê-lo de blusão de couro e de botas. Cady esticou-se na cadeira,
pôs os pés em cima da mesa e pediu a Millie que lhe trouxesse um
Bloody Mary.
- A sua máquina é uma beleza! -disse Chernoff, a querer fazer um
comentário qualquer a respeito da motocicleta.
- É uma Harky C. H. Sportster 900 - respondeu Abe. - Este bicho
corre mais que uma corça.
- Sim, parece ser muito veloz.
- De vez em quando tenho de libertar-me e clarear as ideias. Tenho
acompanhado a polícia de costumes, há mais de duas semanas. Secção de
narcóticos. É um trabalho horrível. Ontem encontrámos dois garotos de doze
anos mortos, por causa duma enorme dose de heroína.
- Que horror!
-A única desvantagem duma moto é não voar. Tenho tido muita dificuldade
para tirar a minha licença de piloto. Por causa da vista, compreende?
O Bloody Mary de Abe, e o chá de Chernoff, chegaram.
Chernoff bebeu um golo e acenou a aprovar, com os lábios franzidos.
Foi-se aproximando do assunto duma maneira untuosa, numa voz melodiosa
e superintelectual. Cady tinha a mania das motocicletas, mas percebia,
como grande romancista que era, a linguagem culta e elevada dum
colega. Chernoff usava e abusava das citações hebraicas nas suas divagações.
Também citava o Talmud e sábias frases de grandes vultos, com
quem tivera conversas de alto nível. Explicou a Cady porque é que um
homem do seu quilate tinha de identificar-se com a Einstein University, a
segunda Faculdade judaica do país. Abe poderia contribuir monetariamente
com uma doação para as artes e para as letras. E ele, Abraham Cady, receberia
uma grande recompensa espiritual por saber que ajudara a causa da
educação e do intelectualismo judaico.
Cady levantou-se com barulho.
- Gostaria de ajudar a Einstein.
Sidney Chernoff não podia disfarçar a sua alegria. Cady não era o monstro
que lhe haviam descrito. Um judeu é um judeu, e se o apelo é bem feito, ele
corresponde infalivelmente.
- Apenas tenho uma pequena condição - disse Abe.
- Claro.
- O dinheiro que eu doar terá de ser usado, exclusivamente, no recrutamento
duma boa equipa de futebol, com um bom técnico, a fim de poder
enfrentar as grandes equipas do país.
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Chernoff ficou espantado.
- Mas a Einstein tem um óptimo programa desportivo.
- É assim que eu penso, Sr. Chernoff. Já temos muitos pesquisadores,
sábios, doutores, físicos, cientistas, ensaístas, advogados, matemáticos,
músicos e angariadores de fundos. Todos juntos dariam para fornecer bastante
génio a qualquer país subdesenvolvido, incluindo o Texas. Eu vejo
assim o problema. Durante 2000 anos os judeus têm mantido conversações
sobre assuntos de dignidade humana, sem nenhum sucesso. Alguns poucos
milhões da nossa gente, lá em Israel, saíram da concha e mostraram o que
valem. Nessa altura começámos a ser respeitados. Quero que a Einstein
ponha em campo uma dúzia de potrozinhos judeus, para lutarem contra a
Notre Dame. Quero judeus que possam derrubar as pessoas, sofrer penalidades,
serem expulsos do campo. Quero judeus que atirem uma bola com
força e para bem longe, na direcção doutro judeu, que a apanhe, finte três ou
quatro adversários e faça golo.
Depois de longos debates no sindicato dos carregadores do cais do porto,
de entrevistas com estudiosos em revoltas cívicas, de procurar acção no gueto
da Filmore Street, de acompanhar a polícia em várias espécies de diligências,
prisão de beatniks, conversas a favor e contra os rebeldes em Cal..., Abe
sentia-se renascer ao navegar na baía de S. Francisco, ou ao sair com a frota de
pesqueiros. Alguns dias no alto-mar, curvando as costas na pesca do salmão,
deixando crescer a barba e beber com os italianos, todas estas coisas lhe davam
ânimo para voltar ao trabalho.
Esteve no mar quatro maravilhosos dias, a bordo do Maria Bella II. Em
Janeiro, o mar estava frio e o vento era constante. Sentiu-se muito triste
quando atravessaram a Golden Gate e foram recebidos pelo abraço da baía.
Dominik, o capitão do Maria Bella II, deu um saco de caranguejos a Abe.
- Se a minha mãe visse estes caranguejos, virava-se na sepultura.
-Ouça, Abe - gritou Dominik, quando é que escreve alguma coisa
sobre mim?
- Já escrevi. Um livro duma só página, chamado A Enciclopédia dos
heróis de guerra italianos.
- Está muito espirituoso, o judeu escritor. A sua sorte é ter só um olho.
- Tenho dois. Uso esta venda porque sou cobarde.
O Maria Bella II afastou-se, levado pela maré, passou à direita de Alcatraz
e saiu devagar na direcção do cais dos pescadores e também na direcção da
linda cidade de alabastro que lá adiante crescia. O pai de Dominik estava no
ancoradouro quando eles atracaram.
- Olá, Abe, a sua secretária telefonou-lhe. Pede para lhe falar, logo que
possa.
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- Millie, sou eu, Abe. Então o que é que houve ?
- Chegou um telegrama de Shawcross, há dois dias. Não
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