“Quais foram?”, perguntou Glinda de imediato.
“Mesmo que por breve tempo”, disse Elphaba, “nós tivemos uma mãe. Uma mulher frívola, bêbada, imaginativa, incerta, desesperada, corajosa, teimosa, protetora. Nós a tivemos. Melena. Shell não teve mãe alguma exceto a Babá, que fez o melhor que pôde.”
“E quem era o favorito de sua mãe?”, disse Glinda.
“Não posso te dizer isso”, disse Elphaba casualmente, “não sei. Teria sido Shell, provavelmente, visto ele ser menino. Mas ela morreu sem conhecê-lo, e, assim, não teve nem esse pequeno consolo.”
“E o favorito de seu pai?”
“Oh, aí é fácil”, disse Elphaba, erguendo-se e procurando seus livros na pasta, e se preparando para bater em retirada, interrompendo a conversa por aí mesmo. “É Nessarose. Você entenderá isso quando conhecê-la. Ela seria a favorita de qualquer um.” Ela caiu fora do quarto com não mais que um breve aceno dos dedos verdes, em sinal de despedida.
Glinda não estava tão certa de que a irmã de Elphaba seria uma favorita para ela. Nessarose parecia tão carente. A Babá era exageradamente solícita, e Elphaba continuava a sugerir ajustamentos em seus arranjos domésticos para aperfeiçoar as coisas. Colocar as cortinas neste ângulo em vez daquele, manter o sol longe da bela pele de Nessarose. Podemos ficar com a lâmpada de óleo a uma altura em que Nessarose possa ler? Shh, nada de conversinhas tarde da noite; Nessarose já se recolheu e ela tem um sono tão leve.
Glinda estava um pouco espantada com a beleza bizarra de Nessarose. A irmã de Elphaba se vestia bem (se não extravagantemente). Ela desviava a atenção sobre si mesma, contudo, por um sistema de pequenos tiques sociais ― a cabeça abaixada num repentino ataque de devoção, os olhos piscando. Era especialmente comovente ― e irritante ― ter de enxugar um fio de lágrimas provocado por alguma epifania na rica vida espiritual do interior de Nessarose, da qual os espectadores não podiam ter uma vaga idéia. O que alguém poderia dizer?
Glinda começou a se desinteressar por seus estudos. A feitiçaria vinha sendo ensinada por uma nova instrutora desajeitada chamada Senhorita Greyling. Ela tinha uma arrebatada veneração pela matéria, mas, como logo ficou visível, pouca habilidade natural. “Em seu sentido mais elementar, um feitiço nada mais é que uma receita de mudança”, ela entoava afetadamente para os alunos. Mas, quando o frango que ela tentou transformar num pedaço de torrada se transformou numa mistura de grãos de café co-locada numa folha de alface em forma de xícara, os estudantes anotaram lá para si que não deveriam nunca aceitar um convite para jantar na casa dela.
No fundo da sala, esgueirando-se com pretensa invisibilidade para que pudesse melhor observar, Madame Morrible balançava a cabeça e ria. Uma ou duas vezes não pôde se abster de interferir. “Longe de mim dar palpites na sala de visitas da feiticeira”, clamava, “ainda assim, Senhorita Greyling, não terá omitido as etapas de ligação e persuasão? Estou apenas perguntando. Deixe-me experimentar. Você sabe que tenho um prazer especial em nosso treinamento de feitiçaria.” Inevitavelmente, a Senhorita Greyling se penitenciava do que restara de alguma demonstração anterior, ou deixava a sua crista baixar, desmoronando numa pilha de vergonha e mortificação. As garotas davam risadinhas, e não sentiam que estivessem aprendendo muita coisa.
Ou estavam? O bom da falta de jeito da Senhorita Greyling era que as autorizava a não sentirem medo de tentar por si mesmas. E ela não economizava entusiasmo se uma estudante conseguia realizar a tarefa do dia. A primeira vez em que Glinda conseguiu fazer desaparecer um carretel de linha com um feitiço de invisibilidade, mesmo por segundinhos, a Senhorita Greyling bateu palmas e pulou para cima e para baixo e quebrou uma ponta traseira do sapato. Era gratificante, e estimulante.
“Não que eu faça objeção”, disse Elphaba um dia, quando ela e Glinda (e, inevitavelmente, a Babá) estavam sentadas debaixo de uma árvore de fruta-pérola perto do Canal do Suicídio. “Mas eu tenho de perguntar. Como será que a universidade continua a ensinar feitiçaria se seu decreto original era tão estritamente unionista?”
“Bem, não há nada inerentemente religioso ou não-religioso no caso da feitiçaria”, disse Glinda. “Haverá? Também não há nada nela que lembre a fé no prazer.”
“Feitiços, transformações, aparições? É tudo entretenimento”, disse Elphaba. “É teatro.”
“Bem, pode parecer teatro, e nas mãos da Senhorita Greyling se parece mais é com mau teatro”, admitiu Glinda. “Mas o âmago da coisa não está relacionado ao uso. É mais uma habilidade prática, como ― como ler e escrever. Não é bem que você possa, é mais o que você lê ou escreve. Ou, se você me perdoar o jogo de palavras, o feitiço que você lança.”
“Papai desaprovava vigorosamente”, Nessarose disse, nos tons adocicados da fé inquebrantável. “Papai sempre dizia que a magia é a prestidigitação do diabo. Ele dizia que a fé no prazer não era mais um exercício para afastar as massas do verdadeiro objeto de sua devoção.”
“Essa é uma conversa unionista”, disse Glinda, sem se mostrar ofendida. “Uma opinião sensata, se aquilo a que você se opõe são os charlatões e os mágicos de rua. Mas, a feitiçaria não tem de ser isso, necessariamente. Que dizer das bruxas comuns que vivem em Glikkus? Dizem que elas enfeitiçam as vacas que importaram de Munchkin para que não cheguem mugindo à beira de algum precipício. Quem poderia dar-se ao luxo de co-locar uma cerca em cada uma das beiras de abismo que existem? A magia é então uma habilidade local, uma contribuição para o bem-estar da comunidade. Não tem de suplantar a religião.”
“Pode não ter de”, disse Nessarose, “mas se tende a suplantar, então não temos o dever de desconfiar?”
“Oh, desconfiar, tudo bem, também fico precavida até com a água que bebo, pode estar envenenada”, disse Glinda. “Isso não significa que eu vá parar de tomar água.”
“Bem, eu não acho que isso seja uma questão tão importante”, disse Elphaba. “Eu acho que a feitiçaria é trivial. É relacionada no mais das vezes só consigo mesma, não vai além.”
Glinda se concentrou com empenho e tentou fazer com que o sanduíche que estava no lado esquerdo de Elphaba se elevasse sobre o canal. Ela conseguiu apenas explodir a coisa numa pequena combustão de maionese e cenoura esfrangalhada e azeitonas picadas. Nessarose perdeu o equilíbrio de tanto rir, e a Babá teve de ancorá-la novamente. Elphaba ficou coberta com pedaços de comida, que tirava de sobre si e ia comendo, para o nojo e a diversão de todos. “Tudo isso são apenas efeitos, Glinda”, ela disse. “Não há nada de ontologicamente interessante na magia. Não que eu acredite em unionismo tampouco”, ela clamou. “Eu sou uma ateísta e uma espiritualista.”
“Você diz isso só para chocar e escandalizar”, disse Nessarose, empertigada. “Glinda, não ouça nada do que ela fala. Ela sempre faz isso, geralmente para deixar papai fulo de raiva.”
“Papai não está aqui”, Elphaba lembrou à sua irmã.
“Eu assumo o lugar dele e fico ofendida”, disse Nessarose. “Muito bom franzir o nariz para o unionismo quando o Deus Inominável nos deu um nariz. É bem engraçado, não, Glinda? Infantil.” Ela parecia estar cuspindo fúria.
“Papai não está aqui”, disse Elphaba novamente, num tom que chegava a soar como um pedido de desculpas. “Você não precisa sair em defesa pública das obsessões que ele tinha.”
“O que você chama de obsessões dele são meus artigos de fé”, ela disse com uma fria clareza.
“Bem, você não é uma feiticeira ruim, para uma principiante”, disse Elphaba, virando-se em direção a Glinda. “Foi uma bela bagunça, a que você fez com meu almoço.”
“Obrigada”, disse Glinda. “Eu não tinha a intenção de manchar você. Mas eu estou melhorando, não estou? E melhorando em público.”
“Uma exibição chocante”, Nessarose disse. “Exatamente o que papai deplorava na feitiçaria. A atração está toda na superfície.”
“Eu concordo, ainda tem gosto de azeitona”, Elphaba disse, achando um resto de azeitona preta na manga da camisa e segurando-o na ponta do dedo para colocá-lo junto à boca da irmã. “Quer provar, Nessa?”
Mas Nessarose virou seu rosto e se afundou numa prece silenciosa.
3
Alguns dias depois, Boq se esforçou por atrair a atenção de Elphaba no encerramento de sua aula de ciências da vida, e eles se encontraram por fim no caramanchão do corredor principal. “O quê você acha desse novo Doutor Nikidik?”, ele perguntou.
“Eu acho que é difícil de escutar”, ela disse, “mas é porque eu ainda quero ouvir o Doutor Dillamond e não consigo acreditar que ele morreu.” Em seu rosto havia um ar de soturna submissão a uma dura realidade.
“Bem, essa é uma das coisas que me deixam curioso”, ele disse. “Você me falou sobre o avanço do Doutor Dillamond. Você sabe se seu laboratório já foi desocupado? Talvez haja lá alguma coisa digna de encontrar. Você tomava notas para ele, elas não poderiam ser a base de alguma proposta, ou de no mínimo algum futuro estudo?”
Ela olhou para ele com uma expressão rija, vigorosa. “Você acha que eu já não estou muito à frente de você?”, ela perguntou. “É claro que fui fuçar por lá bem no dia em que seu corpo foi encontrado. Antes que alguém pudesse vedar a porta com cadeados e interdições mágicas. Boq, você me toma por boba?”
“Não, eu não acho que você seja boba, então, me diga o que você descobriu”, ele disse.
“Suas descobertas estão bem escondidas”, ela disse, “e embora haja lacunas colossais em meu treinamento, eu estou estudando-as a meu modo.”
“Você quer dizer que não vai mostrá-las para mim?” Ele estava chocado.
“A coisa nunca foi de seu interesse particular”, ela disse. “Além disso, até que haja algo para provar, qual é o ponto? Eu não acho que o Doutor Dillamond houvesse chegado a ele, ainda.”
“Eu sou um munchkinês”, ele respondeu orgulhosamente. “Olha, Elfinha, você mais ou menos me convenceu daquilo que o Mágico está querendo fazer. O confinamento dos Animais em fazendas ― para dar aos insatisfeitos fazendeiros de Munchkin a impressão de que está fazendo algo por eles ― e também para obter trabalho forçado para a escavação de novos poços inúteis. É torpe. Mas isso afeta Pedras do Caminho e as cidadezinhas de onde vim. Eu tenho o direito de saber o que você sabe. Talvez possamos decifrar juntos, trabalhar por uma mudança.”
“Você tem muito a perder”, ela disse. “Eu vou fazer isso sozinha.”
“Fazer o que sozinha?”
Ela apenas balançou a cabeça. “Quanto menos você souber, melhor, e eu digo isso para a sua segurança. Quem quer que tenha assassinado o Doutor Dillamond não quer que suas descobertas se tornem públicas. Que espécie de amiga eu seria para você se o pusesse em risco?”
“Que espécie de amigo eu seria para você se eu não insistisse?”, ele retrucou.
Mas ela não lhe contou. Quando ele se sentou ao lado dela pelo resto da aula e passou-lhe pequenas anotações, ela a todas ignorou. Mais tarde ele pensou que poderiam ter gerado um verdadeiro impasse em sua amizade se não houvesse ocorrido um estranho ataque ao professor novato durante aquela mesma aula.
O Doutor Nikidik estava palestrando sobre a Força da Vida. Enrolando em cada punho os dois cachos separados de sua longa barba irregular, ele falava em tons sussurrantes de tal modo que apenas metade de cada sentença chegava ao fundo da sala de aula. Nenhum estudante em particular conseguia seguir seus raciocínios. Quando o Doutor Nikidick tirou uma pequena garrafa do bolso de seu colete e murmurou alguma coisa sobre “Extrato de Intenção Biológica”, apenas os estudantes da fila dianteira se levantaram e ergueram seus olhos. Para Boq e Elphaba, o murmúrio soava como: “Um pouco de tempero para a sopa hum, hum, como se a criação fosse um inconcluído hum, hum, hum, não obstante as obrigações de todos os seres sensíveis hum, hum, hum, e então como um pequeno exercício para os que não estão ouvindo lá atrás do hum, hum, hum, observem um pequeno milagre mundano, cortesia de hum, hum, hum.”
Um arrepio de excitação havia despertado a todos. O Doutor desar-rolhava a garrafa embaçada e fazia um movimento espasmódico. Todos podiam ver uma pequena lufada de pó, como uma efervescência de talco, ir se transformando num penacho que ondulava no ar acima do pescoço da garrafa. O Doutor agitou um pouco as suas mãos, para fazer as correntes de ar subirem num redemoinho. Mantendo alguma rara espécie de coerência espacial, o penacho começou a se revolver. Os ooohs que os estudantes se sentiam inclinados a emitir foram todos adiados. O Doutor Nikidick apontava um dedo em sua direção para que se calassem, e eles podiam perceber por quê. Uma vasta entrada de fôlego mudaria o padrão das correntes de ar e desviaria a substância flutuante do pó. Mas os estudantes começaram a rir, a despeito deles mesmos. Acima do palco, em meio aos padronizados símbolos cerimoniais de chifres de cervos e trompas de bronze trançadas, pendiam quatro retratos a óleo dos pais fundadores das Torres de Ozma. Em seus trajes arcaicos e expressões sisudas, eles olhavam para os estudantes de hoje. Se essa “intenção biológica” fosse para ser aplicada num dos pais fundadores, o que ele diria, vendo homens e mulheres reunidos como estudantes na grande sala? O que ele teria a dizer sobre qualquer coisa? Era um grande momento de expectativa.
Mas quando uma porta lateral do palco se abriu, a mecânica das correntes de ar foi perturbada. Um estudante olhava para dentro, espantado. Era um novo estudante, bizarramente vestido com perneiras de camurça e uma camisa branca de algodão, com um desenho de diamantes azuis tatuado na pele escura de seu rosto e de suas mãos. Ninguém nunca o vira, nem vira ninguém como ele. Boq agarrou a mão de Elphaba firmemente e sussurrou: “Olha! Um winkie!”.
E assim parecia, um estudante vindo da Terra de Vinkus, num estranho traje cerimonial, chegando atrasado à aula, abrindo a porta errada, confuso e penitente, mas a porta se fechara atrás dele e se trancara deste lado, e não havia por perto assentos disponíveis nas filas dianteiras. Assim, ele se deixou cair onde estava e sentou-se com as costas voltadas para a porta, esperando, sem dúvida alguma, não ser muito notado.
“Maldito seja, a coisa foi com certeza afetada”, disse o Doutor Nikidik. “Seu estúpido, por que você não veio para a aula na hora certa?”
A névoa brilhante, quase do tamanho de um buquê de flores, tinha virado para cima numa corrente, e se desviado das fileiras dos dignitários há muito falecidos que esperavam uma oportunidade inesperada de discursar novamente. Em vez disso, cobriu um dos suportes dos chifres de cervos, parecendo pendurar-se por um momento nas pontas retorcidas. “Bem, eu nem posso esperar ouvir uma palavra de sabedoria da boca deles, e eu me recuso a desperdiçar mais desse artigo precioso em demonstrações de classe”, disse o Doutor Nikidik. “A pesquisa ainda está incompleta e eu pensei que hum, hum, hum. Deixarei que vocês descubram por si mesmos se hum, hum, hum. Eu nunca ia querer prejudicar os seus hum, hum, hum.”
Os chifres de repente se retorceram convulsivamente na parede, e se projetaram violentamente para longe do painel de carvalho. Deram uma cambalhota e caíram no chão ruidosamente, aos sons dos gritos e risadas dos estudantes, especialmente porque, por um momento, o Doutor Nikidik não atinara com o motivo do tumulto. Ele se virou a tempo de ver os chifres se endireitarem e esperarem, trêmulos, torcidos, no tablado, como um galo de briga em pose bélica e preparado para entrar no ringue.
“Oh, bem, não olhem para mim”, disse o Doutor Nikidik, recolhendo seus livros, “Eu não pedi nada de vocês. Se há algum culpado, é aquele ali.” E ele casualmente apontou para o estudante de Vinkus, que estava agachado, de olhos tão arregalados que os mais cínicos dos estudantes mais velhos começaram a suspeitar que tudo aquilo era uma armação.
Os chifres permaneciam armados e se moviam ligeiros, meio de lado, pelo tablado. Enquanto os estudantes se erguiam num grito unânime, os chifres se arremetiam, descontrolados, sobre o corpo do rapazinho de Vinkus e o fixavam contra a porta trancada. Um suporte do painel atingiu-o no pescoço, prendendo-o numa canga em formato de V, e o outro se empinou no ar para atingi-lo no rosto.
O Doutor Nikidik tentou se mover ligeiro, e desmontou em seus joelhos artríticos, mas, antes que ele pudesse se endireitar, dois rapazes estavam no tablado, saindo da primeira fila, agarrando os chifres e se atracando com eles no chão. O rapaz de Vinkus soltou um berro numa língua estrangeira. “Aqueles são o Crope e o Tibbett!”, disse Boq, sacudindo o ombro de Elphaba: “Olha!”. Os estudantes de feitiçaria se erguiam todos de suas cadeiras e tentavam lançar feitiços sobre os chifres assassinos, e Crope e Tibbett perdiam o controle dos chifres e daí a pouco o recuperavam, até que por fim conseguiram quebrar uma ponta de um deles, e daí foram quebrando outra, e os pedaços, ainda agitados, caíram no chão do tablado sem mais demora.
“Oh, coitado do sujeito”, disse Boq, pois o estudante de Vinkus estava tendo um colapso e chorava copiosamente por trás de suas mãos tatuadas com diamantes azuis. “Eu nunca tinha visto um estudante de Vinkus. Que medonha acolhida em Shiz.”
O ataque ao estudante de Vinkus provocou falatório e especulação. Na aula de feitiçaria, no dia seguinte, Glinda pediu à Senhorita Greyling que explicasse uma coisa. “Como pôde o ‘Extrato de Intenção Biológica’ do Doutor Nikidik ou o que quer que fosse, como pôde ser ensinado debaixo da chancela de ciências da vida quando se portava como um feitiço de primeira? Qual é realmente a diferença entre ciência e feitiçaria?”
“Ah”, disse a Senhorita Greyling, escolhendo esse momento para aplicar-se no cuidado de seu cabelo. “A ciência, minhas queridas, é a dissecação sistemática da natureza, para reduzi-la a partes funcionais que mais ou menos obedecem a leis universais. A feitiçaria se move na direção oposta. Ela não rasga, ela remenda. Ela é síntese, mais que análise. Ela constrói de novo em vez de ficar só revelando o que é velho. Nas mãos de alguém realmente talentoso” ― a esta altura, ela se espetou com um grampo e ganiu ― “ela significa Arte. Pode-se realmente chamá-la como a Maior ou a Mais Bela das Artes. Ultrapassa as Belas Artes da pintura e do drama e da declamação. Não faz pose ou representa o mundo. Ela o transforma. Uma vocação muito nobre.” Ela começou a choramingar docemente sob a força de sua própria retórica. “Pode haver um desejo maior que o de mudar o mundo? Não traçar projetos Utópicos, mas realmente ditar mudanças? Revisar o malformado, remediar os equívocos, justificar as margens desse erro esfarrapado que é o universo? Viver através da feitiçaria?”
Na hora do chá, ainda estupefata e divertida, Glinda relatou o pequeno discurso apaixonado da Senhorita Greyling às duas irmãs Thropp. Nessarose disse: “Apenas o Deus Inominável cria, Glinda. Se a Senhorita Greyling confunde feitiçaria com criação, ela corre o risco de corromper seus princípios morais.”
“Bem”, disse Glinda, pensando em Ama Clutch, que estava acometida pela doença mental que ela imaginara para a mulher uma vez, “meus princípios morais não estão na melhor forma para serem corrompidos, Nessa.”
“Então, se a feitiçaria pode ser de grande auxílio, deve ajudá-la a re-construir o seu caráter”, disse Nessarose firmemente. “Se você se empenhar nessa direção, suspeito que tudo dará certo no fim. Use seu talento para a magia, não seja usada por ele.”
Glinda suspeitava que Nessarose estava desenvolvendo uma aptidão para ser superior de um modo secante. Ela estremeceu, mesmo tendo levado a sugestão a sério.
Mas Elphaba disse: “Glinda, essa foi uma boa pergunta. Bem que eu queria que a Senhorita Greyling a tivesse respondido. Aquele pequeno pesadelo com os chifres pareceu mais magia que ciência para mim, também. Pobre daquele rapazinho de Vinkus! Vamos fazer essa pergunta ao Doutor Nikidik na semana que vem?”.
“Quem é que teria coragem para fazer isso?”, gritou Glinda. “A Senhorita Greyling é no mínimo ridícula. Já o Doutor Nikidik, com aquele adorável jeito incoerente de resmungar e murmurar que ele tem ― é tão distinto.”
Na aula de ciências da vida da semana seguinte, todos os olhos estavam voltados para o rapaz de Vinkus. Ele chegou cedo e se acomodou na sacada, tão longe da estante quanto possível. Boq tinha quanto aos nômades toda a desconfiança dos fazendeiros estabelecidos. Mas tinha de reconhecer que a expressão nos olhos do novo estudante era inteligente. Avaric, deslizando para a cadeira próxima a Boq, disse: “Ele é um príncipe, segundo ouvi dizer. Um príncipe sem tostão ou trono. Um nobre empobrecido. Em sua tribo particular, eu quero dizer. Ele fica em Torres de Ozma e seu nome é Fiyero. Ele é um winkie verdadeiro, puro-sangue. Que será que ele pensa da civilização?”
“Se aquilo que aconteceu aqui na semana passada era civilização, ele deve estar suspirando por suas origens bárbaras”, disse Elphaba da cadeira do outro lado de Boq.
“Para que ele está usando aquela pintura boba?”, disse Avaric. “Ele apenas chama a atenção para si mesmo, com aquilo. E aquela pele. Eu que não ia querer ter uma pele cor de merda.”
“Que coisa pra se dizer!”, disse Elphaba. “Se você quer saber, acho que é uma opinião merdosa.”
“Oh, por favor”, disse Boq. “Vamos calar a boca.”
“Eu tinha me esquecido, Elfinha, que pele é um assunto que lhe diz respeito também”, disse Avaric.
“Deixe-me fora disso”, ela disse. “Nós acabamos de almoçar, e você me dá dispepsia, Avaric. Você e os feijões que comemos no almoço.”
“Vou mudar de cadeira”, avisou Boq, mas o Doutor Nikidik chegou nesse exato momento, e a classe se levantou no sinal de respeito habitual, voltando a sentar-se ruidosamente, comunicativa, conversando sem parar.
Por um momento, Elphaba ergueu sua mão para chamar a atenção do Doutor, mas ela estava sentada muito lá atrás e ele estava murmurando sobre algum outro assunto. Ela finalmente se inclinou para Boq e disse: “No recreio, mudarei de cadeira e irei para a frente e ele me notará”. Então, a classe observou quando o Doutor Nikidik finalizou seu preâmbulo inaudível e acenou a um estudante para que abrisse a mesma porta ao lado do palco na qual Fiyero tropeçara na semana anterior.
Entrou por ela um rapaz do Três Rainhas empurrando uma mesa como se fosse uma bandeja de chá. Sobre ela, agachado como se procurasse fazer-se tão pequeno quanto possível, havia um filhote de leão. Mesmo de lá da sacada dava para se sentir o terror do animal. Sua cauda, um pequeno chicote da cor de amendoins amassados, açoitava de lá para cá, e seus ombros se arqueavam. Não havia ainda sinal de juba, ele era muito pequeno. Mas a cabeça amarelo-castanho se contorcia de um modo ou de outro, como se avaliasse as ameaças ao redor. Ele abriu sua boca em um pequeno uivo aterrorizado, a forma infantil de um rugido adulto. Por toda a sala de aula os corações se derreteram e as pessoas disseram: “Ohhhh”.
“Pouca coisa mais que um gatinho”, disse o Doutor Nikidik. “Pensei em chamá-lo de Prrr, mas ele treme mais do que ronrona, então eu o chamei de Brrr.”
A criatura olhou para o Doutor Nikidik, e se afastou para a ponta oposta do carrinho.
“Agora a questão da manhã é esta”, disse o Doutor Nikidik. “Citando um pouco dos interesses algo equivocados do Doutor Dillamond, quem hum, hum. Quem pode me dizer se isso é um Animal ou um animal?”
Elphaba não esperou para ser chamada. Ela se levantou na sacada e lançou sua resposta numa voz clara e forte. “Doutor Nikidik, a pergunta que o senhor fez é quem pode dizer se esse é um Animal ou um animal. Me parece que a resposta é que a mãe do bicho é a única que pode responder. Onde está a mãe dele?”
Um burburinho de espanto. “Afundou no pântano das semânticas sintáticas, bem vejo”, disse o Doutor alegremente. Ele falou mais alto, como se houvesse percebido só agora que havia naquela sala uma sacada. “Bem observado, Senhorita. Deixe-me refazer a pergunta. Alguém aqui arriscaria emitir uma hipótese sobre a natureza deste espécime? E dar uma razão para a designação que fizer? Vemos diante de nós um animal numa idade tenra, muito antes que qualquer um desses seres bestiais possa dominar a linguagem, se a linguagem fizesse parte de sua estrutura. Antes da linguagem ― supondo que houvesse uma ― seria um Animal?”
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