Esses estranhos Homens deveriam ficar muito satisfeitos por serem julgados mais maldosos dó que realmente são



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Era a primeira vez que ele via o engraçado feijão verde saltador desde que retornara a Shiz. E lá estava ela, pontual, chegando ao café tal como fora combinado, num vestido cinza que mais lembrava o de um fantasma, com um pulôver tricotado que estava puído nas mangas e um guarda-chuva masculino, grande e negro e semelhante a uma lança quando fechado. Elphaba sentou-se com uma pose travessa desgraciosa e examinou o pergaminho. Ela o olhou com mais atenção que aquela que daria depois a Boq. Mas ela escutou a sua exegese, e achou-a frágil. “O que impede essa mulher do quadro de ser a Fada Rainha Lurline?”, ela perguntou.

“Bem, não há aparatos de glamour. Quero dizer, o nimbo dourado do cabelo. A elegância. As asas transparentes. A varinha de condão.”

“Esses sapatos cor de prata são bem berrantes.” Ela mastigou um bis-coito seco.

“Não me parece um retrato de determinação ou ― o que quero dizer ― gênese. Parece reativo ao invés de ativo. Essa figura está no mínimo confusa, não acha?”

“Você tem ficado demais na companhia de Crope e Tibbett, volte para a sua cevada”, ela disse, acertando o alvo. “Você está ficando vago e artístico. Mas eu darei isso ao Doutor Dillamond. Eu lhe juro, ele continua fazendo progressos. O negócio de lentes opostas abriu todo um novo mundo de arquitetura corpuscular. Ele me deixou olhar uma vez, mas eu não entendi nada muito além de ênfase e viés, cor e pulso. Está muito animado. O problema que encontro agora é fazê-lo parar ― ele está no limiar de fundar um ramo inteiramente novo do conhecimento, e as descobertas diárias provocam centenas de novas questões. Clínicas, teóricas, hipotéticas, empíricas, até ontológicas, suponho. Ele fica acordado até tarde nos laboratórios. Podemos ver suas luzes acesas quando ele puxa as cortinas à noite.”

“Bem, ele precisa de mais alguma coisa de nós? Tenho apenas mais dois dias de biblioteca, e então as aulas começam.”

“Eu não consigo chamá-lo à realidade. Eu acho que ele está apenas juntando aquilo que já possui.”

“E quanto a Galinda, então”, ele disse, “se a questão da espionagem para nós está encerrada por enquanto? Como ela está? Ela pergunta de mim?”

Elphaba permitiu-se olhar para Boq. “Não. Galinda não disse realmente nada sobre você. Para lhe dar esperanças que você não merece, devo acrescentar que ela mal fala qualquer coisa comigo, também. Ela vive num aborrecimento sombrio.”

“Quando a verei de novo?”

“Isso significa tanto assim para você?” Ela sorriu palidamente. “Boq, ela significa tanto assim para você?”

“Ela é o meu mundo”, ele respondeu.

“Seu mundo é muito pequeno se ficar resumido a ela.”

“Você não pode criticar o tamanho de um mundo. Não posso evitar e não posso deter e não posso negar o que sinto.”

“Devo dizer que você me parece bobo”, ela disse, secando as últimas gotas de chá morno de sua xícara. “Devo dizer que você ainda olhará para esse verão em retrospecto e se envergonhará. Ela pode ser adorável, Boq ― não, ela é adorável, concordo ―, mas você merece uma garota doze vezes melhor.” Ante a expressão chocada de Boq, ela ergueu as suas mãos. “Não é comigo! Eu não quero dizer eu! Por favor, esse olhar chocado não! Me poupe!”

Mas ele não tinha certeza se acreditava nela. Elphaba apanhou suas coisas e foi-se embora depressa, topando na escarradeira com estardalhaço, brandindo o seu grande guarda-chuva bem em cima do jornal de alguém. Ela não olhava para os lados enquanto avançava pela Praça da Ferrovia e foi quase ceifada por um velho Boi que guiava um incômodo triciclo.


7
Ao rever Elphaba e Galinda, tempos depois, todas as idéias românticas de Boq desapareceram. Aconteceu no pequeno parque triangular à saída de Crage Hall. Ela passava por ali casualmente, outra vez, e nessa ocasião com Avaric a reboque. Os portões haviam sido abertos e Ama Vimp se precipitara para fora, cara branca e nariz escorrendo, e uma leva de garotas se esparramou a seguir. Entre elas estavam Elphaba e Galinda e Shenshen e Pfannee e Milla. Livres de seus muros, as garotas se ajuntavam em círculos de bate-papo, ou ficavam sob as árvores, agitadas, ou beijavam-se umas às outras, e choravam e enxugavam-se mutuamente os olhos.

Boq e Avaric correram em direção às suas amigas. Elphaba tinha os ombros altos, como a canga ossuda de um gato, e seu rosto era o único que continuava seco. Ela ficava a boa distância de Galinda e as outras. Boq ansiava por tomar Galinda em seus braços, mas ela não olhou para ele mais que uma vez antes de mergulhar seu rosto na gola de peles de Milla.

“O que é? O que aconteceu?”, disse Avaric. “Senhorita Shenshen, Senhorita Pfannee?”

“É horrível demais”, elas gritaram, e Galinda balançou a cabeça, e encostou seu nariz confusamente junto à linha do ombro da blusa de Milla. “Os policiais estão lá, e um médico, mas parece que...”

“O quê?”, disse Boq, e virou-se para o lado de Elphaba. “Elfinha, que é isso, quê?”

“Eles descobriram”, ela disse. Seus olhos estavam esgazeados como os da velha porcelana de Shiz. “De algum modo, os bastardos descobriram.”

O portão se abriu novamente, com um rangido, e pétalas de flores de trepadeiras de início de outono, azuis e roxas, desceram dançando sobre o muro do colégio. Elas pendiam, e dançavam como borboletas, e caíam lentamente, enquanto três policiais vestindo capas e um médico trajando negro surgiam, carregando uma padiola. Um cobertor branco envolvia o paciente, mas o vento que sacudia as pétalas virou uma ponta do cobertor e puxou-a, fazendo uma dobra triangular. As garotas todas soltaram um berro e Ama Vimp correu para prender o cobertor, mas, à luz do sol, todos tinham notado e visto os ombros torcidos e a cabeça lançada para trás do Doutor Dillamond. Sua garganta estava ainda envolta em cordões endurecidos pelo sangue negro, nos lugares onde fora retalhada tão cuidadosamente como se ele tivesse passado por um matadouro.

Boq sentou-se, desgostoso e assustado, desejando não haver visto a morte, como se esta fosse uma horrível ferida desfrutável. Mas os policiais e o médico não tinham pressa, não havia razão para apressarem-se agora. Boq encostou-se ao muro, e Avaric, que nunca vira o Bode, apertou as mãos de Boq fortemente com uma mão, cobrindo seu rosto com a outra.

Dentro em pouco, Galinda e Elphaba afundaram-se ao lado dele, e houve choro, algum choro prolongado, antes que as palavras pudessem sair. Por fim, Galinda contou a história.

“Fomos para a cama na noite passada ― e Ama Clutch se levantou para fechar as cortinas. Como sempre faz. E ela olha para lá embaixo e diz sempre lá para si mesma: ‘Bem, as luzes estão acesas, o Doutor Bode está lá outra vez’. Então, ela observa um pouco mais, por todo o pátio, e diz: ‘Bem, não é engraçado?’, e eu não presto atenção, fico só olhando, mas Elphaba diz: ‘Que é que é engraçado, Ama Clutch?’. E Ama Clutch puxa a cortina com muita força e diz numa voz cômica: ‘Oh, nada, minhas patinhas. Só vou descer um pouco para examinar e ter certeza de que tudo anda bem. Enquanto vocês ficam aí na cama.’ Ela diz boa-noite e sai, e não sei se ela vai para lá ou o quê, mas nós duas caímos no sono e de manhã ela não está lá para servir o chá. Ela sempre serve o chá! Sempre!”

Galinda se derramou em lágrimas, afundando-se e erguendo-se dos joelhos e tentando rasgar seu traje de seda negra com as dragonas e os bilros brancos. Elphaba, de olho tão seco quanto uma pedra do deserto, continuou.

“Esperamos até depois do café-da-manhã, mas daí fomos procurar a Madame Morrible”, disse Elphaba, “e lhe dissemos que não sabíamos onde Ama Clutch estava. E Madame Morrible disse que Ama Clutch havia tido uma recaída durante a noite e se recuperava na enfermaria. Ela não ia deixar a gente entrar, em princípio, mas daí, quando o Doutor Dillamond não apareceu para nossa primeira aula do semestre, vagamos por ali e simples-mente demos um jeito de entrar. Ama Clutch estava num leito hospitalar. Seu rosto parecia cômico, como a última panqueca da fornada, do jeito que fica quando dá pra desandar. Perguntamos: ‘Ama Clutch, Ama Clutch, o que aconteceu com você?’. Ela não respondeu nada, embora seus olhos estivessem abertos. Ela não parecia ouvir-nos. Pensamos que ela estivesse dormindo ou sofrerá um choque, mas sua respiração era normal e sua cor era boa, embora seu rosto parecesse esquisito. Daí, quando estávamos já saindo, ela se virou e olhou para o lado da cama.

“Perto de uma garrafa de remédio e um copo de limonada havia um comprido prego enferrujado numa bandeja de prata. Ela estendeu uma mão trêmula até o prego e pegou-o e segurou-o na palma da mão, terna-mente, e conversou com ele. Ela disse alguma coisa como: ‘Oh, bem, então, eu sei que você não tinha a intenção de perfurar meu pé ano passado. Você apenas tentava atrair a minha atenção. É isso o que o mau comportamento geralmente é, só um punhadinho de amor extra que a gente reclama. Bem, não se preocupe, Prego, porque vou amá-lo na quantidade que você precisa. E, depois que eu tirar uma sonequinha, você poderá me contar como aconteceu de estar virado para cima lá na plataforma da estação ferroviária em Frottica, porque parece um grande avanço sobre os primeiros anos como um simples gancho de aviso de FECHADO PARA A TEMPO-RADA naquele hotel encardido de que você me falou’.”

Mas Boq não ouvia esse blábláblá. Ele não ia entrar na história de um Prego vivo enquanto um Bode morto estava sendo carpido por histéricos membros da faculdade. Boq não conseguiu ouvir os sons das orações pelo repouso da alma do Animal. Ele não conseguiu ver a partida do cadáver, quando o levaram embora em silêncio. Pois ficara claro, com um vislumbre do rosto impassível do Bode, que aquilo que dava ao doutor uma aparência animada, fosse o que fosse, já havia desaparecido.



O CÍRCULO INFLUENTE

1

Não havia dúvida na cabeça de ninguém que vira o cadáver que a palavra, a palavra apropriada para aquilo era assassinato, O modo com que o pêlo acima do pescoço tinha se arqueado, aglutinando-se como o pincel de pintura que um pedreiro não tivesse limpado; o cru e âmbar oco dos olhos. A história oficial era que o doutor havia quebrado uma lente de aumento e tropeçado nela, cortando uma artéria ao fazê-lo ― mas ninguém acreditava nisso.

A única pessoa em que poderiam pensar para saber alguma coisa, Ama Clutch, só fazia sorrir quando iam visitá-la, com punhados de belas folhas amareladas ou um prato das mais frescas uvas de Pertha. Ela devorava as uvas e punha-se a conversar com as folhas. Era uma enfermidade que ninguém nunca havia conhecido.

Glinda ― pois, como uma espécie de desculpa atrasada por sua aspereza inicial com o martirizado Bode, ela agora se referia a si mesma do modo com que ele uma vez a chamara ― Glinda parecia haver emudecido diante da realidade de Ama Clutch. Ela não a visitava, nem discutia a pobre condição da mulher, e, assim, era Elphaba que ia sorrateiramente vê-la uma ou duas vezes ao dia. Boq supunha que Ama Clutch padecia de uma moléstia passageira. Mas, três semanas depois, Madame Morrible começou a ficar preocupada com o fato de Elphaba e Glinda ― ainda colegas de quarto ― não terem acompanhante. Ela sugeriu o dormitório coletivo para ambas. Glinda, que não queria ver mais Madame Morrible em particular, balançou a cabeça e aceitou o rebaixamento. Foi Elphaba quem apareceu com uma solução, mais para salvar algum fiapo de dignidade de Galinda.

Foi assim que, dez dias depois, Boq descobriu-se, no pátio do Galo e Abóboras, a esperar o coche do meio de semana que chegaria da Cidade Esmeralda. Madame Morrible não permitira que Elphaba e Galinda fossem com ele ― portanto, tinha que descobrir por si mesmo quais dos sete passageiros que apeariam eram a Babá e Nessarose. As deformidades da irmã de Elphaba eram bem disfarçadas, Elphaba lhe dissera; Nessarose podia até descer de uma carruagem com graça, desde que o degrau fosse seguro e o chão liso.

Ele encontrou-as e disse alô. A Babá parecia mais compota de ameixa que mulher; vermelha e flácida, sua velha pele parecia pronta a se rachar nas dobras dos cantos da boca, nos rebites carnosos à beira dos olhos. Mais que uma vintena de anos nas terras ruins de Quadling a tornaram letárgica, descuidada e saturada de ressentimento. Na sua idade, ela já devia ter sido recolhida a algum cálido borralho. “É bom ver um pequeno munchkinês”, ela murmurou a Boq. “É como nos velhos tempos.” Então, ela se virou e disse para as sombras: “Venha, minha boneca”.

Se não tivesse sido avisado, Boq não tomaria Nessarose por irmã de Elphaba. Ela não era verde de maneira alguma, ou mesmo de um branco azulado como alguma boa pessoa atacada de má circulação. Nessarose desceu da carruagem elegantemente, cautelosamente, estranhamente, ajustando seu calcanhar e seus dedos no degrau de ferro. Caminhando daquele modo esquisito, ela chamava a atenção para seus pés, o que afastava os olhares do torso, ao menos a princípio.

Os pés aterrissaram no solo, ali postos com uma intenção furiosa de obter equilíbrio, e Nessarose se ergueu à sua frente. Ela era tal como Elphaba dissera: magnífica, rosada, esguia como um ramo de trigo, e sem braços. O xale acadêmico sobre seus ombros estava habilidosamente dobrado para amenizar o choque.

“Alô, bom senhor”, ela disse, balançando a cabeça ligeiramente. “As valises estão lá em cima. Pode tirá-las para nós?” Sua voz era tão suave e untuosa quanto a de Elphaba cheia de arestas. A Babá empurrou Nessarose delicadamente em direção ao coche que Boq conseguira. Ele via agora que Nessarose não se movimentava bem sem ser amparada por uma mão firme.

“Então, agora a Babá aqui tem de cuidar das garotas em sua vida escolar”, disse a Babá para Boq enquanto avançavam. “Que remédio, com a santa mãe delas em seu túmulo encharcado nesses anos todos, e o pai com o juízo perdido. Bem, a família sempre foi brilhante, e o brilho, como você sabe, decai brilhantemente. A loucura é o modo mais brilhante de se decair. O mais idoso, o Eminente Thropp, está vivo ainda, e sensível como uma velha lâmina de charrua. Sobreviveu à sua filha e à sua neta. Elphaba é a Terceira Descendente do Thropp. Ela será a Eminência um dia. Como um munchkinês, você sabe dessas coisas.”

“Bá, não faça fuxico, isso me magoa”, disse Nessarose.

“Oh, minha lindinha, não fique choramingando. Este Boq é um velho amigo, ou tão bom quanto um”, disse a Babá. “Lá pelos pântanos do inferno de Quadling, meu amigo, perdemos a arte da conversação. Nós coaxamos em coro com o que restou do povo-rã.”

“Vou ter uma dor de cabeça de tão envergonhada”, disse Nessarose, charmosamente.

“Mas eu conheci a Elfinha quando ela era pequenininha”, disse Boq. “Eu sou de Margens Agitadas de Pedras do Caminho. Devo ter conhecido você também.”

“No começo, eu preferia residir em Selos de Colwen”, disse a Babá. “Eu era um auxílio fundamental para a Senhora Partra, a Segunda Descendente do Thropp. Mas, de vez em quando, visitava Margens Agitadas. Assim, devo tê-lo conhecido quando você era ainda menino de andar sem calças.”

“Como vai?”, disse Nessarose.

“O nome é Boq”, disse ele.

“Esta é Nessarose”, disse a Babá, como se fosse muito doloroso para a jovem apresentar-se por si mesma. “Ela estava por vir para Shiz no próximo ano, mas soubemos que há um problema com uma orientadora gilli-kinesa que tombou em serviço. Então, a Babá aqui é chamada para resolver, e pode ela deixar sua queridinha vir sozinha? Você vê o motivo.”

“Um triste mistério, que esperamos esclarecer”, disse Boq.

Em Crage Hall, Boq testemunhou o reencontro das irmãs, que foi caloroso e gratificante. Madame Morrible pôs seu autômato Grommetik em ação para servir chá e biscoitos para as descendentes do Thropp, e para a Babá, Boq e Glinda. Boq, que havia começado a se preocupar com a fuga de Glinda para o silêncio, ficou aliviado ao vê-la lançar um agudo e experiente olhar sobre o elegante vestido de Nessarose. Como podia ser, ele supunha que Glinda pensasse, que duas irmãs fossem deformadas e se vestissem de maneiras tão diferentes? Elphaba usava a mais humilde de suas roupas escuras; hoje, vestia um roxo profundo que era quase negro. Nessarose, equilibrada num sofá perto da Babá, que a ajudava erguendo xícaras de chá e quebrando pedaços amanteigados de rosquinhas, vestia sedas verdes, da cor do musgo, da esmeralda, e rosas verdes e amarelas. A verde Elphaba, sentada ao seu lado e servindo-lhe de apoio quando ela jogava sua cabeça para trás para engolir seu chá, parecia um acessório de moda.

“A solução toda é altamente fora do comum”, Madame Morrible dizia, “mas, ai, nós não temos quartos em número ilimitado para resolver cada caso em particular.

Deixaremos a Senhorita Elphaba e a Senhorita Galinda ― é Glinda agora, não, querida? Que original ― deixaremos essas duas velhas companheiras tal como estão, e vamos colocá-la, Senhorita Nessarose, com sua Babá, no quarto ao lado, aquele que a pobre Ama Clutch ocupava. É pequeno, mas vocês devem considerá-lo aconchegante.”

“Mas, e quando Ama Clutch se recuperar?”, disse Glinda.

“Oh, mas, minha querida”, disse Madame Morrible, “que confiança os jovens possuem! Comovente, mesmo.” Ela prosseguiu, numa voz mais afiada. “Você já tinha me falado das recorrências de prazo indefinido desse tipo raro de condição patológica. Eu posso apenas supor que a coisa degenerou numa espécie de recaída permanente.” Ela mastigava um biscoito a seu modo lento, como um peixe, suas bochechas se abrindo e fechando como as abas de couro de um fole. “Claro, podemos todos ter esperanças. Mas temo que não mais que isso.”

“E podemos rezar”, Nessarose disse.

“Oh, bem, sim, isso”, disse a Diretora. “Isso não precisa ser mencionado entre gente bem nascida, Senhorita Nessarose.”

Boq notou que Nessarose e Elphaba coraram. Glinda pediu licença e se retirou. A habitual agonia de pânico que Boq sentia quando ela partia foi amenizada por saber que a veria novamente nas aulas de ciências da vida na semana seguinte, pois, com as novas proibições quanto a contratação de Animais, os colégios tinham decidido dar palestras para todos os estudantes de todos os estabelecimentos de uma vez só. Boq veria Glinda na primeira palestra co-educacional a ser ministrada em Shiz. Ele mal podia esperar.

Apesar disso, ela havia mudado. Ela certamente havia mudado.


2
Glinda estava mudada. Ela própria o sabia. Ela chegara em Shiz como uma coisa fútil, bobinha e agora se descobria num antro de víboras. Talvez fosse por falha sua. Ela inventara uma doença inexistente para Ama Clutch, e Ama Clutch fora acometida realmente por ela. Seria isso prova de uma habilidade inerente para a feitiçaria? Glinda optara por se especializar em feitiçaria nesse ano, e aceitara como punição que Madame Morrible não houvesse mudado a sua companheira de quarto, como prometera. Glinda não se importava mais. Ao lado da morte do Doutor Dillamond, os vários outros assuntos pareciam insignificantes.

Mas ela também não confiava em Madame Morrible. Glinda não contara a ninguém, além da diretora, aquela estúpida e extravagante mentira. Assim, ela não admitiria mais que Madame Morrible detivesse uma posição de mando em sua vida. E Glinda ainda não tinha coragem de contar seu crime não-intencional a ninguém. Enquanto ela padecia, Boq, a irritante mosquinha, ficava zanzando ao redor dela em busca de atenção. Ela lamentava ter deixado que ele a beijasse. Que erro! Bem, tudo isso havia ficado lá para trás, agora, eram apenas tremores que haviam precedido o desastre social. Ela agora via as Senhoritas Pfannee etc. como realmente eram ― superficiais, egoístas, vaidosas ― e não teria mais relações com elas.

Assim, Elphaba, que não era mais um risco social, tinha todo o potencial para tornar-se uma amiga verdadeira. Se ficar sobrecarregada com essa boneca quebrada, que era a sua irmã mais nova, não atrapalharia demais. Fora apenas com ferroadas que Glinda conseguira arrancar de Elphaba informações sobre a sua irmã, a fim de que pudesse ficar preparada para a sua chegada e a ampliação de seu círculo social.

“Ela nasceu em Solos de Colwen, quando eu tinha perto de três anos”, Elphaba lhe contara. “Minha família havia retornado a Solos de Colwen para uma breve estada. Era numa daquelas épocas de seca intensa. Papai nos disse, tempos mais tarde, depois que mamãe morrera, que o nascimento de Nessarose coincidira com um breve reaparecimento de água potável nos arredores. Fez-se danças pagãs e houve um sacrifício humano.”

Glinda fixara os olhos em Elphaba, que parecia a um só tempo precipitada e sem vontade de falar.

“Um amigo deles, um soprador de vidro de Quadling. A multidão, in-citada por alguns agitadores do populacho adeptos da fé no prazer e num relógio profético, caiu sobre ele e o matou. Um homem chamado Coração de Tartaruga.” Elphaba pressionara a palma de suas mãos sobre os coturnos de seus sapatos de segunda mão de um preto retinto, mantendo os olhos experientes no chão. “Eu acho que foi por isso que os meus pais se tornaram missionários para o povo do Estado de Quadling, não retornando nunca mais a Solos de Colwen ou à Terra de Munchkin.”

“Mas a sua mãe morreu quando a criança nasceu?”, disse Glinda. “Como ela pôde ter sido uma missionária?”

“Ela sobreviveu por cinco anos ainda”, disse Elphaba, olhando para as dobras de seu vestido, como se a história fosse um embaraço. “Ela morreu quando nosso irmão mais novo nasceu. Meu pai o batizou de Shell, por causa de Coração de Tartaruga, eu acho. Assim, Shell e Nessarose e eu vivemos como crianças ciganas, mudando de povoado a povoado de Quadling com a Babá e nosso pai, Frex. Ele pregava, e a Babá nos ensinava e criava e mantinha a casa tal como sempre fora, o que não dava muito trabalho. Enquanto isso, os homens do Mágico começaram a drenar as terras ruins para chegar aos depósitos de rubis. Isso nunca funcionou, é claro. Eles deram para perseguir os quadlings e matá-los, fechando-os em campos de concentração para se protegerem e matá-los de inanição. Eles devastaram as terras ruins, pilharam os rubis e partiram. Meu pai ficou meio louco com eles. Nunca houve por lá rubis o bastante para justificar o esforço; ainda não temos nenhum sistema de canais para transportar aquela lendária água do Vinkus pela região toda até a Terra de Munchkin. Depois da seca, depois de alguns adiamentos promissores, a coisa continua sem solução. Os Animais são chamados de volta para as terras de seus ancestrais, uma estratégia para dar aos fazendeiros algum senso de controle sobre alguma coisa. É uma sistemática marginalização de populações inteiras, Glinda, e é isso o que significa o reinado do Mágico.”

“Nós estamos falando sobre a sua infância”, disse Glinda.

“Bem, é isso, e tudo isso é parte dela. Você não pode separar sua vida particular da política”, Elphaba disse. “Você quer saber o que nós comíamos? Como brincávamos?”

“Eu quero saber como é Nessarose, como é Shell”, disse Glinda.

“Nessarose é uma semi-inválida cheia de força de vontade”, disse Elphaba. “Ela é muito inteligente, e pensa que é santa. Ela herdou o gosto de meu pai por religião. Ela é boa para tomar conta de outras pessoas porque nunca aprendeu a tomar conta de si mesma. Bem, ela nem pode fazê-lo. Meu pai me incumbiu de cuidar dela na maior parte de minha infância. O que ela fará quando a Babá morrer, não sei. Suponho que terei de tomar conta dela novamente.”

“Oh, que perspectiva de vida medonha”, disse Glinda, antes que pudesse se controlar.

Mas Elphaba apenas balançou a cabeça, soturna. “Não posso seguir com esta conversa”, ela disse.

“Quanto a Shell”, continuou Glinda, imaginando em que ferida recente ela podia ter pisado.

“Macho e branco e o resto”, ela disse. “Ele tem agora perto de uns dez anos, eu imagino. Ele ficará em casa e tomará conta de nosso pai. Ele é um menino, do jeito que os meninos são. Um pouco besta, talvez, mas ele não teve as vantagens que tivemos.”


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