rta viu o que esperava: um soldado já bêbado entre foliões e mulheres. Tornou a passar. Se atravessasse a rua mais adiante e entrasse na sombra da sua varanda jamais seria visto pelo porrista aos berros junto do balcão do botequim. Ainda faltavam bem uns vinte minutos para as onze mas a ocasião não podia ser melhor. Ele entrava, apanhava as cartas e esperava Manuel nos fundos. Nando atravessou manso a rua sempre de olho no soldado dentro do café e se diluiu fácil na boca de sombra da varanda. Virou a chave na fechadura e a porta de madeira leve resistiu um pouco, o que o fez parar, coração apressado. Mas eram as cartas, os papéis debaixo da porta. Nando esgueirou sua magreza pela fresta mínima e fechou a porta com as costas. Tudo em silêncio na casa e pulsando na sua mão como carne macia dois envelopes de correio aéreo, dois, macios. Nando se aproximou da janela do lado. A bandeira de vidro deixava passar um quadrado de luz do lampião da rua. Ergueu os envelopes à luz coada pelo vidro sujo e viu as bordas de pequenos quadrados azul-escuros e vermelhos. Feito uma barra de túnica bizantina enquadrando seu nome e endereço na letra de Francisca. No alto à direita o selo refulgia como uma ícone. Beijou os envelopes e enfiou-os no bolso, um em cada bolso, obedecendo quase sem saber à divisão de Francisca. Por que a divisão? Talvez a ausência ainda recente do olho mal assimilada pela imaginação duplicando assim a imagem? Duas. Francisca de mar e Francisca de terra fugindo à sua absorção? Nando fechou o olho para ver se assim colocava uma sobre outra as Franciscas dissociadas e sentiu de repente a outra presença. Viu o soldado que lhe apontava o revólver e ria muito. - Feito rato atrás do queijo! O soldado se adiantou. Revistou Nando. Tirou o revólver que Manuel Tropeiro tinha dado e guardou no bolso do 594 dólmã. Depois encontrou o volume no gibão de Nando e puxou para fora o lança-perfume, que atirou num canto. - A gente estava devendo você ao coronel, e você pensando que ia brincar o carnaval!. Ele cobrava você todos os dias do Xiquexique. O Xique está preso. "Tu deixou o diabo fugir, Satanás!" É como o coronel falava para o Xique na noite da Marcha. O soldado parou, fitando Nando: -Tu não está me conhecendo não, seu filho duma égua? Nando fez que não com a cabeça. O soldado deu com a coronha do revólver na virilha de Nando. -A gente salva os culhões dum merda desses e nem um muito obrigado a gente ganha! Também tu estava dormindo de porre e de porrada. Xiquexique segurou tuas bolas e ia en trando de navalha, fiu! De outra vez eu deixo. Eu cortava teus tomates agora mesmo pra pagar essa tocaia que não tinha mais fim. Mas o coronel é capaz de azedar se tu chega com as calças vazias. Nando ouviu no quintal, fora, o baque de alguém saltando em terra. Manuel! Mas ainda não são bem onze horas. Ah, Manuel! Em vez de fugir! Djamil não ia perdoar nunca. Entrou outro soldado pela cozinha. - Cabo Almeirim, bico calado! - O que é que há, Quirino? disse Almeirim. - G rato já entrou na ratoeira. Ou tu está cego? Acabou esta merda de jogar carta a vida inteira! -Acho que tem mais rato a caminho, Seu Cabo disse Quirino. - Do fundo do coqueiral. Vem vindo. Almeirim arregalou os olhos. - Soldado Quirino! Se a gente bota no surrão o tal de Mané Tropeiro também, é promoção na certa. - Ele estava com todo o jeito de vir pra cá, o cabra. Deve ser o tal dos burros. E Almeirim, estático: - Soldado Quirino, a gente acaba Marechal! E para Nando: 596 Tu fica na minha frente. Se mexer um puto dum passo leva chumbo. Quando passaram à cozinha na casa às escuras Nando viu o cantinho em que ardia uma pequena lamparina de mecha que mal alumiava o caixote onde se espalhavam as cartas de um baralho. Almeirim cuspiu para o lado e murmurou: - Uuuuu! Até me dá nojo olhar estas cartas. Hoje tomo um litro da azul e fecho um baile na capoeira. Depois ficaram em silêncio enquanto Nando pedia numa prece incoerente que Manuel tivesse visto alguma coisa, que não entrasse na estúpida ratoeira do seu capricho, que não en tregasse sua liberdade de bicho belo e denso entrando na pocilga de Quirinos e Almeirins. O cabo começou á se impacientar, se mexer, a travar e destravar o revólver. - Porra, Seu Quirino duma figa! Tu viu é lobisomem. Vamos levar o cabra aqui para o Coronel Ibiratinga. Almeirim se aproximou da porta da cozinha. Soldado Quirino falou: - Eu juro, Seu Cabo Almeirim, que... Xiiiiu... Nando também tinha ouvido uma pisada leve lá fora nas folhas do chão, do outro lado do muro, um pisar levezinho de onça. Deu a primeira badalada das onze e com horrenda pon tualidade a cara de Manuel apareceu em cima do muro. Depois a perna de Manuel cavalgou o muro rente e Manuel deitado no lombo do muro foi escorregando para dentro do quintal, flexível e silencioso, e Nando viu o ríctus na cara de Almeirim, o revólver de Quirino apontado para Manuel. Nando tinha ficado um pouco para o lado. À sua frente Quirino e à frente de Quirino Almeirim. Nando tirou da costura do ,gibão o punhal de Campina Grande. Na metade da badalada das onze Manuel Tropeiro dava com os pés no chão do lado de cá do muro e Almeirim berrava para ele: - Fica parado aí que tu está preso! Manuel se levantou ao pé do muro vencido, inútil, recortado de encontro à parede como qualquer homem no ponto de ser fuzilado. Foi quando Nando enterrou até os cabos o pu 597 dólmã. Depois en,9' b c xou para fora e q-AgF' saindo q,, - Z do XiF » - Q Sat n O ó a. c b o - Pelo jeito nao aula... daqui. Deixaram o senhor entrar feito quem entra numa goela de bicho e fecharam a queixada, não foi mesmo? - Tal e qual disse Nando. - Tinha um soldado no café, bêbado. Pensei que era o vigia. Por isso entrei aqui antes do combinado com você. Manuel falava baixo mas falava muito. Quer talvez me distrair? pensou Nando. - Se a gente tivesse entrado junto, na hora, estava morto ou preso, Seu Nando. A sorte da gente é que o seu capricho tinha a força que faz a gente insensata e o senhor não esperou pelo badalo do relógio. Mas é quase certo que o soldado é do grupo. Ele estava lá fora para tirar atenção dos do lado de dentro, pode ser. Por via dessas suspeitas a gente fica quieto um instante para ver se o do café suspeitou alguma coisa. Mas tudo correu como tinha que ser. Esta é a verdade. Manuel guardou a peixeira e Nando reparou que de soslaio, como quem não quer nada, o Tropeiro olhava para ele. Nando enfiou na bainha do gibão o punhal molhado. - Boa idéia essa da faquinha de Campina Grande enfiada na costura, Manuel. Só agora Manuel falou com sua voz mansa de costume. Aliviado. - Pois é, Seu Nando. Tiro aqui era um deus-nos-acuda, um fim da gente. 598 stas do soldado Quirino que costas do Cabo Almeirim que ado e tentou disparar o revólando saltava sobre Almeirim e o lustroso e ágil deu um bote ixeira em riste na mão feito
-i varado quase de couro a coudo em Quirino. Armas na mão I" silêncio, retendo a respiração. -ou no canto a lamparina, o bara Nando primeiro apanhou seu lança-perfume no chão da cozinha. Depois se abaixou perto dos soldados mortos, abraçados no chão. Procurou o revólver que o Cabo Almeirim tinha botado no bolso da farda. - E ele já tinha me desarmado, Manuel. Quando apanhou o revólver Nando viu bem de perto a cara morta do Cabo Almeirim, do Soldado Quirino. Não sentiu remorso nenhum. - Vamos embora, Manuel. Acho que está tudo em paz. -Vamos, Seu Nando. Saíram juntos, pularam o muro, embrenharam-se pelo coqueiral, Nando atrás de Manuel Tropeiro, os dois entre os troncos e debaixo das palmas tocadas de luar. E naquelas tre vas as duas imagens de Francisca se acercaram uma da outra, coincidiram, de novo uma só. Não mais dentro dele porque a noz dura e voraz que se nutria de Francisca era agora uma passagem livre e diáfana. Desatado o nó a treva fluía em negro mel pelas águas barrentas. Nando abriu a jaqueta de couro e a camisa e tocou o esterno com a mão para ver se não estava transparente e oco bem no meio do corpo. Os estribos das montarias luziram baços dentro da noite. - Os cavalos disse Manuel. -Acho que só por causa dos dois falecidos a gente nem precisa alterar o que tinha resolvido fazer. De primeiro eu estava achando que a gente de via talvez abandonar as montarias e tomar um trem. Mas não vejo a precisão. Ninguém dá o alarma tão cedo e no cabo de uma hora de cavalo a gente topa com o Primo Leôncio que tem tudo preparado para levar a gente em caminhos do sertão que nem bode conhece direito mas que o Primo Leôncio anda neles como em corredor de casa de fazenda dele. Seu Nando não acha que num caso assim prudência demais nem é virtude que assente bem? Nando já a cavalo mal ouvia Manuel Tropeiro. Sentia que vinha vindo a grande visão. Sua deseducação estava completa. O ar da noite era um escuro éter. A sela do cavalo um alto pico. Da sela Nando abrangia a Mata, o Agreste e sentia na cara o 599 sopro do fim da terra saindo das furnas de rocha quente. E viu: aquele mundo todo com sua cana, suas gentes e seus gados era Francisca molhando os pés na praia e de cabelos ardendo no Sertão. - Manuel disse Nando eu vou para ficar. -Assim tenho pedido a Deus que seja a sua resolução. Já em plena estrada, os cavalos marchadores deixando muito chão para trás, Manuel voltou a falar: - Tinha carta de Dona Francisca? - Tinha, Manuel. Mas não é mais preciso. Sabe o que é que eu descobri? - Diga, Seu Nando. - Que Francisca é apenas o centro de Francisca. Nando ia dizer mais alguma coisa mas se calou. Se Mantel não tinha entendido ia em breve entender por si mesmo. Andavam agora num meio galope, Nando relembrando coisas da vida inteira mas sem sentir nenhuma ligação com os pensamentos e sentimentos que tivera: como homem feito que encontra um dia numa gaveta cadernos de colégio. Estava descontínuo, leve, vivendo de minuto a minuto. Só tinha como sensação de continuidade o fio de ouro de Francisca, assim mesmo porque era um fio fiado com astúcia na trama do mundo a vir. Não vinha propriamente do passado. Bateu alegre no peito com a mão direita, sustentando as rédeas na esquerda. - Boa essa roupa, Manuel. Manuel Tropeiro falou com sua ironia sem malícia: - Com seu perdão, Seu Nando, a roupa preta não fez o senhor padre. Esse gibão de couro não vai fazer o senhor cangaceiro não. Nando riu: - Não se assuste, Manuel. Eu agora viro qualquer coisa. - Eu vou perfilhar o nome de Adolfo para me esconder nele, Seu Nando. Não tem um som de gente forte? Adolfo? -Você é que é forte e que vai fazer a força do nome. De qualquer nome. 600 - Sempre ouvi meu pai falar num tal de Adolfo MeiaNoite, cangaceiro importante disse Manuel. - E o seu nome qual vai ser? Já pensou? - Já disse Nando. - Meu nome vai ser Levindo. E Nando viu o fio fagulhar ligeiro entre as patas do cavalo como uma serpente de ouro em relva escura. Rio - Petrópolis - Fazenda de Santa Luísa Março de 1965-Setembro de 1966 ESTA OBRA FOI IMPRESSA NA EXIMPRE IND. E ARTES GRÁFICAS LTDA. PARA A EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. EM JUNHO DE MIL NOVECENTOS E NOVENTA E SETE. Não encontrando este livro nas livrarias, pedir pelo Reembolso Postal à EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. Rua Bambina, 25 - Botafogo - CEP 22251-050 - Rio de Janeiro movimento, cada trecho cor-n a sua dinâmica própria. O romance abre-se num grande andante e, a partir da descoberta da mulìher por Nando, a aceleração se faz contínua, GO-N( $ - obedecida a modulação necessária. O " ... Mas essas ondas tumultu,antes de poesia substantiva, de tenso lirismo arrancado à raiz das coisas, não Autor ...... Laa.i a sufocam o mundo de violências, Título.. , u a r u insatisfações, frustrações, -' r3 • Q." perseguições, revoltas, coragem e --------------------- e q covardias que se comprimenn em N.° Chamado Quarup, painel do troglodis.¥no nacional. Sua estória é a história N.° Registro presente do Brasil. "