História do brasil moderno ernesto geisel



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O senhor não chegou a cogitar de uma profissão civil?

Não. Minha mãe, como já disse, queria que eu me dedicasse a uma profissão civil. Uma vez fui visitar minha avó e ela disse: "Por que você vai ser soldado?" Minha avó vinha da Alemanha, era con- tra o serviço militar. Dos quatro irmãos, três - Henrique, Orlando e eu - seguimos a carreira militar. Bernardo, depois que fez os pre- paratórios, em Porto Alegre, fez um vestibular e entrou na Escola de Química, uma escola nova que se criara na Universidade de Por- to Alegre. Na época em que estudava, ele trabalhava como funcioná- rio dos Correios, o que era muito comum. Trabalhava no Correio à noite, das sete até meia-noite, uma hora da manhã, e aos domingos trabalhava de manhâ. Ganhava o quê? Duzentos, trezentos mil-réis por mês. Com isso pagava suas despesas de aluguel da pensão e de comida. Afinal formou-se em engenharia química e mais tarde aper- feiçoou-se na Alemanha. Viveu em Porto Alegre como químico, traba- lhou muito nos problemas do carvão, inclusive aqui no Rio, no Pla- no do Carvão Nacional, no tempo do Getúlio.9 Foi professor durante

9 O Plano do Carvão Nacional foi aprovado pela Lei n" 1.886, de 11 de junho de 1953. #



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muitos anos, era professor emérito, dirigiu a Faculdade de Filosofia de Porto Alegre. Era o paisano da família.

Quais eram as matérias de que o senhor gostava mais nos seus tempos de colégio?

Gostava mais de matemática. Era muito bom em aritmética, álgebra e geometria. A gente terminava o terceiro ano do Colégio Mi- litar fazendo os preparatórios de aritmética e de geografia. No quar- to ano, preparatórios de álgebra, história universal, português e francês. No quinto ano eram física e geometria. No sexto ano, o últi- mo, química, história natural e, vejam bem, de novo geografia e his- tória do Brasil. Fazia-se, no último ano, um curso de agrimensor, que dava título e direito de exercer a profissão. Eu era bom aluno, estudava bem. Quando fui para a Escola Militar também estudei bem. Uma das vantagens que eu tinha, tanto no Colégio quanto na Escola Militar - parece que estou me gabando -, é que eu era professor de colegas. Dava aulas de graça. Quando um companhei- ro estava em dificuldades, eu ensinava. Eles tinham o hábito de to- mar notas das aulas em cadernos, ou então tinham livros. Eu não tinha livros nem cadernos, primeiro, porque não gostava, segundo, porque o dinheiro era escasso. Minha mesada no Colégio Militar era de três mil-réis por semana, que meu pai me dava. Era uma ni- nharia. Eu prestava muita atenção às aulas e ensinava. Vinham a mim, dizendo: "Vem cá, não consigo resolver esse problema, como é?" Eu dizia: "Deixa ver as tuas notas". Via e ensinava como era. Depois das aulas ia à biblioteca, para tirar as minhas dúvidas. O difícil era memorizar, guardar aquilo, mas ensinando, eu ficava com tudo muito bem sedimentado. Aprendi muito mais ensinando do que estudando.

2- Uma geração de cadetes

revolucionários

Como foi a sua vinda para a Escola Militar em 1925?

Era a minha primeira viagem ao Rio. Meus irmãos Henrique e Orlando, que iam cursar o último ano da Escola, viajariam comigo. Acontece que Henrique tinha uma namorada, talvez já noiva, que es- tava com a família na praia de Cassino, na cidade do Rio Grande. Como havia tempo disponível, ele resolveu interromper a viagem em Rio Grande e passar alguns dias em companhia da namorada. Eu e Orlando lhe demos quase todo o dinheiro que nosso pai nos havia dado para que pudesse namorar à vontade. No navio viajavam mui- tos alunos militares e também civis. A distração a bordo era a joga- tina: pôquer e bacará, principalmente. Tivemos, durante toda a via- gem, muita sorte, e ganhamos quase sempre. Nos portos de escala - Florianópolis, Paranaguá e Santos - desembarcávamos e íamos com alguns amigos almoçar lautamente, depois de passear. Quando chegamos ao Rio, estávamos com bastante dinheiro e resolvemos fi- car alguns dias na cidade, numa pensão. Depois que começassem as aulas era obrigatório morar na Escola, mas estávamos ainda no período de férias, faltavam uns seis ou sete dias para a apresenta- ção. Eu aí passeei um bocado pelo Rio de Janeiro com o Orlando, fui a cinemas, fui para cá, para lá... Foi quando comi mamão pela primeira vez! Era minha primeira viagem à capital, e gostei muito. Chegamos ao Rio de madrugada, e de longe a gente via um grande clarão da iluminação da cidade. O Rio naquele tempo era muito dife- #



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rente do que é hoje. Copacabana não era nada, estava começando. Depois conheci Copacabana toda de casas, chalés.

Fiz o curso da Escola Militar em 1925, 26 e 27. Vejam o que era naquele tempo a falta de assistência e de preocupação dos che- fes com os problemas dos seus subordinados. Havia um prêmio ins- tituído pelo comandante do Lloyd Brasileiro, que era um oficial de Marinha. O prêmio era concedido aos primeiros alunos do primeiro e do segundo anos, e consistia numa passagem de navio, ida e vol- ta, a Hamburgo, Alemanha. Ganhei o prêmio em 1925 e 1926. Não fui nenhuma das vezes porque não tinha dinheiro nem roupa ade- quada para viajar ao exterior. A direção da Escola limitou-se a me dar conhecimento do prêmio e não procurou saber se eu necessita- va de auxílio para a viagem. Não havia o mínimo interesse em pres- tar qualquer apoio. Fui ao diretor do Lloyd e solicitei a troca da pas- sagem da Europa por outra para Porto Alegre. Assim, pude gozar as férias em casa. O mesmo aconteceu no segundo ano e, mais uma vez, fui gozar minhas férias no Rio Grande do Sul.

Minha família nunca veio ao Rio me visitar. Meu pai me escre- via sua carta mensal e fazia questão de resposta. Suas cartas não tratavam de assuntos políticos, mas de problemas familiares, de saú- de, estudos. Eram mais assuntos da vida íntima. Ele nos dava mui- ta assistência. É interessante notar que à medida que crescíamos, ele ia reduzindo sua severidade e nos tratando com mais liberdade. No fim, quando estávamos formados e encarreirados, era um gran- de amigo que tínhamos, com o qual conversávamos tudo, com abso- luta liberdade, de igual para igual. Acho que o sistema dele foi um sistema interessante. Rigoroso no começo, e ao longo dos anos libe- rando. Lembro-me que no quarto ano do Colégio Militar eu estuda- va com um companheiro que estava mal nos exames, para ajudá-lo. Ele fumava, e eu então aprendi a fumar. Foi uma estupidez, tinha 15 anos. Nas férias cheguei em casa, minha mãe viu logo - pelo de- do um pouco sujo e talvez pelo hálito -, disse a meu pai, e ele me chamou e perguntou: "Você fuma, não fuma?" Respondi: "Fumo, sim senhor". Ele: "Não devia fumar, por isso e isso... Mas já que você fu- ma, vai fumar na minha frente, não vai fumar escondido não, por- que aí todo mundo vai pensar que você está me enganando". Trou- xe o cigarro para eu fumar. Achava que eu não devia fumar porque estava com o organismo em crescimento e o fumo seria prejudicial, mas não proibiu. Ele também fumava. #



O senhor já havia sido o primeiro colocado no Colégio e depois também foi na Escola Militar. Manteve o mesmo sistema de estu- dar ensinando?

Sim.  não tinha família aqui no Rio. A Escola ficava em Realengo, e eu era do grupo que nós chamávamos "laranjeiras". O "laranjeira", geralmente nordestino, era o que ficava sábado e do- mingo na Escola, não saía. Eu tinha muitos convites de companhei- ros que moravam em Copacabana, Botafogo, Ipanema, mas não aceitava, porque não tinha roupa adequada. Achava que para mim seria um vexame chegar lá mal vestido, e então ficava na Escola. Os companheiros que estavam atrasados, que tinham maus resulta- dos nas sabatinas mensais, nas provas, às vezes ficavam também, e aí eu ensinava.

Na Escola Militar eu estudava por necessidade e por gosto, mas também estudava, confesso, porque dava alegria a meu pai. Sa- bia que ele ficava vaidoso com isso, e correspondia ao sacrifício que tinha feito e estava fazendo por nós. Minha irmã, que era professo- ra, que se formou antes, foi lecionar em Bento Gonçalves e, com o dinheirinho que ganhava, ajudava. Ficou solteira, não casou. Mora comigo há 20 anos. Somos os remanescentes. Ela a mais velha, e eu o mais moço. Está com 94 anos de idade.10 Não participa muito da vida da família por causa da surdez, mas está lúcida. Como sol- teira habituou-se a ser independente, a mandar; agora, quando tem que obedecer, reage.

Como se dividia o curso da Escola Militar? Quando se escolhia uma arma?

O curso da Escola Militar era de três anos. No primeiro e no segundo ano fazíamos curso de infantaria, que era a base, a arma fundamental, e no terceiro ano é que, de acordo com a classificação de curso que se tinha, se podia escolher a arma. Uns, principalmen- te nordestinos, escolhiam infantaria, os do Sul cavalaria, outros arti- lharia, outros engenharia.

10 Este trecho do depoimento foi concedido em julho de 1993. Amália Geisel faleceu em 3 de fevereiro de 1996. #

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Por que o senhor escolheu a artilharia? Os gaúchos não escolhiam geralmente a cavalaria?

Meus dois irmãos foram para a artilharia, e eu também fui, por influência. Mas a artilharia também era uma arma montada, os canhões eram puxados por parelhas de cavalos. A maioria dos gaú- chos escolhia a cavalaria não só por tradição, mas porque depois eles iam servir nas cidades de onde eram originários. Havia regimen- tos de cavalaria em várias cidades do interior do Rio Grande.

Como era estruturado o ensino na Escola Militar? Horários e tudo mais?

Havia a parte científica e havia a parte profissional. Dos seis dias da semana, três eram reservados para o ensino militar e três para o ensino teórico. Nos três dias de ensino teórico, no primeiro ano se estudava geometria analítica, cálculo diferencial e integral, geometria descritiva e física. No segundo ano, as matérias teóricas eram mecânica racional, química, topografia, direito público e admi- nistração militar. No terceiro, balística, fortificação, história militar, tática geral e materiais e emprego da artilharia. Nos outros dias, du- rante o primeiro e o segundo ano saía-se para o exterior, com mo- chila, fuzil no ombro, para fazer exercício de infantaria pelo terreno, marchas e combates. À tarde havia aulas teóricas sobre armamento, sobre noçôes de tiro e demais assuntos relacionados com o ensino militar. No terceiro ano, o ensino prático era relativo à arma que se cursava. Na artilharia consistia em equitação, condução das viatu- ras, manejo do canhão, topografia, marchas e tiro. Esses três dias de ensino militar começavam pela ginástica.

O ensino terminava pelas quatro horas da tarde, e às quatro e meia era o jantar. Aí abria-se o portão da Escola e a cadetada podia espairecer pela cidadezinha do Realengo. Quem tinha dinheiro ia co- mer alguma coisa, ou então passear. Uns iam namorar. . . Às seis ho- ras tocava a "revista", todos voltavam para a Escola, iam para os alojamentos, e o oficial-de-dia passava a revista para ver se alguém estava ausente.

E como era a convivência com a população do Realengo?

Eu caminhava muito com os amigos, andava pelo Realengo, mas freqüentei a localidade muito pouco. Havia grande influência de #



um padre da igreja local, o padre Miguel, que depois deu o nome a uma localidade próxima. Alguns iam conversar com ele, havia estu- dantes muito religiosos. Mas eu não tive muito contato, pois não li- gava à religião.

A Escola tinha coisas interessantes. Havia uma Associação do Estudante Pobre, em que os associados contribuíam com uma certa quantia de dinheiro, utilizada na compra de livros e material escolar para alunos reconhecidamente pobres. Esse material era co- locado, sem que ninguém visse, debaixo dos seus travesseiros. Con- servava-se o anonimato, tanto do beneficiado quanto do doador. Quem formava a sociedade eram os próprios alunos. Cheguei a participar dela. Havia também uma sociedade atlética, com sede no terceiro pátio da Escola. Ali se praticava esporte depois das quatro e meia, até as seis. Havia, ainda, jogos. Jogava-se bilhar, vô- lei e basquete. Havia uma sociedade cívico-literária, que tinha a sua própria biblioteca e a sua revista e realizava periodicamente sessôes literárias. Eu freqüentava a sociedade, mas não era sócio atuante. Faziam-se discursos, discussões. Às vezes convidavam uma figura preeminente, que ia lá, passava horas, ou o dia, recitan- do, declamando e convivendo com os alunos. Lembro-me que Rosa- lina Coelho Lisboa passou um dia com os cadetes.11 Tudo era fei- to por iniciativa dos alunos, que, além disso, contribuíam para o monumento que está na Praia Vermelha, da Retirada da Laguna e Dourados, da Guerra do Paraguai. A propósito de dinheiro, esclare- ço que no meu tempo um aluno ganhava cinquenta mil-réis por mês e, no terceiro ano, cem mil-réis. Isso era nada. Com esse di- nheiro pagávamos a lavadeira, o barbeiro, lápis, papel, cigarro, as sociedades e, às vezes, quando sobrava um saldo, ou no dia em que saía o soldo, íamos jantar no Sans Souci, um restaurante por- tuguês onde comíamos bife com ovos e batatas fritas, para variar o cardápio.

Como eram as relações entre os colegas? Todos se conheciam, con- viviam?

O relacionamento se dava mais entre os alunos do mesmo ano escolar. O meu era naturalmente maior com os companheiros

11 Rosalina Coelho Lisboa Larragoiti (1900-75) era jornalista e escritora. #



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que tinham vindo do Colégio Militar de Porto Alegre e já eram ami- gos velhos. Nosso quadro de formatura como agrimensores tem a fo- tografia de 37 formandos, e a maioria veio para o Realengo. Mas eu também tinha amigos vindos de outras regiões, principalmente do Rio e do Nordeste. Fazíamos novas e boas relações com os compa- nheiros. No primeiro e no segundo ano, morávamos em grandes alo- jamentos, em que dormiam cerca de 100 alunos. E lá ficávamos por ordem numérica - cada um de nós tinha um número que cor- respondia também à letra do nome. Eu era Ernesto, e então os com- panheiros que ficavam nas camas ao lado eram da letra E. Ali tam- bém se faziam amigos. Atrás das camas havia armários, e cada um tinha direito a um armário - havia alojamentos em que, por falta de armários, usava-se uma mala de madeira que chamávamos de "arataca". Tudo que era seu era guardado no armário e não se admi- tia que fosse fechado a chave. Não era admitida a suspeita de rou- bo. Eu me relacionava bem com os companheiros do lado, mas o meu bloco mesmo era o do pessoal do Rio Grande. Pelo hábito do Sul, tomávamos chimarrão. De tarde, às vezes, em vez de sairmos e irmos para o Realengo, ou de manhã, quando havia um certo tempo antes do almoço, formávamos a rodinha, tomando chimarrão. Era sempre com companheiros do Rio Grande.

Qual era, em geral, a origem social dos alunos da Escola Militar?

Havia de tudo. Havia alunos pobres que, como já disse, eram socorridos pela Associação do Estudante Pobre, e também alunos ri- cos. Muitos tinham pais militares. A maioria era do Rio Grande, da- qui do Rio de Janeiro e do Ceará, onde também havia um Colégio Militar. Os cearenses em regra eram pobres. Entre os do Rio Gran- de havia grandes diferenças: filhos de estancieiros, de gente rica de fazendas etc., que iam para a carreira militar por pendor e por cau- sa das tradições, e pobres também. Mas entre nós, na Escola, não se fazia distinção social nem de fortuna.

Havia paulistas na Escola Militar?

Não, não havia. Os paulistas só começaram a ir para a Escola depois da Revolução de 32, quando sentiram que lhes faltava maior penetração no Exército. #



Quais são suas lembranças da vida material na Escola? Era con- fortável?

Não era, não. A comida era ruim, o que acho um erro gravís- simo. Era uma escola que se destinava a formar oficiais que de- pois iriam servir pelo menos 30 anos ao Exército. A saúde desses futuros oficiais devia ser muito importante, e eles deviam começar por uma alimentação mais adequada. Mas faziam economia na co- mida, faltava comida. Então nós nos "forrávamos" nas férias. Em casa, minha mãe preparava tudo que era bom, que a gente gosta- va... Era quando engordávamos um pouco, porque na Escola to- dos eram magros.

Havia um serviço de saúde com uma enfermaria. Os doentes, ou iam à revista médica para justificar a falta à instrução e à aula, ou, conforme a doença, baixavam à enfermaria, ou às vezes iam pa- ra o Hospital Central do Exército. Eu tive, logo no começo, um de- sentendimento com o capitão médico. Levei a questão a capricho e passei três anos na Escola sem nunca ir à enfermaria nem à visita médica. Muitas vezes estava com febre ou com gripe, resfriado, mas nunca fui. Era magro, mas era sadio.

Uma das maiores deficiências da Escola era o abastecimento de água. Era normal a falta de água. Quando voltávamos da instru- ção e íamos tomar banho, os chuveiros muitas vezes estavam secos.

O prestígio da profissão militar no Rio de Janeiro também era grande? Um jovem cadete era bem-visto pelos civis?

Não posso dizer, porque vivia dentro da Escola, no Realengo. Mas os cadetes, sábado, após a instrução que ia até quatro e meia da tarde, tomavam um trem especial e iam para a cidade. Voltavam domingo à noite, contando muitas histórias das praias, dos namo- ros no Méier e no Boulevard 28 de Setembro, dos bailes de sábado etc. Contavam muitas vantagens, mas certamente havia, nas narra- ções, um fundo de verdade.

No Colégio Militar, no último ano, a turma que saía dava um baile dedicado à sociedade de Porto Alegre, no próprio Colégio. O alojamento e suas dependências eram esvaziados e transformados num grande salão de baile. O comércio e as casas familiares forne- ciam os doces, as tortas, as bebidas para o buffet... Fazia-se a festa sem um tostão de dinheiro dos alunos. No Realengo não havia baile de formatura. Realengo fica muito longe e seu clima é horrível. #



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Havia muito trote?

Os trotes eram dados nos novos cadetes, nos "bichos". O fato de ter dois irmãos veteranos acho que me ajudou, porque meus ir- mãos tinham os seus amigos, e eu me relacionava bem. Havia tam- bém a turma que fugia à noite. Ia, principalmente, roubar laranjas. Mas não havia mais as brigas com colégios civis. Em Porto Alegre, no Colégio Militar, havia conflitos, mais com os alunos do Anchieta. Nós éramos os "cardeais", porque o nosso quepe, nossa cobertura, era ver- melha. Eles usavam uma espécie de batina preta, e eram os "uru- bus". De vez em quando havia surra na rua, pancadaria. Coisa de ra- pazolas !

O Realengo era o fim do mundo. Não havia nada. Muito quen- te... Demorava-se uma hora de trem para chegar ao centro do Rio. Raramente eu saía para passear. Não tinha dinheiro, não tinha roupa adequada, só tinha a farda de cadete. Muitos saíam de far- da, mas para ir à cidade mudavam de roupa. Recordo que meu pai, quando viemos para o Rio, nos deu várias cartas de recomen- dação para pessoas daqui, inclusive militares, conhecidos dele ou de seus amigos. No fim do ano, quando chegamos em casa nas fé- rias, demos todas as cartas a ele de volta. Não entregamos as car- tas de recomendação, por escrúpulo. Era o espírito de independên- cia, de autonomia: "Não quero favor de ninguém, quero resolver pessoalmente o meu problema". Vaidade nossa. Alguns colegas cul- tivavam essas amizades e usavam o pistolão. Éramos contra esse sistema. Achávamos que não precisávamos daquilo e não usáva- mos. E era por isso mesmo que eu ficava no Realengo. Nós cultivá- vamos muito essa história de sermos homens, embora ainda fôsse- mos adolescentes, e de termos independência, não sermos subser- vientes, não dependermos dos outros... Coisa do moço, um pouco orgulhoso.

Quer dizer, a carreira militar permitia à pessoa ter uma ascen- são por mérito próprio, não precisava ter dinheiro nem nome de família.

Não precisava, não. Se o aluno se comportasse direito e fosse um estudante mediano, não fosse medíocre ou não tivesse base defi- ciente, ele vencia. Havia companheiros que ficavam para trás. Havia companheiros que eram desligados da Escola, por falta de aprovei- tamento. Mas a grande maioria tinha êxito. Na nossa formação a #



grande preocupação era buscarmos a independência: independência de atitude, independência de ação, não precisarmos de favores... Quando se via um aluno falando com um oficial, sem ser a chama- do deste, nós dizíamos: é um "corredor". Estava fazendo a "corri- da" junto a oficial, estava querendo qualquer coisa, e por isso era malvisto.

Os alunos da Escola Militar tinham algum contato com os alunos da Escola Naval?

Pouco. O que havia todo ano era um campeonato esportivo en- tre Escola Naval e Escola Militar. O Exército sempre se saía muito bem. A Marinha ganhava, naturalmente, as provas náuticas, nata- ção, water polo. Mas, no resto, a Escola Militar era campeã. Havia atletismo, lançamento de peso, lançamento de dardo, futebol e, mais tarde, vôlei e basquete. Eu não competia, não era muito dado ao esporte. No Colégio Militar fazia mais exercícios, corridas, salto em distância e em altura e aparelhos de barra e paralelas. Mas nun- ca procurei competir. Meu irmão Henrique era mais dedicado à par- te física. Orlando, menos ainda do que eu.

Os alunos da Marinha eram diferentes dos do Exército em termos de origem social?

Acho que sim. Um pouco diferentes. Eram talvez de origem so- cial mais elevada. Para entrar na Escola Naval era exigido um enxo- val. Era caro! Muitos não conseguiam entrar na Escola Naval por- que não tinham dinheiro para comprar o enxoval.

Na sua turma havia algum estudante negro ou mulato?

Havia. Chamava-se Claudionor, não lembro do sobrenome. Saiu oficial. Havia inclusive professores negros. O velho João Ma- nuel já não ensinava mais no meu tempo, mas tinha tradição de bom professor. Havia um outro que era ridículo e nós chamávamos de "Miquimba". Esse ensinava organização militar e emprego tático. Não chegou a ser meu professor, mas foi professor dos meus ir- mãos. Era muito pernóstico, safado. Havia um cadete, o Baltazar, ne- gro, que não saiu oficial, pois não teve bom aproveitamento e dei- xou a Escola, mas jogava muito bem futebol. Era goleiro de um clu- be no subúrbio. #



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Havia craques na Escola Militar?

Havia alunos que jogavam em primeiro time, até no Fluminen- se... Alunos que vinham de times de Porto Alegre, como o Grêmio, o Internacional etc. Médici era bom jogador de futebol, desde Porto Alegre. Estava um ano na minha frente, no Colégio Militar e na Es- cola. Ele e o general Adalberto Pereira dos Santos, que depois foi vi- ce-presidente da República no meu governo, eram de uma turma in- termediária entre a minha e a dos meus irmãos. E desde o Colégio Militar eram meus amigos, todos os dois. Médici era muito benquis- to. Era originário da fronteira, onde se fala muito espanhol, e tinha o apelido de "Milito", derivado do nome Emílio. Era um aluno me- diano. Adalberto foi o primeiro aluno da sua turma no Colégio e de- pois na cavalaria da Escola Militar.

A Missão Militar Francesa estava presente na Escola na sua épo- ca?12

Sim. Havia um oficial francês que orientava o ensino militar. Houve um com o qual não cheguei a ter maiores contatos porque ele se dedicava mais ao terceiro ano, e eu ainda não havia chegado lá. Quando cursei o terceiro ano, conheci um outro que era muito bom e benquisto por todos. Participava das aulas de tática geral, acompanhava as instruções das diferentes armas e influía na dire- ção do ensino. Seu nome era Panchaud. Recordo uma aula de tática geral em que ele deu ênfase à distinção entre o problema técnico e o problema tático; salientou a dificuldade de encontrar o limite, on- de acabava a técnica e onde começava a tática, porque num certo momento há uma superposição. Sua explicação, em francês, dava uma forte ressonância à expressão "technique-tactique".

Que personagens militares eram mais admirados?

Da Antigüidade, Aníbal, César e Alexandre; dos tempos moder- nos, Napoleão; do Brasil, Caxias. Entre nós se destacava um ho- mem que foi nosso instrutor e professor de tática: o major Fiúza de


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