História Universal da Destruição dos Livros Das Tábuas Sumérias à Guerra do Iraque Fernando Báez



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A ditadura na Argentina
Uma das histórias mais arrepiantes do mundo editorial da Argentina aconteceu durante a ditadura militar. Em 30 de agosto de 1980, num terreno vazio de Sarandi, vários caminhões descarregaram, bem cedo, 1,5 milhão de livros, todos publicados pelo Centro Editor de América Latina. Minutos mais tarde, a euforia policial, legitimada pela ordem de um juiz federal de La Plata chamado De Ia Serena, encorajou vários agentes a borrifar com gasolina os exemplares e a incendiá-los. Horrorizado, impotente, José Boris Spivacow, fundador do Centro e ativo organizador de eventos culturais, contemplou a queima até que os risos e a afronta despertaram sua ira.

Vale lembrar que Spivacow estimulou a criação de coleções que educaram gerações de intelectuais ibero-americanos, como Cuadernos, Ediciones Previas e Serie dei Siglo, na Eudeba. E também Historia de América Latina en el Siglo XX, Historia dei Movimiento Obrem, El País de Los Argentinos e Los Hombres de Ia Historia. Foi o primeiro a sacudir o continente com O medo à liberdade, de Erich Fromm.

Graciela Cabal resumiu o clima que imperava durante a ditadura:
No início tivemos muito medo; eu, cada vez que ia para o Ceai [Centro Editor de América Latina], dizia à minha vizinha de cima que, se até certa hora não retornasse, levasse meus três filhos à casa de minha mãe. Ao mesmo tempo nos acostumávamos a trabalhar nesse contexto de terror. O escritório onde eu me sentava - por exemplo - tinha um buraco, deixado pelo impacto de uma das bombas atiradas contra a editora, e eu colocava os papéis ao lado. De repente, nos chamavam do depósito, avisavam que havia uma batida policial e que vinham para a redação. Nós nos preparávamos, removíamos pastas, escondíamos agendas no jardim, queimávamos documentos. Dizíamos aos vizinhos que íamos fazer um churrasco e queimávamos papéis na banheira, que ficava escura de fumaça.

Também as banheiras de nossas casas estavam escuras. Rasguei e queimei muitos livros, e foi uma das coisas das quais nunca pude me recuperar. Destruía e chorava porque não queria que meus filhos me vissem, porque não queria que contassem na escola, porque não queria que soubessem que sua mãe era capaz de destruir livros... Porque sentia muita vergonha.


Os livros do depósito de Sarandi arderam durante três dias. Alguns estavam empilhados e úmidos de maneira que não queimavam bem. A coleção Nueva Enciclopédia del Mundo Joven queimou integralmente. Lembro-me de que num dos fascículos, de história do feudalismo, havia um príncipe que não acabava de queimar.

O pobrezinho era um príncipe meio efeminado e cheio de flores que resistia à fogueira [...].

A Operação Claridade, concebida pelo general Roberto Viola com o propósito de confiscar livros marxistas, preparou fichas para denunciar obras suspeitas. Cada registro deveria conter os seguintes dados: "1) Título do livro e editora. 2) Matéria e curso em que é utilizado. 3) Colégio em que foi localizado. 4) Professor que o aconselhou e adotou. 5) Se possível, anexar um exemplar do livro. Caso contrário, fotocópias de algumas páginas nas quais se evidencie seu caráter subversivo. 6) Quantidade aproximada de alunos que o utilizam. 7) Qualquer outro aspecto considerado de interesse."

Pelo menos 697 livros foram confiscados na Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Entre Rios. Com esse material se fez uma fogueira. Em abril de 1976, um grupo de fanáticos queimou na cidade de Córdoba O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, por considerá-lo contrário aos valores tradicionais. A mesma fogueira serviu para incinerar livros de Mareei Proust, Gabriel Garcia Márquez, Pablo Neruda e Mario Vargas Llosa.

A queima de livros foi acompanhada por outras ações não menos intimidantes. O escritório do Siglo XXI foi fechado e os editores detidos. A editora Galerna, de Guillermo Schavelzon, foi atacada com explosivos. Também foram queimados os livros da editora da Fundação Constancio C. Vigil, de Rosário, além das sanções legais contra os editores. A livraria To Be, de propriedade de Ornar Estrella, em Tucumán, foi arrasada.

Em meio a um silêncio inexplicável, em 24 de março de 1976, foram seqüestrados Alberto Burnichon, Carlos Pérez, Héctor Fernández, Horacio González e Isabel Valencia, os dois últimos donos da prestigiada Librería Trilce. A lista de desaparecidos aumentou com os nomes do editor Roberto Santoro, Enrique Alberto Colomer, de Riverside, Cláudio Ferrari, pilar dos livros de La Opinión, o livreiro Maurice Geger (revisor de provas de La Gaceta de Tucumán), Silvia Lima, Conrado Guillermo Cerreti e Enrique Walker (revisor da Editora Abril). Daniel Luaces, um dos redatores do Centro Editor de América Latina (Ceai), foi covardemente assassinado e a assistente da editora, Graciela Mellibovsky, desapareceu, da mesma maneira que Piri Lugones, Héctor Abrales, redator técnico do Ceai, Diana Guerrero, tradutora do Ceai, Ignacio Ikonicof e mais dezenas de homens e mulheres. Casa por casa, os militares buscavam exemplares comprometedores, confiscavam-nos e os destruíam sem clemência.

Como curiosidade, e talvez algo mais do que isso, vale a pena lembrar o caso de Oscar Elissamburu e de sua mulher Nélida Valdez. Ambos, durante a ditadura, com apenas 29 anos, enterraram cerca de vinte livros para não queimá-los em casa. Escolheram os livros perigosos, isto é, O livro vermelho de Mao, As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, O diário de Che na Bolívia, e outros. Em 2001, enquanto assistiam a um vídeo sobre os desaparecidos, lembraram-se do incidente e desenterraram os livros, lamentavelmente destruídos porque as sacolas que os continham não resistiram à umidade.


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