CAPÍTULO IV
O ENCONTRO ÍNTIMO
— Onde você esteve Leone? — perguntou o tio Noel.
Para ela, uma vida nova havia principiado. Parecia-lhe que se haviam passado muitos anos depois que vira o tio pela última vez. Entretanto, lá estava o fazendeiro sentado no mesmo lugar, fumando o mesmo cachimbo e provavelmente pensando os mesmos pensamentos... A moça entrou com o rosto radiante, os cabelos úmidos de orvalho, um brilho de intensa alegria nos olhos.
— Onde você esteve? — repetiu o fazendeiro.
Leone encarou-o com sorriso doce e misterioso.
— Estive junto à roda d’água. Depois, — ajuntou em voz baixa, — estive no céu.
Para ela, havia sido o céu aquela hora passada em companhia de pessoa culta e educada, um cavalheiro, homem de bom gosto e fino trato. Seu tio estava admirado de vê-la tão feliz, de haver na sua voz uma nota de alegria e de bailar nos seus lábios sorriso tão angelical. Leone era de natural sombrio e triste.
Voltara-se uma página do livro de sua vida. Tanto ela desejara que algo interrompesse aquela monotonia, e agora se cumpria o seu desejo. Falara a homem não somente belo e distinto, mas filho de lorde, de um grande conde. Ele a admirara, dissera-lhe que o seu rosto era um poema e essas palavras tinham trazido um sorriso doce a esse rosto triste.
Logo que, na manhã seguinte, o primeiro raio de sol lhe penetrou no quarto, Leone despertou com a sensação de que na sua vida havia algo de novo e lindo. Era-lhe um prazer ouvir cantar os passarinhos; um prazer banhar-se na água clara e fria, aspirar o ar fresco e perfumado da manhã. Como era linda a vida! Vê-lo-ia outra vez?
Despertara-se o seu temperamento poético e romântico. Procurou fazer-se a mais linda possível. Pôs um vestido cor-de-rosa pálido, de padrão liso, simples, é verdade, mas que dava reflexo encantador ao seu rosto ligeiramente moreno.
Penteou os cabelos negros e ondeados, e prendeu neles uma rosa vermelha. Depois, sorriu de si para si. Quem lhe assegurava que o tornaria a ver? Por que razão voltaria à fazenda de Rashleigh o filho de um grande conde? Entretanto, os pombos azuis e brancos arrulhavam ternamente o seu amor, no telhado, como que lhe augurando boa sorte. Leone sentia-se satisfeita.
À tarde o tio Noel pediu-lhe que fosse aos campos de feno. Os trabalhadores estavam ocupados em juntar o feno segado de fresco, e ele queria saber se já haviam empilhado bastante. Parecia uma fada ao atravessar o campo verdejante, com uma rosa vermelha nos cabelos e outra no seio, tendo nas mãos um ramo de madressilva. Embora não visse lorde Chandos, não pensava em outra coisa, esperava a cada momento encontrá-lo, e, ao atravessar o campo conhecido pelo nome de Espigão do Regato, encontrou-se face a face com ele. Com o choque inesperado, seu coração pôs-se a palpitar precipitadamente.
Haviam-se visto pela primeira vez numa noite de luar e pela segunda numa brilhante tarde de verão, quando toda a natureza parecia irradiar amor. Os pássaros cantavam hinos líricos, as borboletas beijavam as flores, o vento sussurrava segredos de amor às árvores e o sol beijava silenciosamente a terra num grande e longo beijo de amor.
— Leone! — exclamou ele, e depois corou intensamente. — Perdoe-me; deveria dizer: Senhorita Noel; mas estive a pensar na senhorita a noite toda, como Leone. Não atentei nisso senão depois de ter o seu nome saído de meus lábios.
Ela riu ao ouvir-lhe as desculpas.
— Principie de novo, — replicou. — Diga: "Boa tarde, Srta. Noel".
O jovem repetiu, sorrindo; depois ajuntou:
— Creio ter sido a minha boa estrela que me enviou para aqui. Tinha tanto desejo de conversar com alguém, e sinto-me tão feliz em tê-la encontrado... mas está provavelmente muito ocupada.
— Não. Já fiz tudo quanto devia fazer. Nunca estou ocupada, — acrescentou em tom altivo.
O moço tornou a sorrir.
— Tem razão. Não a posso imaginar ocupada, como não poderia imaginar a deusa Juno com pressa. Algumas mulheres belas têm por natureza uma calma que parece divina.
— A minha calma esconde uma tempestade. Minha vida tem sido monótona e desinteressante; nem o meu coração nem a minha alma viveram; sinto em mim um vigor que às vezes chega a assustar-me.
O jovem não duvidava disso, ao contemplar-lhe o rosto, lindo e apaixonado, mas belo ainda à luz brilhante do sol do que ao clarão pálido da lua.
— Não pode ficar de pé, aí ao sol, — disse-lhe o rapaz. — Se não tem o que fazer, venha comigo até ao bosque Leigh. Desta vez não me perderei.
Leone hesitou alguns segundos, e ele percebeu. Tirou o chapéu e ficou à espera da resposta.
— Sim, irei. E por que não?
E assim foram juntos ao bosque, onde as árvores sombreavam o solo coberto de flores silvestres; havia violetas perfumadas escondidas modestamente por entre as folhas, e as flores das framboesas pareciam flocos de neve.
Como tudo aquilo era lindo!
A poesia do ambiente enternecia-lhes o coração.
Lord Chandos foi o primeiro a falar. Observou durante algum tempo o belo e altivo rosto de Leone, para em seguida exclamar:
— Parece fora do seu lugar aqui, Srta. Noel. Entretanto, não lhe sei dizer por quê.
— É o que o meu tio sempre repete. Pergunta-me constantemente se não me posso tornar mais semelhante às moças de Rashleigh.
— Espero que nunca venha a consegui-lo.
— E nem sei como fazê-lo. Serei, por toda a vida, conforme Deus e a natureza me fizeram.
— E a fizeram bela, — murmurou o rapaz.
Só então Lord Chandos compreendeu que aquela moça era muito diferente das outras.
Leone recuou um pouco e, com ar de orgulho, sem um sorriso a lhe florir nos lábios, disse enérgica:
— Fale-me como falaria a uma pessoa do seu nível social, lorde. Embora o destino me haja feito sobrinha de fazendeiro, a natureza me fez...
— Rainha, — completou o jovem.
A moça gostou do cumprimento e calou-se. Sentaram-se à sombra de um carvalho gigantesco, sobre um tapete de relva verde, ornado de flores azuis.
Leone parecia pensativa. Apanhou algumas flores, e disse, pondo-se a brincar com elas entre os dedos:
— Bem sei que nenhuma senhora de sua classe passearia neste bosque em sua companhia, numa tarde de verão.
O lorde riu alegremente.
— Não sei. Sinto-me inclinado a pensar o contrário.
— Não compreendo bem o que os senhores chamam de etiqueta, mas creio que o senhor não convidaria uma dama da nobreza para um passeio destes.
— Não estou muito certo disso. Se encontrasse, na noite passada, junto à roda d’água, uma dama como diz a senhorita, do meu nível social, linda como a que ontem encontrei, convidá-la-ia certamente a passear e a conversar comigo, fosse onde fosse.
— Gostaria de conhecer o mundo em que o senhor vive. Conheço aquele em que vivem os pobres e os da classe chamada média; porém, não conheço o seu.
— Algum dia conhecerá. Não se zangue comigo se lhe disser que, no círculo onde vivo, nunca encontrei ninguém como a senhorita. Não se zangue, não a estou lisonjeando. Digo exatamente o que penso.
— Por que pensa que algum dia conhecerei o seu mundo?
— Porque, com esse lindo rosto, estou certo de que casará bem.
— Casarei com quem eu amar.
— E amará a quem quiser. Nenhum homem será capaz de lhe resistir.
— Peço-lhe a fineza de não me falar dessa maneira, — disse a moça, em tom grave.
Lord Chandos compreendeu então que ali, sentado junto à sobrinha de um fazendeiro, naquele bosque cheio de flores azuis, era forçado a se tornar mais circunspecto do que se estivesse a conversar com uma condessa, no palácio real de Londres.
Depois de o ter feito voltar ao seu lugar, conforme dizia, depois de o ter feito entender que desejava ser tratada com a mesma cortesia — senão mais ainda — que usava ao tratar com alguém de sua classe, Leone sentiu-se à vontade em companhia do fidalgo. Nunca tivera oportunidade de demonstrar o seu talento natural para conversar; o tio era absolutamente incapaz de a compreender, as moças que podiam ser suas companheiras ficavam confusas ao ouvi-la falar e julgavam-na afetada.
Agora, porém, estava ali alguém que a compreendia, falasse ela como falasse, que apreciava as suas imagens poéticas, conhecia de cor as citações que ela fazia; comentava as suas idéias, por mais extravagantes e originais que fossem, pois era a primeira vez que lhe aparecia a oportunidade de conversar com um cavalheiro educado.
Que prazer sentia a jovem em falar! O rapaz bebia-lhe as palavras e inspirava-se nelas. Escreveu-lhe então, com expressões de fogo, sua vida na fazenda.
Mas só mostrou plenamente o seu talento, ao fazer descrição sucinta do tio Roberto. Pintou-lhe o caráter com palavras que formavam legítima fotografia.
— Sabe, senhorita Noel, — disse, afinal, Lord Chandos, — que a senhorita é um gênio, que possui maravilhoso talento, que é capaz de descrever um tipo ou um lugar com fidelidade e perfeição inigualáveis?
— Não. Nada disso sabia. Estou de tal forma acostumada a ser considerada como algo de incompreensível, que ninguém deve admirar ou imitar, que não posso crer seja talentosa. O tio Roberto é realmente um tipo à parte. Hoje em dia, homens e mulheres parecem ser todos feitos no mesmo molde; ele, porém, se destaca dos demais: é o mais vagaroso e mais conservador dos fazendeiros, mas tem um grande coração cheio de amor.
Como era agradável falar-lhe, e ver-lhe o rosto másculo exprimir admiração; causar-lhe espanto com demonstrações do seu talento. Tão entretidos estavam, que Leone se esqueceu completamente do que havia ido fazer ao campo e o jovem só deu conta de que o tempo passava, muito depois da hora marcada para o jantar, em casa do Dr. Hervey. Mesmo assim, concordaram em que nunca na vida haviam passado momentos mais agradáveis.
CAPÍTULO V
A RECONCILIAÇÃO
Aquela história em nada diferiu das outras histórias de amor: dois ou três encontros junto à roda d’água, um passeio de manhã pelos campos úmidos de orvalho, uma tarde no bosque e o mal estava feito... haviam se apaixonado um pelo outro.
Como o amor facilmente nos transforma a vida! Um suspiro, um beijo e nossa alma, ferida, cai...
Mas vem depois, a mágoa do arrependimento, e a paz do coração se vai como um sopro do vento.
Dentro em pouco já não era um hábito, era uma necessidade, o encontrarem-se diariamente. O fazendeiro Noel entendia muito bem da arte de lavrar a terra, fazer as sementeiras e cuidar das plantações, mas da arte de tomar conta de uma sobrinha voluntariosa e apaixonada como aquela, não sabia mais do que uma criança. Contentava-se com perguntar-lhe onde estivera, pois nunca lhe passou pela idéia que tivesse um companheiro. Notava que ela crescia e se tornava cada vez mais linda, porém não pensava que estivesse apaixonada ou em perigo. De fato, o fazendeiro Noel não sabia pensar em nada que não fosse trigo, manteiga, vacas e galinhas.
Leone entrara no reino mágico das fadas; esquecera-se por completo de sua vida passada. Chegava a não se lembrar de que estivera descontente e inquieta, de que se havia revoltado contra o destino, de que aborrecia a monotonia, da fazenda e desejara que algo viesse mudar aquele estado de Coisas. Tudo, tudo aquilo fora esquecido, a luz fulgurante do amor cegava-a e ela nada mais via senão o próprio amor... o amor e nada mais. O seu amado era jovem, não passava dos vinte anos e tinha o coração cheio de romantismo. Fazia a corte à linda Leone, com a devoção com que prestaria homenagens a uma rainha. Apaixonara-se, como soi dar-se com os rapazes de sua idade: louca e cegamente, pronto a fazer pelo seu amor os maiores despautérios: matar, morrer ou ensandecer. E, como todos os homens, amava-a ainda mais por vê-la um tanto reservada e altiva, não se deixando entusiasmar pela lisonja.
As moças nem sempre conhecem todo o poder que exercem sobre os homens. O orgulho de Leone atraía Lord Chandos tanto quanto a beleza. O primeiro arrufo que tiveram foi devido ao orgulho da moça. Haviam estado a passear pela parte ensolarada do bosque de Leigh e no momento da despedida o jovem curvou-se para beijar-lhe a mão. A moça retirou-a com rapidez.
— Você não faria isso a uma dama de sua classe. Por que tenta fazê-lo a mim?
— Não creio que esteja realmente zangada comigo, Leone.
— Estou de tal modo indignada com o seu procedimento, que nunca mais irei ao bosque passear com o "senhor", Lord Chandos.
E cumpriu a palavra. Durante dois dias Lord Chandos errou pelos campos e pelos prados, pelo bosque e pela margem do regato, sem avistar sequer a sombra de Leone. É possível que a moça sofresse tanto quanto ele, mas a princesa andaluza julgava que o jovem devia aprender aquela lição. Embora fosse conde vinte vezes, não se deveria atrever a tomar a menor liberdade, deveria esperar que ela mesma lhe desse licença para beijar-lhe a mão.
No quarto dia, já não tinha mais forças para esperar. Passou diante da fazenda mais de vinte vezes, e finalmente teve a felicidade de encontrar o tio Noel. Colhendo as rédeas ao cavalo, fê-lo parar, e apeou-se.
— Tem por acaso algum cão para vender? — perguntou. — Disseram-me que o senhor possui belos cães.
— Tenho bons cães, mas não para vender.
— Desejo ter um cão e estou disposto a pagar bem por um de boa raça. Quer dar-me licença de que veja os seus?
— Com muito prazer os mostrarei, mas sinto não poder servi-lo, porque não os vendo.
Dentro de poucos instantes, estava o jovem lorde a passear pela fazenda, em companhia do proprietário.
Cativou logo o coração do velho, gabando-lhe a propriedade, o gado, os cães e tudo quanto via. Entretanto, não via o que mais desejava.
— Tenho muita sede, — disse, afinal. — Perdoará a minha impertinência se lhe pedir um copo de cidra?
Lisonjeado com o pedido, o fazendeiro levou-o para a sala. Olhava admirado o seu visitante.
— Disseram-me que o senhor é filho de um grande lorde. Se é verdade, noto que não se orgulha disso.
Lord Chandos riu e o fazendeiro chamou Leone. Houve uma pausa, durante a qual o coração do jovem palpitava, e o sangue lhe subia ao rosto.
— Leone! — tornou o fazendeiro a chamar. Depois, voltou-se para o visitante: — — Talvez se admire de me ouvir chamar por um nome tão estranho. É minha sobrinha. Aí vem ela.
Leone surgiu, bela como sempre, mas levemente ruborizada e com um sorriso que a tornava encantadora.
— Leone, — disse o fazendeiro, — poderá trazer um jarro de sidra?
— Por favor, não se dê a esse incômodo, Srta. Noel. Não creio que...
Ela o interrompeu com um gesto nobre.
— Mandarei trazê-lo, meu tio, — e desapareceu.
O fazendeiro voltou-se para o fidalgo, com um sorriso nos lábios.
— É muito orgulhosa, mas é boa menina.
A cidra veio, o visitante bebeu e retirou-se, tendo tido, como única recompensa, o prazer de vê-la por um instante.
Nessa mesma tarde a moça recebia um bilhete em que ele pedia perdão com tanta humildade, rogando-lhe fosse encontrá-lo, que ela cedeu.
Lord Chandos aprendera uma boa lição: cortejava-a agora com a deferência devida a uma jovem princesa: nada fazia ou dizia que a pudesse aborrecer ou desagradar, embora o seu amor por ela tocasse as raias da loucura.
E assim se passaram muitos dias de verão, e várias vezes se encontraram, ora pela manhã nos momentos em que, ao despertar, a natureza enchia a terra de perfumes capitosos, ora à tarde, quando o orvalho principiava a umedecer as flores e as árvores, ensinando-lhes, com a sua poesia, a se amarem cada vez mais.
Uma tarde, enquanto estavam sentados no seu lugar predileto, junto ao regato, Lord Chandos disse-lhe o quanto a amava, como chegara ao ponto de não pensar em nada no mundo senão nela.
— Percebi que você ia fazer parte da minha vida, Leone, desde o instante em que a vi sentada aqui, junto ao regato. Tenho a certeza de que o meu amor por você data desse dia. Não me lembro de um só instante em que não tenha pensado em você, desde então. Darei graças aos céus, durante toda a minha vida, por ter vindo a Rashleigh, pois aqui encontrei o meu amor.
Pela primeira vez o seu orgulho morreu; a sua altivez evaporou-se, e doce expressão de ternura se espalhou pelo seu rosto, enquanto baixava os olhos, confusa com as palavras que ouvia.
— Minha querida Leone, se eu vivesse mais cem anos, só saberia repetir a todo instante, por toda a minha vida: "Amo-a". Essas duas palavras, dizem tudo. Você me ama, Leone?
A moça levantou a cabeça com esforço e o fitou. Leve tremor passou-lhe pelos lábios.
— Sim, eu o amo, — afirmou. — Se isso trará felicidade ou infelicidade, bem ou mal, não sei. Mas de uma coisa estou certa: amo-o com todas as forças de minha alma.
Naquelas palavras tão simples, havia tanta poesia, tanta ternura, tanta sinceridade, que pareciam canção dulcíssima, cantada ao acompanhamento harmonioso das águas marulhantes.
Leone estendeu-lhe as mãos delicadas, que Lord Chandos prendeu entre as suas.
— Por que diz isso de modo tão triste, querida? O amor não nos pode trazer senão felicidade, tanto para mim como para você.
A moça passou os braços em volta do pescoço do amado, e fitou-o amorosamente no rosto.
— Não pode haver comparação, — disse ela; — o amor para você é unicamente pequena parte da vida; para mim, é tudo... absolutamente tudo. Compreende? Se você me esquecer ou acontecer alguma coisa desagradável, não poderei suportar. Não saberia conformar-me, como fazem as mulheres-modelo. Viria aqui, e me atiraria ao rio.
— Mas, meu amor, não a esquecerei nunca. Você é a vida da minha vida. Talvez pudesse eu viver sem ar, sem luz; poderia viver sem comer nem dormir, mas não poderia viver sem você. Para esquecê-la, teria primeiro de me esquecer de mim mesmo.
Ela continuava a segurá-lo pelos ombros, com as delicadas mãos.
— Para mim, você e o seu amor são ainda mais do que isso. Arrisco toda a minha vida neste golpe. Não tenho nada mais no mundo... nenhuma outra esperança. Pense bem, Lancelot, antes de jurar o seu amor por mim. É um juramento que implica bastante responsabilidade, Quero o seu amor, para todo o sempre, e sem a menor hesitação ou dúvida.
— E é assim que o dou.
— Pense bem no que diz, — repetiu Leone, fitando-o no rosto com os grandes e negros olhos a brilharem de paixão. — Veja se não se engana. Não sou mulher do tipo de Griselda. Não sofrerei resignadamente e em silêncio, para morrer de dor, prematuramente. Ah, nunca! Procurarei vingar-me. Pense bem antes de me jurar o seu amor. Não perdoaria e não esqueceria jamais. Ainda estamos em tempo. Pense antes de ligar o seu destino ao meu.
— Não preciso pensar, Leone, — respondeu ele, sossegadamente. — Já pensei, e o resultado é que estou pronto a jurar fidelidade para todo o sempre.
O seu olhar fixo mudou-se em expressão de carinho e ela escondeu o rosto no peito do jovem.
— Para todo o sempre, meu amor, — murmurava ele, em tom muito baixo e doce; — ouve, querida? Para todo o sempre, para toda a eternidade, juro que hei de amá-la e lhe ser fiel.
As águas pareciam sorrir, no incessante marulhar; o vento rumorejava por entre a folharada, o rouxinol parou subitamente de cantar, para recomeçar numa canção semelhante a gargalhada irônica, e as estrelas faiscaram de modo sinistro.
— Para todo o sempre, querida, juro-lhe o meu amor e a minha lealdade. Nossos corações e nossas almas serão um só. Você retribuirá dessa mesma forma ao meu amor?
— Dar-lhe-ei ainda, muito mais do que isso, — respondeu ela, com tal devoção que as suas palavras adquiriram um tom trágico.
Curvando-se levemente, o apaixonado jovem depôs um beijo naquela linda boca em flor. Naquele momento supremo de felicidade, fecharam os olhos para que nenhuma impressão exterior pudesse perturbar o êxtase das almas.
— Será minha para sempre! Minha futura esposa.
— Gostaria de que você nunca tivesse cantado a linda balada da roda d’água para eu ouvir; sabe o que ouço as águas dizerem constantemente?
Mas esse anel foi partido, E o juramento esquecido...
— Querida! — exclamou ele, apertando-a ao peito, — deixe as águas dizerem o que quiserem, que nada disso nos diz respeito.
CAPÍTULO VI
PLANOS DE APAIXONADO AFOITO
Nada havia de mau na intenção de Lord Chandos. Não pensara em amar e fugir. Amava e adorava a linda e orgulhosa moça com o ardor e o respeito com que a amaria se ela fosse uma princesa.
Chegou finalmente um dia em que, não podendo vê-la, e sendo incapaz de governar a impaciência, foi à fazenda, desta vez ostensivamente, para falar ao fazendeiro e pedir-lhe outro copo de sua famosa cidra e parou à vista dele, falando a Leone.
— Irá hoje de tarde ao regato? — perguntou a meia voz.
— Sim.
Logo que bebeu a cidra e partiu, o fazendeiro Noel se dirigiu à sobrinha.
— É um belo rapaz, Leone. Mas que lhe disse ele?
— Nada de importante: algo a respeito do regato, — respondeu a jovem, que não gostava de mentir.
— Pergunto isso, minha filha, porque você tem lindo rosto e um homem como ele sabe apreciar a beleza.
— E que mal há nisso, tio?
— O mal viria depois. O que o homem aprecia, geralmente passa a amar, e de amor como esse nada de bom poderia provir.
— E por que não? — inquiriu ela, ruborizada.
— Nós bem sabemos que há grande diferença entre a aristocracia e o povo. Para falar com franqueza, minha filha, quando um grande lorde admira uma pobre camponesa, geralmente o caso termina com a desgraça da pobre moça.
— Nem sempre, — afirmou ela com orgulho.
— Não; talvez nem sempre; mas quase sempre; sim, quase sempre. Você é muito bonita e se tiver juízo deve procurar afastar-se do caminho desse cavalheiro. Não a quero ofender, Leone; perdoe-me o lhe ter falado com tanta franqueza.
— Isso não me ofende, embora eu julgue que o senhor se engana. Por que não poderia um lorde rico e grande como ele, casar com uma moça que não tem outro defeito senão de ser pobre? Não vejo a impossibilidade disso.
— Não lhe sei explicar o motivo, minha filha. Mas sei que os homens ricos não se casam com pobres moças obscuras e que, quando o fazem, acontece qualquer coisa a esse casamento. Será melhor não discutirmos mais isso, mas o conselho, que lhe dou, é que, se ele a admira, você deve procurar evitá-lo.
Leone não respondeu. Comovera-se ao ver o tio falar com tanto cuidado do seu futuro. Ele, porém, se enganava. Lord Chandos era diferente dos outros e, além disso, a amava tanto, que não poderia viver sem ela.
Dominada por esses pensamentos, logo que o sol principiou a descer correu para o regato, onde o amado a esperava.
As nuvens avermelhadas refletiam-se nas águas, as aves canoras entoavam as suas canções de despedida ao astro-rei, e toda a natureza se preparava para dormir.
— Leone! — foi a primeira exclamação que se escapou dos lábios do rapaz; — querida Leone, parecia-me que este momento não chegaria nunca. Quantas horas teve o dia de ontem?
— Vinte e quatro, — replicou a sorrir.
— Somente vinte e quatro? Para mim, o dia pareceu longo como um ano, e fiquei a pensar numa coisa.
— Em que Lancelot?
— Em que, se um dia me pareceu assim tão longo, que seria de mim se passasse uma semana sem vê-la?
— Que seria de você? — exclamou a moça a rir.
— Morreria de impaciência. O destino que me castigue de todos os modos, mas peço a Deus nunca me separar de você. Foi por ter descoberto isso que pedi para vir encontrar-me hoje à noite. Não posso viver sem você, Leone. Deve compreender como as horas me parecem tristes e compridas. A vida parece-me que acabou. Não me interesso por coisa alguma e sinto-me sem energia. Fico desejando-a, como as flores desejam o orvalho. Leone, se não a visse mais, esta febre de amor acabaria por matar-me.
E assim dizendo, tomou-lhe a cabeça entre as mãos e beijou-a apaixonadamente.
— Por que não poderei ser feliz, conforme o meu coração deseja? — disse ele. — Se desejo uma única coisa sobre a terra, que me pode trazer a felicidade, por que não poderei obtê-la? De que me valerão o dinheiro, a posição social, a fidalguia ou qualquer outra coisa sobre a terra, se não puder ter você? Preferiria perder tudo quanto possuo, a perdê-la.
— Como é bom ser amada assim! — exclamou a moça, suspirando.
— Recebi hoje cartas de casa. E... e tenho medo de lhe contar o que dizem. Receio que se oponha ao que tenho em mente. Preciso deixar Rashleigh dentro de um mês e voltar para casa de meu pai — uma propriedade chamada Cawdor. Leone, não posso ir sozinho.
A moça fitava-o com expressão de espanto. O jovem namorado julgava seu amor tão grande e generoso, e, na realidade, na sua própria paixão amava mais a si próprio.
— Querida, desejava que consentisse em casar comigo antes de eu sair de Rashleigh. Sei que será o plano mais simples e mais fácil, desde que você consinta.
Leone sentiu que o seu coração parava dentro do peito. A vista se lhe escureceu. Tudo se confundia diante dos seus olhos. Nunca, nem em sonhos, se imaginara esposa de Lord Chandos.
O rapaz continuava a falar.
— Bem sei que meus pais, isto é, meu pai, embora inflexível em alguns pontos, se deixa influenciar, mas minha mãe é, creio eu, a mulher mais orgulhosa do mundo. Sei que ela espera que eu faça um casamento quase maravilhoso. Chego a crer não existir na Inglaterra uma fidalga, por mais nobre, que minha mãe julgue digna de casar comigo. Estou certo, no entanto, de que seria uma punhalada no seu coração o saber de meu casamento com alguém abaixo de minha posição social. Sei bem que nunca mo perdoaria.
A moça deixou escapar um pequeno grito.
— Então por que me declarou amor?
O jovem riu.
— Como poderia deixar de o fazer, querida? Encontrei em você a outra metade de minha alma. Ser-me-ia tão impossível deixar de amá-la, como seria impossível a um passarinho deixar de cantar. Escute-me, porém, Leone; se eu fosse para casa e lhes pedisse dia e noite o seu consentimento seria perfeitamente inútil. Tenho outro plano. Case comigo, levá-la-ei para casa e dir-lhes-ei: "Eis aqui minha esposa". Não poderiam deixar de a receber, pois o casamento já estaria legalizado e minha mãe, com o seu tato, trataria de arranjar as coisas da melhor forma possível. Se pedir permissão para casar com você, não a darão; se casar com você, eles se verão forçados a perdoar.
A moça levantou-se repentinamente e deu um passo atrás.
— Não quero que ninguém seja forçado a receber-me, nem quero ser causa de aborrecimentos.
— Querida, todas as pessoas que amam têm de sofrer. A estrada do verdadeiro amor não pode correr toda em planície. Certamente que não me vai abandonar, ou esquecer-me, ou se recusar a me amar só porque não posso mudar a opinião conservadora dos meus pais. Não conheço nenhuma fidalga na Inglaterra, tão bonita ou inteligente como você. Terei mais orgulho em levá-la para casa como Lady Chandos do que se você fosse filha de rainha. Crê no que digo?
— Creio em você, — foi a resposta.
— Não se importe com mais ninguém. Meu pai sabe admirar uma bela mulher: ele certamente há de apreciá-la. Minha mãe a princípio será desagradável, mas em pouco tempo aprenderá a amá-la também e então tudo correrá no melhor dos mundos.
Agarraram-no duas mãozinhas delicadas.
— Tem certeza disso, Lancelot? — disse a moça, soluçando. — Está bem certo?
— Sim, querida, mais do que certo. Você será Lady Chandos de Cawdor, e esse é um dos títulos mais antigos e nobres da Inglaterra.
— Mas, sua mãe realmente nos perdoará, e amará novamente o seu filho?
— Sim, pode crer no que digo. Agora, Leone, deixe-me contar-lhe os meus planos. Tudo parece muito estranho, mas não poderemos fazer de outro modo; na guerra e no amor, todos os meios são bons. A cerca de vinte milhas daqui fica a pequenina vila chamada Oheton. Estive lá ontem e foi lá que concebi este plano. Leone, volte o belo rosto para mim, e demonstre-me que está escutando o que digo.
— Estou ouvindo, Lancelot.
— Não o está de todo o coração. Veja como a compreendo bem. Seus olhos observam a água e a água canta sobre as pedras:
Mas esse anel foi partido, E o juramento esquecido...
— Por que não tem mais, confiança em mim, Leone?
A moça voltou-se, admirada e temerosa.
— Como sabe os meus pensamentos?
— Adivinho, ao ver a expressão trágica que tem no rosto, e ao notar como olha para a água que cai. Não olhe para o rio, olhe para mim.
A moça voltou para ele os olhos brilhantes e negros, e Lord Chandos continuou:
— Lá na vilazinha sossegada de Oheton, Leone (é uma vilazinha tão quieta que o povo parece dormir o dia todo), as casas são separadas umas das outras por jardins com grandes árvores. Os habitantes parece não se conhecerem uns aos outros. Não se ouve ali nenhuma intriga; as pessoas, as casas, as ruas, tudo dorme o sono da placidez. Na extremidade da rua principal fica a igreja, uma das igrejas normandas mais antigas e originais; o vigário é o reverendo Josias Barnes.
— E por que me conta você tudo isso?
— Você compreenderá daqui a pouco. O reverendo Barnes tem mais de sessenta anos e tanto ele como as suas ovelhas, a igreja, as ruas e as casas, dormem sossegadamente de dia e de noite. Nada poderia tirá-los do seu sono. Não se interessariam por coisa alguma, nem se admirariam de coisa alguma. Pois bem, Leone: arranjei hospedagem para mim, nessa vila, por três semanas; ninguém prestará atenção a esse fato, e poderei entrar e sair quando e como muito bem entender. Mandaremos, então, publicar os pregões de nosso casamento. O bom vigário os lerá em voz sonolenta: "Desejam casar-se, pela primeira vez, Lancelot Chandos e Leone Noel". O povo estará a cochilar e ninguém entenderá muito bem os nomes. Se alguém os entender, não saberá a quem pertencem; logo, não haverá impedimento; não acha, Leone?
A água cantava sobre as pedras, parecendo dizer: "Não há impedimento, não há impedimento, Leone".
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