CAPÍTULO XIX
A PROFECIA DE LEONE
Não há palavras que possam descrever o estado de espírito em que se encontrou Lord Chandos depois da entrevista com sua mãe, em Cawdor. Foi para Londres. Durante os três primeiros dias, andou a correr de um advogado para outro. Todos se riam dele. Lá estava a lei claríssima, tão clara que uma criança a entenderia. Sorriam ao ouvi-lo falar, com um leve desprezo. Não podiam compreender que alguém ignorasse assim a lei. Compadeciam-se dele, quando o ouviam falar de sua jovem esposa; mas, em matéria de auxílio... nada!
A única esperança era a de poder tornar a casar, no dia em que fosse maior de idade. Disso não havia a menor dúvida, mas teimava em ver se encontrava qualquer meio de tornar a casar imediatamente, se fosse possível. Entretanto, não havia meio algum e Lord Chandos teve de resignar-se ao inevitável. Ignorava que Leone conhecesse a terrível sentença, e não sabia como lhe dar semelhante notícia. Estava cansado de tantas tristezas e emoções. Com que palavras poderia dizer-lhe que não era sua esposa legítima perante a lei, e que se ela não desejasse enlamear o seu caráter, deveria abandoná-lo o mais depressa possível?
Conhecia muito bem o caráter de sua mãe, para ousar demorar-se em tomar qualquer resolução. Sabia que, se Leone continuasse, por mais um dia que fosse, sob o seu teto, quando chegasse o dia de ser apresentada à sociedade sua mãe se aproveitaria desse fato contra ela, impedindo-a de conhecer quem quer que fosse.
Não havia como fugir; era preciso contar-lhe tudo. Escreveu-lhe uma carta, dizendo que estaria em River View no dia seguinte, para almoçar; sabia que deveria partir para o continente no mesmo dia.
Daria tudo quanto possuía no mundo, para renunciar ao favor real, do qual tanto se orgulhara, porém não era possível. Fazê-lo, seria não só desistir de toda e qualquer posição, como se desgraçar. Semelhante ingratidão para com Sua Majestade teria privado a si, e talvez até aos seus descendentes, de toda e qualquer simpatia na corte.
Devia partir. Depois de ter passado a dor violenta do primeiro instante, considerou mesmo que era melhor ausentar-se. Não suportaria saber que Leone estava perto dele, e não a poder ver sem lhe falar.
Embora doloroso, era melhor assim. Se por tão longos meses tinham que estar separados, seria melhor que estivessem longe um do outro. Não se atrevia a confiar em si, permanecendo na Inglaterra. Amava tanto Leone que tinha certeza de que seu amor derrubaria as barreiras que a lei levantara entre eles. Iria a River View, e, sofrendo e fazendo sofrer o que fosse necessário, dir-lhe-ia tudo, deixando-a o mais feliz que as circunstâncias o permitissem. Ficaria no estrangeiro todo o tempo que fosse necessário; depois, no dia em que atingisse a maior-idade, voltaria, e casaria com ela. A profecia de sua mãe parecia-lhe ridícula. Esquecer-se de sua bem-amada! Era preciso que os céus caíssem primeiro sobre a terra. A canção da roda d’água não lhe dizia respeito. Não era com ele o caso do anel partido.
Como seriam felizes se, depois de passado algum tempo, pudesse apresentar sua querida Leone à sociedade! Viveria pensando no futuro, a fim de que o presente não lhe parecesse tão triste.
Ao chegar à River View e fitar Leone, compreendeu que ela sabia de tudo.
Não que a sua beleza houvesse diminuído, ou seus lábios tremessem ao tentar sorrir. Todo o seu rosto, belíssimo como sempre mudara por completo. Havia nele toda a intensidade da tragédia.
Lord Chandos estreitou-a nos braços e cobriu o triste rosto com lágrimas e beijos.
— Querida! Você já sabe tudo. Bem vejo que já sabe tudo.
O tom de felicidade, que havia na sua voz, desaparecera; entretanto, ainda era musical.
— Sim, — disse ela; — sei tudo.
— Querida, a culpa não é minha. Você certamente pensa que eu deveria sabê-lo; mas juro perante Deus que não pensei que fosse assim, nem suspeitei disso. Preferiria ter morrido a colocá-la em posição falsa, Leone, você sabe disso.
Ela passou os lindos braços era volta do pescoço de seu amado, e descansou a cabeça no seu peito.
— Tenho certeza de que foi assim. Nunca o julguei de outra forma. Tenho absoluta certeza de que você pretendia fazer-me sua esposa.
— Entretanto, você é minha esposa; embora digam o contrário, você é a minha querida e amada esposa, Leone. Que é isso, querida? Você não tem forças para lutar? Olhe para mim, Leone. Fizeram o pior que poderiam fazer, mas não importa. Separaram-nos por alguns meses. Logo que essa separação termine, tornaremos a nos reunir para o resto da vida.
Ela o apertou nos braços, apaixonadamente.
— Sim, confio em você. Mas é tão difícil de suportar, Lancelot! Éramos tão felizes, e você constituía o mundo todo para mim. Como viverei os longos meses de espera? Lancelot, talvez você fique zangado comigo... Fiz uma coisa que talvez não aprecie.
— É impossível, Leone. Hei de sempre gostar de tudo quanto você faz. Que é isso, querida? Está trêmula! Sente-se, não há nada a temer.
— Deixe-me todavia contar o que foi, assim, com a cabeça encostada ao seu peito. Não fique zangado comigo, Lancelot. Depois de ter o Dr. Sewell estado aqui, senti que não podia suportar o sofrimento. Fui a Cawdor e falei com Lady Lanswell.
Lord Chandos teve um sobressalto de surpresa. Leone levantou o rosto, ainda um tanto receosa, para ver se ele estava zangado.
— Foi a Cawdor falar com minha mãe? Leone, como teve coragem? Que fez ela? Que disse?
— Não está zangado comigo por causa disso, Lancelot?
— Zangado? Oh, não, mil vezes não. Não poderia ficar zangado. Por que foi... e com que fim?
— Fui para pedir-lhe que tivesse piedade de nós, para desistir de uma sentença tão cruel, para ter pena de mim que o amo tanto.
— E a resposta? — perguntou Lord Chandos, ansioso.
— A resposta foi o que pode haver de mais cruel e perverso. Perdoe-me, Lancelot; é sua mãe, bem sei, mas tomou um poder divino nas suas mãos cruéis. Separou-nos, embora eu lhe implorasse misericórdia. Disse-lhe como nos amávamos, mas ela não teve piedade, não se mostrou misericordiosa, não foi mulher, não quis abrir o coração. Foi fria, cruel, orgulhosa e perversa. Insultou-me, humilhou-me. Recusou-se a ouvir as minhas palavras, e, ao deixá-la, jurei que me havia de vingar.
O seu corpo tremia de paixão. Ele apertou-a ainda mais contra o peito.
— Querida, não pense em vingança. Sinto imensamente que minha mãe a tenha tratado mal. Se me houvesse consultado, eu certamente a aconselharia que não fosse. Veja bem, não estou zangado ou aborrecido com você; mas desejaria que não houvesse passado por mais esse sofrimento. Entretanto devo confessar que sempre imaginei que, se minha mãe a visse, nossa causa estaria ganha. Não podia crer que qualquer criatura viva fosse capaz de resistir ao seu lindo rosto.
Ela fitou-o com grande ternura.
— Você realmente o ama muito, Lancelot? Nunca viu outro rosto do qual gostasse tanto assim?
— Nunca vi e nunca verei, querida; quando nos separarmos, ele viverá no meu coração até que nos encontremos de novo.
Braços carinhosos apertaram-no ainda mais.
— É mesmo necessário que nos separemos, Lancelot? — suspirou ela. — Casamos perante Deus. Por que nos devemos separar? Oh, Lancelot, não pode ser verdade, ninguém pode dizer que não sou sua esposa.
Procurando acalmar-se e acalmá-la, Lord Chandos mostrou-lhe que era inevitável submeterem-se à voz da lei durante os próximos meses, para que pudessem assegurar sua felicidade futura e o seu bom nome. Depois, contou-lhe da honra que lhe fora conferida pela corte e de como era forçado a aceitar; caso contrário, perderia completamente a boa vontade do rei.
Ela o ouvia, mas o seu rosto era como o de uma estátua de mármore. Vagarosamente os braços carinhosos abandonaram o pescoço do jovem e caíram inertes. Os olhos da linda moça estavam marejados de lágrimas. Ele procurava consolá-la.
— Bem vê, querida, que de qualquer modo nos teríamos de separar. Embora esta nomeação seja um favor de Sua Majestade, é ao mesmo tempo uma ordem imperativa. Eu não poderia recusá-la, sem arruinar por completo minha futura carreira, nem poderia levá-la comigo, de modo que teríamos de nos separar.
— Compreendo, — disse Leone, com suavidade; mas um calafrio, que não lhe foi possível evitar, fê-la estremecer da cabeça aos pés.
— Leone, — disse Lord Chandos, — não temos muito tempo para passar juntos, e ainda temos muito que fazer. Conte-me primeiro: que pensa de minha mãe?
— É muito bela, muito orgulhosa, muito cruel, fria e arrogante... senão perversa.
— A opinião, não é lisonjeira.
— Eu a poderia amar e venerar se ela houvesse sido boa para mim, mas foi cruel e algum dia me vingarei.
Ele fitou-a com ar grave.
— Não me agrada ouvir isso, querida. Como poderá vingar-se?
O rosto de Leone iluminou-se.
— Não sei ainda. Tenho às vezes um poder profético de ver o futuro. Neste momento, estou certa de que um dia sua mãe virá chorar diante de mim tão amargamente como eu chorei diante dela, e sem o menor resultado, como se deu comigo.
— Espero que não. Tudo correrá bem para nós, Leone. Vingança é uma palavra horrível, que não fica bem nesses lindos lábios. Deixe-me apagá-la com um beijo.
E, curvando a cabeça, beijou-lhe os lábios com um amor que parecia mais forte do que a morte e mais verdadeiro do que a eternidade.
CAPÍTULO XX
A SEPARAÇÃO
Tinham estado a conversar por mais de uma hora. Lord Chandos lhe contara toda a história do casamento real, explicando-lhe em que consistia a sua embaixada; dizendo-lhe quanto tempo seria forçado a permanece fora do país, de como pensaria constantemente nela, implorando-lhe que lhe escrevesse todos os dias. E Leone por sua vez lhe contara, pormenorizadamente, a sua entrevista com o Dr. Sewell e Lady Lanswell. Depois, o jovem fidalgo lembrou-se de que era tempo de preparar algo para o futuro.
— Então teremos que viver separados até junho próximo, Leone, — disse delicadamente. — É uma sentença terrível, mas o tempo passa logo. Diga-me, querida, onde deseja viver até que chegue junho?
A jovem fitou-o admirada.
— É preciso que eu me afaste de casa, Lancelot? Deixe-me viver aqui. Nenhuma outra casa me pareceria o meu lar. Sinto que, se saísse daqui, nunca mais o veria.
— Querida, isso são tudo fantasias. Esteja onde estiver, meu aniversário é a trinta de junho, e nesse dia eu voltarei para você e a farei minha esposa.
— Sou sua esposa. Deixe que os outros digam o que quiserem. Não o negue você.
— Nunca o farei, Leone. Você é minha esposa e logo que a lei o permita, usará o meu nome, tal como agora partilha do meu coração e da minha vida.
— No dia trinta de junho! — suspirou ela. — Contarei as horas e os minutos, até que chegue esse dia. Gostaria, Lancelot, de dormir um longo sono, desde a hora da nossa separação até o momento em que de novo visse o seu rosto. Entretanto, terei que viver todas essas horas e minutos, e ser-me-ão minutos, horas e dias de tortura.
— Passará rápido o tempo. Leone, minha querida, encha-se de esperança e não de desespero.
— Meu amor... oh! Meu amor, — suspirou a jovem. E na sua voz havia um tom de apaixonada ternura.
— Voltarei para você, Leone. Vamos imaginar como será o dia trinta de junho e assim se sentirá mais consolada recordando-se dessa imagem. O dia será lindo, bem o sei, o céu azul e o sol brilhante, sem uma única nuvem. Pode imaginar um dia assim, Leone?
— Sim, — replicou ela, aconchegando outra vez a linda cabeça contra o peito de seu amado.
— Esteja eu onde estiver, continuou o jovem lorde, darei todas as providências para que na manhã do dia de meu aniversário esteja junto de você. Vê aquele portão branco, além, no qual a roseira de rosas brancas floresce no verão? Querida, levante-se cedo, no dia trinta de junho, e fique a observar o portão. Mesmo que (coisa impossível) não tenha tido notícias minhas durante todo o tempo em que estivermos separados, fique a observar aquele portão no dia trinta de junho. Ver-me-á entrar por ele. Abrirei caminho entre as rosas, colherei as mais belas, juntá-las-ei ao lírio mais lindo que houver encontrado no vale e trarei o ramalhete como emblema do nosso eterno amor. Ver-me-á caminhar pela alameda do jardim e receber-me-á nos braços, à porta.
— Oh, meu amor, meu amor, — suspirou a moça. — Se já estivéssemos em junho...
O rapaz curvou-se e beijou-lhe docemente os, lábios.
— Junho chegará. Deixe-me terminar o quadro. Terei já comigo os papéis, de modo que poderemos casar nesse mesmo dia, e então o mundo ficará sabendo quem é Lady Chandos. Então, minha mãe procurará quem a procurou, e pedirá para conhecê-la, querida, e este passado terrível será para nós um pesadelo e nada mais. Leone, quando os pensamentos tristes lhe assaltarem o coração, promete-me que procurará ver este lado do quadro e esquecer o outro?
— Prometo, Lancelot.
— Bem vê, meu amor, que em breve a chamarei outra vez pelo doce nome da esposa, bem vê que a sua vida não está em ruínas ao redor de si. A única diferença está em que me encontrarei ausente.
— E essa é a maior diferença que pode haver para mim.
— E para mim também. Mas o tempo logo passará, Leone. Poderá continuar a viver aqui. Não é de estranhar que uma senhora viva só, quando seu esposo está de viagem. Poderá conservar os mesmos criados, não precisará fazer a menor modificação na sua vida. Fique aqui em silêncio e pacientemente, até que eu volte. Vê, querida, como já não parece assim terrível.
— É bastante terrível, mas você acalmou a dor. Oh, querido, você me será fiel? Sou uma simples moça de aldeia, sem nada que me recomende, conforme diz sua mãe; mas o amo tanto... Você me será fiel?
— Minha querida Leone, deveria perguntar se as estrelas são fieis ao céu, se a terra será fiel ao sol antes do que perguntar se serei fiel a você. Você é a minha vida e um homem não pode ser falso para com a sua vida. Você é a alma da minha alma, e ninguém pode trair a sua própria alma. Ser-me-ia mais fácil morrer do que ser falso a você, meu amor.
As palavras apaixonadas deram-lhe nova esperança.
— Lancelot, lembra-se da roda d’água e de como a água parecia cantar as palavras da canção?
— Sim, lembro-me, mas essas palavras não se aplicarão ao nosso caso, Leone, nunca. Não quebrarei jamais os meus juramentos, nem você os seus.
— Não. Mas as palavras não me saem dos ouvidos: “Mas esse anel foi partido, E o juramento esquecido”. Parece que as estou ouvindo agora, Lancelot. Creio que é o vento que as está repetindo.
— É a sua fantasia, querida.
A moça, entretanto, continuou:
— “Como é triste a minha sorte. Só posso achar paz na morte”. Ah! Lancelot, meu amor; isso acontecerá a qualquer de nós dois. Será que um de nós só encontrará paz na morte?
— Não. Encontraremos a paz nesta vida, primeiramente.
Ela pousou a mão no braço dele.
— Lancelot, — disse a jovem — tive um pesadelo terrível na noite passada. Durante muitas horas não pude dormir. Quando finalmente fechei os olhos, sonhei que estava ao lado da roda d’água em Rashleigh. Parecia-me que havia sido levada até ali por um pesar maior do que o meu coração podia suportar, e que me atirei à água. Oh, Lance, meu amor, Lance, eu me sentia afogar. Sentia que meu corpo flutuava e mergulhava outra vez. Meu cabelo prendeu-se a um galho submerso, a água entrava-me pelos olhos e pelos ouvidos. Morri. No sonho senti todas as agonias da morte. Meu último pensamento foi para você. "Lancelot!" gritava eu, no momento de morrer, "Lancelot! Quero você antes de morrer!" Foi um sonho horrível, não foi? Acha que esse sonho se cumprirá?
— Não, — disse o rapaz. Estava pálido, porém, e nos seus olhos havia expressão de temor.
A moça tornou a levantar para ele o rosto.
— Lancelot, acha que alguém jamais amou como eu o amo? Fico às vezes a pensar nisso. Vejo esposas contentes e felizes, e penso: "Será que para elas um sorriso do esposo vale mais do que tudo neste mundo, como se dá comigo?"
— Não creio que haja no mundo muitas pessoas capazes de amar como você, Leone. Mas agora, querida, é preciso que eu a deixe. Leone, passe o tempo a estudar. Mais alguns meses de trabalho intenso como o dos últimos três meses, e minha linda esposa estará uma perfeita dama da sociedade. Além disso, o estudo fará parecer que o tempo passa mais depressa.
— Farei tudo quanto quiser, Lancelot. Escreverei a você todos os dias e peço-lhe que me escreva freqüentemente.
— Hei de o fazer, querida, mas não se aborreça se as minhas cartas não forem freqüentes como as suas.
O correio do estrangeiro não é tão regular como o nosso, e se estiver viajando na Alemanha, nem sempre terei tempo para escrever.
— Confiarei em você. Tenho a certeza de que não me abandonará.
Leone era orgulhosa como uma imperatriz, e tinha a energia de uma rainha. No momento da separação, porém, toda a sua força, se dissolveu em nada. Agarrou-se a ele, chorando apaixonadamente. A despedida foi terrível. Ela o amava mais do que é possível descrever com palavras.
— Até breve, meu amor, — dizia ela a suspirar. — Oh, Lance, seja-me fiel, minha vida está nas suas mãos!
— Se eu for falso para com você, querida, que Deus me castigue terrivelmente. Leone, sorria para mim. Não poderei ir-me embora sem a ver sorrir.
Com grande esforço ela sorriu tristemente. O jovem beijou-a nos lábios e nos olhos úmidos.
— Até breve, meu amor, — disse ele. — Pense no dia trinta de junho e nas rosas que lhe vou trazer.
E assim se separaram.
CAPÍTULO XXI
A ESPERA
Leone não poderia dizer como se passaram os dias daquele triste verão. A dor mais violenta veio depois. A princípio, estava demasiado atordoada pela rudeza do golpe para compreender o que havia acontecido. Parecia-lhe impossível que seu casamento houvesse sido anulado, e que seu esposo, como estava habituada a chamá-lo, houvesse partido; mas, à medida que os dias se passavam, a realidade lhe ia martirizando a alma. A monotonia de sua vida era insuportável. Para disfarçar o sofrimento, principiou a estudar com dobrado esforço, pensando na surpresa que causaria a Lancelot quando voltasse. Fazia maravilhas no estudo do piano e do canto. Tomava lições de italiano e de francês.
— Quem deseja, aprende, — dizia de si para si. — Lancelot admirar-se-á do meu progresso, quando voltar.
Os professores, que a ensinavam, admiravam-se de sua aplicação, não lhe conhecendo os motivos. Admiravam-se também do seu extraordinário talento, de sua voz magnífica, do temperamento artístico, da inspiração dramática, o que a fazia destacar-se da mediocridade e, aliado à extraordinária beleza e graça naturais, poderia fazê-la uma grande artista.
 medida que as semanas se passavam, o seu progresso nos estudos se acentuava. Era tão bom estudar por amor ao seu amado, levantar-se de manhã bem cedo, para dedicar-se ao trabalho, pensando nele!
Finalmente, chegou o inverno.
Nunca se esqueceria do primeiro botão de rosa que viu abrir-se. Parecia-lhe silenciosa mensagem das rosas brancas, que, levantando a cabeça, lhe diziam:
Basta de lágrimas, ele vem vindo.
Toda a natureza estava em festa para acompanhar a sua alegria. As aves cantavam, violetas floresciam: era a primavera, a linda primavera, e em junho ele chegaria.
Leone estava quase pronta para o receber. Havia chegado abril, e durante vários meses trabalhara sem descanso. Gostava de pensar no prazer que seu amado teria ao observar-lhe os progressos. Comprazia-se em sonhar com o que diria ele e em como lhe pagaria com beijos e carícias, como a louvaria pelo esforço despendido, como se orgulharia de ter uma esposa assim preparada.
— Quero que me diga a verdade sem rebuços, — pediu Leone a um dos professores.
— Terei muito prazer em dizê-la, a seu pedido.
— Quero que me diga o seguinte: se um dia me encontrasse em qualquer lugar, ignorando que em minha mocidade não havia recebido instrução aprimorada, descobriria, por qualquer coisa nos meus modos, não pertencerem à aristocracia?
— Não, — respondeu o mestre, com franqueza. — Desafio qualquer pessoa a que descubra não ser a senhora filha de um duque. Permita-me que lhe diga com toda a sinceridade: seus modos e a sua conversação em nada diferem dos modos e da conversação de uma fidalga de nascença. São perfeitos.
Depois de ouvir essa declaração, sentiu-se mais feliz. Ninguém poderia rir-se dela, e dizer que Lord Chandos se havia casado com uma mulher do povo.
Seria igual a qualquer outra fidalga, quando pudesse usar o nome de Lady Chandos.
A primavera ia cedendo lugar ao risonho verão de cabelos louros. Ele partira para a Itália. Seus pais estavam lá. Haviam ido passar a primavera em Roma, e Lancelot fora para junto deles.
“Nada mais natural”, pensava Leone. Suas cartas de Roma não eram tão freqüentes, nem tão longas; porém isso não importava. Com certeza, tinha menos tempo, e estando em companhia dos pais não encontrava muitas oportunidades de ficar só para escrever coisas íntimas.
Sua fé nele nunca diminuiu, nunca falhou.
Às vezes admirava-se de que tivesse ido ao encontro de seus pais, depois de estes o terem tratado de forma tão cruel. Não podia compreender.
Parecia-lhe até um desrespeito para com ela o associar-se Lancelot a seus pais, sem que estes tivessem pedido desculpas a ela do modo pelo qual a haviam tratado, e procurado desfazer o mal que tinham feito. Entretanto, talvez Lord Chandos, como homem de alta sociedade, compreendesse melhor as coisas. O que seu amado fizesse, estava bem feito.
Veio maio, com suas flores e lindas manhãs. O tempo corria célere. Mais algumas semanas e chegaria o grande dia, tão longamente esperado.
A moça impressionou-se vivamente com uma palestra que teve com Signor Corli, seu professor de canto. Havia cantado, deixando-o satisfeitíssimo, uma das mais belas e difíceis cavatinas do "Der Freichutz" e o bom maestro admirava-se de sua voz admirável, e da impecável execução.
— É pena, — disse-lhe o mestre, — é pena que sua posição social a iniba de trabalhar no palco.
Leone riu.
— No palco? — repetiu ela. — Como assim?
— Porque, com o talento que tem, viria a ser a primeira cantora dramática do mundo. Seria a rainha do lírico.
— Pensa realmente que eu tenha talento para isso?
— Talento? Muito mais que talento. A senhora é um gênio. Só uma vez em cada cem anos aparece uma artista assim no mundo. Se a senhora entrasse para o palco, faria sucesso mundial, seu nome ficaria conhecido nas terras mais longínquas. O povo enlouqueceria por sua causa.
— Está muito bem, — replicou Leone a rir; — felizmente o mundo vai ser salvo da loucura, pois certamente não me vou dedicar a essa carreira.
— Para o mundo da arte, é pena.
Entretanto, depois que o Signor Corli saiu, Leone ficou pensativa, a sorrir, lisonjeada por aquelas palavras de louvor. Seria verdade?
CAPÍTULO XXII
A RECONCILIAÇÃO
Aqueles poucos meses se passaram cheios de atividade e emoções para Lord Chandos. A dor, que sentira ao separar-se da esposa, fora muito aguda, quase insuportável; mas a vida difere muito para os homens e para as mulheres. As mulheres ficam em casa, e choram. Os homens encontram logo atividades e diversões, que trazem o esquecimento.
Leone esteve vários dias prostrada e inerte, remoendo a tristeza que a avassalava. Lord Chandos sofreu intensamente durante algumas horas; depois, as distrações da viagem, os milhares de assuntos que lhe atraíam a atenção acabaram por absorvê-lo.
Tudo isso o forçou a deixar de pensar em Leone. Tinha milhões de outras coisas importantes em que pensar. Não que cessasse de amá-la; porém os seus deveres não lhe deixavam tempo para evocar a imagem de sua querida. Quando a tristeza ameaçava tomar conta de sua alma, dizia de si para si:
— Agora preciso trabalhar; mais tarde hei de pensar nisso.
Foi assim que quase não encontrou tempo para ficar triste, e ter saudades.
E quando encarava a sociedade, não havia remédio senão fazer cara alegre e mostrar satisfação. Todos lhe davam parabéns pela posição elevada que ocupava.
Veio afinal o dia da partida para a missão real. Seu companheiro, Lord Dunferline, dos mais famosos estadistas e dos fidalgos mais nobres da Inglaterra, era muito mais idoso do que ele. Homem de talento, com muitos conhecimentos práticos do grande mundo, constituía o melhor amigo que se poderia ter escolhido para o jovem lorde, e Lady Lanswell sentia-se feliz por ter conseguido, com a sua habilidade diplomática, tão alta missão para o filho. Lord Dunferline não entendia uma vírgula a respeito de sentimentalismo. Na sua opinião, os homens vinham ao mundo para tirar dele o máximo proveito, aumentar suas riquezas, viver materialmente do melhor modo possível. Só pensava em comprar bem, vender bem, fazer tudo bem feito, gozar a vida do melhor modo possível, procurar o máximo de conforto e alegria fútil. Não conhecia aborrecimento algum, nunca estivera doente, não tinha a menor idéia do que fosse pobreza, nunca chorara a perda de um amigo. Sua vida sempre fora próspera e feliz.
Não era mal aproveitada qualquer honraria que lhe fosse concedida. Lord Dunferline tirava sempre o máximo resultado de tudo, e fazia render o máximo. Rígido na observância da etiqueta, fazia questão de ser também tratado com a máxima deferência. Tanto gabou a suprema honra que lhes havia sido conferida que, por fim, Lord Chandos principiou a sentir-se engrandecido também.
O casamento deveria realizar-se em Berlim, e os representantes da corte da Inglaterra foram recebidos com honras reais. A nobreza abriu-lhes os braços, as famílias da alta sociedade berlinense disputavam-se a honra de oferecer festas aos nobres que representavam os reis da Inglaterra.
Mesmo assim, Lord Chandos ainda encontrava tempo para ler as cartas de sua amada. Preferiria passar sem comer a deixar sem leitura uma única missiva de Leone. Escrevia-lhe o mais freqüentemente que lhe era possível, e suas cartas teriam satisfeito ao coração mais apaixonado. Dizia-lhe quanto a amava, como sentia saudades dela, como lhe parecia vazio o mundo, apesar de toda a grandeza que o cercava, somente por não estar ela a seu lado. Palavras estas que a consolavam. Seriam verdadeiras ou falsas? Quem poderá dizê-lo? Talvez nem mesmo Lord Chandos soubesse.
Depois, durante as festas do casamento, não lhe foi possível escrever a Leone, freqüentemente. Seu tempo era muitíssimo escasso. Escreveu-lhe uma, frase que a consolou: "Embora rodeado pelas mais lindas mulheres da Europa, não encontro uma única que possa ser comparada a você, em beleza". Quantas vezes Leone beijou aquelas palavras, como fazem as mulheres ao receberem cartas apaixonadas dos homens a quem amam.
Como era diferente o mundo em que Lord Chandos agora vivia! Não lhe restava tempo para pensar ou refletir. Quando não estava em alguma festa, sentia-se de tal modo cansado que não podia ter outra idéia senão dormir. O jovem fidalgo às vezes se admirava de gostar tanto daquela vida agitada, em absoluto contraste com a sua vida sossegada de até então, nas mansões paternas ou em River View.
Na sua vida anterior não havia fulgores de pedras preciosas, nem brilho de ouro e prata, nem uniformes de grande gala, nem tronos, coroas, reis e rainhas... somente Leone e ele. Entretanto, eram bem felizes. Quanto a amava! E o seu coração se sentia confortado naquele amor.
Que diria a sociedade quando ela se apresentasse, em toda a sua majestade? Gostava de sonhar com isso. Havia ali muitas mulheres belas e moças lindas, mas nenhuma se podia comparar a ela... Nenhuma.
Prometera a si próprio que a amaria sempre da mesma forma. Pretendia ser-lhe fiel como a bússola é fiel ao pólo. Acreditava que o estava sendo, mas insensivelmente aquela vida de luxo e grandeza o ia fazendo mudar.
Depois de algum tempo, embora continuasse a amá-la da mesma forma, deixou de pensar com tanto interesse no seu modesto lar de Riverside View. Principiou a interessar-se mais pelas honras e títulos.
Em pouco tempo estava muito popular em Berlim. O jovem nobre inglês Lord Chandos era tão popular como um soberano e não havia pressa em voltar para casa.
Foi, certa noite, a um baile dado pela esposa do embaixador inglês, Lady Baden. Esta sorriu ao vê-lo.
— Reservei-lhe uma grande surpresa, — disse a dama, sorrindo. — Estou certa de que lhe será uma surpresa encantadora. Queira entrar no pequeno salão, o terceiro à esquerda. A porta está fechada, abra-a e verá o que há lá.
Lord Chandos fez uma inclinação e seguiu as instruções recebidas. Não esperava encontrar nada de extraordinário, mas era hábito seu respeitar o capricho das damas. Abriu a porta descuidadamente e deu um passo para trás, admirado do que via. Seu pai e sua mãe. Sua mãe estava pálida de ansiedade e estendia-lhe os braços cobertos de jóias, numa expressão de carinho.
— Lancelot, meu filho! — exclamou ela. — Que prazer em tornar a vê-lo!
Com o cuidado que têm os ingleses em evitar as cenas em público, Lord Chandos voltou-se e fechou a porta. Depois, Lord Lanswell falou.
— Meu filho, finalmente estamos juntos de novo!
Não houve uma única palavra de resposta da parte do jovem fidalgo. Fez uma curvatura respeitosa, e os braços de sua mãe caíram ao longo do corpo, sem o haverem abraçado.
— Não há dúvida de que é uma surpresa, — disse; — ser-me-ia mais agradável, entretanto, se me houvessem avisado antes.
— Lancelot, — declarou o conde, — diga-me o que quiser, mas peço-lhe que poupe a sua mãe.
— Minha mãe foi muito cruel para comigo, — respondeu o jovem lorde, afastando-se dela com frieza.
A condessa, entretanto, já se havia dominado. Estendeu-lhe a mão com graça soberana, e fitou o filho com o melhor dos sorrisos.
— Meu querido Lancelot, as crianças chamam também de cruel ao cirurgião que amputa uma perna infectada que pode causar a morte; entretanto, esse médico é grandemente misericordioso. O que fiz, fi-lo na intenção de ser muito boa para você.
— Será melhor que a palavra "bondade" não seja mais mencionada em nossa conversação. A senhora apunhalou-me o coração e desgraçou a vida da moça que eu amava. Minha mãe, se é a isso que a senhora chama bondade, creio que já não entendo mais a linguagem humana.
— Fi-lo para seu bem, Lancelot.
— Amando a moça de todo o coração, como eu a amava, qualquer pessoa de bom senso julgaria que a senhora, para meu bem, a deveria amar.
— O amor é coisa de muito pouca importância na vida Lancelot, — disse a condessa de Lanswell. — Você tem bastante bom senso para não estragar um belo futuro por causa da tolice sentimental, a que se dá o nome de amor.
— Minha mãe, — replicou o jovem lorde, — previno-a de que vou casar com ela no dia do meu aniversário. Não retardarei nem uma hora. Compreende isso claramente?
A condessa de Lanswell encolheu os ombros.
— Quando for maior de idade, poderá fazer o que entender. Mas não vejo necessidade de brigarmos por causa de um fato que ainda não se deu. Quando chegar esse dia, discutiremos a atitude que deveremos tomar.
— Estou perfeitamente resolvido. Não haverá argumento algum que me faça mudar de idéia.
— Não vou apresentar argumentos, — replicou a condessa, sorrindo com orgulho. — Quando for maior, poderá fazer o que quiser; não terei poderes para interferir. Mas de nada adianta estarmos a discutir isso. Deixemos correr o tempo. O meu objetivo, ao vir aqui, foi o de reconciliar-me com você. Você é o nosso único filho e, embora me julgue orgulhosa e fria, ainda o amo e não desejo estar de relações cortadas com meu único filho. Sejamos amigos, Lancelot, pelo menos enquanto é menor.
E tornou a estender a mão com um sorriso a que o filho não podia resistir.
— Vou dizer-lhe tudo, — continuou a condessa; — aquela jovem do povo veio falar comigo. Tivemos uma entrevista melodramática. Não desejo ofendê-lo, Lancelot, mas sei que daria uma ótima Prima Donna de tragédia, numa companhia de quinta ordem.
— Oh, não fale assim, — censurou-a delicadamente o marido.
Lady Lanswell riu.
— Foi realmente sensacional. A entrevista terminou com uma terrível ameaça da parte dela em vingar-se de mim, de modo que devo preparar-me para a guerra. Mas, Lancelot, seja como for, continuemos amigos. Não poderá recusar um favor à sua mãe, e este é o primeiro favor que lhe peço.
— Não o posso recusar, — replicou o jovem; — seremos amigos, conforme a sua expressão, minha mãe, mas a senhora precisa mudar de opinião a respeito de Leone.
— Numa outra ocasião, — disse a condessa. — Beije-me agora, meu filho, e sejamos amigos. Aperte a mão de seu pai. Estamos hospedados no Hotel France. Logo que o baile terminar, vá cear conosco.
E assim se efetuou a reconciliação.
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