CAPÍTULO VII
CONSELHO DE AMIGO
— Mas, — perguntou Leone, ansiosa, — não haverá perigo, Lance? Admitindo-se que alguém ouvisse os nomes e nos reconhecesse, que sucederia?
— Não tenha receio. Nada se poderá fazer sem correr algum risco; porém, creio não haver perigo. Garanto que ninguém naquela igreja ouvirá distintamente os nomes. Depois, verá que previ tudo. Passadas as três semanas, nós nos encontraremos numa linda manhã, e nos casaremos. Tenho um amigo que se prestará a ser testemunha. A seguir, proponho que vamos a Londres, onde a apresentarei, primeiramente, a meu pai; depois, iremos a Cawdor, visitar minha mãe. Agrada-lhe o plano, Leone?
— Gostaria mais se eles soubessem antes de casarmos, — respondeu ela, em tom grave.
Foi com gravidade, também, que ele declarou:
— Não pode ser, Leone. Você vê, ainda não sou maior; só completarei vinte e um anos em setembro; e se meus pais souberem, têm poderes para impedir o casamento, mas se casarmos sem que saibam, é claro que nada poderão fazer.
— Não me agrada isso, — disse a moça, estremecendo. — Preferiria que tudo fosse feito abertamente, e com sinceridade.
— Mas, Leone, não, pode ser. Não compreende então? Bastaria que seu tio soubesse, para procurar impedi-lo. Seu caráter conservador, honesto e sólido, fá-lo-ia considerar esse casamento uma loucura; viria com os argumentos de casta, posição social e outras tolices. Se quisermos casar, teremos de conservar o segredo para nós, unicamente. Por certo, Leone, que você me ama o bastante para sacrificar por mim esse capricho, não é verdade?
Ela voltou para o lorde o belo rosto.
— Eu o amo tanto que estaria pronta a morrer por você; por isso mesmo não quero que se veja em dificuldades por minha causa.
— Leone, nenhuma dificuldade me poderia trazer maior desgosto do que perdê-la; isso seria o suficiente para matar-me. Ouça-me, Leone, é possível que eu não ficasse pálido e magro como os namorados desiludidos, mas estou certo de que me mataria ou, pelo menos, mataria minha alma. Nunca mais poderia ser feliz. Querida, não me torture com uma centena de obstáculos. Concorde com o meu plano.
Quem poderia resistir a súplica assim? Quem resistiria àqueles beijos apaixonados, àquelas palavras carinhosas? Leone não resistiu. Era tão bom ser amada com tal ardor.
— Não diga uma palavra do nosso segredo ao seu honesto e bom tio, Leone. Se disser, ele se julgará na obrigação de ir contar tudo ao Dr. Hervey. Promete-me então, Leone, fazer o que peço, e que dentro de três semanas será a minha querida esposa?
— Sim, prometo, Lancelot.
Sua voz era terna, mas grave, e no seu rosto brilhava a luz de amor nobre e puro.
— Beije-me então, em sinal de nosso contrato de casamento.
Leone pousou seus lábios nos dele e o beijou, espontaneamente, pela primeira vez.
— Este é o selo do nosso contrato, — disse o fidalgo; — agora nada nos poderá separar. Esperava que você consentisse, para dar-lhe isto.
E assim dizendo abriu um belo estojo de jóias, de onde tirou lindo anel de brilhantes.
— Este anel é um anel de casamento. Deixe-me que o coloque no seu dedo.
A moça deu um passo para trás.
— Lancelot, você se lembra das palavras da canção. Parece-me de mau agouro que você me ofereça um anel, junto a este regato.
— Você é supersticiosa, Leone. Parece-lhe que esse ribeiro traz alguma infelicidade?
— Não sei exprimir o que sinto, mas tenho o pressentimento de que as águas cantam uma história triste.
— Não. Pense antes que as águas cantam a canção nupcial de um jovem que será o mais devotado e amoroso dos maridos. Deixe-me colocar o anel.
Ela estendeu a mão, a linda mão, levemente morena, de palma rosada e dedos delicados. No momento em que o jovem ia colocar o anel, este caiu na água, e Leone deixou escapar um grito.
Ali lhe dei um anel, por selo do nosso amor...
— Não se perdeu, — disse ele, — não caiu no leito do rio; está aqui.
Olhando para baixo, Leone viu os brilhantes a fulgirem dentro da pequena poça d’água, entre duas pedras Lord Chandos o apanhou e enxugou.
— Você o estimará ainda mais agora que foi batizado no seu regato favorito. Dê-me a mão outra vez, Leone. Desta vez terei mais sorte.
Colocou-lhe o anel no dedo, e depois beijou carinhosamente a mão.
— Você zangou-se comigo da primeira vez que lhe beijei a mão. E agora tenho o seu coração, querida. Não haverá promessas, nem anéis quebrados para nós, Leone, não importa o que a água cante ou diga.
— Espero que não, — disse a moça, suspirando.
— Mudar-me-ei para Oheton amanhã. Terei que passar a maior parte do tempo lá, mas quero que me prometa encontrar-se comigo todas as tardes. Encontrar-nos-emos aqui, junto ao rio. Depois de casados, verei se consigo comprar o moinho, o rio e todas as terras ao redor. Considerarei sagrado este lugar. Dentro de três semanas, Leone, você será minha esposa.
— Sim, — replicou ela; — dentro de três semanas.
Tudo se havia tornado silencioso em volta deles. Os passarinhos já dormiam, e as folhas das árvores já não farfalhavam, sacudidas pela brisa. Só se ouvia o ruído das águas remoinhando por entre as pedras.
— Lancelot, — exclamou, subitamente: — entende o que dizem as águas?
— Não, — replicou ele, a rir; — não tenho a imaginação vivida como você. Que dizem elas?
— Mágoa, mágoa, mágoa...
— Pois não entendo isso. Para mim, estão a dizer simplesmente: Amor, amor, amor...
A noite principiava a cair, e Lord Chandos acompanhou-a até perto de casa.
Nessa mesma noite Lord Chandos e Sir Frank Euston tiveram longa conferência.
— Naturalmente, — dizia Sir Frank, — se você apela para minha honra, nada poderei dizer, mas peço-lhe que reflita.
Lord Chandos riu. No seu belo rosto, ruborizado agora, via-se uma expressão de impaciência.
— Aquele que hesita, nada faz, — disse. — Posso refletir quanto você quiser, que isso em nada modificará minha resolução, nem fará diminuir o meu amor por ela.
— Há um velho provérbio que gostaria de recomendar a você: "Homem casado, homem estragado".
— Eu me estragaria de boa vontade, desde que casasse com ela. E casarei, mesmo que todos os poderes da terra estejam contra mim.
— Bem sei que de nada valem os argumentos, depois que um homem está decidido a fazer uma tolice; mas pense um instante no terrível aborrecimento que vai causar a seus pais.
— Não vejo por quê. Não há motivos para ficarem aborrecidos. Meu pai casou com quem bem quis. Por que não posso fazer o mesmo?
— Mas você vai espezinhar as leis de nossa classe. Por mais bela que seja á sobrinha de um fazendeiro, não podemos supor que, nem mesmo por milagre, fosse capaz de substituir a Condessa Lanswell.
Rubor intenso coloriu o rosto do jovem lorde.
— Discutiremos tudo quanto você quiser, Frank, mas não toque no nome da condessa.
— Você me pede que seja testemunha do seu casamento. Creio, pois, que tenho o direito de dizer tudo quanto me vem à mente. Quero falar com toda a franqueza, como desejaria que um amigo falasse a meu irmão, se ele estivesse na iminência de cometer uma tolice.
— Julgo-me um homem de juízo, e não um tolo, em querer casar por amor.
— Caro Lancelot, este é o seu erro: julgar-se homem, quando não passa de menino.
Parou subitamente, pois o jovem lorde o encapava, com ar de desafio.
— Não repita isso, Frank, se não quer pôr um ponto final à nossa amizade.
— Não desejo ofendê-lo, Lancelot; mas a verdade é que ainda não tem idade bastante para pensar em casamento. Seus gostos ainda não estão apurados. O que aprecia hoje poderá aborrecê-lo daqui a seis ou dez anos. Afirmo-lhe que, se você casar com essa sobrinha do fazendeiro, dentro de dez anos estará terrivelmente arrependido. Ela não se poderá adaptar, nem pelos gostos, nem pela educação, nem por coisa alguma, ao lugar que lhe compete na nossa sociedade. Você sabe disso, você sabe que quando a sua beleza passar, com os anos, o arrependimento virá, e então será tarde. Aceite o meu conselho, enquanto é tempo.
— Discutir com um homem apaixonado é o mesmo que discutir com um louco. E eu estou realmente apaixonado.
— E está doido também. Um dia compreenderá que esteve completamente louco.
Lord Chandos riu.
— Mas a minha loucura é metódica. Vamos, Frank, nós somos tão amigos que eu faria tudo quanto você me pedisse.
— Entretanto, eu seria incapaz de lhe pedir para fazer uma tolice dessas, Lancelot. Agora, arrependo-me de lhe ter dado minha palavra de honra de que guardaria seu segredo. Estou certo de que o meu dever seria telegrafar imediatamente ao conde e à condessa, mas não posso fazê-lo porque estou preso à palavra de honra. Você não faz idéia de como me arrependo de tê-la dado.
— Meu caro Frank, nada neste mundo poderia obstar-me de fazer o que desejo; se fizessem agora algo no sentido de evitar o meu casamento, eu me limitaria a esperar nova oportunidade. Amo essa moça de todo meu coração. Só ela poderá ser minha esposa. Se você se recusar a ser minha testemunha, está bem. Hei de encontrar outra pessoa que me preste esse favor.
— Seja razoável, Lancelot.
— Não posso ser razoável. Onde já viu você amor e razão andarem de mãos dadas?
— Assim deveria ser e assim é, quando o amor realmente vale alguma coisa.
— Bem, Frank, ouvi pacientemente tudo quanto disse. Pesei os meus argumentos todos e continuo no mesmo estado de espírito. Só lhe resta dizer se está, ou não, disposto a prestar-me esse favor.
— Se o fizer, lembre-se bem de que o farei sob protesto, Lancelot.
— Pouco importa como seja, desde que prometa fazer.
— Prometo, para evitar que você corra algum risco maior, mas faço-o contra a vontade, contra o bom senso, contra a minha razão, contra a minha consciência e contra tudo mais.
Lord Chandos tornou a rir.
— Você se esquecerá disso tudo no momento em que estiver frente a frente com Leone.
E assim os dois amigos se separaram, mutuamente descontentes.
CAPÍTULO VIII
A PROFECIA
— Que jovem impaciente, — disse o velho vigário. — Nenhum homem de bom senso desejaria casar antes das dez horas da manhã. Isso até me parece anticristão.
O bom velho havia sido tirado da cama, com o aviso de que o jovem viera casar.
Casar de manhã cedo, enquanto os passarinhos ainda entoavam os hinos da alvorada!
Já estava quase cego o velho vigário, que passara a vida toda em Oheton. Era também muito surdo, mas na vila o pároco não precisava de bom ouvido e vista boa. Nunca havia ali mais de um casamento por ano, e os funerais inda eram mais raros. Mas um casamento antes das nove horas da manhã tocava as raias do absurdo. Fizera os pregões e ninguém se importava com eles, mas considerava crueldade fazerem-no levantar da cama de manhã, para celebrar um casamento.
Nem só ele, entretanto, levantara cedo naquele dia. Leone não pudera dormir sossegada. Aquele dia de julho, que ia trazer tantas alegrias e tristezas, lhe causava profunda emoção.
Seu sonho de amor estava para ser realizado. Ia casar com o ardente jovem que jurara não poder viver sem ela. Pensara mais no seu amor do que nas vantagens que aquele casamento lhe poderia proporcionar. Nunca refletira sobre essas vantagens, a não ser na tarde da véspera do casamento, quando se encontraram junto ao regato. O luar brilhava intensamente, já se tendo posto o sol de verão. Despediram-se do lindo cenário em que seu amor nascera.
— Alegra-me o fato de nos podermos despedir dessa paisagem à luz macia do luar. Quando veremos de novo este regato e a roda d’água? Creio que a beleza deste lugar me ajudou a conquistar o seu amor.
Leve brisa agitava as roseiras e brincava com os negros cabelos de Leone. Lord Chandos acariciou-os com ternura.
— Que lindos cabelos, Leone. Como são macios, e que linda ondulação têm. Que é que os faz assim?
— Os dedos mágicos de Madame Natureza, — respondeu ela a rir.
— Gostaria de vê-los adornados com diamantes, Leone. Uma das primeiras coisas que faremos amanhã, ao chegarmos a Londres, será comprar-lhe um belo vestido de viagem. Escrevo hoje a meu pai pedindo que nos vá encontrar em Dunmore House.
— Onde fica Dunmore House?
— Esqueci-me de que as coisas que me são familiares são completamente estranhas para você. Um dos títulos de meu pai é o de Barão Dunmore e a sua residência em Londres chama-se Dunmore House. Nós iremos encontrá-lo ali, e então você já será minha esposa.
Pela primeira vez ela compreendeu a diferença enorme que havia entre a sua classe social e a dela. Fitou-o amedrontada.
— Lancelot, não vou ficar muito fora de lugar em sua casa e entre os seus amigos?
— Querida, só poderá dar uma nota de beleza e encanto em qualquer lar. Nunca na minha família houve uma dama tão linda como você.
— Tenho medo, — disse ela suavemente.
— Não há razão para isso, Leone. Em menos de um ano toda Londres admirará a belíssima Lady Chandos.
— Parece-me que é salto demasiado grande passar de sobrinha do fazendeiro Noel a Lady Chandos, fidalga da mais alta aristocracia.
— Mas você só poderá honrar o nome, Leone. Serei o homem mais orgulhoso do país. Terei como esposa a mulher mais linda da Inglaterra. Esta será a nossa última despedida. Depois, nunca mais nos separaremos.
O rapaz abaixou-se e tomou nas mãos um pouco de água do regato, deixando-a cair de novo.
— Uma libação, — disse. — Ao deixar este regato, tenho a impressão de que perco um amigo.
Naquele instante de amor não podiam eles saber em que condições tornariam a ver o ribeiro.
"Leone, Lady Chandos". Naquela tarde a moça repetiu para si mesma essas palavras, várias vezes. Já passava das oito quando entrou em casa e o fazendeiro, que terminara a ceia havia tempo, fumava pachorrentamente seu cachimbo.
— Está atrasada, filha, — disse-lhe o tio; — sente-se aí, vamos conversar um pouco, antes que me vá deitar.
Obedecendo, sentou-se enquanto o tio lhe ia contando a história de sua visita a diversas feiras naquele dia. As palavras lhe soavam aos ouvidos como estranho ruído, mas não lhe penetravam no cérebro e ela não as entendia. Continuava a repetir, mentalmente, que no dia seguinte, àquela hora, seria Lady Chandos. Sua felicidade seria completa se pudesse contar o segredo ao tio. Ele lhe havia sido muito bondoso. Embora seus caracteres fossem diferentes como a luz e as trevas, embora não tivessem uma única idéia em comum, o fazendeiro havia sido sempre muito bom para ela e Leone o amava. Sentia impulsos de lhe contar como era feliz e como ia ser rica e fidalga, porém não se atrevia a faltar com a palavra empenhada.
Subitamente, o fazendeiro Noel levantou a cabeça, admirado. A sua linda sobrinha estava ajoelhada a seus pés, com os olhos cheios de lágrimas.
— Titio olhe-me e escute-me. Quero agradecer-lhe. Quero que o senhor se lembre sempre de que nesta noite me ajoelhei a seus pés e lhe agradeci de todo o coração o que o senhor fez por mim.
— E por que, querida? Sempre a considerei como se fosse minha própria filha.
— Uma filha rebelde, — replicou a moça a rir e a chorar. — Veja, tomo-lhe a mão, esta grande mão que nunca se cansa de trabalhar e a beijo, agradecendo-lhe de todo o meu coração.
O pobre fazendeiro estava de tal modo emocionado, que não podia responder. Limitava-se a fitá-la, mudo de admiração.
— Nos próximos anos, quando pensar em mim, tenha sempre a certeza de que, não obstante os meus atos, eu o amava muito.
— Não obstante os seus atos, você me amava muito. Sim, nunca me esquecerei disso.
Leone beijou-lhe o rosto e saiu da sala, deixando-o de tal modo estupefato, que até receou ficasse o tio ali a noite toda a pensar, tentando adivinhar o que quereria dizer tudo aquilo.
Deitou-se no seu quarto, porém não conseguiu conciliar logo o sono. O coração batia-lhe apressadamente. Esta seria a sua última noite em casa, a sua última noite de solteira. Amanhã seria Lady Chandos, esposa do jovem a quem amava com toda a alma.
Os passarinhos a despertaram com seus cantos. Era o dia de seu casamento. Não veria mais Roberto Noel. Ele tomava a sua primeira refeição às seis horas, e partia para o campo. Tinha ela que se vestir e seguir para a estação. Da estação a Oheton eram três milhas de estrada — ninharia para uma linda manhã de verão.
Finalmente reuniram-se os três: Sir Frank, irritado e vexadíssimo; Lord Chandos, feliz como um passarinho; e Leone, linda como um quadro de santa.
— Veja, — disse o lorde ao seu amigo, — não tenho boa desculpa?
Sir Frank, que já havia observado longamente a noiva, respondeu:
— Sim, se a beleza e a graça constituem desculpa, você não pode ter melhor; mas, Lancelot, se eu amasse a essa moça, mil vezes mais que a minha própria vida, não me casaria com ela.
— E por quê? — perguntou Lord Chandos a rir.
— Porque tem uma tragédia estampada no rosto. Essa moça nunca poderá ser feliz. Não terá vida feliz, e nem morrerá de morte feliz.
— Meu caro Frank, não faça profecias tão tristes no dia de nosso casamento.
— Não estou a fazer profecias. Digo o que penso. O seu rosto é lindo e cheio de poesia, mas há nele expressão de ambição e impaciência, que demonstram caráter perigoso.
— Se continuar a dizer isso, não permitirei que olhe outra vez para o seu rosto, — exclamou Lord Chandos, irritado.
Nesse momento, o velho vigário, ainda atrapalhado por ter saído tão cedo da cama, entrou na igreja. Chegaria a ser cômico, se não fosse doloroso, o nervosismo do pobre velho. Derrubou o livro de rezas uma porção de vezes, esquecia-se dos nomes cada vez que precisava pronunciá-los, trocava as palavras, incidindo em erros ridículos. Enfim, a cerimônia parecia uma pantomima. Lord Chandos esteve a ponto de dizer algumas palavras ásperas, mas conteve-se com um sorriso. Finalmente, depois de muito tremer e gaguejar, o sacerdote os abençoou e os proclamou casados.
Na sacristia, quando estavam assinando os nomes, tênue raio de luz pareceu penetrar na memória do ancião.
— Chandos, — disse ele, — aí está um nome que não é muito comum aqui.
— Não? — perguntou o lorde. — Pois a mim me parece muito comum.
— Chandos, — repetiu o vigário. — Onde foi que já ouvi esse nome?
— Já o tenho ouvido tantas vezes, que estou cansado de o ouvir, — disse Lancelot, em ar de brincadeira.
Finalmente, tudo terminou.
— Graças a Deus, estamos de novo ao ar livre, sob este belo sol de verão, — exclamou o jovem marido. — Graças a Deus, tudo já está terminado e posso chamá-la minha esposa. Aquela cerimônia parecia que nunca mais tinha fim. Frank, você não dá os parabéns à minha esposa?
Sir Frank dirigiu-se a Leone.
— Desejo-lhe muitas alegrias, muita felicidade, mas...
Interrompeu-se subitamente, pondo-se a brincar com o chapéu entre as mãos
— Mas... — repetiu Leone, com um sorriso; — acha que não a conseguirei?
Sir Frank não respondeu. Achava que ela não poderia ser feliz, mas Leone tomara seu destino nas mãos e ele dissera mais do que deveria ter dito. Talvez enxergasse mais do que os outros, mas o fato é que lhe lia no rosto a tragédia que se ia sua vida. E assim Sir Frank os deixou, tendo desempenhado o papel de testemunha com muito pouca distinção.
— Leone, você despediu-se de seu tio? — perguntou Lord Chandos.
— Deixei um bilhete para lhe ser entregue quando ele voltar, hoje à noite. Pobre tio, como vai sentir saudades de mim!
— E eu, como me sinto feliz em a ter a meu lado, querida. Não há ninguém no mundo mais feliz do que eu. Vamos embarcar em Rashleigh. Pouco me importa agora que nos vejam juntos. O Dr. Hervey julga que embarquei para Londres esta manhã, mas ganhei uma linda esposa antes de partir, não é verdade, Leone, meu amor? Você agora é Lady Chandos. Em que está pensando, querida?
— Estava pensando se não haverá em nosso casamento algo que o possa invalidar e tornar nulo, por ilegal.
— Não há, — respondeu o rapaz. — Tive todo o cuidado por você, Leone. Você é minha esposa perante Deus e os homens. Nada, a não ser a morte, poderá separá-la de mim.
— A não ser a morte, — repetiu a moça, devagar.
Nos anos que vieram depois, ambos recordaram essas palavras.
CAPÍTULO IX
O TELEGRAMA MISTERIOSO
Cawdor era uma das residências mais tradicionais da Inglaterra. Fora um dos castelos fortes dos saxões e que os normandos com grande dificuldade conquistaram.
Não podia haver na terra lugar mais pitoresco. Desde muitas gerações pertencia à família Lanswell. Os Lanswell eram riquíssimos, possuíam não só as terras todas que cercavam os domínios de Cawdor, como quase toda a vida de Dunmore. O Conde de Lanswell era também Barão de Raleigh, e Raleigh Hall, em Stafordshire, sempre fora considerado esplêndida propriedade. Dentro desses domínios descobrira-se uma mina de carvão, com o que Lord Lanswell se tornara um dos homens mais ricos do país.
Cawdor, Raleigh Hall e Dunmore House, três das mais lindas e ricas residências da Inglaterra, bem como uma lista enorme de prédios de aluguel, já seriam por si suficientes para fazer do conde um homem feliz. Ele, porém, justificando a lei que diz: "o semelhante busca o semelhante", casou com uma fidalga riquíssima. Sua esposa, Lúcia, Condessa de Lanswell, era uma das fidalgas mais orgulhosas do país, e de conduta irrepreensível em todos os pormenores do protocolo da nobreza. Não tinha pena dos que não estavam nas mesmas condições em que ela estava. Não sabia o que vinha a ser tristeza, desgraça, dúvida, ou qualquer outra infelicidade. Sempre vivera em atmosfera de alegria e facilidade. Tivera um lar grandioso, os brilhantes mais caros, os cavalos da raça mais pura, marido de excelente coração e muito amoroso, um belo filho, uma linda filha — não sabia o que era desejo insatisfeito: nunca sofrera. Em toda a vida, a impressão que mais se aproximava de um desgosto, havia sido o aborrecimento causado pelo fato de seu filho haver sido reprovado nos exames. O jovem lorde pedira permissão para ir passar alguns meses no campo a fim de estudar, preparando-se para os exames de segunda época e com grande alegria a mãe lha dera. Com sua filha, Lady Imogene Chandos, a condessa nunca esperara ter o mais leve aborrecimento. Era uma linda moça, dócil, obediente, e nunca aborrecera a quem quer que fosse.
Estava Lord Lanswell andando de um lado para outro num dos espaçosos terraços de Cawdor, naquela linda manhã de julho, quando o criado de serviço da portaria lhe trouxe um telegrama. O fidalgo abriu-o apressadamente. Era do filho, Lord Chandos:
"Querido Papai. Quererá ir até a cidade e encontrar-se comigo em Dunmore House esta tarde? Tenho algo de muito importante para dizer-lhe. Não diga nada a mamãe, por enquanto".
Lord Lanswell parou a pensar, com o telegrama nas mãos.
— Que será que aconteceu? — disse de si para si; — esse rapaz vai dar-me trabalho. Fez alguma coisa que não deseja que a mãe saiba.
Tinha um pressentimento de que o filho, que deveria ser o seu orgulho e a delícia de sua vida, viria a ser motivo de sérios desgostos.
— Preciso ir, — pensou; — preciso dar uma desculpa à minha esposa e ir.
Lord Lanswell sabia que não devia mostrar o telegrama a Lady Lanswell; ela teria partido imediatamente para Dunmore House e estaria declarada a guerra na família. Era preciso iludi-la. Destruiu cuidadosamente o telegrama. Por um motivo qualquer, que ele mesmo não sabia compreender, simpatizava com o filho e com o seu temperamento um tanto rebelde.
Na mocidade, fora também rebelde, e por isso era tolerante para com os outros. O seu pior pensamento naquele instante era que o seu jovem herdeiro, de olhos azuis e cabelos louros, se tinha metido nalguma aposta ou jogo, e se endividara.
— Algumas mil libras hão de endireitar a situação. Afinal de contas, é preciso ser tolerante para com os erros da mocidade.
Não havia necessidade de contar nada a Lady Lanswell; ela olharia para aquilo com os olhos cortantes da razão. Entrou na sala de recepções onde estava a condessa, vestida com toilette de renda negra.
A condessa de Lanswell era considerada como uma das mais lindas mulheres do reino. Casara muito jovem e sua beleza estava de tal modo conservada que emparelhava corajosamente com as belezas da época. Tanto o marido como os filhos temiam aquela mulher, que se impunha pela majestade da beleza.
— Lúcia, — disse o conde, — creio que preciso ir â cidade hoje à tarde. Voltarei amanhã de manhã.
— Que resolução súbita foi essa, Ross?
— Preciso atender a um negócio urgente, que só eu posso resolver. Não me demorarei.
— Que espécie de negócio? — perguntou a condessa, fitando-o.
— Oh, querida! Creio que não vai exigir que lhe explique pormenorizadamente o negócio. Nunca faço nada que você não possa aprovar. Quero conferenciar com meus banqueiros. Julgo que será de bom aviso vender algumas ações. Tenho motivos imperiosos que me obrigam a ir à cidade, hoje.
— Creio que sabe que os Beauvoir jantam hoje aqui?
— Sim, não me esqueci; mas você, com o seu ato, poderá desculpar-se por mim, Lúcia.
O cumprimento a lisonjeou.
— Certamente que sim, se a sua ausência é absolutamente necessária, Ross.
— Posso afirmar-lhe que é imprescindível. Ao voltar, contar-lhe-ei tudo o que fiz. Agora preciso partir, pois caso contrário perderei o trem.
Partindo de Cawdor, o conde dizia de si para si que era aborrecido ter o filho complicando as coisas de tal modo, que fosse necessário ocultar os fatos à mãe.
Pensava no que lhe havia de dizer, quando voltasse. Provavelmente o caso era alguma perda de dinheiro.
"Será melhor nada dizer à mãe", pensou. Os rapazes são rapazes, e ela vai julgá-lo, se souber que se endividou no jogo. Seja lá quanto for, eu lhe darei um cheque, sob promessa de que será a última vez.
Não pensou em mais nada. Nem lhe passou pela idéia que seu filho se tivesse apaixonado, ou quisesse casar. Ficou satisfeito quando chegou em Dunmore House. A velha caseira o esperava no saguão.
— O jantar está servido, — senhor, disse ela. — Lord Chandos avisou-me de que o senhor ia chegar.
O fidalgo olhou em volta de si.
— E Lord Chandos não está aqui?
Só então notou que a caseira tinha um ar preocupado e abatido.
— Não, — replicou a caseira; — ele não está aqui. Estão hospedados no Queen’s Hotel, em Piccadilly.
— Estão? — exclamou o fidalgo. — Que quer dizer com isso? Lord Chandos tem amigos consigo?
A pobre senhora empalideceu. Percebia-se que estava atrapalhada com as perguntas e o olhar do amo.
— Parece-me que entendi que Lord Chandos, não estava só. É possível que me enganasse. Entendi também que o encontraria às oito horas, depois que o senhor tivesse jantado.
"Por que não poderá ele jantar comigo?" pensou o pai aflito. "Manda-me um telegrama e depois deixa-me jantar sozinho. Não está agindo de acordo com os seus hábitos".
Por mais que pensasse, entretanto, não conseguia resolver o mistério. Foi para o quarto e vestiu-se para jantar.
Depois, sentou-se, pôs-se a pensar no filho, e sentiu que o coração se enchia de ternura por aquele belo rapaz. Pensou nas disputas que às vezes tivera com ele, saindo sempre vencido, a não ser quando a mãe intervinha, caso em que o vencido era o filho. Sorriu ao lembrar-se disso.
Lembrou-se também do meninote que fumava charutos sem constrangimento diante dele, mas que se escondia e os jogava fora ao ouvir os passos da progenitora.
"Está com um medo terrível da mãe, agora", pensou. "Não posso senão ficar lisonjeado e comovido por ver que manda chamar por mim para que o defenda nalgum transe difícil. Hei de ajudá-lo, e Lúcia de nada saberá".
Sentiu invadir-lhe a alma uma onda de amor pelo filho. Ninguém era capaz de imaginar quanto o amava, como sua vida estava completamente envolvida na do rapaz. Assim pensava quando ouviu parar uma carruagem à porta.
Pôs-se à escuta. Cochichavam no saguão.
Por que faria o rapaz tanto mistério de tudo aquilo?
Súbito, levantou-se da cadeira, completamente desorientado.
Diante dele estava Lancelot, Lord Chandos, trazendo pela mão a mais linda mulher que jamais vira em toda a vida.
Dostları ilə paylaş: |