Código da Vida



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O Professor João Carvalho conhecia tudo na estrutura do Governo Federal. Sabia quem era quem em cada um dos ministérios, autarquias e empresas públicas. Além dessas qualidades, era um excelente professor de português, o que para mim indicava quanta dificuldade teria ele tido para conviver com os governos militares. No Gabinete Civil, depois do episódio do Plano Camaleão, passou a ser discriminado pelos chamados “linhas-duras” que remanesciam no Governo, somando-se à discriminação discreta, mas real, dos integrantes advindos da designada Nova República, porque ha­via servido durante muitos anos da ditadura.

Aproveitei a situação, que o incomodava realmente, e o levei para ser o Chefe de Gabinete da Consultoria Geral da República. Ótima solução. Quando se entra em governo, a grande tortura é não conhecer a máquina, não saber quem faz o quê e não ter condições de saber quem não faz nada. E máquina federal é um paquiderme. Há exceções, é claro.

Certa vez, observei que o Governo Federal (não conheço os outros) tem a maior concentração de incompetência por metro quadrado. Os servidores do segundo escalão adoram ministro novo, porque fazem dele o que bem en­tendem. Enganam, dão informações truncadas, assessoram mal, com, repito, honrosas exceções, que são honrosas precisamente por serem exceções.

Nossos costumes políticos contribuem para isso. O Poder Executivo no­meia ministros que nada entendem da matéria da pasta que assumem. Basta ser deputado ou senador, ou ter sido, ou candidato derrotado, para ocupar, como se fosse curinga em cartas de baralho, Ministério do Planejamento, da Ciência e Tecnologia, da Saúde, da Fazenda, e outros, sem nunca ter planejado nada, sem entender de ciência, sem nunca ter ouvido falar em tecnologia, sem ser médico, sem ser economista. Em todos os governos, acontece sempre a mesma bagunça. São incontáveis os exemplos que resultam no lamentável espetáculo de um Waldir Pires, Ministro da Defesa do Governo Lula, dando entrevistas sobre colisão de aviões, planos de vôos, transpander, operação pa­drão de operadores de radares, apagão aéreo. Uma lástima.

A composição do ministério do segundo mandato de Lula ofereceu um espetáculo deprimente e longo de barganhas, troca-troca, toma cá se me der lá, algumas às escâncaras sob falsa desculpa de composições para o noticiário político. Mas como tudo visa a entrega de ministérios, que exigem compe­tências técnicas para lidar com parcelas fabulosas do orçamento reservadas a serviços e obras, as pessoas envolvidas negociaram, na verdade, o que os franceses chamam “sous la table” ou “sou par sou”. Ou como disse Millor Fernan­des: “não chega a ser uma reforma ministerial, apenas mudou de cúmplices”.

Houve, porém, exceções nos últimos tempos. Uma delas foi Antônio Palocci, médico, que conduziu com grande eficiência o Ministério da Fazenda e a política macroeconômica do Governo Lula, a despeito do PT. Pelo menos nos primeiros anos. Claro que contou com um excelente professor; Henrique Meirelles, uma das melhores cabeças do Governo Lula. Palocci, infelizmente acabou enredado em misteriosas passagens ressuscitadas por seus ex-auxiliares do tempo de prefeito de sua cidade.

Seu sucesso, parece-me, deve-se ao fato de ser de Ribeirão Preto e de ha­ver respirado os ares que vêm de Brodowski, terra do Portinari e minha. Mas ainda tem muito que aprender. Até o Lula lhe disse isso quando o despediu do governo. E precisa parar de mentir. Começou afirmando que não haveria au­mento da carga tributária para os brasileiros. E terminou dizendo para uma CPI, diante da televisão, que jamais freqüentara a casa alugada por seus ami­gos em Brasília. Ainda está para nascer um Ministro da Fazenda que não aumentará impostos e contribuições em nosso país. Hors de question, como dizem os franceses.

Aumenta-se imposto por medida provisória publicada no último dia do ano, o que é de uma inconstitucionalidade absoluta. Não podia fazer isso al­guém que sabia de cor o Hino a Ribeirão Preto. Não combina. Por isso, Deus castiga fazendo ressurgir em sua vida fantasmas como Buratti, e, por aumen­tar impostos, é perseguido pelos rugidos de leões e leões. Quem com ferro fere não sabe como dói. Sempre se confirma: quem mente, com mentiras será alvejado. Na vida pública do Brasil, há sempre um motorista ou um caseiro que sabe de tudo e acaba contando.

E por falar nisso, em caseiro que cria caso, e em Ministro da Fazenda, alguns malucos do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário consegui­ram fazer um levantamento das normas tributárias editadas no Brasil a par­tir da Constituição de 1988. Número fantástico: 225.600 entre federais, esta­duais e municipais. Pelos cálculos, até o dia em que foi publicado o estudo, o Brasil teve 36 novas normas tributárias por dia. Há um cálculo diferente, tomando-se apenas os últimos dezoito anos. Neste caso, tivemos 55 normas tributárias por dia.60 Mesmo não desejando incorrer em irregularidade, não há contribuinte que possa viver dentro deste cipoal.

É mais do que derrama. É derrame cerebral. Vamos enlouquecer. Por isso, recebo sob reserva todo ministro que começa no posto declarando que não aumentará tributos. Quando recuperamos a democracia, os brasileiros pagavam impostos equivalentes a 20% do PIB. Hoje, estamos chegando aos 40%,61 pouco menos, mas é o diabo porque não temos serviços públicos prestados ao povo a despeito desse dinheirão todo arrecadado pelos nossos impo­lutos administradores e políticos detentores dos poderes que lhes damos pelo voto. Com essa carga de impostos, não é possível desenvolvimento e, por via de conseqüência, não há emprego suficiente para absorver as gerações novas, pois milhões de jovens chegam por ano ao mercado de trabalho e não encon­tram emprego. Grande parte se desvia para o crime.

A essa calamidade, acrescenta-se a dívida pública que, nos últimos dez anos, custou 1 trilhão e 200 bilhões de juros, chamados pelo eufemismo62 de serviço da dívida.



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Os ministros políticos sentam-se na cadeira e começam a tomar conhe­cimento dos assuntos. Pensam que aprendem. Dão entrevista. Adoram apa­recer na televisão. Mas saem de lá sem saber nada. O pior é que não levam es­pecialistas para a assessoria e comem pela mão do pessoal da casa. Sempre acaba em indigestão. O pessoal da casa não lava as mãos. E, quando surge um Pilatos que as lava, é para entregar o ministro às feras.

A Constituição declara que ministros de Estado são auxiliares do Presi­dente da República. Presume-se que eles entendam dos assuntos das pastas para as quais são nomeados. Mas, com as exceções de sempre, entendem nada. São escolhidos e convocados em razão de quantos votos podem con­trolar na Câmara dos Deputados ou no Senado. Costume retrógrado. E to­mem mediocridades gritantes!

O pior é a indicação que, por meio dos respectivos ministros ou à revelia deles, os partidos fazem para os cargos de livre provimento tanto na adminis­tração direta como nas empresas estatais. O Governo Federal tem mais de vinte mil cargos para atender essa cupinchada e os aventureiros. Quando es­touram os escândalos, os governantes muito espantados dizem que de nada sabem. E que mandarão apurar com o máximo rigor, tomando as “medidas cabíveis”. Já é tarde.

E, quando se descobre dinheiro rolando por trás dos cargos, a explicação é invariável: despesas de campanha eleitoral. Na concepção de alguns políticos, a campanha eleitoral, simples luta pelo poder, justifica as imorali­dades. Quem luta pelo poder pode tudo. Deve ser isso que dizem em casa para suas famílias. Criam um tipo de ética ficcional. E acreditam nela. Ali­viam suas consciências. É o catecismo revolucionário de Netchaiev, que pas­sou a valer para todos os profissionais da política, ressalvadas sempre as hon­rosas exceções. Aquelas que são honrosas precisamente por serem exceções.

No Brasil, um bom exemplo da teoria aplicada de Netchaiev foi José Dirceu, que, de guerrilheiro romântico, chegou ao poder e consentiu a mani­pulação de recursos não contabilizados da burguesia para alimentar a base política de aloprados que deveria sustentá-lo no comando do governo du­rante vinte anos. O Brasil, no seu entender, seria salvo do domínio econômi­co com os próprios recursos das classes dominantes. Deu errado no primeiro embate. Os brasileiros não gostam de imoralidade, nem mesmo como ferra­menta para revoluções socialistas. Falta-lhes apenas aprender a não acreditar nos culpados que dizem não saber de nada.

José Dirceu ainda não desistiu. Continua orientando ações no Go­verno Lula e no PT “sous la table”. Busca a anistia. Quer ser Presidente da República.63

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Quando assumi o Ministério da Justiça, trouxeram-me, logo no pri­meiro dia, um processo para despachar, com uma fita de papel marcando a última página, em que já havia um despacho datilografado e um pequeno X, a lápis, onde eu devia assinar.

Traquejado advogado, dei a primeira instrução: eu mesmo dou os meus despachos e somente o faço depois de ler os processos. É inútil trazer proces­sos com essas tiras de papel marcando a página em que devo assinar. Afinal, o advogado passa a vida lendo processos.

Li aquele primeiro. Era um caso de traficante de drogas, estrangeiro e condenado em primeira instância. Não apelou da sentença. Transitada em julgado a decisão condenatória, abriu-se um processo no Ministério da Jus­tiça para expulsá-lo do país. Assim era o procedimento tradicional havia anos, sem que ninguém notasse que se tratava de uma grande imoralidade. O traficante era expulso, voltava para seu país de origem e, claro, arrumava um passaporte falso e regressava ao Brasil, ou ia perambular pelo mundo, exercendo sua lucrativa profissão de crimes.

Por isso, os advogados não apelavam da condenação. Deixavam transi­tar em julgado a sentença de primeiro grau, para não retardar a “expulsão”. O Brasil tornou-se um paraíso para os criminosos estrangeiros. Preso, conde­nado, expulso. Havia garantia de voltar para casa. Livre.

Mandei meu primeiro despacho. Indeferi a proposta de expulsão e de­terminei que o processo expulsório somente poderia ser aberto depois do cumprimento da pena. Cacete neles. Canetei pesado.

Vejam como são as coisas no ministério. Dias depois, surge na minha mesa outro processo de expulsão do mesmo jeitinho, com a tira de papel na última página, despacho já escrito e determinando a expulsão e o X na linha onde eu devia assinar.

Não é possível! Chamei o diretor responsável pelo departamento, dei-lhe a maior bronca. Ele se desculpou, disse que não havia visto o despacho anterior. Argumentou ser bobagem o país gastar dinheiro com a prisão desses vagabundos, que a política de expulsão era mais econômica para o sistema penitenciário, que a tradição era essa havia muito tempo, toda uma doutrina bem arrumadinha para cima de mim.

Ouvi tudo e devolvi um caminhão de desaforos. Somente não abriria inquérito administrativo porque não havia fato típico a ser imputado aos servidores. Era rotina e dentro da lei. Despachei o novo caso no mesmo sentido do primeiro, negando a expulsão e mandando aguardar o cumprimento da pena. Além de assegurar a liberdade dos criminosos na sua terra de origem, se lá não tivessem condenação, aquela malandra solução tornava-se um desrespeito ao Judiciário que os condenava. E tornava-se uma evidente materialização da impunidade nos crimes praticados em território nacional.

Pensei: se é tradição, fizeram com os outros ministros que me antecederam na pasta. E, se tentaram fazer comigo, os meus futuros sucessores esta­rão sujeitos a embarcar nessa tapeação. Aconselhado por inteligente jurista que levei para trabalhar comigo no Ministério da Justiça, Dr. Ronaldo Marzagão,64 redigi um decreto determinando a proibição de expulsão de conde­nados estrangeiros, tornando-a inclusive obrigatória, mas depois do cumpri­mento da pena. Sarney assinou, e acabamos com aquela teoria. Um decreto pelo menos, não seria facilmente revogável pelos futuros governos sem um grande escândalo.

Mas, antes disso, vários traficantes condenados requereram perante o Superior Tribunal de Justiça vários habeas corpus contra mim, acusando-me de estar negando o direito líquido e certo de serem expulsos do país. Até isso aconteceu.

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Nem Collor teve coragem para revogar aquele decreto. Ninguém teve. Mas, no Governo Itamar Franco, inventaram uma saída especial para os se­qüestradores de Abílio Diniz. Vejam como o crime sabe trabalhar, comprar, corromper... descaradamente.

Com dezenas de assuntos internacionais a serem resolvidos por meio de acordos, o Brasil celebrou um tratado com o Canadá. Não foi com a Bolí­via, Itália, Colômbia, Argentina, Estados Unidos, França ou República do Borundi. Precisamente com o Canadá, que tinha em São Paulo dois cidadãos cumprindo pena pelo crime de seqüestro e formação de quadrilha. Christine Lamont e David Spencer.

O documento celebrado autorizava as altas partes contratantes (isto e, os dois países) a trocar prisioneiros entre si, em tempo de paz. Assunto de alta relevância na cabeça daquele governo. Os canadenses aqui condenados seriam enviados ao Canadá para o devido cumprimento da sentença naquele país. E vice-versa. Itamar Franco jurava acreditar nisso piamente.

Acontece que não havia brasileiros cumprindo pena por lá. Logo, não houve troca, nem vice, nem versa. Apenas remetemos os canadenses para aquela nação do norte, conforme o artigo 5º do documento internacional aprovado pelo Senado, que, segundo a imprensa, não sabia da situação de fato concreti­zada na prisão dos dois canadenses, seqüestradores, mafiosos, quadrilheiros. Essa história de “não sabia” não foi patenteada. É de domínio público.

Do lado de fora da cadeia, houve muito trabalho em favor da celebra­ção (de triste celebridade) do tratado, que, pelos inconfessados objetivos, es­tava mais para tratante do que para acordo internacional.

Arrumaram a novidade: pelo tratado internacional, expulsa-se o con­denado estrangeiro sob a garantia de que a pena será cumprida no país de sua nacionalidade. Nossas prisões são desumanas, imundas, com população carcerária muito superior ao número de reclusos. Assim, os criminosos es­trangeiros, acostumados às comodidades do primeiro mundo, prisões com televisão e aquecimento para as noites nevadas, livram-se do convívio infec­to do pé-de-chinelo brasileiro, do perigo representado pelo companheiro de cela, especialmente aquele com aids, livram-se do PCC e do Comando Ver­melho. Desejam regalias que não são dadas às vítimas dos seus seqüestros.

E os dois seqüestradores canadenses, um rapaz e uma senhorita, David Spencer e Christine Lamont, foram-se flanando e, no Canadá, não cumpri­ram a pena que lhes foi imposta pela Justiça brasileira. Em alguns meses, es­tavam na rua. Creio que até mandaram, no fim do ano, cartão de boas-festas para Itamar Franco. Esses dois foram condenados aqui no Brasil pelo seqües­tro de Abílio Diniz, embora haja evidência de que tenham participado de outros, como o de Luiz Salles e de Alvarez, diretor do Bradesco.

Houve uma pressão danada sobre Itamar para não vetar o tratado, sem nenhuma utilidade para o país. Vozes autorizadas de brasileiros advertiram o Presidente da República para que vetasse aquela maroteira do crime organi­zado. Vetou não. Venceram os da pressão. O crime triunfou e compensou. Itamar teve topete. Sancionou aquele vergonhoso arranjo. Terminado seu go­verno, foi premiado com embaixadas e direito de levar namorada.

Mas o decreto de Sarney continuou vigente. Nem todo traficante es­trangeiro e preso será capaz de providenciar um tratado internacional entre o Brasil e seu país para livrar-se da cadeia. Uma vez foi o bastante. Márcio Thomaz Bastos, no processo de pedido de extradição do seqüestrador Mau­rício Hernandez Norambuena,65 em vez de deferir o pedido do governo chileno, determinou a expulsão do meliante, mas para ser efetivada após o cumprimento integral da pena no Brasil.66 Gostei. Prestigiou o meu decreto Norambuena terá que ficar na cadeia brasileira até o ano de 2032. Depois disso pode ir para o Chile cumprir o que lhe resta da prisão perpétua a que foi condenado em seu país. Pena que Márcio deixou o governo. Ele era uma das poucas coisas boas que existiam por lá.

Mas, ao contrário disso tudo, no Canadá, hoje, os seqüestradores de Abílio Diniz, Christine e David, vivem em Vancouver, uma das cidades consi­deradas entre as melhores do mundo pelo baixo nível de criminalidade. Casaram-se e não têm filhos. David faz roteiros para cinema e escreve para jornais, usando pseudônimo. E Christine estuda, na Universidade Simon Fraser, criminologia. Pode?

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Nossas concessões com criminosos levam a conseqüências terríveis. O chileno Maurício Hernandes Norambueno, professor de educação física, ingressou, em seu país, numa organização esquerdista que pregava a revo­lução socialista pelas armas. Acabou no crime comum, seqüestro e assassi­nato. Condenado à prisão perpétua no Chile, Norambueno realizou uma fuga espetacular da penitenciária chilena saindo de helicóptero. E veio para o Brasil.

Aqui seqüestrou o publicitário Washington Olivetto. Deixou a vítima em São Paulo e foi se esconder nas delícias climáticas de Serra Negra, cidade pequena, onde todo mundo sabe da vida de todo mundo. Chamou a atenção dos guardas particulares de um condomínio afastado da cidade e acabou pre­so. Na cadeia, no Brasil, ensinou Marcola e os demais líderes do PCC, Primei­ro Comando da Capital, a desestabilizar o sistema com tumulto nas prisões, assassinatos de agentes penitenciários, ataques às delegacias policiais, agen­cias bancárias, incêndios de ônibus, pânico na população. O PCC aprendeu e já fez isso várias vezes em São Paulo para delírio das autoridades da segurança pública.

Por que deixaram Norambuena junto com Marcola ou com líderes do PCC?

Vejam o seqüestro de um jornalista da TV Globo sob a exigência de que a emissora transmitisse um vídeo produzido pelo PCC, o que foi atendido como forma de salvar a vida do repórter. O vídeo mostrava um encapuzado, igual aqueles do Iraque, lendo um manifesto contra o Regime Disciplinar Di­ferenciado, o RDD, das penitenciárias paulistas. E como fundamento o mani­festo invocava trechos de parecer do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça. O PCC porta-voz do CNPP! E usando seqüestro para se fazer ouvir. Tudo ao melhor estilo político Norambuena. Márcio Thomaz Bastos fez bem de indeferir a expulsão do meliante antes do cumprimento da pena.

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Nerval e Casé entraram na minha sala:

— Chefe, não queira saber! Houve um bolo federal entre a mulher e a médica.

— Como não queira saber? Quero saber sim, senhores!

Contaram que estavam na campana da mulher, quando ela saiu de casa e foi direto ao consultório da psiquiatra. Dois guarda-costas a acompanha­ram. Eles foram atrás e também entraram no prédio. Subiram até o andar do consultório da médica. Os guarda-costas estavam postados diante da porta.

Resolveram, Casé e Nerval, ficar do outro lado do corredor e simularam estar esperando o atendimento em outro consultório ou escritório. Ali, fica­ram cerca de meia hora. De repente, a porta do consultório da médica se abriu, e a mulher saiu de lá aos gritos:

— Eu mando matar você! Aqui estão meus guarda-costas! Você vai pa­gar caro por tudo isso!

A médica surgiu logo atrás e parecia que ela própria havia perdido o controle, pois respondeu no mesmo tom:

— A senhora não me apareça mais aqui! Se aparecer, chamo a polícia! Não me interessam seus guarda-costas! Se eles me tocarem, serão presos!

A recepcionista e uma enfermeira, que trabalhavam com a médica, es­tavam dando cobertura à psiquiatra. E o pior: ambas com tesouras na mão.

Os guarda-costas tiveram o bom senso de segurar a cliente deles e arrastá-la para o elevador. Desceram com ela, que ainda proferia palavrões sem parar

Nerval e Casé correram em direção à médica e se apresentaram. Ela não os reconheceu. Nerval ofereceu seus préstimos, para lavrar uma ocorrência policial e providenciar um segurança durante algum tempo. A doutora não aceitou e lhes perguntou:

— O que os senhores estão fazendo aqui?

— Nós estamos com a incumbência do Dr. Saulo de seguir essa sua cliente por onde ela for.

— Ex-cliente.

— Quando vimos que ela se dirigia para seu consultório e com dois guarda-costas, tomamos a liberdade de subir até aqui, para ajudar, se fosse preciso.

— Está bem, obrigada — disse a médica. — Já que os senhores estão aqui, gostaria que explicassem que história foi aquela de completo segredo de Justiça no meu depoimento, se essa mulher sabia de quase tudo?

Nerval e Casé se entreolharam e ficaram mudos por alguns segundos. Casé, que é de uma coragem sem fim para chutar explicações, arriscou:

— Somente pode ter sido o advogado dela.

Nerval, como bom agente de polícia, quis saber dos detalhes:

— A senhora disse que ela sabia de quase tudo. Pode nos dizer o que ela contou e qual a razão desse ataque de fúria na saída do seu consultório?

A psiquiatra explicou resumidamente que a mulher chegou dizendo sa­ber do depoimento e do diagnóstico de sua doença mental. Até então com calma, perguntou por que a doutora havia rompido o segredo profissional a que estava obrigada. A psiquiatra respondeu:

— Pelo bem de seus filhos.

— O que a senhora disse a respeito de meus filhos?

— Que a senhora não tem condições de educá-los, se não continuar um rigoroso tratamento médico.

— “É isso o que você quer!” — contou-nos a médica, repetindo a acusação da mulher. — Você quer o meu dinheiro! Quer viver à minha custa, sua vagabunda!

Embora preparada e acostumada com esse tipo de doença, disse a dou­tora que tentou acalmá-la, mas não conseguiu. As reações da mulher davam a impressão de que desaguariam em violência. Então resolveu convidá-la a se retirar, levantou-se e abriu a porta para ela sair.

Foi nesse momento que ela, aos gritos, disse que iria matá-la.

Nerval insistiu muito em lavrar um boletim de ocorrência, pois, em sua opinião, a ameaça de morte poderia ajudar-nos no processo, demonstrando a perigosa instabilidade da mulher para continuar com a guarda dos filhos. A doutora recusou. Demonstrou preocupação com o rompimento do segredo profissional e não queria mais saber do assunto. Ela própria afirmou que a doente ficaria na ameaça e não tomaria qualquer providência para concre­tizá-la. O paranóico vive de ficção e, longe do objeto de seu ódio, desvia a . atenção para outro problema dentre tantos que diariamente cria.

Consolei-os. Tal como a história do clube da chave, o boletim de ocor­rência de pouco serviria para a defesa de nosso cliente. O fulcro de nossa questão era provar a falsidade do conteúdo da gravação e a autoria daquela prova maluca. Estávamos perto de conseguir isso. Muito perto.

Não podia, porém, deixar de conferir com o advogado dela a quebra do segredo de Justiça e de informar o que sua cliente acabara de “aprontar mais uma vez”.

Telefonei para ele.



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— O senhor há de convir que não existe segredo de Justiça para a pró­pria parte — disse o advogado da mulher. — Eu tinha que falar com ela, so­bretudo para adverti-la sobre os riscos que correria com a suspensão do tra­tamento diante do diagnóstico e do prognóstico da médica.

— Sim, entendo — respondi. — Mas houve, no mínimo, uma impru­dência do colega ao detalhar o depoimento da psiquiatra, pois sua cliente, desculpe, é completamente louca e ameaçou matar a médica.

— Meu Deus, é verdade? E como senhor soube disso?

Ainda bem que me preparei para essa pergunta. Seria um desastre admi­tir para o colega que eu estava fazendo “campana” em sua cliente. Acabaría­mos num conflito ético, e admito que eu estaria em flagrante desvantagem.

— A médica reclamou comigo a quebra do segredo de Justiça e me con­tou da ameaça. Fui imediatamente falar com ela — e isso era verdade, porque, depois da informação do Nerval, voltamos ao consultório da psiquiatra. — E confesso que tentei convencê-la a registrar a ocorrência policial, não para me servir dela no processo judicial, mas para prevenir evento mais grave, uma vez que, apesar das teorias médicas, tudo se pode esperar de gente maluca.

E ela registrou a queixa, a ocorrência?

— Felizmente para o senhor, a médica se recusou. Mas é meu dever pedir-lhe que, não agora, por favor, dê um tempo, com calma, o senhor fale com sua cliente e a convença a não mais agredir ninguém neste caso.

— O senhor acha que ela voltará a ameaçar a doutora?

— Não acho nem desacho, colega. O senhor conhece sua cliente me­lhor do que eu. Estou apenas observando que ocorreu o fato e pode ser possí­vel que se repita. Será um desastre!

Ele, no final, me agradeceu o aviso. Prometeu tomar providências com o devido cuidado. Então resolvi advertir:

— Por que sua cliente anda com guarda-costas?

— Não sei! Uma vez ela me disse temer que o ex-marido pudesse agre­di-la em virtude do processo judicial. Mas não falou em guarda-costas.

— Pois anda com dois guarda-costas. A médica me contou que, ao ameaçá-la, referiu-se expressamente a dois seguranças, chegando a insinuar que eles se encarregariam do serviço. Já pensou, se formos para um inquérito policial, a embrulhada que tudo isso vai causar?

Ele concordou comigo. Não fiz propriamente uma ameaça. Nem quis coagir o colega. Mas estava especulando, inclusive para assustá-lo um pouco. Afinal, ele tinha a obrigação de conter as loucuras de sua cliente. Inclusive no interesse dele próprio, pois, em caso complicado como aquele, a omissão do profissional em vigiar e aconselhar seus clientes pode ser mais grave do que cometer erros jurídicos no processo.

Sempre impliquei com ambas as deficiências. O advogado não pode er­rar na conduta, nem no Direito. Sustentei essas guerras quando Consultor Geral da República. Para mim, não há diferença entre o advogado de militância privada e o advogado público. Um Ministro da Fazenda faminto por tri­butos pode fazer mais estragos na ordem jurídica do que uma mulher esqui­zofrênica, se os respectivos advogados não contiverem seus desregramentos.



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