apenas o primeiro passo na marcha para a eventual elucidaçäo
do funcionamento de circuitos mais complexes.) A explicaçäo
neural só começa a ser útil quando liga os resultados do funcio
namento de um dado sistema sobre um outro sistema. A impor
tante descoberta descrita acima näo deve ser menorizada com
afirmaçöes superficiais que concluam que a serotonina so' por si
«causa» comportamento social adaptativo e que a sua falta
«causa» agressäo. A presença ou a ausência de serotonina em
sistemas cerebrais especificos que contêm receptores especi
ficos para a serotonina modifica o funcionamento destes siste
mas; e tal modificaçäo, por sua vez, altera a operaçäo de outros
sistemas, cujo resultado terá uma expressäo final em termos
comportamentais e cognitivos.
Estes comentários sobre a serotonina säo especialmente
pertinentes dada a grande visibilidade recente deste neurotrans
missor. O popular antidepressivo Prozac, que actua bloqueando
A SANGUE FRIO 95
a retoma da serotonina e provavelmente aumentando a sua dis
ponibilidade, tem recebido grande atençäo; a ideia de que ní
veis baixos de serotonina poderiam ser correlacionados com
uma tendência para a violência tem surgido na imprensa sensa
cionalista. O problema é que näo é a ausênci@l oti as quantidades
baixas de serotonina per se que «provocam» uma determinada
manifestaçäo. A serotonina fazparte de ummecanismo extraor
dinariamente complicado que opera aonível das moléculas, das
sinapses, dos circuitos locais e dos sistemas, e no qual os factores
socioculturais, passados e presentes, têm também uma inter
vençäo poderosa. Uma explicaçäo satisfatória sé poderá surgir
de uma visäo mais extensa de todo o processo, na qual as
variáveis relevantes de um problema específico, tal como a
depressäo ou a adaptaçäo social, säo analisadas em pormenor.
Uma última nota prática: a soluçäo para o problema da
violência social näo vira apenas de se considerarem os factores
sociais e se ignorarem os factores neuroquimicos correlacio
nados, nem vira da atribuiçäo das culpas a um único agente
neuroquimico. É necessária a consideraçäo de ambos os tipos de
factores, sociais e neuroqu@cos, em proporçäo adequada.
LU AO
A evidêncla relativa a seres humanos discutida nesta secçäo sugere
uma ligaçäo intima entre um conjunto de regiöes cerebrais e os processos
"de raciocínio e de tomada de decisäo. Os estudos sobre animais revelaram
algumas das mesmas ligaçöes envolvendo algumas das mesmas regiöes.
Através da combinaçäo dos dados surgidas de ambos os tipos de estudos,
em seres humanos e animais, podemos agora alinhar alguns factos acerca
dos papéis desempenhados pelos sistemas neurais que identiíicámos.
Primeiro, estes sistemas encontram se certamente envolvidos nos
processos da razäo, no sentido lato deste termo. Em termos mais especi
ficos, encontram se envolvidos na planificaçäo e na decisäo.
Segundo, um subconjunto destes sistemas está associadoaos comporta
mentes de planificaçäo e de decisäo que poderiamos incluirna rubrica de
«pessoais e sociais». Estes sistemas estäo relacionados com o aspecto da
razäo habitualmente designado por racionalidade.
96 O ERRO DE DESCARTES
Terceiro, os sistemas que identificámos desempenham um papel
importante no processamento das emoçöes
Quarto, os sistemas säo necessários para se poder reter na mente, por
um periodo de tempo relativamente longo, a imagem de um objecte re
levante que já näo se encontra presente
Por que será que estes variados papéis se encontram reunidos num
sector circunscrito do cérebro? O que poderá ser partilhado pela planifi
caçäo e tomada de decisöes pessoais e sociais, pelo processamento das
emoçöes e pela retençäo de uma imagem mental na ausência da coisa que
ela representa?
Parte
2
Fomm da Ciência 29 7
Cinco
O elaborar
de uma explicaçäo
UMA ALIANCA MISTERIOSA
a Parte 1 deste livro descrevi a investigaçäo sobre doentes com li
Nmitaçöes do raciocinio e da capaci dade de tomada de decisöes.
Esta investigaçäo conduziu à identificaçäo de um conjunto de sistemas
cerebrais especificos lesados de forma consistente nesses doentes e con
duziu também à identificaçäo de um conjunto aparentemente estranho de
processos neuropsicológicos que dependiam da integridade desses siste
mas. É altura de perguntar o que une esses processos entre si e o que os
liga aos sistemas neurais colocados em destaque no capitulo anterior. Os
parágrafos seguintes oferecem algumas respostas provis(5rias.
Primeiro, a obtençäo de uma decisäo sobre um problema pessoal ti
pico, colocada em ambiente social, que é complexe e cujo resultado final
é incerto, requer tanto o amplo conhecimento de generalidades como
estratégias de raciocinio que operem sobre esse conhecimento. O conhe
cimento geral inclui factos sobre objectes, pessoas e situaçöes do mundo
externo. Mas como as decisöes pessoais e sociais se encontram inextri
cavelmente ligadas à sobrevivência, esse conhecimento inclui também
factos e mecanismos relacionados com a regulaçäo do organisme como
um todo. As estratégias de raciocinio giram à volta de objectivos, opçöes
de acçäo, previsöes de resultados futuros e planos para a implementaçäo
de objectivos em diversas escalas de tempo.
100 O ERRO DE DESCARTES
Segundo, os processos da emoçäo e dos sentimentos fazem parte in
tegrante da maquinaria neural para a regulaçäo biológica, cujo cerne é
constituído por controlos homeostáticos, impulsos e instintos.
Terceiro, devido ao desigii do cérebro, o conhecimento geral necessá
rió depende de vários sistemas localizados, näo numa u'nica regiao mas
em regiöes cerebrais relativamente separadas. Uma grande parte de tal
conhecimento é acedida sob a forma de imagens näo num único mas em
muitos locais do cérebro. Embora tenhamos a ilusäo de que tudo se reú
ne num único teatro anatómico, dados recentes sugerem que tal näo é o
caso. É provável que a ligaçäo entre as diferentes partes da mente prove
nha da relativa sincronia de actividade em locais diferentes.
Quarto, visto o conhecimento sá poder ser recuperado, de forma
distribuída e parcelar, a partir de locais existentes em muitos sistemas
paralelos, a operaçäo das estratégias de raciocinio requer a retençäo
activa da representaçäo de miriades de factos numa ampla exposiçäo
paralela durante um extenso periodo de tempo (no minimo, por vários se
gundos). Por outras palavras, as imagens sobre as quais nôs raciocinamos
(imagens de objectes especificos, acçöes e esquemas relacionais; imagens
de palavras que ajudam a traduzir tudo isso sob a forma de linguagem)
näo só devem estar «em foco» algo que é obtido pela atençäo como
devem também ser «mantidas activas na mente>, algo que é realizado
pela mem()ria de trabalho a alto nivel.
Suspeito que a misteriosa aliança dos processos postos a descoberto no
fim do capitulo anterior se deve em parte à natureza do problema que o
organisme está a tentar resolver e em parte ao design do cérebro. As deci
söes pessoais e sociais estäo repletas de incertezas e têm impacto na so
brevivência de forma directa ou indirecta. Requerem, por isso, um vasto
repertório de conhecimentos sobre o mundo externo e sobre o mundo que
existe dentro do organisme. No entanto, visto o cérebro reter e aceder ao
conhecimento näo de uma forma integrada mas espacialmente distri
buida, requerem ainda a atençäo e a memória de trabalho para que a com
ponente do conhecimento que é acedido na forma de imagens possa ser
manipulada ao longo do tempo.
Quanto à razäo por que os sistemas neurais que identificámos se
sobrepöem de forma täo notória, suspeito que a resposta se encontra na
conveniência evolutiva. Se a regulaçäo biológica elementar é essencial
para a orientaçäo do comportamento pessoal e social, entäo o design do cé
rebro que provavelmente prevaleceu na selecçäo natural poderá ter sido
aquele em que os subsistemas responsáveis pelo raciocfnio e pela tomada
de decisäo permaneceram intimamente associados com aqueles que
O ELABORAR DE UMA EXPLICAÇAO 101
estavam relacionados com a regulaçäo biol(5gica, dado o papel que
desempenham na sobrevivência.
A explicaçäo geral prevista nestas respostas constitui uma primera
aproximaçäo das perguntas colocadas pelo caso de Phineas Gage. O que
permite ao cérebro que os seres humanos se comportera racionalmente?
Como íunciona? Resisto habitualmente a resumir a tentativa de respon
der a estas questöes com a expressäo «neurobiologia da racionalidade»,
dado o aspecto formal e pretensioso da expressäo, mas é disto que no
fundo se trata: apresentar os principios de uma neurobiologia da raciona
lidade humana ao nivel dos sistemas cerebrais de grande escala.
O meu plano para a segunda parte do livro consiste em ponderar a
plausibilidade da explicaçäo geral esboçada acima e em apresentar uma
hipótese testável derivada dela. Contudo, devido às diversas ramifi
caçöes do tema, vou restringir a discussäo a um número seleccionado de
tópicos que considero indispensáveis para tomar as ideias inteligíveis.
Este capitulo é uma ponte entre os factos da Parte 1 e as interpretaçöes
que proporei adiante. A travessia espero que o leitor näo venha a consi
derá la como uma interrupçäo tem várias finalidades: examiner
noçöes às quais irei recorrer frequentemente (e. g., organisme, corpq, cé
rebro, comportamento, mente, estado); discutir rapidamente as bases
neurais do conhecimento, realçando a sua natureza parcelar e a sua
dependência de imagens; e fazer alguns comentários sobre o desenvolvi
mento neural. Näo serei exaustivo (por exemplo, uma discussäo sobre
aprendizagem e linguagem teria sido apropriada e útil, mas nenhum
destes tópicos é indispensável para o objective principal); näo apresenta
rei um manual de estudo, sobre qualquer dos tópicos abordados; e näo
irei justificar todas as opiniöes que sustente. O leitor deve recordar que o
livro é a minha parte do diálogo.
Os capitulos subsequentes regressaräo à história principal e trataräo
da regulaçäo biológica e sua expressäo nas emoçöes e nos sentimentos, e
dos mecanismos por meio dos quais as emoçöes e os sentimentos podem
ser útilizados na tomada de decisäo.
Antes de prosseguirmos, devo repetir algo que foi referido na Introdu
çäo. Este texto é uma abordagemexploratória com um fim em aberto e näo
um catálogo de factos estabelecidos. Estou a considerar hipóteses e testes
empiricos e nao a fazer afirmaçöes acerca de certezas absolutas.
102 O ERRO DE DESCARTFS
SOBRE ORGANISMOS, CORPOS E CÉREBROS
Qualquer que seja a questäo que possamos levantar sobre quem somos
e por que é que somos como somos, uma coisa é certa: somos organismos
vivos complexes, com um corpo propriamente dite* «
viar) e com um sistema nervoso «
Sempre que me refiro ao corpo tenho em mente o organisme menos o
tecido nervoso (as componentes central e periférica do sistema nervoso),
embora num sentido convencional o cérebro faça também parte do corpo.
O organisme possui uma estrutura e miriades de componentes. Possui
um esqueleto ósseo com muitas partes, ligadas por articulaçöes e movi
das por músculos; possui numerosos órgäos combinados em sistemas;
possui uma fronteira ou membrana que demarca o seu limite exterior,
constituida em grande parte pela pele. Em certas ocasiöes, irei referir me
a órgäos vasos sanguineos, órgäos da cabeça, tórax e abdómen, a pele
como sendo «visceras». De novo, num sentido convencional, o cérebro
estaria incluido no organisme, mas vou deixá lo de lado.
Cada parte ao organisme é constituida por tecidos biológicos, os
quais, por sua vez, säo constituidos por células. Cada célula é constitui
da por numerosas moléculas, organizadas de modo a criarem um esque
leto para a célula (citöesqueleto), vários órgäos e sistemas (núcleo celular
e variados organelos) e uma divisória global (membrane celular). A com
plexidade em termos de estrutura e de funçäo é assustadora quando ob
servamos uma dessas células em funcionamento, e vertiginosa quando
observamos um sistema de órgäos no corpo
ESTADOS DE ORGANISMOS
Na discussäo que será apresentada mais à frente existera muitas re
ferências a «estudos do corpo» e a «estados da mente». Os organismos
vivos encontram se em constante modificaçäo, assumindo uma sucessäo
de «estados» definidos por padröes variados de actividades em curso em
cada um dos seus componentes. Pode imaginar tudo isto como uma
combinaçäo das acçöes de um torvelinho de pessoas e de objectes em
operaçäo dentro de uma área circunscrita. Imagine se no terminal de um
grande aeroporto, olhando à sua volta. Vê e ouve o alvoroço constante de
Body proper, no original inglês. (N. da T.)
O ELABORAR DE UMA EXPLICAÇAO 103
muitos sistemas diferentes: pessoas a embarcar ou a desembarcar de
aviöes, ou simplesmente sentadas ou em pé; pessoas a vaguear ou a andar
com uma finalidade aparente; aviöes em circulaçäo, a partir e a chegar;
mecänicos e bagageiros no desempenho das suas funçöes. Imagine agora
o congelar deste video contínuo ou o tirar de uma fotografia com uma
grande angular, abrangendo uma grande porçäo de toda a cena. O que lhe
aparece no enquadramento congelado ou na fotografia desse instante é a
imagem de um estado, um pedaço artificial e momentäneo de vida que in
dica o que se passava nos vários órgäos de um vasto organisme durante
o tempo de exposiçäo definido pela velocidade de abertura do diafragma
da máquina fotográfica. (Na realidade, as coisas säo ainda mais complica
das do que esta descriçäo deixa supor. Conforme a escala de análise, assim
os estudos dos organismos podem apresentar se como unidades discre
tas oú em transformaçäo continua de uns para os outros.)
¨ CORPO F O CÉREBRO INTERAGEM:
¨ ORGANISMO INTERIOR
O cérebro e o corpo encontram se indissociavelmente integrados por
circuitos bioquimicos e neurais reciprocamente dirigidos de um para o
outro. Existera duas vias principais de interconexäo. A via em que
normalmente se pensa primeiro é a constituida por nervos motores e
sensoriais periféricos que transportam sinais de todas as partes do corpo
para o cérebro, e do cérebro para todas as partes do corpo. A outra via, que
vem menos facilmente à ideia, embora seja bastante mais antiga em
termos evolutivos, é a corrente sanguines; ela transporta sinais qufmicos,
como as hormonas, os neurotransmissores e os neuroinoduladores.
Um sumário simplificado é suficiente para revelar a complexidade das
relaçöes:
1. Praticamente todas as partes do corpo cada músculo, arti
culaçäo ou órgäo interne podem enviar sinais para o cére
bro através dos nervos periféricos. Esses sinais entram no
cérebro ao nivel da medula espinal ou do tronco cerebral e
säo transportados para o interio r do cérebro, de estaçäo neu
ral em estaçäo neural, até aos cortices somatossensoriais no
lobo parietal e na regiäo insular.
2. Assubstänciasquímicasquesurgemdaactividadedocorpo
podem alcançar o cérebro através da corrente sanguínea e
104 O ERRO DE DESCARTES
iníluenciar o seu funcionamento, directamente ou pela es
timulaçäo de locais cerebrais especiais (exemplo: o órgäo
subfornical).
3. Na direcçäo oposta, o cérebro pode actuar, através dos ner
vos, em todas as partes do corpo. Os agentes dessas acçöes
säo o sistema nervoso autónomo (ou visceral) e o sistema
nervoso músculo esquelético (ou voluntário). Os sinais para
o sistema nervoso autónomo têm origem nas regiöes evolu
tivamente mais antigas (a amigdala, o cingulo, o hipotálamo
e o tronco cerebral), enquanto os sinais para o sistema mús
culo esquelético têm origem em vários cortices motores e
núcleos motores subcorticais.
4. O cérebro actua também no corpo através da produçäo de
(ou através da ordem para se produzirem) substäncias qui
micas que säo libertadas na corrente sanguines, tais como
hormonas, transmissores e moduladores. Este assunto será
aprofundado no próximo capitulo.
Quando afirmo que o corpo e o cérebro formam um organisme in
dissociável, näo estou a exagerar. De facto, estou a simplificar de mais.
Deve considerar que o cérebro recebe sinais näo apenas do corpo mas, em
alguns dos seus sectores, de partes da sua própria estrutura, as quais
recebem sinais do corpo! O organisme constituida pela parceria cérebro
corpo interage com o ambiente como um conjunto, näo sendo a interac
çäo só do corpo ou só do cérebro. Porém, os organismos complexes como
os nossos fazem mais do que interagir, fazem mais do que gerar respos
tas externas espontäneas ou reactivas que no seu conjunto säo conhecidos
como comportamento. Eles geram também respostas internas, algumas
das quais constituera imagens (visuais, auditivas, somatossensoriais) que
postulei como sendo a base para a mente.
SOBRE O COMPORTAMENTO E SOBRE A MENTE
Muitos organismos simples, mesmo aqueles com apenas uma única
célula e sem cérebro, executam acçöes de forma espontänea ou em res
posta a estimulos do ambiente; isto é, produzem comportamento. Al
gumas destas acçöes estäo contidas nos próprios organismos e podem
tanto ficar escondidas dos observadores (por exemplo, uma contracçäo
O ELABORAR DE UMA EXPLICAÇAO 105
num órgäo interior) como serem observáveis do exterior (a contracçäo ou
a distensäo de um membro). Outras acçöes (rastejar, andar, segurar num
objecte) säo dirigidos ao ambiente. Mas, em alguns organismos simples
e em todos os organismos complexes, as acçöes, quer sejam espontäneas
ou reactivas, säo causadas por ordens vindas de um cérebro. (Deve notar
se que os organismos com corpo e sem cérebro mas com capacidade de
movimento antecederam e coexistiram em seguida com organismos que
possuem corpo e cérebro.)
Nem todas as acçöes comandadas por um cérebro säo causadas por
deliberaçäo. Pelo contrário, é correcto assumir que a maior parte das
acçöes causadas pelo cérebro e que estäo a decorrer neste preciso mo
mento näo säo de todo deliberadas. Constituera respostas simples, das
quais o movimento reflexo é um exemplo: um estimulo transmitido por
um neurónio que leva outro neurónio a agir.
A medida que os organismos adquiriram maior complexidade, as ac
çöes «causadas pelo cérebro» necessitaram de um maior processamento
intermédio. Outros neurónios foram interpolados entre o neurónio do
estimulo e o neurénio da resposta, e variados circuitos paralelos foram
sendo assim estabelecidos, mas isto näo quer dizer que o organisme com
esse cérebro mais complicado tivesse necessariamente uma mente. Os cé
rebros podem apresentar muitos passos que intervêm nos circuitos que
fazem a mediaçläo entre o estimulo e a resposta e, ainda assim, näo possuí
rem uma mente, caso näo satisfaçam uma condiçäo essencial: possuirem
a capacidade de exibir imagens internamente e de ordenar essas imagens
num processo chamada pensamento. (As imagens näo säo somente vi
suais, existera também «imagens sonoras», «imagens olfactivas>,, etc.) A
minha afirmaçäo acerca de organismos que apresentam comportamento
pode ser agora completada pela afirmaçäo de que nem todos têm uma
mente, isto é, nem todos possuem fenómenos mentais (o que equivale a
dizer que nem todos têm cogniçäo ou processos cognitivos). Alguns orga
nismos possuem tanto comportamento como cogniçäo. Alguns desenvol
vem acçöes inteligentes, mas näo possuem mente. Nenhum organisme
parece ter mente e näo ter acçöes.
Assim, na minha opiniäo, o facto de um dado organisme possuir uma
mente significa que ele forma representaçöes neurais que se podem
tornar em imagens que säo manipuladas num processo chamada pen
samento, o qual acaba por influenciar o comportamento em virtude do
auxilio que confere em termos de previsäo do futuro, de planificaçäo
deste de acordo com essa previsäo e da escolha da próxima acçäo. Reside
aqui o centro da neurobiologia, tal como eu a concebo: o processo por
meio do qual as representaçöes neurais, que säo modificaçöes biológicas
106 O ERRO DE DESCARTES
criadas por aprendizagem num circuito de neurônios, se transformam em
imagens nas nossas mentes; os processos que permitem que modificaçöes
micröestruturais invisiveis nos circuitos de neurónios (em corpos celula
res, denáritos e axónios, e sinapses) se tornem numa representaçäo neu
ral, a qual por sua vez se transforma numa imagem que cada um de nós
experiencia como sendo sua.
Numa primera aproximaçäo, a funçäo global do cérebro é a de estar
bem informado sobre o que se passa no resto do corpo (o corpo pro
priamente dito); sobre o que se passa em si pro'prio; e sobre o meio
ambiente que rodeia o organisme, de modo a que possam ser adquiridas
acomodaçöes de sobrevivência adequadas entre o organisme e o ambien
te. De uma perspectiva evolutiva, nada está em contradiçäo com isto. Se
näo tivesse havido o corpo, näo teria surgido o cérebro. Consequentemen
te, os organismos simples que possuem apenas corpo e comportamento,
mas estäo desprovidos de cérebro ou de mente, ainda existera e säo, de
facto, bastante mais numerosas que os seres humanos em várias ordens
de grandeza. Pense nas muitas e felicissimas bactérias, tais como a Esche
richia coli, e na boa vida que levam neste momento dentro de cada um de
nós.
O ORGANISMO E O AMBIENTE INTERAGEM:
ABARCANDO O MUNDO EXTERIOR
Se o corpo e o cérebro interagem intensamente entre si, o organisme
que eles formam interage de forma näo menos intensa com o ambiente
que os rodera. As suas relaçöes säo mediadas pelo movimento do orga
nismo e pelos seus aparelhos sensoriais.
O ambiente deixa a sua marca no organisme de diversas maneiras.
Uma delas é através da estimulaçäo da actividade neural dos olhos (den
tro dos quais está a retina), dos ouvidos (dentro dos quais está a cóclea, um
órgäo sensivel ao som, e o vestibulo, um órgäo sensivel ao equili'brio) e das
miriades de terminaçöes nervosas localizadas na pele, nas papilas gus
tativas e na mucosa nasal. As terminaçöes nervosas enviam sinais para
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