CAPÍTULO 10
O esquecimento e a fragilidade dos livros
Quando o desinteresse destrói
Juvenal se queixava da vida efêmera do papiro. Ignorava, no entanto, outro perigo mais temível e destrutivo: o desinteresse. Entre os gregos, no início, não havia muitas cópias de um único texto, e assim era natural que o texto ficasse reservado a poucos leitores, à exceção de Homero ou Hesíodo. Quando as cópias eram limitadas, deterioravam-se e com o passar dos anos a umidade ou qualquer outro fator ambiental facilitava o desaparecimento absoluto.
Hoje em dia não há amostras de papiros gregos anteriores ao século IV a.C. De fato, apesar da existência das bibliotecas e do amplo comércio de livros da época helenística, os escritos de papiro não-substituídos ou copiados em códices se perderam. Várias descobertas arqueológicas permitiram saber que as comunidades cristãs substituíram os rolos de papiro por códices devido ao baixo custo dos pergaminhos. Muitos dos textos bíblicos do século II eram códices; os dos séculos III e IV já eram, quase todos, códices. Os textos dos chamados pagãos, em compensação, tiveram a má sorte de ser transcritos lentamente, num processo favorável a poucos.
O desinteresse pela literatura paga, gerado pelos cristãos, provocou, entre outras coisas, a extinção natural de muitos livros. Milhares de peças de comediógrafos gregos desapareceram depois de serem condenadas pelos eclesiásticos por leviandade e imoralidade. Houve perseguições contra as montagens teatrais e contra os exemplares dos atores, o que pressupunha uma etapa obscura em que milhares de comédias foram escondidas nos armários até se transformarem em curiosidades arqueológicas. Em 691 d.C. foi elaborada a Ata do Concilio em Trullo, cujo Cânone LXII proibiu a representação de comédias devido aos seus efeitos nocivos à moral dos fiéis da Igreja.
Em 363 ou 364, Joviano queimou uma gigantesca biblioteca em Antioquia só porque seu antecessor, o apóstata Juliano, privilegiou a presença de livros de autores gregos e romanos. Não se sabe se se tratava da mesma biblioteca fundada por Antíoco, o Grande.
Some-se a tudo isso uma tendência alexandrina acentuada em todo o mundo antigo: a seleção de livros de um autor ou de autores clássicos e os resumos de obras extensas. Subentendia-se que as obras de determinados escritores deviam ser lidas em vez de outras.
Filão de Biblos, por exemplo, recomendava uma lista de textos em seu tratado especializado Sobre a aquisição e seleção de livros, que ocupava 12 rolos de papiro. Télefo de Pérgamo fez o mesmo nos três rolos de seu texto Perícia sobre livros. Na época helenística era imprescindível ler as sete peças consagradas de Sófocles, em detrimento de outras centenas escritas por ele, guardadas em cópias oficiais finalmente desaparecidas das bibliotecas de Atenas e Alexandria. Os bibliotecários de Alexandria, talvez para imitar a palavra de Platão, costumavam fazer "seleções" e não, como se tem dito, "cânones". A palavra "cânon" era usada pelos gregos para se referir à ética, como hoje chamamos "modelo" aos atos que devem ser executados por suas virtudes. O primeiro a chamar de cânone as seleções alexandrinas foi David Ruhken, que adotou o termo eclesiástico de cânone nos livros da Bíblia reconhecidos como autênticos.
Em Alexandria, por influência de Aristófanes de Bizâncio, autores como Homero e Hesíodo estavam à frente em todas as listas de poetas épicos. Arquíloco encabeçava as seleções de poetas lâmbicos. Os poetas líricos eram nove: Píndaro, Baquílides, Safo, Anacreonte, Estesícoro, Simônides, Ibico, Alceu e Alcmano (talvez Corina, poetisa grega, substituísse Alcmano em ocasiões especiais ou passasse a ser um acréscimo excepcional). Essa atitude, sem dúvida, contribuiu para o esquecimento e o desaparecimento de centenas de livros de autores considerados menores pelos exigentes bibliotecários.
L. Bieler chegou a esta conclusão:
[...] Uma das causas do desaparecimento, sobretudo dos livros mais extensos, era a prática do resumo, muito em voga desde o século III d.C, precursora de nossas edições abreviadas e books digest. Nem todos os leitores tinham paciência e nem tempo para estudar os 142 livros da História romana de Lívio. Por isso logo se fizeram extratos que se difundiram no comércio livreiro. Mas nos séculos III e IV esses extratos se reduziram ainda mais para se converter em compêndios mesquinhos. Conhece-se a sina da obra de Lívio: de seus 142 livros só possuímos 35 [...]
Os resumos se tornaram imprescindíveis porque se referiam a livros já inexistentes.
O idioma como domínio
A imposição do latim foi lenta, porém definitiva. Não há dúvida sobre seu efeito considerável no esquecimento dos textos gregos e, embora não conseguisse deter seu exercício em cidades como Bizâncio, contribuiu para refreá-lo no continente europeu. O cristianismo, no início submetido ao grego como idioma para propagação do evangelho, depreciou o hebraico e qualquer outra língua, para finalmente exaltar o latim por motivos sociais. Houve, no entanto, alguma persistência inicial até a consolidação do longo processo, marcado pelo desprezo em relação aos clássicos gregos. Curiosamente, Irineu de Lyon, que rezava em latim e falava em latim ou no antigo celta, escrevia em grego seus ataques contra os hereges. Taciano escrevia em Roma, mas em grego, como Hipólito.
De qualquer maneira, textos e documentos do século III d.C. começaram a ser escritos em latim, como confirma um antigo documento datado de 20 de janeiro de 250 d.C. Noviciano foi talvez o primeiro cristão a se valer do latim para divulgar suas doutrinas em Roma. O Concilio de Elvira (300 d.C.) deixou um testemunho redigido integralmente em latim.
As conseqüências dessa mudança foram óbvias:
1. O grego, língua de filósofos e poetas, foi repudiado, salvo exceções, por todos os padres que apontavam na literatura e na filosofia a origem de muitas heresias. Tertuliano se atreveu a afirmar num momento: "[...] De fato, as heresias são todas instigadas pela filosofia [...].
2. Na passagem dos papiros aos códices se impôs o critério de selecionar livros úteis, famosos e, na justa medida de controle, ortodoxos. O leitor pode imaginar quantos livros desapareceram por causa disso. Sem recorrer à imaginação não há forma de quantificar as perdas ocorridas entre os séculos II d.C. e VI d.C.
Orígenes fundou na Palestina a biblioteca de Cesaréia, que, incrementada pelo trabalho de seu aluno Pânfilo (240-310), distribuiu Bíblias em todo o mundo até sua destruição em 637. Escritores notáveis como Eusébio e Jerônimo adquiriram seus conhecimentos em Cesaréia. Eulálio, profícuo editor de textos gregos, devia a Cesaréia todo seu conhecimento técnico e humanístico.
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