Os manuscritos da Irlanda
Os clássicos gregos sobreviveram em Bizâncio; os clássicos latinos e celtas foram salvos, em boa medida, pelos monges da Irlanda. Convém lembrar aqui a história de tal esforço.
São Patrício foi enviado à Irlanda pelo papa Celestino I, em 432, com ordem de evangelizar a ilha remota onde viveu como escravo. Depois tornado santo, ele avaliou as diferentes maneiras de cumprir sua missão e se decidiu pela fundação de mosteiros, abadias e bispados adaptados às idiossincrasias nativas. Esses centros religiosos se dedicaram a resgatar a fé de Cristo e os antigos manuscritos latinos. Os monges, conhecedores do grego e do latim, absorveram os antigos alfabetos irlandeses de Ogham e, depois de criar uma escrita artística sublime, copiaram centenas de obras. Seu trabalho não se limitava a recuperar textos, e sim salvar os mitos e a literatura celta. Transcreveram os mitos de Ulster, Tain, Leinster, Finn, em locais como Aran, Glendaloch, Armagh, Clonard, Bangor, Lismore, Clonmacnois, etc.
Um poema celta, datado do século VI por Kuno Meyer, inaugurou a literatura irlandesa com um testemunho célebre em que Dallan Forgaill agradeceu ao santo Columcille por sua defesa dos filid, uma ordem de poetas acusada de exagerar em suas atribuições políticas numa assembléia em 575.
Herdeiros dos druidas, os poetas irlandeses não podiam se chamar a si próprios de poetas ou filid sem alcançar primeiro a condição de mestres ou, como eles os chamavam, de ollam. Estudavam 12 anos para avançar em grau. O grau mais baixo, oblaire, só permitia o conhecimento de sete histórias; o grau mais alto, o de ollam, permitia conhecer 370 histórias e pressupunha, além disso, o conhecimento de gramática, mitologia, topografia e leis. Os exames eram anuais e o aspirante devia permanecer numa cela úmida e escura enquanto versificava sobre aquilo que aprendera, de tal maneira que seu texto, sendo igual ao melhor da tradição, desse lugar a uma tradição superior. Esses poetas, subestimados por sua erudição e pesadume, foram narradores de histórias com espontâneas e maravilhosas concepções do mundo. A História de Tuan Mac Cairill narra como um homem se transforma sucessivamente em cervo, javali, águia e finalmente salmão, etapa em que é capturado por um homem e devorado por uma mulher. No ventre da mulher se transforma em homem, nasce como profeta e escreve o poema hoje admirado.
O Livro de Kells (Codex Cenannensis), guardado hoje em dia na biblioteca do Trinity College, de Dublin, demonstra que a arte da cópia não se limitava ao texto, e sim a apresentar obras visuais capazes de despertar sentimentos místicos. O Livro de Kells, dizia Geraldus Cambrensis, foi feito por um anjo e não por um homem. Cada livro tinha o formato de códice, mais fácil de ler e mais perdurável, fabricado com couro seco de carneiro. Os monges preparavam o livro cortando o couro, dobrando-o e costurando-o até configurar o volume; logo depois iniciavam a transcrição e decoração dos textos. Thomas Cahill divulgou a teoria de que o traço da escrita irlandesa obedecia a uma matemática pré-histórica proclive (inclinada para diante) de desequilíbrios equilibrados, com uma harmonia sem centros evidentes. As iluminuras dos livros irlandeses prescindiam muitas vezes de figuras humanas e ressaltavam ornamentos geométricos obsessivos: espirais divergentes, ziguezagues e imagens zoológicas.
Columcille, designado ao comando por ser membro do clã Conaill, conhecido como São Columba, fundou inicialmente o mosteiro de Derry e continuou com mais quarenta mosteiros onde se copiavam dezenas de livros. Por volta de 563, em companhia de 12 discípulos, chegou à ilha de lona, perto da Escócia, e estabeleceu um mosteiro para criar extraordinárias edições de livros sagrados. Morreu, ao que se diz, depois de escrever uma estranha frase do Salmo 34. Seu mais respeitoso biógrafo, Adamnan, garantiu que ele não passou um só dia sem dedicar tempo ao estudo ou à difusão do conhecimento.
Essa etapa mágica da Irlanda, logo estendida à Europa, culminou com as invasões dos vikings. Em torno do século IX, os vikings, cientes das riquezas, destruíram os mosteiros irlandeses e os livros. Nem os pequenos reis da Irlanda nem as fracas tropas puderam impedir que cada saque arruinasse séculos de trabalho minucioso e acabasse com a estabilidade da região. Em busca de ouro e pedras preciosas, os vikings arrancavam as capas dos livros e lançavam o resto ao mar. A Crônica anglo-saxã, ao se referir ao ano 793, conta que "[...] em 8 de junho desse ano, os saques e desmandos dos pagãos destruíram lamentavelmente a igreja de Deus em Lindisfarne [...]".
No mosteiro de Lindisfarne se produziam códices para todo o mundo, mas os vikings sabiam de suas riquezas e o arrasaram repetidamente. Em 801 incendiaram os prédios; em 806 assassinaram os monges e incendiaram os prédios novamente; em 867 acabaram com tudo. Destruíram outros mosteiros: Glendalough foi incendiado pelo menos em nove ocasiões; Clonfert, Clonmacnois, Inis Murray, Bangor, Kildare e Movílle simplesmente desapareceram. Na Irlanda e na Inglaterra as bibliotecas ficavam em ruínas. A biblioteca da antiga York, por exemplo, desapareceu completamente. A coleção de Peterborough acabou em mãos dos mesmos dinamarqueses que causaram o incêndio do mosteiro de Crowland em 860. Em 1091, o fogo destruiu o que fora reconstruído em Crowland e começou a decadência do lugar.
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