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sob o nome de serviço. As antigas liturgias previam uma missa solene (a missa de Requiem na liturgia romana) que precederia a sepultura, mas esta prática foi sem dúvida reservada de facto aos clérigos e a alguns grandes laicos. O costume comum não impunha qualquer cerimónia na igreja antes da absolução da colocação no túmulo. A partir do século xm, o costume muda. No dia do enterro, quase sempre no dia seguinte à morte, adquire-se o hábito de celebrar um serviço que termina sobre a cova por uma última absolução. Até ao século XVI ainda, o serviço não está ligado à presença do corpo, que só chega para a inumação. Todavia, entre os testadores, torna-se mais frequente o hábito de pedir que o corpo seja levado para a igreja, no dia do enterro. No século xvn, a presença do corpo tornou-se regra. A importância que o serviço tomou com ou sem o corpo explica o papel adquirido pela «representação» no cerimonial da morte do fim da Idade Média até aos nossos dias.
O serviço solene no grande altar não detinha a celebração das missas, que se sucediam apressadamente nos outros altares da igreja com as mesmas intenções. Determinado testador pedia cem missas «imediatamente depois da minha morte, em todas as capelas de St. Pierre-aux-Boeufs, durante o serviço em que se porá o meu corpo na terra, e o resto nos dias seguintes sem intervalo»1 (1658).
Prática constante que se encontra em 1812, num testamento sem dúvida retardatário e insólito; «Desejo que na manhã do meu enterro sejam ditas seis missas de hora em hora.»
A entrada do corpo na igreja faz-se muitas vezes com o canto do Salve Regina ou do Vexilla Regis: «Assim que o seu corpo tiver entrado na dita igreja da Madalena, se for de manhã antes de coneçar a última missa, e se for à tarde antes de começarem as vésperas dos mortos, que seja cantada devotadamente Salve Regina com os versículos e orações habituais.» 1 Se o enterro tem lugar à tarde, não há missa e o serviço reduz-se às vigílias dos defuntos.
Este testador de 1545 1 ordena que o seu corpo chegue em procissão à Santa Capela onde será enterrado: o porta-cruz à frente, rodeado de dois porta-círios, em seguida o caixão rodeado de quatro porta-círios, e seguido de uma procissão de doze outros círios. À chegada à igreja, os doze círios da procissão serão
1 me, LXXV, 101 (1658), 989 e 603 (1812), VIII, 383, 292 (1545); AN 535 N.2 683 (1520), VIII, 369 (1559), XVI, 30 (1612), XXVI, 25 (1606).
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colocados, seis sobre o altar, seis em frente das relíquias. Era este o costume na Santa Capela. «E permanecerão os ditos 12 círios acesos nos seus ditos lugares durante as vigílias, e no fim destas vigílias, serão retirados dos ditos lugares para conduzir o corpo até ser posto na sua sepultura, e depois serão os ditos círios colocados de novo nos seus lugares em frente das santas relíquias e sobre o altar-mor para servirem acesos durante o resto do serviço, a saber laudes, Salva nos, encomendações, procissão (da oferenda) e missa de Requiem. Isto quer e ordena o dito testador que durante Salva nos e missa Requiem sejam acesos em cima perante as santas relíquias seis pontas de cera, e outras tantas sobre o altar nos dois lados do chefe de Mons. S. Luís e uma para levar ao ofertório, presa a ela uma moeda de prata branca com um pão ázimo e um jarro de vinho como é costume fazer no serviço de um defunto.» Aqui o enterro tinha lugar no meio das Horas, entre as vigílias e as laudes que eram seguidas de uma missa de Requiem.
Neste caso, só havia uma missa. O mesmo em 1520 1: «Se a comodidade o permitir, o corpo será posto na igreja durante a celebração da missa dos mortos, no fim da qual será inumado nos lugares preparados com as solenidades e encomendações habituais na Igreja católica.» De facto o hábito não estava fixado. Ora só havia uma missa, e isto foi durante muito tempo o caso mais frequente, havia várias, em geral três.
Em 1559, o serviço de um padre, prior de Saint-Pierre-des-Arcis, desenrola-se segundo uma ordem um pouco diferente ’: «Que o seu serviço seja completo e altamente dito (cantado) e que 1) as vigílias sejam cantadas com nove salmos e nove lições segundo a nota do ofício dos Finados, 2) laudes, encomendações (como no caso precedente, mas a sepultura ainda não tem lugar),
3) quatro missas cantadas (no caso precedente só havia uma, no século XVI, o costume queria três). Uma missa cantada do abençoado Espírito Santo, a segunda de Nossa Senhora, a terceira dos Anjos (esta não é habitual, e o testador acrescentou-a), a quarta dos Defuntos com a ladainha dos Defuntos. 4) No fim do dito serviço Libera me Domine, De profundis, em seguida depois da Salve Regina (cantada duas vezes, uma vez no início, à entrada do corpo, e uma outra vez no fim), versículos c orações habituais (é a absolução seguida da inumação).»
1 me, LXXV, 101 (1658), 989 e 603 (1812), VIII, 383, 292 (1545); AN 535 N.9 683 (1520), VIII, 369 (1559), XVI, 30 (1612), XXVI, 25 (1606).
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No início do século XVH, o costume fixara-se no cerimonial: como um cónego parisiense indica por um testamento de
1612 (40):
1. «Que no dia da minha morte seja dito um serviço, a saber vésperas, vigílias com 9 lições; no fim dessas lições, o Libera inteiro, depois as laudes dos finados.» É o ofício dos mortos, recitado na igreja. Notar-se-á a deslocação de casa para a igreja (ou a sua repetição na igreja, mais solenemente, com umas luminárias mais ricas).
2. «No dia seguinte de manhã (sempre na ausência do corpo), serão celebradas e cantadas duas missas do Santo Espírito e de Beata.»
3. As encomendações.
4. A chegada do préstito a Notre-Dame. A paragem na igreja em frente da imagem do Crucifixo e o canto do «versículo inteiro Creator omnium rerum [...]». Neste caso particular, a cerimónia deter-se-á aí, porque o cónego quer ser enterrado numa outra igreja, Saint-Denys-du-Pas.
5. «Durante a recitação do Libera (como uma absolução) o meu corpo será levado para a igreja Saint-Denys-du-Pas para estar presente durante a última missa», a missa pró defuncíis. Esta seguia-se às duas outras missas previstas no parágrafo 2 e o corpo devia portanto chegar entre a segunda (de beata) e a terceira (requiem) missa do serviço.
6. A absolvição e a sepultura: «terminada a dita missa, cantando o responso e versículo do Domine non secundum peccata nostra, o salmo Miserere mei Deus, depois o De profundis em música, as orações e rezas habituais, o meu corpo será levado ao local da minha sepultura». Está também previsto que o serviço não se possa fazer de manhã: «Se o meu préstito e enterro não puderem ser feitos de manhã e se for necessário fazê-lo depois, os meus confrades de S. Denis dirão à uma hora depois do meio-dia vigílias e laudes, depois de feitos o meu préstito e enterro como acima.»
Muitos outros testamentos prescrevem os seus serviços sobre este modelo de três missas *. Pode admitir-se que o corpo chegue
1 me, LXXV, 101 (1658), 989 e 603 (1812), VIII, 383, 292 (1545); AN 535 N.? 683 (1520), VIII, 369 (1559), XVI, 30 (1612), XXVI, 25 (1606).
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geralmente entre a segunda missa de Beata e a terceira de Requiem. «Na última das quais será feita a oferenda de um pão, vinho e dinheiro» (a oferenda aliás permaneceu até aos nossos dias em uso na França meridional). O corpo é em seguida enterrado com o canto do Libera e de Salve Regina. Uma primeira absolução. «Assim que o seu corpo for enterrado, que sejam ditas 33 missas e no fim de cada uma das missas irão os padres que as celebram lançar água benta sobre a cova da dita testadora e dirão um Salve Regina, De Profundis e orações habituais.» Outras absoluções.
O ritual de 1614 propôs-se simplificar a liturgia do funeral1. O ofício dos mortos perdeu a sua importância e o serviço limitou-se a uma única missa, a de Requiem, sendo abandonadas as duas outras, do Espírito Santo e de Nossa Senhora. Por vezes isto já acontecia no século xvn, mas durante toda a primeira metade do século xvn, muitos testadores permaneceram fiéis ao trio tradicional, assim como às vigílias, encomendações, laudes.
No final do século xvn, estabeleceu-se definitivamente o costume de «ser dita uma missa cantada, com o corpo presente». Mas, seja qual for o número das missas, das encomendações, dos salmos, deve constatar-se a prioridade atribuída ao serviço, ou seja, à missa entre todas as outras missas, dita na presença do corpo e precedendo imediatamente a sepultura. Pela leitura dos testamentos, fica-se impressionado com o apagamento relativo da absolução e da cerimónia da colocação no túmulo. O acto principal do funeral passa-se a partir daí na igreja quando, perante a representação iluminada, se sucedem as missas cantadas do serviço e as missas rezadas da intercessão.
OS SERVIÇOS DURANTE OS DIAS QUE SE SEGUEM AO ENTERRO
O serviço do dia do enterro era repetido várias vezes, já não com o corpo presente, mas perante a representação, e compreendia cada vez uma absolução sobre a cova. Um testamento de 1628 2 de um vinhateiro de Montreuil prevê o serviço do dia do enterro, com laudes, encomendações, três missas cantadas e Libera.
1 P.-M. Gy, «Lês funérails d’après lê rituel de 1614», La Maison-Dieu, v. 44, 1955.
2 me, In, 533 (1628), LXXV, 54 (1644); Arquivos departamentais da Alta Garona, 3E, 11 808 (1600).
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O mesmo serviço recomeçará no dia seguinte ao do enterro, também com «Libera e De profundis sobre a sua cova».
Um testatário de 1644 * estipula: «Nos três dias subsequentes (ao seu trespasse) três serviços, em cada um deles vigílias, três missas... Um outro serviço no dia da oitava.» O serviço da oitava era habitual como o do aniversário, dito o fim do ano. comprendia o ofício dos mortos, as missas cantadas, a absolução com aspersão de água benta sobre a cova, De Profundis, Libera, orações «habituais», Salve Regina. Por ocasião do fim do ano, como no dia do enterro, os pobres recebiam uma distribuição de esmolas. Sempre apressados, alguns testadores avançavam a data do aniversário. «Fim do ano que quero que se faça dentro de três dias depois da minha morte»1 (1600).
Com o fim do ano e os anuais, terminava o ciclo das missas encomendadas previamente e pagas no momento, «missas a retalho», segundo a afirmação de M. Vovelle 2.
Começava em seguida um novo ciclo, este perpétuo; as missas de fundação. O testador legava então à fábrica ou ao convento ou ao hospital ou à confraria, quer uma terra (casa, campos, vinha), quer um capital em espécie, quer o rendimento de um capital em rendas ou de um comércio (uma tenda do Falais), com o encargo de a igreja ou o convento ou a comunidade hospitalar mandar celebrar perpetuamente os ofícios e missas pedidas com precisão.
A capela (em inglês chantry) é um dos tipos de fundação mais antigos, mais significativos e mais ricos de interpretações históricas. Este testamento de 13993 permite-nos analisar bem o fenómeno: «Quero e ordeno que a capela que mandei começar a edificar na igreja S. Ypolite de Beauvais seja completada e terminada (o testador fala da construção: sem dúvida uma capela lateral, edificada entre os contrafortes da nave, como h’avia muitas no século XIV, como não havia antes, excepto no deambulatório e no braço do transepto no século xm. A mudança é importante), bem e convenientemente guarnecida de livros, cálices e com ornamentos para fazer o serviço e outras coisas necessárias à dita capela (livros legados por alguns testadores eram acorrentados na capela).» Mas a palavra «capela» tinha dois sentidos, um que acabamos de ver, de edifício físico, o outro de fundação de missas: «Item que a dita capela seja fundada de
1 me, In, 533 (1628), LXXV, 54 (1644); Arquivos departamentais da Alta Garona, 3E, 11 808 (1600).
2 M. Vovelle, Piété baroque, op. cif., p. 119.
* Tuetey, 45 (1399), 337 (1416); me, XXVI, 44 (1612).
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LX libras par.1 de renda [...] das quais LX lp haverá L lp. para o capelão que será ordenado para a dita capela servir (muitos padres não beneficiários viviam de rendimentos deste tipo; no século XVH, chamava-se ’padres habituados’). O dito capelão deverá dizer missa cada um dos dias na dita capela para rezar pelas almas de mim, do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos e irmãs e dos meus outros amigos e benfeitores. E as outras 10 lp serão para sustentar a capela (sem dúvida as luminárias, as vestes litúrgicas e a sua manutenção...) [...]. Item quer e ordena que a dita capela seja para minha apresentação, dos meus herdeiros e sucessores e tendo causa.» Neste outro testamento de 1416, o único sentido fixado é o de uma fundação perpétua de missas: «Quero e ordeno uma capela seja fundada na dita igreja paroquial e da paróquia de S. Didier [...] de cem lp de renda anual e perpétua [•••] pela condição de que dois religiosos da abadia S. Florent [...] sejam levados a dizer ou mandar dizer cada um dia perpetuamente, a saber domingo missa do dia, à terça-feira e quinta-feira, missa do Espírito Santo, à segunda-feira, quarta-feira e sexta-feira, missa dos mortos e ao sábado missa da Anunciação, as missas essas que serão ditas na dita capela para a salvação e remédio das almas do meu muito temível senhor e marido, do meu muito querido e bem amado filho, e isto com um aniversário solene cada ano [...] no qual 13.° dia acima dito o meu muito temível senhor [...] foi a vida para o trespasse.»
Durante todo o século XVI e a primeira metade do século xvn, houve testadores que fundam sempre capelas ou mantêm as capelas fundadas pelos pais. Em 1612 2, Jean Sablez, senhor de Noyers, mestre na Câmara das contas, diz no seu testamento que tem uma capela («na minha capela») na igreja de Noyers, lugar de que é senhor; a mulher já aí está enterrada e pede para aí ser inumado. Esta capela é portanto não apenas o lugar consagrado à celebração das missas de fundação, mas ainda o lugar da sepultura. O testador deseja transferir para a capela da sua senhoria de Noyers a capela de sua mãe, ou seja as missas de fundação da mãe: «Item quero que a missa de fundação que a defunta senhora minha mãe ordenou pelo seu testamento ser celebrada na igreja S. Cervais et Protais em Gisors na capela que aí tem, aí seja celebrada durante trinta anos depois do dia do seu falecimento, e nos tempos depois, que seja celebrada no
1 Libras parisis (libra par. ou lp.).
2 Tuetey, 45 (1399), 337 (1416); me, XXVI, 44 (1612).
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dito lugar ou na igreja de N. D. de Noyers na minha capela, perpetuamente, segundo a escolha e opção dos meus herdeiros e para sua maior comodidade e salvação e por eles paga cada ano, se não tiver contribuído em vida.» Muitos testadores e herdeiros talvez tardassem em executar os compromissos tomados!
Às missas habituais da manhã, o senhor de Noyers acrescenta uma oração da noite: «Item fundo para a salvação da minha alma e a da minha mulher um Salve Regina e oração em honra de Deus e da Virgem Maria ser dita e cantada na minha capela baixa (?) na igreja N.-D. de Noyers uma hora antes do pôr-do-sol, nos mesmos dias em que morrerem.»
No século XV, fundar uma capela significa construí-la materialmente e mandar aí dizer todos os dias uma missa por um padre com privilégio.
No século xvn, a expressão designa sempre missas quotidianas, sem precisar necessariamente a nomeação do capelão. Mas significa cada vez mais lugar de sepultura 1.
Claro que a capela, que equivalia a uma missa rezada por dia, mais uma missa cantada no dia do obit, não era a fundação mais difundida. O mínimo admitido era o serviço aniversário, o obit. Frequentes eram estas fundações de importância média, como a daquele vinhateiro de Montreuil em 16282: 6 missas de Requiem por ano, no dia de Todos os Santos, no dia de Natal, no dia da Candelária, no dia de Páscoa, no dia do Pentecostes, no dia de Nossa Senhora da Misericórdia. Mais, «que seja dita nessa igreja perpetuamente, todos os dias (?) no fim das Vésperas, a Paixão de Nosso Senhor em frente da Imagem de Nossa Senhora, a qual Paixão será tocada enquanto se disser. E para isto o dito testador deu e legou à dita igreja de Montreuil a soma de 400 libras que serão colocadas para constituição de renda pelo dito tesoureiro em proveito da obra e fábrica da dita igreja [...]»
AS FUNDAÇÕES DE CARIDADE. A SUA PUBLICIDADE
A estas fundações de missas, muito numerosas, devem acrescentar-se as fundações de caridade: dádiva a um hospital para um leito, para a manutenção ou o dote de uma rapariga pobre,
1 Cf. infra, cap. v. J me, In, 533 (1628).
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com o encargo de celebrar um óbito. As doações às abadias e conventos, aos colégios, eram frequentes e elevadas nos séculos XII-xui. É possível que depois de um estado estacionário, até mesmo um ligeiro declínio, tenham voltado a subir no século xvn, o que explicaria o desenvolvimento nessa época dos estabelecimentos de caridade e dos hospitais. Eis, entre muitos outros, dois exemplos de fundação: o primeiro, na região parisiense, em 1667, de uma pequena escola para raparigas2: «Dou e lego em perpetuidade para cada ano a S. Martin 100 libras de renda para serem dadas a uma mulher ou uma rapariga capaz de instruir as raparigas da aldeia de Puteaux a ler e a aprender o catecismo. A qual será escolhida pelo meu executor testamentário durante a sua vida, e depois da sua morte, pelos vigários, tesoureiros, e principais habitantes da aldeia»; o segundo, em Toulouse, em 1678, de uma espécie de comunidade: «Quero que depois da morte do meu herdeiro, o prior do Taur tenha o uso e gozo da minha casa, durante a sua vida, e depois dele quero que seja habitada por 5 pobres raparigas ou viúvas em honra das 5 chagas de NSJC [...], escolhidas pelos Senhores reitores do Taur sucessivamente para perpetuidade, assistidos dos Senhores primeiro bailio ou oficiais das confrarias do S. Sacramento, de N. S. do Sufrágio, de St.’Ana e da obra.» Via-se longe, porque a fundação da comunidade devia esperar a morte do herdeiro, mais a do prior do Taur. Mas comprometiam-se sem pestanejar num tempo que se imaginava imutável, como um presente indefinidamente alongado.
Desde os séculos xni-XIV, e até ao século xviu, os testadores estavam obcecados pelo medo de que o clero, as fábricas, os destinatários das suas dádivas não cumprissem exactamente as suas obrigações. Assim afixavam publicamente na igreja os termos do contrato, a dádiva que tinham feito, e o detalhe muito preciso das missas, serviços, orações devidas. «Item quero e ordeno que seja feito um quadro de cobre onde estará inscrito o seu nome, o apelido, o título do dito testador, o dia e o ano do seu trespasse e a missa que perpetuamente será dita pelas almas dos seus defuntos pai e mãe, amigos, parentes e benfeitores na dita igreja»2 (1400); «ordeno que seja posto um quadro
1 Em Inglaterra, W. K. Jordan, Philontropy in Englond, 1480-1660, Londres, 1959.
’ me, LXXV, 137 (1667); AD Alta Garona, op. cit. (1678); Tuetey,
55 (1400); me, LIV, 48 (1560), In, 533 (1628); Tuetey, 337 (1416).
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de bronze contendo a fundação do defunto senhor St. Jehan, meu primeiro marido, no local mais próximo onde está enterrado e a minha se as senhoras das Filles-Dieu quiserem ter a bondade de aceitar segundo o artigo que tem a soma de IIIo LI. que lhes dei por um serviço a perpetuidade cada um ano no dia da minha morte»1 (1560).
Os quadros de fundação são muito frequentes até ao século xvn. Como fizeram as vezes de túmulos, estudá-los-ei com mais detalhes no capítulo seguinte, sob o nome de «túmulos de almas».
Havia dois outros meios para além da placa mural de fundação, para lembrar as intenções do fundador. Um era a associação às orações da liturgia - cuja importância sentimental já vimos no início deste capítulo: «Quando as ditas 6 missas se disserem os ditos tesoureiros mandá-las-ão dizer na liturgia da dita igreja»1 (1628).
O outro era a inscrição num registo mantido, segundo o modelo dos obituários, pelo prior e que o comprometia. Tinha o nome sugestivo de martirológio, «e que seja (esta fundação) registada no martirológio da dita igreja ou priorato para lembrança» 1, diz um testador de 1416.
O museu de Cavaillon conserva uma série de «donativos», ou seja de «quadros» de madeira pintados (não de pedra ou de metal) de 1622 até meados do século XIX. Provêm do antigo hospital, em cuja capela se encontra o museu. Cada donativo comporta o nome do dador e o montante da doação. A esta série juntou-se aquilo que se assemelha a um martirológio, um calendário de estilo do século xvm, em dois quadros (cada um representando seis meses), onde está indicado, em frente de cada dia, o nome do benfeitor. Os padres deviam consultá-lo diariamente na sacristia antes de dizerem a missa.
Estas fundações, como já dissemos, representavam um capital considerável, desviado das actividades económicas e consagrado à salvação das almas, à perpetuação da lembrança, e também à caridade e à assistência. Asseguravam como podiam um serviço hoje devolvido ao Estado.
Esta prática é quase constante do século xn ao século xvm, com a diferença de que o excesso de liberalidades dos dadores do século XII já não se encontra nos testadores do século XVII mais equilibrados, mais sensatos, e sobretudo mais respeitosos
1 me, LXXV, 137 (1667); AD Alta Carona, op. cit. (1678); Tuetey,
55 (1400); me, LIV, 48 (1560), In, 533 (1628); Tuetey, 337 (1416).
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dos direitos dos herdeiros. Mas o fundo de vontade, de intenção, continua a ser o mesmo.
Em contrapartida, surge uma mutação cerca de 1740-1760, que Michel Vovelle analisou com toda a atenção desejável «Fim das missas de fundação, que se tornam mais raras, substituídas por ’missas a retalho’»: Os testadores, mesmo os mais ricos, preferiram pagar em centenas, até mesmo em milhares de missas asseguradas (as comunidades religiosas, esmagadas de obrigações, conseguiam da autoridade eclesiástica uma ’redução’ de missas, espécie de ’bancarrota espiritual’), a eternidade virtual, mas ilusória, dos serviços perpétuos que os antepassados tinham fundado.»
Deixemos de lado as motivações profundas deste importantíssimo fenómeno. Marca um ponto final na longa história começada nos séculos XII-xui e que nos levou da colocação no túmulo do corpo descoberto, às acumulações de missas e de serviços e à ocultação do corpo no fundo do caixão e do catafalco.
AS CONFRARIAS
Todas estas mudanças culminaram em relegar para segundo plano os familiares laicos do defunto, em dar o primeiro lugar aos eclesiásticos, padres, monges, ou a esses representantes de Deus que os pobres são. O adeus dos vivos em redor do túmulo é ocultado, se não substituído, por um conjunto de missas e de orações no altar, uma clericalização da morte. Ora, é na mesma época, a partir do século XIV, que se formam associações de laicos a fim de auxiliar os padres e os monges no serviço dos mortos.
Vimos que filiações de benfeitores laicos se associam a conventos para aproveitarem as orações durante muito tempo reservadas aos monges. Nunca cessaram, como mostra este testamento de 1667 2: Ordena «que depois de chegada a minha morte, quero avisar os veneráveis Padres cartuchos de Paris e enviar-lhes cartas de filiação e participação que consegui (sem dúvida alguma por intermédio de finanças) do R. P. geral da Grande Cartucha para a nossa família, para que faça as orações habituais na sua casa e dê nota às outras casas para a salvação e o repouso da minha alma (como no tempo dos ’rolos dos mortos’) tendo grande confiança na oração das pessoas tão santas e que tanto amei com um amor cordial durante a minha vida».
M. Vovelle, Piété baroque, op. cit., p. 114 sg. me, LXXV, 137 (1667).
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Mas as confrarias do século XIV ao século xvm diferiam tanto das ordens terceiras ou das filiações monásticas como das confrarias de ofícios e dos gabinetes de gestão a que M. Agulhon chamou as confrarias-instituições. O facto é que, contudo, todas as associações funcionais dos últimos séculos do Antigo Regime têm uma espécie de duplo religioso, que é uma confraria.
As confrarias, que serviam de modelo a todas as novas formas de devoção (devoção ao Santo Sacramento, por exemplo), são sociedades de laicos voluntários. Como escreve M. Agulhon1, «sociedades de que ninguém é membro pela sua função, pela idade ou pelo ofício, mas apenas porque o quis». Presididas e administradas por laicos (mesmo se alguns eclesiásticos fazem por vezes parte delas a título pessoal), opõem-se ao mundo dos clérigos, e a sua importância nas coisas da morte parece contradizer o que se afirmou mais atrás sobre a colonização eclesiástica da morte. Uma vingança dos laicos? Ou então, melhor, um mimetismo clerical de laicos sob a cogula dos penitentes? As confrarias são consagradas às obras de misericórdia, e daí o nome de «caridades» que usam no Norte e no Oeste da França. O seu programa está determinado em detalhe nos retábulos dos altares das capelas que possuíam igrejas paroquiais ou algures e das quais muitas nos foram conservadas. A sua análise é muito significativa tanto pelos elementos tirados da tradição escriturária como pelo elemento novo, que acrescentaram e que, justamente, respeita à morte.
A iconografia das obras de misericórdia provém da parábola do Juízo Final em Mateus 25, fonte principal, como vimos (capítulo 3), da escatologia da segunda Idade Média. «Quando o Filho do Homem vier na sua majestade sentar-se no seu trono no meio das nações reunidas, separará as ovelhas dos bodes.» Às ovelhas colocadas à sua direita, o rei dirá: «Vinde, Ovelhas do meu Pai, tomai posse do reino que foi preparado para vós desde a origem do Mundo. Tive fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de beber; era um estranho (hospes) e acolhestes-me, estive nu e vestistes-me, doente visitastes-me, prisioneiro (on cárcere) e viestes ver-me» (25, 35-37). As primeiras representações do Juízo Final calaram estas cenas comoventes, de tal modo a iconografia era ainda levada pelo grande sopro do fim dos tempos. As confrarias vão separá-las do grande fresco escatológico e organizá-las à parte, numa sequência de cenas familiares onde os mendigos recebem pão, vinho, roupas, onde os peregrinos
1 M. Agulhon, Pénitents et Francs-Maçons dans l’ancienne Provence, Paris, Fayard, 1967, p. 86.
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vagabundos são albergados, tratados e visitados nos hospícios. Entre os miseráveis assim socorridos, reconhece-se Cristo. O artista não ousou todavia colocar Cristo atrás das grades das prisões, ou nas salas de tortura. Mas se a promiscuidade dos condenados lhe é poupada, está sempre presente, ao lado do homem honesto que dá uma moeda ao carrasco para suavizar a questão, ou que dá de beber e de comer aos condenados ao pelourinho. Estas imagens vivas e pitorescas, viam-se sobre os retábulos de altares, sobre os vitrais das capelas. Nenhuma iconografia foi mais popular 1.
As obras de misericórdia de Mateus 25 eram em número de seis. Ora, eis que nas representações das confrarias do fim da Idade Média, são acrescentadas de uma nova unidade, e esta devia tocar no coração dos homens para que fosse assim acrescentada ao texto sagrado: mortuus sepellitur. Enterrar os mortos está colocado ao mesmo nível de caridade que alimentar os esfomeados, alojar os peregrinos, vestir aqueles que estão nus, visitar os doentes e os prisioneiros. O Evangelho é todavia muito discreto a respeito dos ritos funerários. Quando Jesus encontra cortejos de carpideiros que trazem os mortos para fora da aldeia ao som das flautas, nada diz. Deixou mesmo cair esta frase enigmática que se poderia interpretar como uma condenação das pompas fúnebres: «Deixai os mortos enterrar os mortos.» Tudo se passa como se a segunda Idade Média tivesse reintegrado o serviço dos mortos num Evangelho cujo silêncio a este respeito suportava mal.
O mortuus sepellitur está ainda ausente da lista das obras de misericórdia no Speculum Ecclesiae de Honorius d’Autant1. É mencionado no Rationale divinorum officiorum do liturgista e teólogo Jean Belleth. O seu aparecimento na iconografia é contemporâneo das confrarias: encontramo-lo no século XIV nos baixos-relevos de Giotto do Campanile de Florença. A partir do século XV, a sua representação tornou-se banal.
É que, entre todas as obras de misericórdia, o serviço dos mortos tornou-se o objectivo final das confrarias. Os seus santos protectores são muitas vezes escolhidos entre os santos profilácticos, protectores contra a peste e as epidemias: S. Sebastião, S. Roque, S. Gond.
1 Mateus, 25, 34-37; L. Réau, An. chrétien, Paris, PUF, 1955-1959, t. ii, vol. 2, pp. 759-760.
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