Otto maria carpeaux



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tão freqüentes nas repúblicas turbulentas do "Quattro

cento", libertam o indivíduo da estreiteza das cidades me

dievais, ensinam o cosmopolitismo. Nasce o "uomo univer

sale", êsse tipo bem renascentista, encarnado pela primeira

vez em Petrarca; e a maior aspiração dêsse homem univer

sal é a "Glória". E a Glória, por sua vez, ajuda a acres

centar traços imaginários ao indivíduo real e a formar a

lenda em tôrno do "grande homem". Ao mesmo tempo, os que formam essas lendas por meio de uma propaganda literária, os humanistas, participam do êxito: a Glória não

cabe apenas ao poder físico, mas também ao trabalho intelectual. Nisto reside a feição "moderna" do "Quattrocento"; e êsse "modernismo" justifica-se pela descoberta

da existência de um mundo espiritual, igual em direitos ao mundo material, na Grécia antiga. A tradição romana - e os estudos de literatura romana - nunca sofreu

interrupção durante a Idade Média. Mas só com o renascimento dos estudos gregos, pela influência de bizantinos eruditos como Gemistos Pleton, Bessarion, Theodoros

Gaza e tantos outros, começa o verdadeiro humanismo (4-A).

O desenvolvimento dos estudos clássicos durante o "Quattrocento" é enorme. É um grande movimento científico e literário (1), localizado nos centros da vida italiana.

O centro mais antigo e mais poderoso é Florença, a cidade de Petrarca. Luigi Marsili (t 1394), amigo do poeta, criou, no convento de Santo Spirito, o primeiro centro

de estudos clássicos. O seu amigo e discípulo Coluccio Salutati (t 14O6), chanceler da República, introduziu o estilo de Sêneca nos documentos oficiais; desde então,

o

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 429



humanista que sabe escrever um latim clássico é indispen

sável nos negócios políticos. Outro chanceler da Repú

blica, Leonardo Bruni, chamado Aretino (t 1444), é no

meado historiógrafo oficial, e quando morre é homenageado com sepultamento no Panteão nacional de Santa Croce. Giarfrancesco Poggio Bracciolini (j- 1459) tem a sorte

de descobrir em conventos alemães e franceses nada menos do que dezenove discursos de Cícero até então desconhecidos, e o poema de Lucrécio. Marsilio Ficino (t 1499)

traduz os diálogos de Platão para o latim e funda a Aca

demia platônica, em Florença.

Em Nápoles, o grande úmbrico Giovanni Pontano (t 15O3) cria outra academia; êle mesmo, erudito e poeta de gênio, é uma academia em pessoa. Em Roma, a feição medieval

do Papado cria certos obstáculos. Flavio Biondo (t 1463), o fundador da arqueologia, é uma figura solitária, e o grande Lorenzo Valla (t 1457), revelando a falsificação

da chamada Doação Constantina, está em oposição. Mas com Pio II (j° 1464), antes Enea Silvio Piccolomini, um humanista eruditíssimo sobe ao trono papal, e Pomponio

Laeto funda a Academia romana. A massa de conhecimentos que êsses homens desenterraram é imensa. Iniciaram ou renovaram estudos de extensão enciclopédica, em todos

os setores do saber humano. Mas a conquista que mais lhes importava era o estilo ciceroniano: a capacidade de exprimir o pensamento em língua clássica. O esteticismo

dominava também a ciência.

A fome de saber coisas novas ou esquecidas não é menor do que a aspiração de vestir de beleza todos os fenômenos da vida. As grandes descobertas geográficas não

estão - ou estão apenas de maneira secundária - ligadas ao humanismo; as cidades italianas foram antes prejudicadas peio comércio ultramarino dos portuguêses e espanhóis.

Mas no seio do mundo conhecido descobre-se a paisagem, desde a memorável subida ao Mont Ventoux, em 26 de abril de 1336, até que Pontano cantou, em Ia-

le origina dell:"umanesimo klassischen Altertums. 3:"

#43O OTTO MARIA CARPEAUX

tim classicíssimo e espírito romântico, a beleza do gôlfo de Nápoles. Não se esqueceu, porém, a advertência de S. Agostinho, que Petrarca lera no alto da montanha:

criase um novo lirismo pessoal, que, diferente do lirismo espiritualista do "Trecento", pretende exprimir o homem integral, os movimentos da alma e a sensualidade

do corpo, a emoção, a cultura e a beleza física.

A literatura italiana do "Quattrocento" (E) não parece estar à altura da arte contemporânea. Lourenço de M& dicis, Poliziano, Pulci, Boiardo, Sannazaro, com tôdas

as suas qualidades admiráveis, não se comparam aos Brunelleschis, Ghilbertis, Donatellos, Bellinis, Boticellis. Até há pouco, a historiografia literária acompanhou

o relativo desprêzo que o crítico genial Francesco De Sanctis manifestara com respeito à literatura do "Quattrocento" (7) : Lourenço de Médicis, diletante bem dotado,

que não tomou bastante a sério a literatura; Poliziano, artista vazio, virtuoso da forma sem conteúdo; Pulci, humorista de lazzi populares; Boiardo, poeta de ambições

demasiadamente -grandes para a sua capacidade; Sannazaro, compondo mosaicos de citações clássicas. Hoje, a apreciação é muito diferente (8) : Lourenço, realista

genial da vida rústica; Poliziano, escondendo atrás da forma fácil verdades filosóficas; Pulci, porta-voz do bom senso popular; Boiardo, o maior dos poetas "primitivos",

digno dos "pré-rafaelitas primitivos" do "Quattrocento"; Sannazaro, poeta da melancolia nobre, de espírito virgiliano.

No julgamento de De Sanctis influíram cogitações de moralista e patriota: pretendendo demonstrar o suces

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 431

sivo esvaziamento da forma artística que levou a Itália ao mero virtuosismo verbal e musical, expressão da derrota política e da corrução moral, De Sanctis viu o

Quattrocento" como precursor do "Cinquecento" e da catástrofe da Itália. Não tendo acompanhado bem as mudanças na crítica das artes plásticas no seu tempo, De Sanctis

não tomara conhecimento da revalorização da arte quattrocentista em relação à cinquecentista; não deu atenção à descoberta dos valores "pré-rafaelitas", da frescura

juvenil de Botticelli, da religiosidade ingênua de Perugino, do naturalismo violento de Donatello, da fôrça "primitiva" de todos êles. De Sanctis continuou a considerar

o "Quattrocento" como início da decadência, enquanto a historiografia e a crítica das artes plásticas já julgavam a época como de mocidade, realismo e "primitivismo",

no alto sentido dêsses têrmos. Carducci, nos seus trabalhos de edição e crítica sôbre Lourenço e Poliziano, já adivinhara êsse

resultado da crítica mais recente (O).

O "Quattrocento" italiano é o tempo de um grande renascimento da literatura popular. Na península inteira ressoa uma sinfonia rústica de "frottole", "villotte",

"caccie", "madrigali", "dialoghi"; a historiografia da música revelou a existência, ignorada pela historiografia literária,

de um centro de poesia popular na região vêneta (1O). Com essa descoberta, a figura, até então isolada, do patrício ve

neziano Leonardo Giustiniani (11), colocou-se, de repente,

no centro da evolução literária. Assim como os seus contemporâneos espanhóis Juan de Mena e Santillana, o aristocrata veneziano imita os strambotti e canzonette

da poe

6) Ph. Monnier: Le Quattrocento. Histoire littéraire du XVe italien. 2 vols. Paris, 19O1.



V. ROSSI: Il Quattrocento. 2.:" ed. Milano, 1938.

7) F. De Sanctis: Storia delia letteratura italiana. 1871. (2.8

Por B. Croce, vol. I, Bari, 1911)

8) E. Rho: La Zinca di Ambrogio Poliziano. Torino, 1923. E. Rho: Lorenzo il Magnifico. Bari, 1926.

siMe

9) Ph. Monnier: Le Quattrocento. Essai sur l:"histoire littéraire XVe siècle italien. Paris, 19O1. 1O) F. Torrefranca: Il Segreto dei Quattrocento. Milano, 1939.



11) Lionardo Giustiniani, 1388-1446.

Edição por B. Wiese, Bologna, 1883.

A. D:"Ancona: La poesia popolare italiana. 2.11 ed. Livorno, 19O6. O. Baroncelli: Le Canzonette di Lionardo Giustiniani. Forli, 19O7.

du

ed.



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sia popular, as pequenas cenas entre namorados, os lamen

tos e alegrias, e imita-os com tanta naturalidade e delicadeza que o povo não observou o fundo de melancolia aris

tocrática dêsses versos: o sucesso das "giustiniane", em tôda a Itália, foi enorme, e - o que é muito significativo - nem os humanistas eruditos resistiram ao encanto

popular; o arqueólogo erudito Flavio Biondo diz de Giustiniani que "dulcissimis carminibus et peritissime vulgariter compositis replevit Italiam". Em face do novo

comércio ultramarino dos portuguêses e espanhóis, o comércio das cidades italianas tomou feição continental, depois nacional e provinciana. O realismo quattrocentista

tem

algo de regionalismo.



Êsse provincialismo é, por outro lado, responsável pelo

relativo atraso da filosofia italiana no século XV. As ve

lhas universidades italianas, inacessíveis ao humanismo,

continuavam centros da escolástica; lá sobreviveu também

o nominalismo, defendendo-se contra a ortodoxia e alian

do-se, em Pádua, aos comentadores "alexandrinistas" de Aristóteles, aristotélicos heréticos, dos quais Pomponazzi é o mais famoso. Até um humanista diferente, como

Pico da Mirandola, quando defende a escolástica, pensa em primeira linha em escotismo e nominalismo. Com efeito, se não fôsse o latim "bárbaro" dos escolásticos,

que devia causar repulsa aos estilistas ciceronianos, o nominalismo agradaria aos humanistas: é uma oposição de empiristas contra o intelectualismo da escolástica

ortodoxa, assim como os humanistas são empiristas dos estudos clássicos contra a adaptação alegórica da tradição antiga pelo pensamento medieval. O nominalismo substitui

as abstrações e generalizações pelos objetos concretos e pelos indivíduos, assim como a beleza abstrata e celeste do "Trecento" é substituída, no "Quattrocento:":",

pela beleza concreta, terrestre, física. O sintoma formal da nova atitude é o novo metro da poesia épica: em vez da teria rima, que foi a base da arquitetura homogênea

do poema de Dante, aparece a ottava

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 433

rima, cujo esquema de rimas - a b a b a b c c- dá à estrofe um fim, um acabamento, tornando-a independente da estrofe seguinte. Cada ottava rima é um indivíduo métrico,

completo em si, e o poema épico do "Quattrocento" compõe-se de grande número dêsses indivíduos métricos, mais independentes e mais musicais do que a teria rima,

mas também mais monótonos e menos expressivos; lembram a beleza sempre igual, sempre perfeita e algo monótona dos quadros de certos pintores da Renascença. O realismo

renascentista acaba quase sempre em formalismo virtuoso.
Lourenço de Medieis (12), ao qual contemporâneos e

posteridade deram o apelido "o Magnífico", é realista e virtuose ao mesmo tempo; o príncipe de estirpe burguesa reuniu em si todos os requintes da cidade altamente

civilizada e tôda a frescura dos campos primaveris da Toscana. A sua poesia respira a atmosfera erudita da sala de estudos da Biblioteca Laurenziana e da Academia

platônica de Ficino, e o ar fresco em tôrno das vilas deliciosas de Poggio a Caiano e Careggi. Se o realismo não fôsse o elemento mais forte, o humanista Lourenço

teria escrito em latim, e não em italiano; não seria o Magnífico que é : o único príncipe que foi um grande poeta.
Lourenço parece petrarquista; o seu sentimento da natureza é idílico e convencional. "Belle, fresche e purpuree
viole" - um sonêto a Laura poderia começar assim. Mas

12) Lorenzo de, Mediei, I1 Magnifico, 1448-1492. (Cf. nota 26.)

Selve d:"amore; Corinto; Ambra; Caceia col falcone; Beoni; Al

tercazione; Nencia da Barberino; Canzoniere; Trionfi; Canzoni

a ballo; Laudi Sacre; Rappresentazione di S. Giovanni e Paolo.

Edição por A. Simioni, 2 vols., Bari, 1913/1914.

A. von Reumont: Lorenzo de:"Medici, il Magnifico. 2.a ed. Leipzig,
1883.

G. Carducci: "I1 Magnifico". (In: Opere, vol. II.)

E. Rho: Lorenzo il Magnifico. Bari, 1926.

L. di San Giusto: La vita e l:"opera di Lorenzo il Magnifico. Firenze, 1927.

R. Palmarocchi: Lorenzo de Mediei. Torino, 1941.

P. Toschi: Saggi su Lorenzo il Magnifico. Firenze, 1951.

OTTO MARIA CARPEAUX

#434 OTTO MARIA CARPEAUX

Lourenço não é um petrarquista comum, senão no sentido

em que tôda a poesia lírica italiana descende de Petrarca.

A sensualidade ardente das Canzone di bailo e dos Trionfi

para o carnaval florentino não permite comparações, e o

tom idílico de "O dolcissime notti, o giorni lieti" tem mais da "Primavera" de Botticelli do que da solidão de

Vaucluse. Com o mesmo ânimo, Lourenço goza da melancolia noturna, da dança das camponesas, e de outros prazeres mais concretos. O seu realismo inclui tudo, alma

e corpo, tem algo de homérico. Dai certos traços naturalistas no meio das petrarquizantes Selve d:"amore, o realismo quase impassível, flaubertiano, das descrições,

nos idílios Ambra e Corinto, e, enfim, o humorismo do quadro de amôres rústicos, na Nencia. Êste último idílio é a única obra-prima realmente perfeita do Magnífico.

O elemento de diletantismo que havia no príncipe, a condescendência do grande senhor em fazer poesia, não o deixou atravessar a fronteira da improvisação virtuosa.

Mas Lourenço, quando improvisa, dá poesia autêntica, porque tinha espírito e imaginação; florentino legítimo, ou antes, burguês florentino legítimo. Em Lourenço

de Médicis, a alma florentina serve-se da cultura clássica para exprimir com tôda a franqueza a sua índole pagã. Os famosos versos carnavalescos -

"Quant:" é bella giovinezza,

Che si fugge tuttavia! Chi vuol esser lieto, sia:

Di doman non c:"è certezza." -


serviram e servirão a tôdas as gerações para inspirar-lhes saudades da Cidade eternamente jovem, com sua cúpula, com os passeios ao longo do Arno, com o panorama

que se estende do alto de San Miniato. Para nós, são versos de saudade romântica. Mas, em Lourenço são o primeiro grito de Dionisos depois de mil anos de silêncio.

Contudo, Lourenço não é apenas pagão. O fundo de melancolia naqueles versos adverte contra essa interpretação. As suas

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

Laudi sacre, das quais a mais bela se dirige ao Crucifixo, a peça religiosa S. Giovanni e Paolo, a meditação grave da vaidade terrestre, na Altercazione, não podem

ser consideradas como expressões de hipocrisia. Mas tampouco o Magnífico é um torturado entre os prazeres do paganismo e os remorsos cristãos. Lourenço é discípulo

de Marsilio Ficino, que sabia harmonizar bem o cristianismo e o platonismo. O próprio platonismo florentino já não é da Grécia ingênua. A luta íntima de Lourenço

trava-se entre o supranaturalismo platônico e outro platonismo, nostálgico do idílio homérico. Daí a melancolia, daí as tentativas espiritualistas, religiosas, no

sentido do "Trecento". Daí também o ligeiro verniz de petrarquismo. Mas, como Lourenço não era, em realidade, um espírito religioso, e sim muito profano, a sua nostalgia

chegou a outros fins que não a poesia cristã; chegou à poesia primitiva, rústica, idílica, e com o virtuosismo da sua cultura requintada conseguiu realizar com a

maior perfeição o idílio. Fazendo poesia popular, deu a realidade diferente da arte ao seu sonho, e deixou à posteridade a imagem perfeita de uma idade áurea:

"Quant:" é bella giovinezza... .

A poesia de Lourenço de Médicis é típica do realismo do "Quattrocento". Os elementos dêsse realismo são o primitivismo intencional, como em Giustiniani, e o paganismo

sensual, como na poesia culta, as mais das vêzes latina, dos humanistas, e ao qual seria mais exato chamar "naturalismo", no sentido filosófico, ou no sentido em

que se fala do "naturalismo sexual" dos antigos. O virtuosismo da forma corresponde ao "intencional" de ambos os elementos. Sem o "intuito", o primitivismo seria

a ingenuidade anacrônica, "romântica", da "matière antique", do Roman de Troie ou do Roman d:"Enéas. Se um poeta "primitivo" medieval tivesse sido dono da cultura

clássica do "Quattrocento", teria sido capaz de tratar assuntos de cavalaria com ironia ligeira e no espírito do idílio. Teria

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#436) OTTO MARIA CARPEAUX

sido uma poesia como a realizou Matteo Maria Boiardo


(13)- Aristocrata da Emília, então uma das regiões atra

sadas e ainda um pouco feudais da Itália, Boiardo vive

em sua vila no campo, dedicado a estudos humanísticos. É um hobereau culto, com certa saudade dos tempos melhores da cavalaria; mas já seria incapaz de participar

das rudezas dos cavaleiros autênticos - é um italiano do "Quattrocento". Chamar "primitivo" a Boiardo não quer dizer que lhe falte arte: os seus sonetos amorosos,

dirigidos a Antonia Caprara, são dos mais belos da língua e dos mais bem construidos. O primitivismo está na idéia de escrever, em pleno "Quattrocento", uma epopéia

de cavalaria, o Orlando Innamorato, que pretendeu ser uma Chanson de Roland italiana. Só ocasionalmente Boiardo revela ironia, porque já não acredita bem nas façanhas

sôbre-humanas dos cavaleiros. Em geral, a sua atitude diante do assunto é romântica, e romântica também é a falta de composição: inúmeros episódios, muitos entre

êles admiráveis, compõem uma epopéia vasta e desordenada, sem finalidade manifesta nem sentido secreto; obra que dêste modo não acabaria nunca, e ficou realmente

fragmento. Boiardo nunca pode ser comparado com o seu continuados Ariosto, que é homem diferente e artista incomparàvelmente maior; mas Boiardo é mais sincero, mesmo

na poesia amorosa. Menos artista e mais sincero, em comparação com seu grande sucessor: neste sentido, Boiardo é primitivo, talvez o único poeta realmente primitivo

da literatura mais velha da Europa.
Haverá quem considere impossível um primitivismo autêntico no "Quattrocento" italiano, época da arte mais 13) Matteo Maria Bojardo, 1434-1494.

Amorum libri III; Orlando Innamorato (desde 1487). Edições: Canzoniere, por C. Steiner, Torino, 1927. Orlando Innamorato, por F. Foffano, Torino, 1926.

P. Rajna e outros: Studi su Matteo Maria Bojardo. Bologna,

1894.
G. Reichenbach: Matteo Maria Bojardo. Bologna, 1929. A. Zottoli: Di Matteo Maria Bojardo. Bari, 1937.

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

consciente. O realismo de Lourenço de Médicis e o romantismo de Boiardo seriam atitudes intencionais, de condescendência com a poesia popular, a rústica e a da cavalaria.

Lourenço e Boiardo são, afinal, mais ou menos contemporâneos de Juan de Mena e do Marquês de Santillana. O povo italiano, porém, base de uma civilização mais antiga,

- portanto mais consciente, já é capaz de tomar atitude própria em face das modificações sociais, que no mundo "flamboyant" só produziram reações aristocráticas.

Na Itália,

- feudalismo acabou mais cedo do que em outra parte, e a literatura italiana não possui "epopéia nacional". Em compensação, produziu uma literatura de escárnio popular

contra o feudalismo; o cume dessa literatura é a epopéia herói-cômica de Pulci, que é ao mesmo tempo o testemunho mais forte do realismo do "Quattrocento".

Como fonte de Pulci indicaram-se os romances Reali di Francia e Guerino il Meschino, de Andrea dei Magnabotti (j 1431), versões fantásticas da "geste de Charlemagne"

(14). Pertencem à última fase da transformação do "roman courtois" em livro popular, em "Volksbuch". Preparam, inconscientemente, o que será romantismo consciente

e ironizado em Ariosto. A tradição a que Pulci pertence é, porém, outra. Por volta de 12OO, dois autores da terra firme de Veneza, que se chamavam provilvelmente

Minocchio de Pádua e Nicola da Verona, escreveram duas epopéias de cavalaria, em língua francesa: L:"Entrèe d:"Espagne

- a sua continuação, La prise de Pampelune (14-A). O que

distingue essas gestes franco-vênetas das gestes francesas do ciclo de Carlos Magno, é o caráter de Rolando;

- grande cavaleiro aparece prepotente, irascível e violento, tal como um burguês ou pequeno-burguês italiano imagina 14) Edição dos Reali di Francia, por G. Vandelli

e G. GambarvL

Bari, 1947.

14A) L:"Entrée d:"Espagne, editada por A. Thomas, 2 vols., Paris, 1913 A. Thomas: Nouvelles recherches sus 1:"Entrée d:"Espagne. Paris, 1882.

437


#438 OTTO MARIA CARPEAUX

um senhor feudal de outras terras. Nesta tradição está


Pulei.

Luigi Pulei (1:") foi sempre muito admirado. O Mor

gante não tem nada em comum com as epopéias herói-cômicas dos séculos XVI e XVII, paródias classicistas e algo fatigantes da epopéia homérico-virgiliana da Renascença.

O Morgante zomba de outro objeto: do romance de cavalaria. Mas tem menos de Cervantes que de Rabelais. Os personagens principais são os gigantes grosseiros Morgante

e Margutte, personificações de um "naturalismo" brutal dos instintos, imensamente ridículas. O próprio Pulei não é grosseiro; lembra a malícia fina da qual, na Toscava,

até a gente simples é capaz, e os seus versos são de uma perfeição formal considerável; Byron considerouos os melhores versos da língua italiana. Apesar de tudo

isso, as opiniões sôbre Pulei divergem muito. O Morgante é paródia; mas paródia de quê? Paródia da cavalaria? Ou paródia da paródia involuntária da cavalaria nos

romances populares, à maneira de Magnabotti? Ou paródia da civilização aristocrática, da qual Pulei, cortesão dos Médicis, fêz parte? Ou da civilização cristã inteira?

Aceitarse-ia esta última interpretação lendo-se os versos (os mais
famosos do poema) nos quais Pulei zomba do Credo

"Ma sopra tutto nel buon vin ho fede,

E credo che sia salvo chi gli crede. E credo nella torta e nel tortello

L:"uno è Ia madre, e 1:"altro è il suo figliuolo."

15) Luigi Pulei, 1432-1494.
Morgante Maggiore (primeira edição 147O, aumentada 1483).

Edições por N. Addamiano, Palermo, 1926, e por G. Fatini, 3 voas., Torino, 1927.


L. Einstein: Luigi Pulei and the Morgante Maggiore. Berlin, 19O2.
A. Momigliano: L:"indole e il riso di Luigi Pulei. Roces S. Casciano, 19O7.
L. Pirandello: L:"Umorismo. Lanciano, 19O8.

C. Pellegrini: Luigi Pulei, I:"uomo e l:"artista. Pisa, 1912.

U. Biscottini: L:"arte e Vanima del "Morgante". Firenze, 1932.

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

Mas Pulei não tem objetivos de livre-pensador. Outras vêzes, fala como um burguês medieval. Acabamos acreditando que não quer parodiar nada, mas apenas fazer rir:

seria o rei dos lazzi fiorentinos, alegres e espirituosos, sem arrière-pensées profundas.

Pulei é, em primeira linha, um burguês florentino, sorrindo dos costumes grosseiros - comer muito, beber muito, e o resto - dos populares e da gente dos campos.

Nisso, êle é medieval. É menos da epopéia da cavalaria que êle zomba do que da desfiguração involuntàriamente cômica dessa epopéia nos romances populares; o verdadeiro

aristocratismo não lhe inspira riso, e a propósito da morte de Orlando o humorista sabe escrever versos comovidos e quase sublimes. Mas, em geral, Pulei - como o

autor da Entrée d:"Espagne - não acredita em virtudes extraordinárias dos cavaleiros; como todos os italianos, é republicano por instinto, porque os reis lhe parecem

homens como os outros homens. Cavaleiros, sim; mas as aventuras que se contam dêles, são certamente exageradas e merecem um sorriso céptico. E quem sabe se é verdade

tudo o que se conta de tempos remotos? E aquelas lendas santas que os padres contam no púlpito? Pulei não é ateu nem humanista pagão; os seus conhecimentos clássicos


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