Otto maria carpeaux



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de pura ilusão e imaginação, um reino da arte pura. Colonna é um Poliziano deformado, quase patológico, prestando-se a interpretações psicanalíticas. Mas o seu mundo

de ilusão artística, quando purificado, será o mundo de

Ariosto.

Em Lourenço de Médicis, Pontano, Poliziano, Francesco Colonna encontra-se um elemento contraditório: há em todos êles uma certa angústia religiosa. Na interpretação

da Renascença por Burckhardt, assim como nas de Symonds e de De Sanctis, não há lugar para isso; admitem apenas misturas vagas de religiosidade popular com reminiscências

da mitologia pagã, o que dá como resultado as superstições das quais a Renascença é extraordináriamente rica. A situação religiosa da Itália no "Quattrocento" seria

a seguinte: nas classes altas, indiferença religiosa até o ateísmo proclamado, junto com superstições disfarçadas em ciências, como astrologia e magia; nas classes

baixas, religiosidade enfraquecida e superstições populares em abundância. Ora, as superstições populares são de todos os tempos, e na Itália quase sempre são resíduos

do paganismo antigo. Ao lado da indiferença e do ateísmo, aliás raro, das classes cultas, há angústias religiosas até nos espíritos aparentemente descrentes, e com

tanta permanência que não podem ser interpretadas como rea

ção passadista da burguesia assustada pelas tempestades políticas. As chamadas "ciências ocultas" não constituem um bloco; é preciso diferenciá-las, distinguindo

precursoras das ciências modernas e resíduos de crenças antigas. Enfim, os homens cultos e os populares participam igualmente de movimentos religiosos, comparáveis

aos do "Trecento", e sem o conhecimento dos quais a revolta de Savonarola seria um caso isolado e incompreensível. O "Quattrocento" é época de profundos interêsses

religiosos que deixaram vestígios importantes na literatura (25)_

Não se deve dar muita importância ao fato de um humanista violento e antipático como Francesco Filelfo ter escrito uma Vita de Sanctissimo Joanni Baptista (1446).

Já é mais interessante um Maffeo Vegio, latinista ortodoxo e ao mesmo tempo cristão devoto, escrevendo um poema religioso, Antonias (1437), sôbre a vida de S. Antônio,

nos moldes da epopéia clássica. Antes de tudo, a poesia religiosa de Lourenço de Médicis (2H) constitui uma série de sintomas importantes. Trata-se de uma "rappresentazione

sacra", de Laudi, e de um poema filosófico. A "rappre

sentazione" S. Giovanni e Paolo (1489) lembra o fato de ser a Florença do século XV o centro do teatro religioso na Itália; lá escreveu Feo Belcari (27) as suas

"rappresentazioni", de uma religiosidade simples e sincera. As Laudi de Lourenço, das quais a dirigida ao Crucifixo ("Vieni a

25) K. Burdach:

1918.


V. Zabughin: Storia del Rinascimento cristiano in Italia. Milano, 1924.

E. Walser: Gesammelte Studien zur Geistesgeschichte der Renaissance. Basel, 1932.

C. Angeleri: II problema religioso del Rinascimento. Firenze, 1952.

26) A. Viscardi: "La poesia religiosa del magnifico Lorenzo". (In: Atti del Reale Istituto Veneto, LXXXVH, 1928.)

27) Feo Belcari, 141O-1484. (Cf. "Realismo e misticismo% nota 33.) F. Ceccarelli: Feo Belcari e le sue opere. Siena, 19O7.

i

Reformation, Renaissance, Humanismus. Berlin,



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me peccatore...") é a mais comovida, retomam a tradição da lírica religiosa do "Trecento"; também não é fato isolado : Leonardo Giustiniani escreveu Devotissime

e Sancte laudi (impressas em 1471), e o movimento popular dos Bianchis, muito comparável aos movimentos que acompanham o franciscanismo, deu origem a numerosas laudi

anônimas, expressões de fé ingênua.

Enfim, Lourenço escreveu um poema filosófico: L:"AItercazione (1474). O assunto é, na aparência, um lugar-comum horaciano: a vida- na cidade comparada à vida melhor

nos campos. No fundo, trata-se, como em muitas poesias medievais e barrôcas, da comparação entre a vida ativa e .a vida contemplativa; mas a argumentação não é teológica,

e sim filosófica: o desejo humano de construir um mundo espiritual, fora e independente das realidades materiais. É o mesmo pensamento platônico que aparece no sentido

alegórico das Stanze, de Poliziano. E um dos interlocutores do poema dialogado de Lourenço é Marsilio Ficino, mestre e amigo do Magnífico, criador da Academia de

Florença e de um sistema filosófico, no qual o platonismo e a religião cristã estavam reconciliados.

Marsilio Ficino (28) não foi um filósofo original. Mas o seu esfôrço para construir um sincretismo filosófico-religioso, um platonismo cristão, tem alta importância

sintomática, como testemunho da premência simultânea das angústias filosóficas e religiosas. O platonismo de Ficino, ansioso por adaptar-se à teologia mística do

amor, chega a uma teoria emanatista do amor divino, espalhado no mundo. A filosofia de Ficino representa a feição que a mística podia tomar no ambiente do "Quattrocento".

28) Marsilio Ficino, 1433-1499.

Theologia platonica de immortalitate animaram.

A. Delta Torre: Storia dell:"Accademia platonica di Firenze. Firenze, 19O2.

G. Saitta: La filosofia di Marsilio Ficino. Messina, 1923.

W. Dress: Die Mystik des Marsilio Ficino. Leipzig, 1929.

P. Kristeller: The Philosophy of Marsilio Ficino. New York,1943.

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 453


Em geral, o misticismo renascentista não é contempla-. tivo é uma doutrina de ação, mais perto do ocultismo moderno do que da mística medieval. Está ligado a um

certo desajustamento, à desproporção entre as exigências do "super-homem" renascentista, representante :"de um possibilismo extremo, por um lado, e, por outro lado,

os obstáculos da realidade semimedieval, eclesiástica e agrária. O espírito renascentista, de feição estética, personifica logo êsses obstáculos como Fortuna, a

deusa arbitrária, que é a inimiga do mérito pessoal e portanto da Glória, tão cobiçada pelos condottieri e pelos humanistas. A Fortuna os humanistas opõem a resignação

estóica, ou então a evasão para o reino do espírito puro, das idéias platônicas. Ou então, procuram conquistar fôrças sôbre-humanas, dedicando-se às ciências ocultas.

Por isso, porque o ocultismo renascentista é doutrina de ação, encontram-se entre os ocultistas da Renascença alguns precursores da ciência e técnica modernas: Paracelsus,

Cardano, Giovanni Battista delia Porta. A maior aspiração dessa gente é a magia; até na Cabala judaica procuram processos mágicos para dominar a Fortuna. A astrologia,

ao contrário, encontra muitos inimigos, porque limita a liberdade humana, sujeitando o homem ao determinismo das constelações astrais. O apêgo do homem renascentista

às ciências ocultas é um fato importante: impede a confusão entre humanismo e progressismo moderno. "Moderna" é antes a distinção nítida das atitudes diferentes

do homem renascentista com respeito à magia e à astrologia: daí resulta compreensão melhor do possibilismo e do conceito da "Fortuna", de tanta importância ainda

em Maquiavel. A figura, no estudo da qual se aprendeu aquela distinção, é a do maior místico

da Renascença: Pico da Mirandola (29). Sábio de erudição

29) Giovanni Pico da Mirandola, 1463-1494.

De hominis dignitate; Contro Vastrologia, etc.

E. Anagnine: Giovanni Pico da Mirandola. Sincretismo religioso-filosófico. Bari, 1937.

E. Garro: Giovanni Pico da Mirandola, Vita e Dottrina. Firenze, 1937.

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enciclopédica, Pico é, no fundo, um universalista medieval. Na Cabala judaica não procurou apenas processos de magia, mas também os vestígios da perdida religião

universal que pudesse unificar tôdas as religiões positivas e armar o homem contra as fôrças do desconhecido; Pico é um místico angustiado. A sua oposição contra

a Igreja não é atitude de um livre-pensador, e sim de um defensor da liberdade espiritual da alma mística contra as imposições do dogma formulado. A "dignidade do

homem", eis a grande aspiração de Pico da Mirandola: o homem é um ser inteiramente livre, independente das fôrças sobrenaturais do alto e de baixo, construindo livremente

o seu reino do espírito. Em Pico da Mirandola adivinha-e algo do fundo místico do famoso individualismo da Renascença.

Será fácil afirmar que êsse individualismo causou a ruína política da Itália; outros motivos mais fortes intervieram para isso. Mas o individualismo impediu, até

Maquiavel, a formação de uma doutrina política coerente. Quanto à vida pública, havia três atitudes diferentes, conforme as classes: a evasão, atitude da aristocracia

vencida; a retirada para a vida particular e econômica, atitude da burguesia; e a revolução democrática, atitude popular que assume - o que é muito significativo

- feição de revolta religiosa contra o paganismo das classes altas da sociedade. Serão as atitudes de Sannazaro, Alberti e Savonarola.

O grande representante da evasão é Jacopo Sannazaro /3O); é importante o fato de ter êsse filho de pais espa

3O) Jacopo Sannazaro, 1458-153O.

Arcadia (primeiras edições, 15O2 e 15O4) ; Eclogae piscatoriae e outras poesias latinas; De partu virginis (1526).

Edições: Arcadia, por M. Scherillo, Torino, 1888; e por E. Garrara, Torino, 1926.

Eclogae piscatoriae por W. P. Mustard, Baltimore, 1914.

F. Torrava: La materia dell:"Arcadia. Città di Castello, 1888. E. Bellon: De Sannazarii vita et operibus. Paris, 1895.

V. Zabughin: Virgílio nel Rinascimento italiano. Milano, 1924.

nhóis, nascido e vivido em Nápoles, no reino onde havia ainda aristocracia latifundiária, mas já vencida pelo poder dos reis da casa de Aragão. Sannazaro ocupa um

lugar da maior importância na história da literatura universal: com o romance pastoril Arcadia criou um gênero que, durante quase dois séculos, foi cultivado em

tôda a Europa. Mas êsse fato prejudicou muito a fama de Sannazaro. Porque o romance pastoril, com os seus camponeses falando a linguagem delicada de cortesãos aristocráticos

e cuidando mais de aventuras amorosas do que dos trabalhos rudes do campo, e um gênero falso; custou muito destruí-lo. E a Arcadia já revela todos os característicos

do gênero: o estilo afetado da narração, as poesias insertas, de sentimentalismo choroso ou de galantaria sutil, as cenas monótonas de festas, caças e enterros dos

pastôres, os nomes gregos dos personagens, o elemento autobiográfico (a Arcadia é a história amorosa do próprio autor), e as alusões aos acontecimentos políticos

da época. No mais, a Arcadia, embora representando um novo gênero, tem pouco de original; o texto é um mosaico de reminiscências de Teócrito, Virgílio e outros autores

antigos.

Contudo, Sannazaro sofreu a injustiça dos tempos; é um poeta autêntico. A Arcadia passa-se numa Grécia imaginária, justamente naquela parte central do Peloponeso

da qual a historiografia não tem quase nada que dizer. Na verdade, a paisagem arcádica de Sannazaro é, como nas suas encantadoras Eclogae piscatoriae, o gôlfo de

Nápoles, o mesmo que Pontano cantara, e Sannazaro não é indigno do seu grande antecessor. Mas enquanto o gôlfo de Pontano é uma paisagem dionisíaca, caem sôbre o

gôlfo de Sannazaro as primeiras sombras do crepúsculo. Na poesia de Sannazaro há uma melancolia nobre, aristocrática, ou, se quiserem, virgiliana. É o poeta da paisagem

na qual Virgílio foi enterrado. Sannazaro é cristão; escreveu um poema épico em latim sôbre a Virgem. Nesse pormenor também, Sannazaro pertence ao passado; ou antes,

coloca-se de-

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liberadamente no passado. A Arcadia é o sonho de uma vida mais feliz, mais pura; não um sonho fantástico, mas sonho de um artista consciente. É a construção de uma

paisagem irreal, mas possível, entre os mares e sob um céu de horizontes fechados, sem litoral. É o sonho de evasão dos últimos aristocratas, sonho de um mundo em

que não há descobertas geográficas nem necessidade de negócios

- de comércio marítimo. Sannazaro era um espírito algo estéril, mas nobre.

Leone Battista Alberti (31) é um burguês de Florença, quer dizer, burguês quase aristocrático e "super-homem" do "Quattrocento". É um dos grandes homens universais

da Renascença. A glória do arquiteto. do Palazzo Rucellai

- da fachada de Santa Maria Novella sobreviveria principalmente na história das belas-artes, se Alberti não fôsse também o autor de Della famiglia, que interessa

aos historiadores da economia política como um dos primeiros documentos do autêntico espírito burguês; Alberti, bom pai de família e chefe de uma economia doméstica

modelar, é precursor de Franklin. Gênio universal das artes e gênio da economia doméstica são qualidades pouco compatíveis. A explicação do equilíbrio encontra-se

em Defunctus, um dos diálogos dos Intercenali : uma teoria completa da luta entre a "Fortuna" e a "Virtú" humana. A "virtú" de Alberti e da Renascença inteira não

é a virtude cristã. É

- desenvolvimento completo das qualidades do indivíduo humano; num indivíduo genial como Alberti, o resultado dêsse desenvolvimento será o "uomo universale"; num

indivíduo comum, será pelo menos a "cultura geral" do burguês bem-educado e bem-formado. São as armas do homem contra a "Fortuna", o jôgo arbitrário dos acasos;

o grande


31) Leone Battista Alberti, 14O4-1472.

Intercenali; Della famijlia.

G. Mancini: Vita di Leone Battista Aiberti. Firenze, 1882.

G. Dolci: Leone Battista Alberti, scrittore. Pisa, 1912. W Sombart: Der Bourgeois. Muenchen, 1913.

P. H. Michela La pensée de Leone Battista Alberti. Paris, 193O.

indivíduo vencerá com essas armas o mundo e conquistará a "Glória"; no caso do indivíduo comum, a "Fortuna" revela-se como autêntica superestrutura do ambiente,

já não feudal, já não medieval, mas ainda não burguês, ainda cheio de obstáculos irracionais contra o desejo de levar uma vida racional e equilibrada. "Virtà" contra

"Fortuna", eis o comêço da luta pela racionalização da vida. Primeiro, da vida em família e nos negócios; só depois, no Estado. Leone Battista Alberti é o primeiro

gênio da burguesia.

O passado foi da aristocracia. O futuro será da burguesia. Por um momento, momento crítico ao fim do "Quattrocento", o presente pertence ao povo. E não deixa de

ser significativo que o representante do povo seja um

monge: Gerolamo Savonarola (32), fazendo a revolução de

mocrática em Florença. A sombra de Savonarola anda pelos séculos, carregada menos dos anátemas da Igreja que mandou queimar o revoltado, do que das maldições do

mundo culto que não lhe perdoa a revolução desastrosa contra a civilização medicéia. Mas Savonarola não era inimigo da alta cultura. A profunda influência que o

monge exerceu na mente de Botticelli e Miguel Angelo basta para refutar a acusação, e o convento de San Marco, em que Savonarola viveu, é um santuário da arte. Savonarola

é representante máximo, não da hostilidade contra a Renascença, mas da outra Renascença, cristã e popular, que com os monges de S. Francisco começara e com êsse

monge de S. Domingos acabou. Entre os monges havia sempre poetas, e Savonarola é um dos maiores entre êles, não

32) Gerolamo Savonarola, 1452-1498.

Prediche (1496).

Edição por F. Cognasso e R. Palmarocchi, 3 vols., Perugia-Firen

ze, 193O/1933.

P. Villari: La storia di Gerolamo Savonarola e dei suoi temei. 2 vols. Firenze, 1887/1888. (2.a ed., 2 vols., Firenze, 1926.) A. Galletti: Gerolamo Savonarola. Milano,

1912.

J. Schnitzer: Savonarola, ein Kulturbild aus der Zeit der Renaissance. 2 vols. Muenchen, 1924.



HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

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nas poesias amorosas da sua mocidade, nem sequer nos seus comoventes e ingênuos hinos sacros, últimos rebentos da hinografia medieval, mas em seus sermões - gênero

popular, aliás. Savonarola já foi chamado "grande lírico da predicação popular", capaz de visões apocalípticas e proféticas. Quando exclama: "O Firenze, siedi sopra

i fiumi de:"tuoi peccati ! Fa, un fiume di lagrime per lavarli !" -

- leitor moderno se lembra que essas palavras foram gritadas do alto dum púlpito, perto do quadro em que Dante aponta à cidade pecadora os reinos do outro mundo.

Savonarola é medieval, reacionário, sim, se a reação popular contra a burguesia aristocratizada pode ser considerada reacionária. Neste sentido, Arnaldo da Brescia

e Jacopone de Todi também eram reacionários. Sávonarola reúne a paixão política de Arnaldo e a fôrça lírica de Jacopone; é um homem do "Trecento". Em Savonarola

queimaram

- último descendente do mundo de Dante.

Com Savonarola, a Renascença cristã acabou; sobreviverá apenas em poucos poetas evasionistas, dos quais Sannazaro entrará no "Cinquecento". O caso Savonarola, porém,

terá conseqüências importantíssimas. A ameaça do povo cristão estava dirigida contra duas fôrças até então inimigas ou separadas: a Igreja e o humanismo. O caso

Savonarola acabou com a rivalidade entre elas. Igreja e humanistas, igualmente ameaçados, concluirão uma aliança; e essa aliança é o que constitui o espírito do

"Cinquecento".

CAPITULO II


O "CINQUECENTO"
< < C INQUECENTO" significa "século XVI". Mas se o

termo tivesse só esse sentido cronológico, não ~e justificaria o seu emprego na história literária. Na verdade, aquelas duas expressões não coincidem. O termo "Cinquecento"

foi criado para designar a pretensa "idade áurea" da arte italiana: a época de Rafael e Miguel Angelo. Miguel Angelo, porém, considerado hoje como o precursor da

arte barraca, morreu em 1564; e a primeira igreja barraca, I1 Gesú, em Roma, foi construída por Vignola entre 1568 e 1579. Quer dizer, o "Cinquecento", como época

do alto classicismo, terminou muito antes do século XVI. Por outro lado, Rafael, que morreu em 152O, áproxima-se tanto de seu mestre, do quattrocentista Perugino,

que não é possível atribuir a este ou àquele, com plena segurança, certos quadros. É verdade que Lourenço de Médicis, Poliziano, Pulci e Boiardo morrerram entre

1492 e 1495,

- Pontano em 15O3; Sannazaro, porém, só morreu em 153O,

- nada justifica a suposição de o fim do "Quattrocento" coincidir com o fim do século XV. Ao contrário, os contemporâneos consideraram como fim da Renascença, e

portanto do "Quattrocento", o ano de 1527, em que Roma foi saqueada pelos mercenários do imperador Carlos V e o brilho renascentista da côrte papal acabou para sempre;

no mesmo ano começou a agonia da República de Florença, destruída em 153O. Desse modo, o "Cinquecento", em sentido histórico, é uma época de transição entre o "Quattrocento"

e o Barroco, compreendendo menos de 5O anos;

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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 461

é a época durante a qual a arte renascentista caiu em decadência. e enfim em decomposição. Nas artes plásticas é a época de Giovanni da Bologna e Baroccio, do chamado

maneirismo.

A literatura italiana do "Cinquecento" (1) era a mara

vilha da época; a Europa inteira a conhecia, admirava e

imitava assiduamente. Constitui, com efeito, um edifício

imponente. Mesmo hoje, quando vastos setores daquela literatura - a poesia lírica petrasquesca, a comédia à maneira de Plauto - se tornaram obsoletos e ilegíveis,

ainda resta muito de admirável: a epopéia fantástica de Ariosto

e a poesia grave de Miguel Ângelo, o aristocratismo nobre de Castiglione e a individualidade exuberante de Cellini, a crítica de Maquiavel e a sabedoria prática

de Guicciardini ; até mesmo expressões dissonantes como o humor rústico de Folengo e do Ruzzante e a libertinagem de Aretino participam, de qualquer modo, do equilíbrio

feliz entre a fôrça vital das personalidades e a serenidade da expressão estilística, regulada pelos modelos antigos. O "Cinquecento" revela as características de

uma síntese definitiva.

Como elementos dessa síntese apontam-se o culto da Antiguidade e o gênio nacional italiano; a nação ter-se-ia lembrado das origens antigas da sua civilização e conseguido,

por um momento feliz imediatamente antes da derrota das esperanças políticas e eclesiásticas, o acôrdo perfeito entre a expressão antiga e a expressão moderna. Contra

essa interpretação convencional do "Cinquecento" podem-se levantar numerosas objeções: a poesia romântica de Ariosto não tem nada que ver com os modelos antigos,

nem tampouco a melancolia aristocrática de Castiglioni e o individualismo desequilibrado de Cellini; até a política de Maquiavel, que se apresenta como comentário

perpétuo da história romana, é moldada em cânones

1) G. Toffanin: 11 Cinquecento. Milano, 1935.

modernos, nos quais nenhum romano teria reconhecido o espírito da sua cidade. Espírito antigo encontra-se só em outros setores da literatura cinquecentista : há

qualquer coisa dos elegíacos romanos, de Catulo, Propércio, Tibulo, dentro das formas modernas da lírica petrarquista, e Plauto teria gostado das comédias de Bibbiena

e Grazzini. São justamente aquêles gêneros da literatura cinquecentista que caíram depois em olvido, porque tinham estabelecido uma convenção que repugnou ao espírito

italiano. A síntese não é tão perfeita como parece. Há mesmo muito desequilíbrio e muita luta lá dentro. Entre expressões aristocráticas e expressões burguesas não

era possível reconciliação, depois das catástrofes de 1527 e 153O, que derrubaram a preponderância dos artistas burgueses a serviço do Papado, em Roma, e a república

em Florença, restabelecendo regimes de feudalismo falsificado, feudalismo de parvenus sob proteção estrangeira. No seio do humanismo brigaram "ciceronianos" e "erasmianos%

até essa. briga se transformar em luta mais séria entre humanistas pagãos e paganizantes, aliados à Igreja, e humanistas cristãos, aliados à Reforma. Mas nem essas

alianças se mantiveram. As tentativas de reforma erasmiana sucumbiram ao espírito puritano do calvinismo. A aliança entre Humanismo e Igreja, concluída diante da

fogueira que consumiu o corpo de Savonarola, aliança que caracterizou o humanismo romano, nem essa aliança foi mais duradoura: rompeu-se nas sessões do concílio

de Trento, que estabeleceu a ortodoxia à maneira espanhola e a própria dominação espanhola na Itália, marcando quase o fim da literatura nacional. A literatura cio

"Cinquecento", em vez de apresentar um modêlo de síntese equilibrada, saudade dos italianos humilhados do século XVII, acompanha uma tragédia: a tragédia nacional

da Itália. Faz-se mister uma reinterpretação completa do "Cinquecento".

Se o "Cinquecento" é classicista, o "Quattrocento", tão diferente, não o pode ter sido da mesma maneira. Com:"

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efeito, o classicismo inegável do "Quattrocento" está mais na sua literatura latina do que na sua literatura italiana;

Pontano é classicista, mas Lourenço de Médicis é realista, e só Poliziano, que escreveu em latim e em italiano, introduziu o classicismo na literatura "vulgar".

De acôrdo com isso, a literatura latina perdeu, no século XVI, muito da sua importância, enquanto se dá o paradoxo: humanistas ortodoxíssimos como Bembo, dominando

perfeitamente a língua de Cícero, preferem exprimir-se em italiano. O "Quattrocento" é o século do classicismo em latim; o "Cinquecento" é o século ou meio século


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