Português: contexto, interlocução e sentido



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. Acesso em: 7 mar. 2016. (Fragmento).

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Praia da Ilha de São Tomé, São Tomé e Príncipe, 2012.

RAQUEL WISE/AGE FOTOSTOCK RM/GETTY IMAGES
Página 147

“Branca a espuma e negra a rocha, / Qual mais constante há de ser, / A espuma indo e voltando, / A rocha sem se mexer?” pergunta o eu lírico de um dos poemas mais conhecidos de Caetano da Costa Alegre. Na imagem da luta simbólica entre a espuma e o rochedo, Costa Alegre explicita aquela que será a marca da sua poesia: a consciência da cor.

Com uma única obra publicada, Versos (1916), Costa Alegre foi um pioneiro entre os poetas africanos. Foi ele quem primeiro desenvolveu a temática da consciência da cor como um índice de identidade a ser literariamente explorado. Sua poesia, porém, configura-se mais como uma lamentação sobre o drama da cor em uma sociedade elitizada.

País constituído por duas ilhas no noroeste da costa africana, São Tomé e Príncipe tem uma produção poética reduzida quando comparada à dos demais países africanos lusófonos. Os poetas santomenses dedicaram-se, em muitos casos, a abordar temas ligados à luta contra o colonialismo, à exploração dos negros nas plantações e à consciência das diferenças provocadas pela cor da pele.

No panorama maior da poesia africana de língua portuguesa, destaca-se o nome de Francisco José Tenreiro. A primeira razão para esse fato é histórica: ele foi o autor, ao lado do angolano Mário Pinto de Andrade, do célebre Caderno de poesia negra de expressão portuguesa, lançado em Lisboa (1953), que trazia uma antologia de autores de Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

A segunda razão é literária. Tenreiro conseguiu, em seus textos, expressar uma característica que define a literatura africana de modo geral: o esforço para retratar um movimento que começa na assimilação da cultura dominante, mas luta para dela se libertar, reconhecendo a impossibilidade de produzir textos que representem uma ruptura com uma cultura que, durante cinco séculos, permaneceu como referência.

A releitura que faz da questão da cor promove uma interessante aproximação entre negros africanos e americanos, reconhecendo em ambos a origem comum. Veja.

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Menino vendendo raspberries, em São Tomé e Príncipe.

CAMILLA WATSON/JAI/CORBIS/LATINSTOCK

Fragmento de blues
(A Langston Hughes)

Vem até mim


nesta noite de vendaval na Europa
pela voz solitária de um trompete
toda a melancolia das noites de Geórgia;
oh! mamie oh! mamie
embala o teu menino
oh! mamie oh! mamie
olha o mundo roubando o teu menino.

Vem até mim


ao cair da tristeza no meu coração
a tua voz de negrinha doce
quebrando-se ao som grave dum piano
tocando em Harlem:
[...]
Nestas noites de vendaval na Europa
Count Basie toca para mim
e ritmos negros da América
encharcam meu coração;
–– Ah! ritmos negros da América
encharcam meu coração!
E se ainda fico triste
Langston Hughes e Countee Cullen
Vêm até mim
Cantando o poema do novo dia
— ai! os negros não morrem
nem nunca morrerão!

...logo com eles quero cantar


logo com eles quero lutar
— ai! os negros não morrem nem
nem nunca morrerão!

TENREIRO, Francisco José. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 268-269. (Fragmento).



Count Basie: William “Count” Basie foi um pianista, compositor e líder de banda de jazz dos Estados Unidos. Era considerado o “conde” da realeza do swing, à qual pertenciam também Benny Goodman (rei), Duke Ellington (duque), Lester Young (presidente) e Billie Holiday (donzela).
Langston Hughes: poeta, novelista, contista e dramaturgo norte-americano.
Countee Cullen: poeta norte-americano, foi um dos líderes do movimento conhecido como Renascimento do Harlem (bairro de Nova York habitado predominantemente por negros e latinos).
Página 148

Alda do Espírito Santo, Manuela Margarido e Conceição Lima são algumas vozes femininas de projeção mais recente no cenário literário santomense. Têm em comum a recriação poética da questão colonial e a reflexão sobre o impacto que teve na vida local.

No poema transcrito a seguir, Conceição Lima tematiza a complexa relação entre os ilhéus e os africanos que, desde o final do século XIX, eram trazidos pelos portugueses de Angola, Moçambique e Cabo Verde para trabalhar nas roças.

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Prédio abandonado de um hospital em São Tomé e Príncipe, 2012.

CAMILLA WATSON/AWL IMAGES RM/GETTY IMAGES

Zálima Gabon

À memória de Katona, Aiupa Grande e Aiupa Pequeno

À Makolé

Falo destes mortos como da casa, o pôr do sol, o curso d’água.


São tangíveis com suas pupilas de cadáveres sem cova
a patética sombra, seus ossos sem rumo e sem abrigo
e uma longa, centenária, resignada fúria.

Por isso não os confundo com outros mortos.

Porque eles vêm e vão mas não partem
Eles vêm e vão mas não morrem.

Permanecem e passeiam com passos tristes


que assombram a lama dos quintais
e arrastam a indignidade da sua vida e sua morte
pelo ermo dos caminhos com um peso de grilhões.

Às vezes, sentados sob as árvores, vergam a cabeça e choram.

Erguem-se depois e marcham com passos de guerrilha
Não abafem o choro das crianças, não fujam
Não incensem as casas, não ocultem a face
Urgente é o apelo que arde por onde passam
Seus corações deambulam à sombra nas plantações.

Por isso não os confundo com outros mortos


apaparicados com missas, nozadu, padres-nossos.

Por remorso, temor, agreste memória


Por ambígua caridade, expiação de culpa
aos mortos-vivos ofertamos a mesa do candjumbi
feijão-preto, mussambê, puíta, ndjambi.

Para aplacar sua sede de terra e de morada


Para acalmar a revolta, a espera demorada.

Eles porém marcharão sempre, não dormirão


recusarão a tardia paz da sepultura, o olvido
acesa sua cólera antiga, seu grito fundo
ardente a aflição do silêncio, a infâmia crua.

Eis por que vigiam estes mortos a nossa praça


seu é o aviso que ressoa no umbral da porta
na folhagem percutem audíveis clamores
a atormentada ternura do sangue insepulto.
LIMA, Conceição. Zálima Gabon. Disponível em:
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