Português: contexto, interlocução e sentido


As muitas fronteiras de um país colonizado



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As muitas fronteiras de um país colonizado

A cidade e a infância, nome do livro de contos que, em 1957, inaugurou publicamente a carreira literária de Luandino (embora não tenha sido o primeiro que escreveu), revela o foco da produção do autor. A primeira edição dessa obra foi publicada pela Casa dos Estudantes do Império, como parte do projeto de intervenção política por meio da literatura.

Os contos dessa obra dão vida às ruas e aos musseques, os bairros pobres de Luanda, vistos pelos olhos da criança. Tendo crescido em um desses bairros, o autor se vale da experiência pessoal para alimentar sua criação ficcional. São histórias de um mundo marcado pela divisão social, em que a realidade, muitas vezes árida e agressiva, também é retratada de modo lírico. Como parte do processo de criação, a marginalidade social é ficcionalizada por meio do grande tema da separação (entre negros e brancos, entre centro e periferia, entre pobres e ricos).

Outro tema gerador para Luandino é a reflexão sobre a transformação trazida pela administração colonial. O autor revela a dimensão complexa que esse processo assume em Angola: a promessa de um futuro mais próspero convive com o impacto das máquinas na vida de uma população que vê, fascinada e amedrontada, a chegada da tecnologia. Em Quinzinho, o adeus do narrador ao amigo morto é emblemático do olhar de Luandino para essa questão. Observe:

Quinzinho

Aiué, Quinzinho, aiuê.

Vais a enterrar, Quinzinho, vais quieto como nunca foste. Despedaçado pela máquina, Quinzinho, pela máquina que tu amavas, que tu tratavas com amor, desenhando as curvas sensuais das rodas, o alongado harmonioso das correias sem-fim.

A máquina, Quinzinho, a máquina que te cantava aos ouvidos a canção do trabalho sempre igual de todas as semanas e que tu sonhavas libertar por réguas, compassos, um poema negro sobre papel branco num estirador.

Aiué, Quinzinho, aiué.

Operário não pode sonhar, Quinzinho, não pode. A vida não é para sonhos. Tudo realidades vivas, cruéis. A luta com a vida.

Mas tu não eras operário, Quinzinho, tu eras um poeta. E os poetas não devem ser amarrados às máquinas.

Agora vais quieto, mais branco, no teu caixão pobre. Os teus amigos vão atrás, tristes, porque tu eras a alegria deles.

A tua mãe já não chora, Quinzinho, não chora porque é forte. Já viu morrer outros filhos. Nenhum morreu como tu. Despedaçado pela máquina que te escravizava e que tu amavas.

Eu também aqui no meio dos teus amigos. Mas não vou triste. Não. Porque uma morte como a tua constrói liberdades futuras. E haverá outros a quem as máquinas não despedaçarão, pois as máquinas serão escravas deles, que as hão-de idealizar, construir.

E os poetas como tu hão-de cantá-las porque elas serão um instrumento de libertação. Cantá-las no papel branco a tinta negra ainda antes de elas nascerem.

Por isso não vou triste, não. Não sou talvez o teu único amigo branco, mas os outros não tiveram coragem de te vir acompanhar. E são para ti estas rosas vermelhas que trago. São a paga da tua estima por mim, a tua amizade que eu sentia quando tu e eu nos encontrávamos, à beira-mar, ou quando naqueles dias à noite atravessávamos os dois a baía das águas sem fim. A nossa baía de Luanda.

Por isso aqui levo as rosas vermelhas para ti. São a minha primeira homenagem àquele poema que tu escreveste com a tua vida e a tua morte.

Lembras-te, Quinzinho, naquele dia a gente atravessou a baía e o mar estava mau... E era escuro e os teus olhos
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habituados iam-me avisando dos perigos. E depois ambos a caminho de casa, tu foste contando o teu amor pelas máquinas, pelos desenhos de máquinas.

Aiué, Quinzinho, aiué.

A tua mãe vai triste. Os panos negros, a face quieta e sem expressão lembrando os filhos todos mortos, agora só. Lembrando a tua alegria. Lembrando quando tu chegaste da escola a chorar. Era na terceira classe e tu já desenhavas automóveis e máquinas, pois nunca gostaste de desenhar coisas pequenas. Isso era bom para nós, desenhar flores e casinhas bonitas.

Chorando porque tinhas sido expulso, porque a professora te pusera fora da escola.

— Não quero ladrões na aula!

E tu arrependido, arrependido chorando, por que é que o menino branco brincava sempre com o carro de corda e tu não podias? O carro era dele, Quinzinho, e tu um dia escondeste-lo e quiseste levar para casa. Não era para ficar com ele, não. Só para brincar com ele um dia, senti-lo teu por um dia, abri-lo, ver bem a corda e as rodinhas que o faziam andar. Mas o menino branco não compreendeu (pois nem os mais velhos compreendem!) e fez queixa:

— Ladrão de brinquedos!

E chegaste a chorar. E nunca mais voltaste à escola. Tinhas de brincar com os teus carros puxados por fios, feitos de caixas de fósforos vazias, com rodas de tampas de gasosas. Depois foste para a oficina. E aí o grande amor pelas máquinas cresceu. E às escondidas do encarregado.

— Onde está o Quinquim, esse rosqueiro, sempre a fugir do trabalho?

Desenhavas os tornos, as fresas, os maçaricos, o motor gerador e a série de correias que o ligavam às máquinas. E ficavas ali quieto vendo o girar constante daquelas fitas intermináveis. E à noite em casa imaginavas, com essas correias, máquinas estranhas para trazer a água do chafariz para casa, para a mãe não andar naquele vaivém de lata à cabeça, máquinas para construir muitas cubatas ao mesmo tempo.

Eras um poeta, Quinzinho, um poeta do trabalho. E o teu amor pelas máquinas, por aquelas correias girando hipnoticamente, trouxe-te a morte.

A tua mãe te lembra, voltando do trabalho, cansado no corpo mas os olhos brilhantes e as mãos febris construindo, com arames e carros de linha vazios, máquinas fantásticas.

Eu me lembro, amigo, dos domingos na praia, com o teu calção limpo segurando o barco, segurando os esquis para as meninas aprenderem. E nos momentos de descanso olhavas para a Teresa com olhos tímidos. Teresa dos dentes brancos, de riso fácil, que passava a vida a fazer pouco de ti.

Mas agora, Quinzinho, estás morto.

Tiveste uma morte terrível. Os braços sensuais da máquina hipnotizaram-te, quiseste ver mais perto como é que ela vivia, como fazia respirar as outras máquinas, como fazia transpirar os homens escravizados por ela.

E a correia apanhou-te. O braço longo e castanho do polvo apanhou-te. E a cabeça abriu-se com um som oco de encontro ao volante do motor. Tu eras fraco, não pesavas quase nada. A máquina fez de ti um brinquedo.

Mas os teus olhos demasiado abertos e o sangue vermelho cobrindo-te a cara perdoavam à tua amante de ferro. Claro que ela não se deteve com a tua morte. Fria e implacável, teve apenas uma pausa quando bateste com a cabeça cheia de poemas para ela. Imobilizou-se para te retirarem mas depois seguiu sempre, continuou a cantar a sua canção de trabalho.

Foi a homenagem dela para ti. Quando te levaram em braços ela cantava ainda a canção sempre igual de todas as semanas que tu sonhavas um dia libertar.

E os braços castanhos mancharam-se de vermelho. Vermelho como o destas rosas que te trago, Quinzinho.

A minha primeira homenagem a um poeta do trabalho que não chegou a florir.

Rosas vermelhas para ti, Quinzinho!

8-2-57

VIEIRA, José Luandino. Quinzinho. In: A cidade e a infância. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 87-90. (Fragmento).



Aiué: expressão de tristeza, de lamento.
Estirador: mesa na qual se estira o papel para desenhar.
Rosqueiro: que é fajuto, ralé.
Cubata: casa com telhado de folhas; choupana.

Várias observações do narrador revelam o olhar crítico para uma realidade que explora o trabalhador: Quinzinho, o operário que amava as máquinas, morre despedaçado por uma delas, numa grande ironia. Símbolo do progresso que destrói o indivíduo, a máquina é insensível, não diferencia aqueles que a odeiam daqueles que a amam. “A vida não é para sonhos”, adverte o narrador. O que importa é a “luta com a vida”.

Mesmo diante da morte do amigo, porém, o narrador afirma a crença em um futuro potencialmente melhor. Se hoje os trabalhadores ainda são vítimas da máquina, haverá um momento em que essa relação será invertida e os seres humanos conseguirão se libertar da posição servil em que se encontram. Nesse sentido, a morte de Quinzinho é emblemática da luta a ser travada: “uma morte como a tua constrói liberdades futuras”.

Escritor que acredita no papel transformador da literatura, Luandino Vieira atribui a seus romances e contos a função de explicitar as diferenças constitutivas do povo angolano, para que delas possa nascer o espírito da autodeterminação e o desejo de independência política pela qual tanto lutou.



Campo do Chão Bom

O campo de concentração do Tarrafal, construído na região mais inóspita de Cabo Verde (denominada, em crioulo, de Txon Bom — “Chão Bom”), foi criado em 1954 para receber prisioneiros políticos perseguidos pelo governo de Salazar. Também conhecido como Campo da Morte, foi desativado em 1954. Em 1961, porém, Salazar o reativou com a intenção de silenciar os participantes dos movimentos de libertação de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde.


Página 166

Angolano, Pepetela nasceu em 1941. A mudança para Lisboa em 1958 permitiu-lhe participar das atividades políticas e literárias da Casa dos Estudantes do Império.

Por motivos políticos, viveu em Paris durante 6 meses, na década de 1960, e depois seguiu para a Argélia, onde se graduou em Sociologia e começou a trabalhar na representação do Movimento Popular de Libertação de Angola. Em 1969, tornou-se guerrilheiro e engajou-se na luta armada. Entre 1975 e 1982, foi vice-ministro da Educação. Atualmente, leciona Sociologia na Universidade de Luanda.

Entre suas obras, destacam-se: As aventuras de Ngunga (1973), Mayombe (1980), O cão e os caluandas (1985), Yaka (1985), Lueji (1989), A gloriosa família (1997) e O planalto e a estepe (2009).



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Pepetela, em Brasília, DF, 1999.

SÉRGIO LIMA/FOLHAPRESS

Pepetela: o contador de histórias ancestrais

Nascido em Benguela (Angola), Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos escolheu o pseudônimo literário de Pepetela, palavra que significa “pestana”, em Umbundo, uma das línguas Banto faladas no sul de Angola. Esse havia sido seu pseudônimo durante o período em que participou da luta armada pela independência de Angola. O uso desse pseudônimo revela a decisão do escritor de, já no nome-símbolo escolhido, afirmar sua identidade africana. É como africano que Pepetela deseja ser conhecido por todos os que tomarem contato com seus textos literários.

Consciente do papel do escritor na construção literária de uma nação, Pepetela investe na criação de um conjunto de textos em que a história de Angola é revista através dos olhos da ficção. Esse processo, marcado por um interessante uso de alegorias, busca revelar a essência da identidade angolana, recuperada nos elementos da tradição cultural revisitada pelo autor.

Nas tradições populares, a essência de um país

O romance Parábola do cágado velho é exemplar do processo de ficcionalização e alegorização que definem a obra de Pepetela. A respeito dessa obra, o autor declarou:

Falo duma terra que não existe.

Os rios, as montanhas, as chamas podem ter nomes de Angola. Mas a sua disposição no espaço foi subvertida por qualquer força dos espíritos, nada está onde devia. Sou impotente contra a vontade dos espíritos.

[...]

Falo de lutas e guerras que nunca existiram, porque só a sua evocação pode fazer voltar a barbárie. Por isso, este livro deve ser lido e esquecido logo que fechado. Para que não desperte os maus espíritos da intolerância e da loucura. Os mais velhos sabem, não devemos relembrar aquilo que nunca aconteceu.



PEPETELA. Parábola do cágado velho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. Trecho transcrito da orelha do livro. (Fragmento).

A surpreendente declaração do autor (“este livro deve ser lido e esquecido”), que aparentemente vai contra o desejo de todo escritor, marca a importância da tradição cultural da qual faz parte. Para muitas culturas tribais, a rememoração equivale a uma evocação, uma espécie de encantamento que pode dar nova vida ao que é evocado.

O leitor, porém, deve ir além do que diz o autor e compreender que, na literatura, a evocação da memória de acontecimentos bárbaros cumpre uma função importante: ilustrar a que ponto o ser humano é capaz de chegar quando movido pela loucura da guerra ou motivado pela intolerância. Resgatar esses episódios por meio da ficção, portanto, significa colaborar para que não voltem a ocorrer.

O protagonista de Parábola do cágado velho é Ulume, personagem que simboliza o primeiro homem. Como um Adão negro, vive em um mundo fértil e verde, paraíso ainda intocado pela força destrutiva dos seres humanos. Os filhos vieram da união com Muari, a primeira mulher. Todos os dias Ulume sobe ao alto de um morro e espera a passagem de um velho cágado. O mbewu (cágado ou tartaruga), animal muito presente na oratura angolana, simboliza a inteligência e a sagacidade. Por sua longevidade, representa a sabedoria dos mais velhos.

O mundo paradisíaco de Ulume é abalado por dois acontecimentos estranhamente próximos: a visão de Munakazi, jovem de uma aldeia próxima por quem ele fica encantado, e a queda de uma granada que o deixa ferido.
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[...] Decidiu ali, sem ainda saber quanto estava ferido, Munakazi tem de ser minha. Não fazia senão seguir a sabedoria vinda de muito atrás, pois se alguém que pensa morrer tem saudade de uma mulher, então é inútil lutar contra esse amor avassalador, o mais sensato é conviver com ele. Sabedorias antigas trazidas por todos os cágados do mundo. E Ulume respeitava os ensinamentos dos antepassados, resguardados nas mahambas que se enterram à entrada dos kimbos ou nas encruzilhadas dos caminhos [...]. Nunca os seus lábios proferiram qualquer blasfémia contra os antepassados, ou contra o espírito que agitava o vento. Como podia então desprezar ou mesmo só ignorar o sinal evidente que a granada lhe deu?

PEPETELA. Parábola do cágado velho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 12. (Fragmento).

Mahambas: estrados encimados por chifres para proteção das aldeias (cultura Tchokue).
Kimbos: aldeias (em Kimbundo e outras línguas africanas).
Blasfémia: palavra ou declaração que insulta a divindade; pronunciamento contra valores sagrados.

O amor e a guerra surgem como as forças que irão abalar o mundo harmonioso de Ulume e Muari. Na sabedoria dos velhos, sempre venerados na tradição popular, o menino Ulume aprendeu sobre a inexorabilidade das guerras. Observe.

Os mais velhos do kimbo contavam, ainda Ulume era pequeno.

Nesta terra sempre passam guerras. [...]

Sempre foi assim, desde os avós dos avós. Mais tarde vieram os brancos. Exércitos de negros de outras regiões, comandados por brancos, vinham ocupar terras e apanhar escravos em guerras de kuata-kuata. As aldeias ficavam quase desertas, só velhos e crianças sobravam. Para morrer de fome e desespero pouco depois. [...]

E depois acabaram as guerras de kuata-kuata. Os brancos se fixaram em povoações, fundaram Calpe, a cidade do sonho. De Calpe vinha tudo, o bom e o mau. Para Calpe fugiam os jovens, à procura do sonho. [...] Mas as guerras não pararam totalmente. Por vezes havia revoltas e os brancos vinham com seus sipaios arrasar tudo. De novo, do mais profundo das Mundas, o povo renascia.

Agora sim, acabaram as guerras e as revoltas. Mas não há paz. A fome sempre persiste, pois a abundância que a terra produz só chega para pagar os impostos, nunca para saciar a nossa fome. E se protestamos, a palmatória e o chicote estão aí para nos calar. Por isso, ainda vai haver uma grande revolta.

Falavam assim os sekulos, os kotas, os makulundus do kimbo, nomes de línguas diferentes para designar os mais velhos, os mais sábios. Quando Ulume era pequeno.

E já Ulume estava casado e tinha filhos pequenos, estoirou mesmo a grande revolta. Em alguns sítios, das aldeias se levantou gente com as armas possíveis e os brancos fugiram para a segurança de Calpe. [...]

PEPETELA. Parábola do cágado velho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 13-14. (Fragmento).



Kuata-kuata: agarra-agarra (em várias línguas). Era essa a denominação para as guerras de captura de escravos.
Sipaios: soldados ou policiais nativos da África e da Índia.
Munda: principal montanha de um território na designação dos Cuvale, que vivem ao sul de Angola.

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Jovem da Unita com arma, Angola, 1974.

PATRICK CHAUVEL/SYGMA/CORBIS/LATINSTOCK

Nesse capítulo, séculos de história de guerras e sofrimento que marcaram o povo angolano são apresentados a partir de um olhar diferente. A sabedoria dos velhos afirma a existência da guerra como um acontecimento previsível e quase natural. O interessante, porém, é observar que a última guerra apresentada é diferente das anteriores. Nesse caso, o povo se revolta contra seus opressores e, armado com seus poucos recursos, tenta conquistar a liberdade.


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Pepetela, que lutou contra os soldados portugueses como um guerrilheiro do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), enfrenta questões difíceis da história recente, como a guerra civil que teve início após a independência do país. No romance, os filhos de Ulume, Kanda e Luzolo, simbolizam a disputa fratricida travada entre os guerrilheiros do MPLA e da Unita (União Nacional para Independência Total de Angola). Os irmãos vão para a guerra, mas lutam em facções opostas.

Os fios narrativos da Parábola do cágado velho representam a força que move a literatura de Pepetela. O autor, em seus romances, promove a reflexão sobre o presente a partir de um jogo especular com o passado místico e histórico dos angolanos. O resultado desse processo é um texto literário de grande carga simbólica, no qual as tradições nativas são resgatadas como parte essencial da identidade cultural do povo de seu país.

Agualusa: o esfumaçamento das fronteiras geográficas

José Eduardo Agualusa pertence à geração de autores angolanos que começaram a escrever após a independência de seu país. Nesse sentido, embora seus romances e contos também abordem a questão da identidade cultural, dão ao tema um tratamento diferente.

A história passada continua a ser revisitada, mas o olhar dos narradores aponta para uma indefinição das fronteiras políticas, ideológicas e geográficas que, para os autores dos anos 1960, pareciam tão claramente traçadas. Como afirma o romancista e filósofo ganense Kwame Anthony Appiah:

[...] Os romancistas pós-coloniais da África já não estão comprometidos com a nação [...]. Mas o que escolheram em lugar da nação não é um tradicionalismo mais antigo, porém a África — o continente e seu povo. [...]

APPIAH, Kwame A. Na casa de meu pai: a África na filosofia e na cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 213. (Fragmento).

Angolano de nascimento, filho de portugueses e vivendo entre Luanda, Lisboa e Rio de Janeiro, Agualusa transita por esses países e acaba por identificar pontos de contato muito fortes entre suas culturas. Mais do que isso: enxerga de que maneira as duas grandes colônias portuguesas — Brasil e Angola — afetaram a metrópole que as controlava.

A ascendência portuguesa e brasileira e o fato de haver nascido em Huambo (Angola), em 1960, fizeram com que José Eduardo Agualusa escolhesse se autodenominar afro-luso-brasileiro. Graduou-se em Agronomia e Silvicultura.

Primeiro escritor africano a receber o Prêmio Independente de Ficção Estrangeira, do jornal britânico The Independent e do Conselho das Artes do Reino Unido, é um dos principais autores da literatura africana.

Entre seus romances, merecem destaque: Estação das chuvas (1996), Um estranho em Goa (2000), O vendedor de passados (2004), Milagrário pessoal (2010), Teoria geral do esquecimento (2012) e A rainha Ginga e de como os africanos inventaram o mundo (2014).

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José Eduardo Agualusa, em Paris, França, 2011.

ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES

Nas águas do Atlântico, três países se encontram

Construído como uma narrativa epistolar, o romance Nação crioula é, no contexto da obra do autor, aquele que revela de modo mais explícito um olhar mais abrangente para a questão colonial. Em Nação crioula Agualusa explora um interessante recurso ficcional: dá vida a uma personagem criada por Eça de Queirós, o aventureiro Fradique Mendes, que viaja para Luanda, onde se apaixona por uma ex-escrava, Ana Olímpia Vaz de Caminha.

Os muitos fios narrativos que se cruzam por meio das cartas enviadas por Fradique à sua madrinha, ao amigo Eça de Queirós e à própria amada, Ana Olímpia, vão desvendando, para o leitor, a interpenetração das culturas portuguesa, brasileira e angolana no século XIX.

A primeira carta, por exemplo, recria o impacto da chegada dos portugueses a Angola, em maio de 1868. Veja a seguir.


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Minha querida madrinha,

Desembarquei ontem em Luanda às costas de dois marinheiros cabindanos. Atirado para a praia, molhado e humilhado, logo ali me assaltou o sentimento inquietante de que havia deixado para trás o próprio mundo. Respirei o ar quente e húmido, cheirando a frutas e a cana-de-açúcar, e pouco a pouco comecei a perceber um outro odor, mais subtil, melancólico, como o de um corpo em decomposição. É a este cheiro, creio, que todos os viajantes se referem quando falam de África. [...]

AGUALUSA, José Eduardo. Nação crioula: a correspondência secreta de Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Gryphus, 2001. p. 11. (Fragmento).



Cabindanos: indivíduos do grupo dos cabindas.

Logo na chegada, Fradique e seu companheiro de viagem, o escocês Smith, são acolhidos pelo coronel Arcénio Pompílio Pompeu de Carpo, um degredado da Ilha da Madeira, que se tornou a pessoa mais poderosa de Luanda e se outorgou o título militar. Arcénio de Carpo fez fortuna “comprando e vendendo a triste humanidade”, ou seja, traficando escravos. Com a arrogância hipócrita dos escravocratas, o coronel afirmava contribuir para o crescimento do Brasil, explicitando o olhar predominante na época para a questão da escravidão e do tráfico de negros. Como relata Fradique, o raciocínio de Arcénio procura justificar a necessidade dessas práticas abomináveis: “[...] o Brasil, onde o número de colonos europeus é muito reduzido, depende inteiramente de escravos. Se o tráfico acabar, a agricultura brasileira entra em colapso”.

As cartas trocadas entre Fradique Mendes e Eça de Queirós permitem que Agualusa realize, por meio da ficção, uma análise crítica da situação de Portugal em relação às suas colônias africanas. No trecho transcrito a seguir, acompanhamos a justificativa apresentada por Fradique para se recusar a escrever um artigo sobre “A situação actual de Portugal em África”, que lhe havia sido solicitado pelo amigo escritor.

Meu querido José Maria,

[...]

Receio, meu bom amigo, não ser do interesse de Portugal que o mundo conheça a presente situação das nossas colónias. Nós, Portugueses, estamos em África por esquecimento: esquecimento do nosso governo e esquecimento dos governos das grandes potências. Qualquer ruído, mesmo o pequeno rumor de um pequeno artigo da Revista de Portugal, e corremos o risco de que a Inglaterra descubra que no território português da Zambézia não há Portugueses — e lá ficaremos nós sem a Zambézia!



O meu silêncio, portanto, é patriótico. Se permanecermos quietos e calados pode ser que o mundo, ignorando que não estamos no Congo, na Zambézia ou na Guiné, nos deixe continuar a não estar lá. [...]

A nossa presença em África não obedece a um princípio, a uma ideia, e nem parece ter outro fim que não seja o saque dos africanos. Depositados em África os infelizes colonos portugueses tentam em primeiro lugar manter-se na sela, isto é, vivos e roubando, pouco lhes importando o destino que o continente leva. E Portugal, tendo-os depositado, nunca mais se lembra deles. Uns tantos, assim esquecidos, depressa perdem a memória da pátria e em pouco tempo se cafrealizam. Esses são os mais felizes. Entranham-se pelo mato (“Deus é grande”, costumam dizer, “mas o mato é maior”) e assim como trocam as calças e as camisas por mantas de couro, da mesma forma abandonam a língua portuguesa, ou usam-na em farrapos, de mistura aos sonoros idiomas de África. [...]

O que é que nós colonizamos? O Brasil, dir-me-ás tu. Nem isso. Colonizámos o Brasil com os escravos que fomos buscar a África, fizemos filhos com eles, e depois o Brasil colonizou-se a si próprio. Ao longo de quatro demorados séculos construímos um império, vastíssimo, é certo, mas infelizmente imaginário. [...]

AGUALUSA, José Eduardo. Nação crioula: a correspondência secreta de Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Gryphus, 2001. p. 131-133. (Fragmento).



Se cafrealizam: viram cafres, ou seja, adquirem as características dos negros que viviam no sudeste da África.

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ELOAR GUAZZELLI


Página 170

O texto promove uma revisão do processo colonial português, explicitando o despreparo da metrópole para lidar com os territórios conquistados. Há algo de patético no retrato dos portugueses traçado por Fradique: degredados, interessados somente em manter-se “vivos e roubando”, alguns acabam assimilando traços da identidade local (“depressa perdem a memória da pátria e em pouco tempo se cafrealizam”).

Esse olhar para os portugueses e para culturas que se tocam e se afetam mutuamente (é eloquente o comentário sobre o impacto das línguas africanas no português falado pelos colonos) era algo impensável para a geração de Luandino e Pepetela.

Os escritores do período da revolução tinham como missão literária denunciar a opressão colonial, apresentando o português como o inimigo a ser combatido. Conquistada a liberdade e passados os duros anos de guerra civil, Agualusa permite-se enfrentar a questão da identidade angolana a partir da afirmação de algo que, durante muito tempo, soaria como uma heresia: na raiz da identidade dos povos colonizados está a mestiçagem.

Esse é o resultado das pontes literárias criadas entre Angola, Brasil e Portugal. O oceano Atlântico, que liga esses países, torna-se o espaço no qual não só mercadorias são transportadas. Pelas suas águas correm também as ideias e os valores que estão na raiz das culturas afro-americanas.

Ondjaki: a vida que segue

O pseudônimo literário de Ndalu de Almeida, Ondjaki, significa “guerreiro”, em Umbundo, e era esse o nome que seus pais pretendiam lhe dar. “A dada altura, os meus pais mudaram de ideias e deram-me outro nome. Quando comecei a aparecer publicamente optei por esse pseudônimo”, explica, em uma entrevista, o jovem angolano nascido em 1977, dois anos após a proclamação da independência.

O ano de nascimento do autor é uma referência importante para sua obra literária, porque, tendo crescido durante o período da guerra civil, sob um governo controlado pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de tendência marxista-leninista, Ondjaki conviveu com os horrores da guerra civil que vitimou mais de 1 milhão de angolanos.

Sobre essa experiência, ele declarou: “A guerra é uma tempestade que nunca ninguém quer e que todos desejam que passe o mais rapidamente possível. A nossa tempestade durou tempo demais”. É justamente o contexto político de um país começando a se organizar após a independência que serve de pano de fundo para o romance Bom dia camaradas, uma recriação lírica da vida em Luanda na década de 1980.



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Ondjaki, durante palestra em Brasília, DF, 2012.

OSWALDO REIS/ESP. CB/D. A. PRESS

Ondjaki é licenciado em Sociologia. Além de escrever, ele pinta, fotografa e dirige peças de teatro. Correalizou o documentário Oxalá cresçam pitangas (2006), que aborda a vida em Luanda. Membro da União dos Escritores Angolanos, recebeu, em 2005, dois prêmios pela obra E se amanhã o medo: Sagrada Esperança (Angola) e António Paulouro (Portugal).

Destacam-se em sua obra também os seguintes livros: Momentos de aqui (2001), Os da minha rua (2007), Os transparentes (2012) e Uma escuridão bonita (2013).

“Mas, camarada António, tu não preferes que o país seja assim livre?”, eu gostava de fazer essa pergunta quando entrava na cozinha. Abria a geleira, tirava a garrafa de água. Antes de chegar aos copos, já o camarada António me passava um. As mãos dele deixavam no vidro umas dedadas de gordura, mas eu não tinha coragem para recusar aquele gesto. Servia-me, bebia um golo, dois, e ficava à espera da resposta dele.

O camarada António respirava primeiro. Fechava a torneira depois. Limpava as mãos, mexia no fogo do fogão. Então, dizia:

— Menino, no tempo do branco isto não era assim...

Depois, sorria. Eu mesmo queria era entender aquele sorriso. Tinha ouvido histórias incríveis de maus-tratos, de más condições de vida, pagamentos injustos, e tudo mais. Mas o camarada António gostava dessa frase dele a favor dos portugueses, e sorria assim tipo mistério.

[...]

— Mas, António... Tu não achas que cada um deve mandar no seu país? Os portugueses tavam aqui a fazer o quê?



— Ê!, menino, mas naquele tempo a cidade estava mesmo limpa... tinha tudo, não faltava nada...

Geleira: geladeira.
Página 171

— Ó António, não vês que não tinha tudo? As pessoas não ganhavam um salário justo, quem fosse negro não podia ser director, por exemplo...

— Mas tinha sempre pão na loja, menino, os machimbombos funcionavam... — ele só sorrindo.

— Mas ninguém era livre, António... não vês isso?

— Ninguém era livre como assim? Era livre sim, podia andar na rua e tudo...

— Não é isso, António — eu levantava-me do banco. — Não eram angolanos que mandavam no país, eram portugueses... E isso não pode ser...

O camarada António aí ria só.

Sorria com as palavras, e vendo-me assim entusiasmado dizia “esse menino!”, então abria a porta que dava para o quintal, procurava com os olhos o camarada João, o motorista, e lhe dizia: “esse menino é terrível!”, e o camarada João sorria sentado na sombra da mangueira. [...]

ONDJAKI. Bom dia camaradas. Rio de Janeiro: Agir, 2006. p. 17-19. (Fragmento).

Machimbombos: ônibus.

Para provar que “infância é um antigamente que sempre volta”, Ondjaki dá voz a um menino não nomeado que vê o presente como um momento de grande progresso em relação ao passado colonial.

O que o texto traz de novo, em relação aos outros autores angolanos aqui apresentados, é a possibilidade de acompanhar o momento de transição entre a administração colonial e o governo revolucionário. O diálogo entre o menino e António aborda essa questão a partir de um ângulo interessante: por que o empregado não é capaz de reconhecer o momento presente como algo muito melhor do que a vida sob o domínio português?

Ao argumento de que “ninguém era livre”, António responde com algum espanto, porque, para ele, a condição de vida atual é pior: “Mas tinha sempre pão na loja, menino, os machimbombos funcionavam...”.

A liberdade conquistada pela revolução trouxe consigo novas “etiquetas” políticas — os empregados, agora, são “camaradas” — e uma evidente desarrumação social. A sociedade angolana, politicamente independente, ainda tem muito o que conquistar. E, mesmo através do olhar saudoso da prosa autobiográfica de Ondjaki, isso fica evidente.

Moçambique: um escritor revela seu país

[...] o compromisso maior do escritor é com a verdade e com a liberdade. Para combater pela verdade o escritor usa uma inverdade: a literatura. Mas é uma mentira que não mente.

COUTO, Mia. Que África escreve o escritor africano? In: Pensatempos: textos de opinião. Lisboa: Caminho, 2005. p. 59. (Fragmento).

Ao contrário do que acontece com Angola, em que são vários os ficcionistas de destaque, Moçambique é um país em que a produção literária, no que diz respeito à prosa ficcional, ainda se encontra em uma fase bastante inicial.

O extraordinário, porém, é que a obra de um único escritor tem feito muito para apresentar, ao mundo, alguns aspectos fascinantes da cultura dessa ex-colônia portuguesa. Conheceremos, agora, um pouco do vasto mundo literário que emerge de seus romances e contos.



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Principal estação de trens e terminal de ônibus de Maputo, Moçambique, 2012. A arquitetura colonial revela a presença portuguesa na história do país.

FEDOR SELIVANOV/ALAMY/GLOW IMAGES
Página 172

Mia Couto (1955-) trabalha atualmente como biólogo na reserva de Inhaca, em Moçambique, África Oriental. Pode parecer incomum que essa atividade faça parte do cotidiano de uma das maiores vozes da literatura africana da atualidade, mas, para ele, ter muitas profissões é uma forma de manter-se aberto para o mundo. Tentou a medicina, mas a militância na Frente de Libertação de Moçambique e a participação na guerra o levaram para o jornalismo. A biologia tornou-se uma necessidade perto dos 30 anos e permitiu a Mia Couto dar vazão a outros de seus talentos.

A opção de desenvolver trabalhos no rádio, na televisão e no teatro nasceu da consciência de que o ofício de escritor, embora seja agradável ao ego de quem escreve, “não é tão importante”, segundo palavras dele mesmo, “porque o universo dos que leem é tão pequeno” que, se alguém deseja contatar o outro, precisa também de outros canais. Para ele, “é muito importante que o escritor aprenda a não ser escritor, a deixar de ser escritor. Isso é um aprendizado que eu acho que faz muito bem a todos nós”.



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Mia Couto, em Paris, França, 2011.

ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES

Mia Couto: o transcriador de palavras e histórias

[...] Um escritor é um viajante de identidades, um contrabandista de almas. Não há escritor que não partilhe dessa condição: uma criatura de fronteira, alguém que vive junto à janela, essa janela que se abre para os territórios da interioridade.

COUTO, Mia. Que África escreve o escritor africano? In: Pensatempos: textos de opinião. Lisboa: Caminho, 2005. p. 59. (Fragmento).

Nas muitas entrevistas em que fala sobre sua obra, o moçambicano António Emilio Leite Couto, ou Mia Couto como é mais conhecido, não se cansa de dizer que, para compreender seu país, primeiro é necessário entender que as pessoas de lá não olham para o mundo a partir de uma lógica ocidental. Situado na costa oriental do continente africano, Moçambique já foi definido pelo crítico português Eduardo Lourenço como “uma varanda sobre o Índico”. A influência da cultura europeia, particularmente a portuguesa, e a força das tradições tribais africanas produziram um caldeirão cultural do qual surgiu um escritor com uma sensibilidade literária poucas vezes vista na produção em língua portuguesa.

As muitas belezas de um país destruído

A capacidade de descrever personagens e espaços, promovendo inesperadas associações de imagens ou criando novas palavras, faz com que Mia Couto crie uma obra com alguma semelhança à de dois escritores brasileiros que ele reconhece terem sido fonte de grande inspiração: João Guimarães Rosa e Manoel de Barros. Com esses mestres, Mia Couto aprendeu a tecer, por meio das palavras, passagens de rara sensibilidade e lirismo. E esse efeito é alcançado mesmo que o tema abordado pelo autor seja marcado pela tragédia, como acontece no romance Terra sonâmbula.

É emocionante o modo como o narrador apresenta ao leitor, desde o primeiro parágrafo, uma terra destruída pelo colonialismo português, na qual “os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte”. O horror da guerra se desdobra em duas narrativas: a do menino Muidinga e do velho Tuahir, que vagam pelas estradas mortas, e a história contada por Kindzu, cujos cadernos são lidos pelo menino.

O tempo em que o mundo tinha a nossa idade

Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a história, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.

[...]

A guerra crescia e tirava dali a maior parte dos habitantes. Mesmo na vila, sede do distrito, as casas de cimento estavam agora vazias. As paredes, cheias de buracos de balas, semelhavam a pele de um leproso. Os bandos disparavam contra as casas como se elas lhes trouxessem raiva. Quem sabe alvejassem não as casas mas o tempo, esse tempo que trouxera o cimento e as residências que duravam mais que a vida dos homens. Nas ruas cresciam arbustos, pelas janelas espreitavam capins. Parecia o mato vinha agora buscar terrenos de que tinha sido exclusivo dono. Sempre me tinham dito que a vila estava de pé por licença de poderes antigos, poderes vindos do longe. Quem constrói a casa não é quem a ergueu mas quem nela mora. E agora, sem residentes, as casas de cimento apodreciam como a carcaça que se tira a um animal.



COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 15 e 23. (Fragmentos).
Página 173

O Moçambique que brota das páginas de Terra sonâmbula é um país contaminado pela doença da guerra. Como aconteceu em Angola, a independência política representou não a tão almejada liberdade, mas o início de um período terrível de conflitos internos. Estima-se que, com uma população próxima de 17 milhões, cerca de 1 milhão de moçambicanos tenham morrido na guerra civil.

É dessa guerra que fogem o menino Muidinga e seu protetor, o velho Tuahir. “O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro”, ensina Tuahir.

As obras de Mia Couto podem ser vistas, no contexto da cultura moçambicana, como partes essenciais desse caminho que começa a se projetar para o futuro. Mas o escritor sabe que não há futuro sem passado, sem a possibilidade de reavaliar as muitas influências e trocas que ocorreram durante os anos de dominação portuguesa. Por isso, seus textos sempre tocam, por meio de personagens inesquecíveis, no emaranhado de raízes das quais nasce a identidade moçambicana. Dentre essas raízes, a mais forte é a das crenças de seu povo. Essas tradições ganham vida em seus romances.



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Ruínas da Vila Algarve, em Maputo, Moçambique, 2015. Esse era um antigo quartel-general da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide), corporação portuguesa famosa por sua brutalidade e pelo uso da tortura durante a guerra de independência moçambicana (1964-1974).

ADRIEN BARBIER/AFP

O lume da água

Estou na margem do rio, contemplando as mulheres que se banham. Respeitam a tradição: antes de entrar na água, cada uma delas pede permissão ao rio:

Dá licença?

Que silêncio lhes responde, autorizando que se afundem na corrente? Não é apenas a língua local que eu desconheço. São esses outros idiomas que me faltam para entender Luar-do-Chão. Para falar com minha mãe, que vai fluindo, ondeada, até ser foz.

As mulheres me olham, provocantes. Ou provoquentes, como diria o Avô. Parecem não ter pudor. Os seios desnudados não são, para elas, uma intimidade com merecimento de vergonha.

Não se estão apenas divertindo. Estão cumprindo a cerimônia que o nganga ordenou para que a terra voltasse a abrir. A maldição que tombara sobre a nossa Ilha só podia ser vencida por esforço de todos. Em todo lado, os ilhéus enviavam sinais de entendimento com os deuses. [...]

COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 211. (Fragmento).

Nganga: feiticeiro.

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ELOAR GUAZZELLI

Como Mariano, protagonista do romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Mia Couto procura aprender a falar “os outros idiomas” para compreender melhor suas origens mestiças.

Justamente por acreditar que é função do romance revelar as muitas raízes da nação que está a ser construída, o escritor revisita a presença portuguesa com um olhar que não é marcado pela repulsa ou pela revolta. Deseja saber de que modo os “dominadores” foram, no fim da história, transformados pela essência africana.



A confissão do velho português

[...] Sou português, Domingos Mourão, nome de nascença. Aqui me chamam Xidimingo. Ganhei afecto desse rebaptismo: um nome assim evita canseira de me lembrar de mim. O senhor inspector me pede agora lembranças de curto alcance. Se quer saber, lhe conto. Tudo sempre se passou aqui, nesta varanda, por baixo dessa árvore, a árvore do frangipani.



Frangipani: árvore tropical que perde toda a folhagem no período da floração. No Brasil, conhecemos como pluméria ou jasmim-manga.
Página 174

Minha vida se embebeu do perfume de suas flores brancas, de coração amarelo. Agora não cheira a nada, não é tempo das flores. [...] Quando vim para África, deixei de sentir o Outono. Era como se o tempo não andasse, como se fosse sempre a mesma estação. Só o frangipani me devolvia esse sentimento do passar do tempo. [...]

Lhe conto uma história. Me contaram, é coisa antiga, dos tempos de Vasco da Gama. Dizem que havia, nesse tempo, um velho preto que andava pelas praias a apanhar destroços de navios. Recolhia restos de naufrágios e os enterrava. Acontece que uma dessas tábuas que ele espetou no chão ganhou raízes e reviveu em árvore.

Pois, senhor inspetor, eu sou essa árvore. Venho de uma tábua de outro mundo mas o meu chão é este, minhas raízes renasceram aqui. São estes pretos que todos os dias me semeiam. [...]

Hoje eu sei: a África rouba-nos o ser. E nos vaza de maneira inversa: enchendo-nos de alma. [...] Me entreguei a este país como quem se converte a uma religião. Agora já não me apetece mais nada senão ser uma pedra deste chão. Mas não uma qualquer, dessas que nunca ninguém há-de pisar. Eu quero ser uma pedra à beira dos caminhos. [...]

COUTO, Mia. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 45-47. (Fragmento).



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Flor de frangipani, 2004.

SEANSCOTT/ROOM THE AGENCY/CORBIS/LATINSTOCK

Nos textos de Mia Couto, o colonizador português renasce africano ou descobre-se isolado em meio a uma cultura que lhe é completamente estranha, como Sidónio Rosa, personagem do romance Venenos de Deus, remédios do Diabo.

[...] O médico afunda-se num mundo desconhecido, fora da geografia, longe do idioma. O lugar perdeu toda a geometria, mais habitado pelo chão que por cidadãos.

Aos poucos, a estranheza dá lugar ao medo. Ali começa um continente que Sidónio Rosa desconhecia. Apercebe-se quanto a sua África era reduzida: uma praça, uma rua, duas ou três casas de cimento. Então, ele se compenetra de quanto deslocada surgia a sua pessoa e como, mesmo que não quisesse, ele muito dava nas gerais vistas. No fundo, o português não era uma pessoa. Ele era uma raça que caminhava, solitária, nos atalhos de uma vila africana. [...]

COUTO, Mia. Venenos de Deus, remédios do Diabo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 116-117. (Fragmento).

A capacidade de revelar um passado em que a sombra da metrópole não é grande o suficiente para sufocar a identidade de Moçambique é talvez o principal diferencial no tratamento da africanidade que define a obra de Mia Couto.

Embora suas histórias falem de um povo que ainda luta para construir um país autônomo, em nenhuma delas essas pessoas tateiam em busca de uma identidade. Elas sabem quem são, conhecem a fundo suas tradições e costumes. A tarefa de aprender essas muitas “línguas”, na verdade, cabe àqueles que, como o escritor, trazem em si uma alma africana muitas vezes aprisionada embaixo de algumas camadas de cultura europeia. Por meio dos romances, contos, crônicas e poemas que escreve, Mia Couto vai, aos poucos, dando voz a essa alma.

Além dos textos citados aqui, destacam-se, na obra do autor, os romances O último voo do flamingo (2000), Antes de nascer o mundo (2009), A confissão da leoa (2012), Mulheres de cinza (2015); os livros de contos Vozes anoitecidas (1986), Cada homem é uma raça(1990), Histórias abensonhadas (1994) e Na berma de nenhuma estrada (1999). Como poeta, publicou Idades cidades divindades (2007), Tradutor de chuvas (2011) e Vagas e lumes (2014).


Página 175

TEXTO PARA ANÁLISE

Zito Makoa, da 4ª classe

Neste conto, a beleza da amizade vence a barreira da diferença racial em Angola.

Na mesma hora em que a professora chegou, já tinham-lhes separado. Mesmo assim arrancou para o meio dos miúdos e pôs duas chapadas na cara de Zito. O barulho das mãos na cara gordinha do monandengue calou a boca de todos e mesmo o Fefo, conhecido pelo riso de hiena, ficou quietinho que nem um rato.

— Miúdos ordinários, desordeiros! Quem começou? — e a fala irritada da mulher cambuta e gorda fazia-lhe ainda tremer os óculos na ponta do nariz.

[...] Raivosa, a professora deu um puxão na manga de Zito e gritou-lhe:

— Desordeiros, malcriados! És sempre tu que arranjas complicações!

[...]


— Foi ele, sô pessora! Escreveu coisas...

— É bandido. O irmão é terrorista!

E os gritos, os insultos escondidos, apertaram-se à volta de Zito Makoa enquanto a professora sacudia com força o braço, para ele confessar mesmo. O miúdo, gordinho e baixo, balançava parecia era boneco e não chorava com soluços, só as lágrimas é que corriam na cara arranhada da peleja que tinha passado.

A confusão tinha começado mesmo no princípio da escola quando Chiquito, um miúdo amarelinho como brututo e óculos de arame como era sua mania, xingou Zeca de amigo dos negros, por causa da troca da manhã. É que Zeca e Zito eram amigos de muito tempo, desde a 1ª escola era a mesma e os dois gostavam sair nas aulas para caçar os pássaros nas barrocas das Florestas [...].

Sempre trocavam suas coisas, lanche do Zeca era para Zito e doces de jinguba ou quicuérra do Zito era para Zeca. Um dia mesmo, na 3ª, quando Zito adiantou trazer uma rã pequena, caçada nas águas das chuvas na frente da cubata dele, o Zeca, satisfeito, no outro dia lhe deu um bocado de fazenda que tirou no pai. Eram esses calções que Zito vestia nessa manhã quando chegou no amigo para lhe contar os tiros no musseque e corrigir ainda os deveres, mania antiga.

— Sente, Zeca! Te trouxe três balas!

Zeca Silva olhou à volta desconfiado como ele não tinha, e riu depois:

— Vamos ainda na casa de banho. Se esses sacristas vão ver, começam com as manias deles!

Aí mesmo é que Bino espiou. Da janela, como tinha a mania, e até costumava espreitar a professora e tudo. Viu Zito mostrar as três balas vazias, amarelas, a brilhar na palma da mão dele cor-de-rosa, e Zeca Silva — esse amigo dos negros, sem-vergonha! — desembrulhar ainda com cuidado, o carrinho de linhas caqui.

Toda a miudagem foi avisada, esse velho truque do bilhetinho passou na sala e assim que a campainha do recreio gritou, na confusão da brincadeira da saída atrás da professora, Bino pôs logo um soco nas costas de Zito.

[...]

E nessa hora que lhe apontaram com o dedo, mostrava a cara chorando das chapadas da professora, não era de dor, não: era da raiva desses sacristas [...].



— Verdade, sô pessora. Eu vi o papel!

— Não sei o que ele escreveu, mas ele e o Zeca Silva têm essa mania de escrever essas coisas que não nos deixam ler.

A professora virou-se depressa, balançando as gorduras, e chamou:

— Zeca Silva!

[...]

— O bilhete, depressa! — e afastou-se para tirar o ponteiro.



Sucedeu um mexer rápido, a roda ficou mais grande à volta dos miúdos e a primeira ponteirada bateu certinha, como era técnica da professora, na orelha do Zeca, mas ele não falou ainda.

— O bilhete, uma! O bilhete, duas!...

E as ponteiradas continuaram a bater-lhe na cabeça e no ombro. Foi aí que Zito Makoa se pôs na frente e levou a quarta pancada.

— Dá ainda, Zeca. Não importa.

Desta vez Zito caiu com o puxão da professora, mas levantou logo. O bilhete já — saía no bolso do amigo e a cambuta lia, encarnada, encarnada parecia era pau de tacula, para perguntar no fim com voz diferente:

Makoa: peixe curto e gordo, dotado de grande força.
Monandengue: criança.
Cambuta: pessoa de baixa estatura.
Peleja: briga, luta.
Brututo: raiz amarelada de um arbusto de mesmo nome, que tem propriedades medicinais.
Barrocas: montes pedregosos.
Jinguba: amendoim.
Quicuérra: doce feito de farinha de mandioca e açúcar, muito popular entre as crianças angolanas.
Cubata: casebre, barraco.
Fazenda: tecido.
Musseque: denominação dada aos bairros periféricos de Luanda.
Sacristas: hipócritas, de moralidade duvidosa.
Ponteiro: haste usada para apontar (geralmente em quadros e cartazes).
Ponteirada: referência à ação de bater em alguém com o ponteiro.
Encarnada: vermelha.
Tacula: árvore nativa de Angola, cuja madeira vermelha é muito utilizada na marcenaria.
Página 176

— Quem escreveu isto? Foste tu, negro?

Zito nem teve tempo de se defender. As chapadas choveram de toda a parte e, quando a professora acabou, levou-lhe, pelas orelhas, no gabinete do diretor da escola. Atrás de Zito chorando, os outros miúdos acompanharam-lhe, uns com cara de maus, outros satisfeitos daquela surra.

— Ah, não! Vadios na escola, não! Malandros, vadios de musseque! Se já viu esta falta de respeito! Negros! Todos iguais, todos iguais...

[...]

O recreio estava acabar, o contínuo ia já tocar a campainha. Zeca Silva pensou então que não podia deixar o Zito sozinho, fechado no quarto do diretor, sem ninguém, abandonado com as dores, o melhor era mesmo fugir na escola.



[...]

No jardim da frente tinha pardais a cantar nos paus e, nessa hora das onze, um sol bonito e quente brincava às sombras com as folhas e as paredes. Trepado num vaso alto, Zeca Silva, o coração a bater de alegria parecia ia lhe saltar do peito, empurrou a janela de vidro do quarto do diretor e chamou:

— Zito!

O amigo veio devagar, desconfiado e medroso, mas, quando viu era ainda a cara do Zeca a espreitar, quis pôr um riso no meio do choro calado, mas não conseguiu. Desatou mesmo a chorar com toda vontade.

— Zito, deixa, não chores. O bilhete está aqui, o nosso bilhete está aqui. Ela não lhe apanhou. Aquele era outro.

Desamarrotando uma bolinha de papel, mostrou no amigo o pequeno bocado do caderno de uma linha onde, com a letra gorda e torta dele, Zito Makoa tinha escrito durante a lição: “ANGOLA É DOS ANGOLANOS”.

[...]

VIEIRA, José Luandino. In: Contos africanos dos países de língua portuguesa. São Paulo: Ática, 2009. p. 122-129. (Fragmento).



Contínuo: empregado, em geral de estabelecimento público, encarregado de pequenos serviços.

1. O protagonista deste conto é o menino Zito Makoa, que se envolve em uma briga com colegas de classe. Como essa personagem é caracterizada? No caderno, transcreva as palavras e expressões usadas pelo narrador para construir essa caracterização.

> A origem social de Zito também é importante para a compreensão do sentido do conto. No caderno, escreva os elementos que indicam essa origem.

2. Zeca Silva é o outro protagonista da história. Qual é a relação entre ele e Zito? E entre ele e os colegas?

3. A professora e o diretor da escola têm um comportamento que não condiz com o papel que um adulto ou autoridade deve ter em um ambiente escolar. Como se caracteriza esse comportamento?

> De que forma a atitude das autoridades escolares se relaciona com o contexto social de Angola no período em que se passa o conto?

4. O conto, escrito em 1962, quando Angola lutava por sua independência, apresenta alguns elementos que mais claramente fazem referência ao contexto social e político do país nesse momento. Quais são esses elementos e de que forma eles sugerem a situação de Angola nesse período?

5. Em um artigo sobre esse conto, as pesquisadoras Fabiana de Paula Lessa Oliveira e Fabiana Rodrigues de Souza Pedro, do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos, afirmam:

No conto, a representação das relações sociais, envolvendo as noções de identidade e alteridade cultural, põe em destaque a intensidade dos conflitos vivenciados pelos angolanos que são marcas da colonização. Pregava-se um modelo de identidade que negava a incorporação das diferenças. [...]

OLIVEIRA, Fabiana de Paula Lessa; PEDRO, Fabiana Rodrigues de Souza. Silêncio, vozes, opressão e liberdade (através da escrita): reflexões sobre “Zito Makoa, da 4ª classe”, de José Luandino Vieira, e “O menino que escrevia versos”, de Mia Couto. p. 818. (Fragmento). Disponível em:


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