TRINTA E DOIS SÁBADO, 23H27, MANHATTAN Não fosse por desejo carnal e culpa, Will talvez não houvesse notado. Ainda não tivera uma chance de falar a TC de sua descoberta, o telefonema de Jay Newell, quando ela se ergueu nas pontas dos pés para pegar um livro numa das prateleiras mais altas. Ao esticar-se, a fina camisa subiu revelando a pele retesada, sem marca, da parte inferior das costas. Apesar de todos os sentimentos de vergonha, lá estava ele mais uma vez notando a forma e a curva do corpo de TC. Virou-se para o outro lado.
Para desfazer qualquer impressão de que a estava olhando com segundas intenções, fez questão de desviar o olhar, examinando sua escrivaninha. Embora cheia de papéis, recortes de revistas, sobretudo publicações de belas-artes, também havia exemplares da New Yorker e da Atlantic Monthly. Panfletos de filmes em cinemas de arte, dois catálogos de lojas de roupa, duas edições volumosas da Vogue e o que ele viu ser uma carta escrita à mão.
Numa entrevista de trabalho, teria chamado esse impulso de curiosidade profissional, porém a verdade mais simples é que estava sendo bisbilhoteiro. Pegou o papel, enfiado entre uma revista de domingo do New York Times e um guia da temporada do Lincoln Center, até poder entrever a metade superior da primeira folha.
Levou um susto. A carta estava escrita numa série de símbolos que representavam uma linguagem incompreensível. Mas decididamente era uma carta, em papel personalizado, com uma data escrita no alto à direita em números convencionais. Franziu o cenho. Com certeza teria lembrado se TC fosse fluente em outra língua. Na verdade, lembrou que uma das poucas áreas acadêmicas em que ela tinha alguma dificuldade era lingüística. Sempre dizia que lamentava não haver estudado francês ou espanhol; apesar de sua excelente formação, nunca encontrara tempo.
O movimento na rua atraiu seu olhar. Um casal saía de um Volvo que acabara de estacionar: talvez eles tivessem ido ao cinema ou a um jantar com amigos. Poderiam ser ele e Beth desfrutando uma vida normal. Esse pensamento provocou-lhe uma dor aguda no coração. Pela centésima vez desde o telefonema duas horas antes, ouviu a voz dela. Will? Will, é Beth.
Desviou o olhar. Mais adiante na rua, viu dois adolescentes de calças jeans largas e uma mulher de meia-idade segurando uma única flor. Instantaneamente viu e ouviu Beth na Carnegie Deli contando-lhe a história da Criança X e da flor que entregara a Marie, a recepcionista de luto. Beth tinha ficado muito tocada com aquela atitude, um ato de humanidade, que Will creditava à sua mulher, que de algum modo Beth conseguira fazer partir daquele menino em dificuldades.