PARTE II A Sociologia vai ao cinema
Keystone-France/Getty Images
Cena do filme Tempos modernos, de Charlie Chaplin.
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Sociologia e cinema
5 o apito da fábrica
6 Tempo é dinheiro!
7 a metrópole acelerada
8 Trabalhadores, uni-vos!
9 Liberdade ou segurança?
10 as muitas faces do poder
11 sonhos de civilização
12 sonhos de consumo
13 caminhos abertos pela sociologia
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Sociologia e cinema
United Artist
Cena de abertura do filme Tempos modernos.
O Cine Escola orgulhosamente apresenta...
Nesta parte do livro, vamos exercitar nossa “imaginação sociológica” convidando alguns cientistas sociais famosos para “assistir” conosco a um filme genial. Você talvez já o tenha visto ou ouvido falar dele: chama-se Tempos modernos. É um filme com Carlitos, nome com que ficou conhecido no Brasil o personagem criado e encarnado no cinema por Charlie Chaplin. É um longa-metragem antigo, lançado em 1936, filmado em preto e branco e mudo – não totalmente, pois, embora não possamos ouvir os diálogos entre os personagens, há uma trilha sonora. Antes de tudo, é um filme que consegue a mágica de não envelhecer. Por tratar de temas que até hoje nos tocam, produz em nós uma profunda cumplicidade com seus personagens e nos incita a refletir sobre nossas próprias escolhas e expectativas.
Charlie Chaplin
(Londres, Inglaterra, 16 de abril de 1889 – Vevey, Suíça, 25 de dezembro de 1977)
Coleção particular
Charlie Chaplin, c. 1920.
Charles Spencer Chaplin Jr., ator e cineasta inglês, é considerado por muitos críticos e historiadores o maior gênio da história do cinema. Começou a participar de filmes em 1914, nos Estados Unidos, e em pouco tempo passou a criar seus próprios filmes, especialmente a partir da década de 1920. Conhecido pelo diminutivo Charlie Chaplin, não só produziu e estrelou, como escreveu, dirigiu e eventualmente compôs a trilha sonora de filmes que tinham como principal personagem The Tramp, conhecido no Brasil como Carlitos. Apesar de serem comédias, muitos dos filmes de Chaplin, em particular os realizados durante a Grande Depressão, têm conteúdo altamente político. Dos diversos filmes que produziu ao longo de seus 65 anos de carreira, destacam-se Em busca do ouro, de 1925; Luzes da cidade, de 1931; Tempos modernos, de 1936; e O grande ditador, de 1940.
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Chaplin escreveu, dirigiu, produziu e, ao lado de Paulette Goddard, estrelou Tempos modernos, obra-prima que retrata o período da Grande Depressão nos Estados Unidos. Foram tempos de desemprego em massa, miséria, fome e desencantamento. O sonho do capitalismo parecia ter chegado ao fim justamente naquele que se acreditava ser o país da prosperidade ao alcance de todos, o berço da democracia moderna. O filme consegue tratar com fino humor os novos tempos de grandes frustrações e grandes apostas. Com base nele, vamos “pensar sociologicamente” sobre vários temas – trabalho, solidariedade, racionalidade, controle, segurança, liberdade, democracia, desigualdade, violência. Vamos também visitar, com uma série de pensadores, algumas instituições que surgiram no contexto da cidade moderna: a fábrica, a prisão, o manicômio, a loja de departamentos.
Tempos modernos é celebrado, ainda hoje, como um dos melhores filmes já feitos. Profundamente crítico e ao mesmo tempo cômico, convida-nos a refletir sobre o lugar que cada indivíduo – cada um de nós – ocupa nesse coletivo maior que chamamos de sociedade. Esperamos que você se divirta – seja assistindo ao filme, seja por meio das cenas narradas no livro – e que lhe agrade a companhia dos pensadores que serão apresentados.
Coleção particular
Nesta fotografia de Margaret Bourke-White vemos uma fila de afro-americanos, vítimas de enchente, em fila para receber comida e roupas da Cruz Vermelha; atrás deles um outdoor que ironicamente anuncia o maravilhoso modo de vida americano. Louiseville, Kentucky, fevereiro de 1937.
A Grande Depressão
A Grande Depressão foi um período de recessão econômica considerado o pior e mais longo do século XX. Caracterizou-se por altas taxas de desemprego e quedas drásticas na produção industrial, no preço das ações e no Produto Interno Bruto (PIB) de diversos países. Embora os Estados Unidos já estivessem atravessando um período de dificuldades, foi no dia 24 de outubro de 1929, conhecido como “Quinta-Feira Negra”, que as ações da Bolsa de Valores de Nova York caíram drasticamente, levando milhares de pessoas a perder grandes quantias de dinheiro, ou até mesmo tudo o que tinham.
Os efeitos da Grande Depressão foram sentidos no mundo inteiro, mas de forma diferente em cada lugar. Países como o Canadá e os do Reino Unido – além do próprio Estados Unidos – foram duramente atingidos e sofreram grandes prejuízos econômicos e sociais. Já no Brasil, o período da Grande Depressão correspondeu a uma fase de industrialização acelerada. Políticas de combate à recessão foram implementadas em diversas nações. Os pontos principais dessas políticas eram a intervenção do governo na economia e os programas de ajuda social, como o New Deal norte-americano. Foi com base nessas experiências que se construiu o chamado Estado de Bem-Estar Social, após a Segunda Guerra Mundial. Em alguns países, a Grande Depressão foi um dos fatores que contribuíram para a ascensão de governos de extrema direita, como o nacional-socialista na Alemanha.
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Leitura complementar
Imagens em movimento
“Cinema e história” tornou-se, nos últimos tempos, sinônimo de campo de estudos inovador das ciências sociais e humanas. [...]
Estudos sobre a relação entre cinema e história [...] nasceram com o próprio cinema, no final do século XIX. Nessa época, pessoas ligadas à produção de filmes reconheciam não só o fato de a história estar sendo registrada por esse novo meio, mas também o caráter educativo nele contido [...].
Filmes e programas de televisão são [...] documentos históricos de seu tempo [...] uma vez que são produzidos sob um olhar do presente. [...] a linguagem audiovisual [...] construiu formas de representação e de re construção do passado em contextos históricos diversos e segundo diferentes concepções estéticas. [...]
A partir do século XX, os filmes e programas de televisão adquiriram crescentemente o estatuto de fonte preciosa para a compreensão dos comportamentos, das visões de mundo, dos valores, das identidades e das ideologias de uma sociedade ou de um momento histórico.
Em seus vários registros, representaram de uma forma particular esses temas, a partir de diferentes gêneros e formas estéticas que dão sentido a um determinado conteúdo. Analisar a reconstrução histórica [...] nos remete ao fato de que tanto o cinema quanto a televisão possuem uma linguagem que deve ser desvendada. [...]
Uma outra dimensão importante da relação entre narrativas audiovisuais e história está no poder de atração daqueles para a atividade didática. Essa vocação, apontada desde o final do século XIX, não deve ser entendida como natural, como se um filme e/ou programa de televisão pudessem ser utilizados como fontes históricas sem a compreensão de sua linguagem e de todos os tipos de escolha feitos por seu realizador, além do próprio contexto histórico que os produziu. [...] O historiador pode atuar como realizador ou consultor de filmes e/ou ficção televisiva sobre o passado [...], mas isso não garante um conhecimento mais verdadeiro do passado histórico. E isso é válido tanto para a ficção quanto para o documentário. Esses lugares de memória, como quaisquer outros, merecem análises críticas acerca de sua construção.
KORNIS, Mônica Almeida. Cinema, televisão e história. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 7-8, 10, 14-16.
Sessão de cinema
Charlie: a vida e a arte de Charles Chaplin
EUA, 2003, 132 min. Direção de Richard Schickel.
Bryan Mckenzie/Richard Schickel
No filme, são explorados depoimentos de amigos, admiradores e filhos de Chaplin. Apresenta imagens inéditas da vida e da carreira do grande diretor, ator e roteirista, mostrando como ele inovou o cinema mudo.
Tempos modernos
EUA, 1936, 87 min. Direção de Charlie Chaplin.
United Artist
O filme conta a história de um trabalhador tentando sobreviver no mundo moderno e industrializado. Na trama, esse homem se encanta por uma jovem órfã e a seu lado se mete em muitas confusões e acalenta sonhos. O roteiro critica diversos aspectos da sociedade capitalista. Ao longo de cada capítulo desta parte do livro, você encontrará a sinopse de uma das cenas desse filme.
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Construindo seus conhecimentos
[ícone] ATIVIDADE INTERDISCIPLINAR
DE OLHO NO ENEM
1. (Enem 1999)
Leia um texto publicado no jornal Gazeta Mercantil. Esse texto é parte de um artigo que analisa algumas situações de crise no mundo, entre elas, a quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929, e foi publicado na época de uma iminente crise financeira no Brasil.
Deu no que deu. No dia 29 de outubro de 1929, uma terça-feira, praticamente não havia compradores no pregão de Nova Iorque, só vendedores. Seguiu-se uma crise incomparável: o Produto Interno Bruto dos Estados Unidos caiu de 104 bilhões de dólares em 1929, para 56 bilhões em 1933, coisa inimaginável em nossos dias. O valor do dólar caiu a quase metade. O desemprego elevou-se de 1,5 milhão para 12,5 milhões de trabalhadores – cerca de 25% da população ativa – entre 1929 e 1933. A construção civil caiu 90%. Nove milhões de aplicações, tipo caderneta de poupança, perderam-se com o fechamento dos bancos. Oitenta e cinco mil firmas faliram. Houve saques e norte-americanos que passaram fome.
Gazeta Mercantil, 05/01/1999.
Ao citar dados referentes à crise ocorrida em 1929, em um artigo jornalístico atual, pode-se atribuir ao jornalista a seguinte intenção
(A) questionar a interpretação da crise.
(B) comunicar sobre o desemprego.
(C) instruir o leitor sobre aplicações em bolsa de valores.
(D) relacionar os fatos passados e presentes.
(E) analisar dados financeiros americanos.
ASSIMILANDO CONCEITOS
Denis Darzacq/Agência VU/Latinstock
1. Observe a fotografia. O que você vê?
2. Crie uma legenda para essa imagem.
3. Em casa, na sala de informática de sua escola ou em um infocentro, pesquise em um site de busca o nome do fotógrafo Denis Darzacq e descubra o que ele capturou nessa imagem.
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5 O apito da fábrica
Everett Collection/Fotoarena
Carlitos na linha de montagem em cena do filme Tempos modernos.
Em cena: Na linha de montagem
A primeira imagem é de um relógio: são quase seis da manhã. Depois dos créditos do filme, lemos na tela: “Tempos modernos. Uma história de indústria, de empreendimento individual – a humanidade em sua cruzada em busca da felicidade”. Em seguida, como se estivéssemos posicionados num ponto mais alto, vemos um rebanho de ovelhas andando. Entre várias ovelhas brancas, apenas uma negra. Rapidamente, a imagem do rebanho é substituída por outra, também filmada de cima: operários apressados saem do metrô em direção à fábrica.
Os operários entram na fábrica, onde há relógios de ponto e máquinas enormes. Um apito soa, e o encarregado liga as máquinas num painel cheio de alavancas. De seu escritório, enquanto monta um quebra-cabeça ou passa os olhos no jornal, o dono da fábrica vigia tudo por um monitor. Ao acionar um dispositivo, o encarregado também pode vê-lo num telão e ouvir suas ordens.
Vemos então vários operários trabalhando em cadeia: é uma linha de montagem. Os movimentos dos homens são rápidos e repetitivos, ritmados e precisos, como se seus corpos também fossem máquinas. Não sabemos o que eles estão produzindo – será que eles sabem? –, mas o certo é que não podem parar. O “rebanho” trabalha e a produção segue a contento, até que uma “ovelha negra” rompe com a ordem e a disciplina.
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Enquanto os operários, com uma ferramenta em cada mão, encaixam parafusos ou apertam roscas de maneira mecânica sobre placas em uma esteira que corre à sua frente, não é possível conversar, olhar para o lado ou deixar o pensamento vagar. Todos têm consciência disso – menos Carlitos. Ao se coçar ou espantar uma mosca que o incomoda, ele faz a cadeia desandar. Após levar uma bronca do supervisor, volta ao ritmo.
De tanto repetir os mesmos movimentos, quando é substituído na linha de montagem para ir ao banheiro, continua a fazê-los mecanicamente, apertando roscas invisíveis, como um tique nervoso. Na porta do banheiro, o relógio de ponto marca a hora da entrada e da saída. E esta não tarda: a “ovelha negra” começa a fumar um cigarro, mas é interrompida pelo dono da fábrica, que, pelo telão, ordena-lhe que volte ao trabalho.
Apresentando
Émile Durkheim
Foi com Émile Durkheim que a Sociologia passou a ser considerada propriamente uma ciência, dotada de um objeto específico – os fatos sociais – e de uma metodologia. Durkheim escreveu uma obra dedicada ao tema do trabalho, intitulada Da divisão do trabalho social (1893), e é com ele que começaremos a exercitar nossa imaginação sociológica. Se Durkheim assistisse ao filme que Chaplin dirigiu, o que teria a nos dizer sobre a sociedade que produziu aquela fábrica?
Émile Durkheim
(Épinal, França, 15 de abril de 1858 – Paris, França, 15 de novembro de 1917)
Coleção particular
Émile Durkheim, c. 1900.
Émile Durkheim é considerado, ao lado de Karl Marx e Max Weber, um dos pais da Sociologia. Formado em Direito e Economia, tomou a sociedade como objeto legítimo de estudo, com natureza e dinâmica próprias, rompendo com a tendência então dominante de reduzir os fenômenos sociais a experiências individuais. Durkheim foi influenciado pelo positivismo de Auguste Comte, para quem a vida social era regida por leis e princípios a serem descobertos com base em métodos associados às ciências físicas e biológicas. Essa influência aparece de maneira muito clara nas metáforas utilizadas por ele para comparar a sociedade a um organismo vivo. Atento às instituições responsáveis pela ordem social, Durkheim estudou a religião como um sistema de forças cuja função era criar coesão social. Preocupou-se também com o estudo das relações entre as estruturas sociais e o comportamento individual, tema de O suicídio (1897). Conceitos como o de fato social e o de anomia mostram seu esforço em compreender a sociedade por meio de suas leis e regras. Durkheim foi o primeiro professor de Sociologia em uma universidade. Suas principais obras, além da já citada Da divisão do trabalho social (1893), são: As regras do método sociológico (1895) e As formas elementares da vida religiosa (1912).
Solidariedade e coesão
Durkheim concebe a sociedade como um corpo vivo, um organismo cujas partes – cada instituição e cada indivíduo – cumprem papéis determinados e existem em função do todo. A “liga” que une esses diferentes componentes, tornando a sociedade possível, é o que ele chama de solidariedade.
Nas sociedades mais simples e mais homogêneas há uma integração equilibrada entre as partes porque elas diferem muito pouco entre si. As tarefas são divididas por gênero (por exemplo, homens caçam, mulheres plantam e colhem) ou por idade. Mesmo quando ocorre uma especialização de diferentes ofícios ou saberes, isso não se deve à “vocação profissional” ou ao “talento” de cada indivíduo. Um sujeito é sapateiro porque aprendeu o ofício com o pai, e esse mesmo ofício ele ensinará aos filhos. Nesses contextos, segundo Durkheim, o tipo de solidariedade que prevalece é a mecânica, ou seja, uma solidariedade que independe de reflexão intelectual ou de escolha. O nível de coesão social é altíssimo, e é inconcebível alguém se sentir sem lugar no mundo, sem direção.
Durkheim descreve essa situação de maneira clara: é como se o “sentido do nós” fosse mais forte do que o “sentido do eu”. O coletivo é que define o individual: o bem-estar do grupo é o que dá sentido, e a tradição informa a direção a seguir. É por isso que nas sociedades de solidariedade mecânica qualquer crime é visto como um ato contra a sociedade.
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O malfeito a um atinge a todos, porque representa uma ruptura com os elos de solidariedade que tão fortemente unem o grupo. Nessas sociedades, nos diz Durkheim, fazer parte de um grupo, ser membro de uma corporação, pertencer a uma religião, ser conhecido como parte de uma família, tudo isso é mais forte do que se apresentar como alguém que responde por seu próprio destino, sua biografia. É o grupo que explica ao indivíduo a sua vida.
Em pleno século XXI, é difícil imaginar uma situação em que as pessoas não se apresentem como indivíduos, com vontades e escolhas próprias. No entanto, o que Durkheim afirma é que nem sempre foi assim, e não é assim em todo lugar. E, para deixar claro seu argumento, ele volta ao cenário pré-industrial. A aldeia medieval, por exemplo, por ser uma comunidade fechada e sem muito movimento de pessoas de fora do grupo, dava possibilidade ao coletivo de falar mais forte do que cada pessoa individualmente. Era uma comunidade pequena, onde todos se conheciam desde o nascimento até a morte, e indiferenciada, porque todos dependiam do conjunto para a satisfação de suas necessidades. O resultado é que a vida social ocorria em grupo, tanto no trabalho como no lazer.
Esse tipo de arranjo social, característico das sociedades pré-capitalistas, sofreu uma mudança importante quando, paralelamente ao aumento populacional, ocorreu um incremento das comunicações e das trocas de mercadorias e de ideias entre as pessoas. No mundo da Revolução Industrial, das cidades inchadas de gente, das distâncias encurtadas pelo rádio e pelo automóvel, ninguém mais sabia ao certo seu lugar ou a direção a seguir. As pessoas se viam como indivíduos portadores de características e personalidades que os tornavam únicos. Já não fazia sentido, portanto, falar de uma “liga” mecânica unindo partes parecidas entre si. É por isso que Durkheim diz que na nova sociedade predomina outro tipo de elo: a solidariedade orgânica. Ela é fruto justamente das diferenças, que ficam claras graças à nova divisão social do trabalho.
Os karajás do Araguaia
Karajá, na verdade, é um termo tupi. Na língua nativa, o grupo se autodenomina Iny, que significa “nós”. Um povo indígena cuja língua, pertencente ao grande tronco linguístico Macro-Jê, diferencia o modo de falar dos homens e das mulheres, e que possui uma complexa organização social e cultural, sendo até mesmo dividido em mais dois outros grupos: os Xambioá – ou Karajá do Norte – e os Javaé. [...]
A aldeia é a unidade básica de organização social e política. O poder de decisão é exercido prioritariamente por membros masculinos das famílias extensas, que discutem suas posições na Casa de Aruanã. [...]
Os Karajá estabelecem uma grande divisão social entre os gêneros, definindo socialmente os papéis previstos nos mitos para homens e mulheres. Aos homens cabem a defesa do território, a abertura das roças, a pescaria familiar ou coletiva, a construção das casas de moradia, a discussão política formalizada na Casa de Aruanã ou praça dos homens, a negociação com a sociedade nacional e a condução das principais atividades rituais. As mulheres são responsáveis por educar os filhos meninos até a idade da iniciação, e de modo permanente as meninas, em relação aos afazeres domésticos, como cozinhar e colher, ao cuidado com o casamento dos filhos, normalmente gerenciado pelas avós; pela confecção das bonecas de cerâmica, importante fonte de renda familiar desencadeada pelo contato; além da pintura corporal e ornamentação das crianças, moças e homens para os rituais do grupo. No plano ritual, elas são as responsáveis pelo preparo dos alimentos das principais festas e pela memória afetiva da aldeia, que é expressa por meio de choros rituais, especialmente quando alguém fica doente ou morre.
LIMA FILHO, Manuel F. et al. Bonecas cerâmicas ritxòkò: arte e ofício do povo Karajá. Rio de Janeiro: Iphan; CNFCP, 2011. p. 9, 11-12. Disponível em: . Acesso em: maio 2016.
Vladimir Kozák, Acervo Museu Paranaense
Indígenas da etnia karajá, na aldeia Santa Isabel, Tocantins. Uma delas confecciona uma boneca de cerâmica – ritxòkò –, atividade que na divisão social do trabalho do grupo cabe às mulheres.
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Acervo Iconographia
Linha de montagem de automóveis. São Caetano do Sul (SP), 1940.
A nova divisão social do trabalho, a que se refere Durkheim, diz respeito não apenas à especialização de funções econômicas, mas à segmentação da sociedade em diferentes esferas e ao surgimento de novas instituições, como o Estado, a escola ou a prisão. Em decorrência dessa nova divisão, os indivíduos executam tarefas que, por serem especializadas, contribuem para o funcionamento do organismo social. Sua sobrevivência depende de muitos bens e serviços que outros podem oferecer. Cada indivíduo se vê, assim, ligado aos demais. Mas há outra razão pela qual a divisão do trabalho produz solidariedade e coesão: ela implica regras e princípios que conectam todos os membros da sociedade de maneira duradoura. Vamos entender isso melhor?
Direito e anomia
Nas sociedades simples, em que todos se parecem e se conhecem, a coesão é garantida por um conjunto de princípios – ou seja, uma moral – e um conjunto de regras e normas – um direito. Segundo Durkheim, trata-se, nesse caso, de um direito cuja função é punir aquele que, com sua transgressão, ofende todo o conjunto. É o que conhecemos como Direito Penal.
Nas sociedades complexas, em que precisamos ser solidários não porque somos iguais, mas justamente porque somos diferentes, também convivemos com regras e normas que dizem o que devemos fazer e nos punem quando não cumprimos o estabelecido. Mas nesse ambiente, como afirma Durkheim, diferentemente do que ocorre nas sociedades pré-industriais, a falta, o rompimento da regra, não afeta o coletivo, e sim as pessoas separadamente. A punição, portanto, será dirigida para a devolução, àquele que foi prejudicado, de parte ou da totalidade daquilo que lhe foi retirado. Durkheim chama esse tipo de regra de direito restitutivo – restituir é devolver, reparar um dano.
Quando a diferenciação de atividades e de ocupações de uma sociedade ocorre de maneira muito abrupta, produz-se um profundo desequilíbrio. Em vez de perceber que uns precisam dos outros, que cada um completa o que o outro não sabe fazer, os indivíduos passam a se ver como partes isoladas, sem qualquer conexão com a engrenagem maior. Começam a priorizar suas próprias vontades, e não mais os valores coletivos. É o que Durkheim chama de individualismo exacerbado: os indivíduos só pensam em si, em seu interesse mais direto, e não se preocupam com os outros. Nada freia suas ambições. A consequência desse exagero é o que Durkheim chama de anomia moral: ausência de norma, falta de regras e de limites. Perdem-se os valores comuns pelos quais os indivíduos podem se orientar. Os interesses individuais e os interesses coletivos deixam de ser os mesmos.
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Coleção particular
Marcha das operárias das indústrias têxteis de Nova York (Estados Unidos), 1857. A fotografia ao lado foi tirada em 8 de março de 1857 durante a marcha das operárias das indústrias têxteis de Nova York. Elas reivindicavam melhores condições de trabalho, diminuição da jornada e igualdade salarial. Costuma-se atribuir a esse protesto a origem do Dia Internacional da Mulher. A situação das mulheres e crianças operárias das indústrias no século XIX ilustra o que Durkheim entendia como anomia – falta de regulamentação no mundo do trabalho.
Situações como a retratada na fotografia acima ocorreram de fato nos primeiros tempos do capitalismo. A falta de regulamentação das atividades econômicas, cujo desenvolvimento foi então extraordinário, gerou diferentes tipos de conflitos, causando nos indivíduos uma profunda desorientação. Mas qual seria, então, a saída para essa situação de anomia e conflito? O que fazer se instituições como a Igreja e a família, que regulavam a vida nas sociedades simples, apresentavam-se, naquele momento, tão enfraquecidas? Para Durkheim, a saída seria construir no mundo do trabalho uma nova moral condizente com os valores da sociedade industrial. Mas, afinal, o que Durkheim quer dizer com moral?
Ética e mercado
Os seres humanos são naturalmente egoístas, e é a vida em sociedade que os obriga a respeitar os interesses alheios e as instituições. Aprendemos a nos comportar no convívio familiar, escolar (com nossos professores e colegas) e social (com nossos vizinhos). Justamente por isso Durkheim acreditava fortemente que o bem-estar coletivo não poderia advir da satisfação egoísta dos interesses individuais. São as regras morais que podem garantir à sociedade um princípio de justiça. Referindo-se à ausência desses princípios na ordem econômica, dizia ele: “Há, nessa exploração do homem pelo homem, algo que nos ofende e nos indigna”.
O que fazer se a família e a religião deixaram de ser eficazes como instituições integradoras, pelo fato de os indivíduos passarem grande parte do tempo longe delas? Segundo Durkheim, devemos voltar a atenção que para o mercado de trabalho e de trocas. Afinal, é no ambiente de trabalho que homens e mulheres passam a maior parte do dia. E se todos – independentemente de origem, credo ou riqueza – precisam trocar bens e serviços para garantir a própria sobrevivência, é durante o período de trabalho que perceberão claramente como é impossível viver sem a cooperação de todos.
O mercado, adverte Durkheim, precisa de uma ética que deverá ser mais forte do que a pura lógica econômica. Deixado sem freio, sem regra, sem norma, o mercado não tem limite. Tudo se vende e tudo se compra, se houver quem compre. O papel de regulador da ética do mercado deveria ser desempenhado, nos sugere Durkheim, pelas corporações profissionais. Diferentemente dos sindicatos, nos quais se reúnem patrões de um lado e empregados do outro, as corporações unificariam as diferentes categorias interessadas no processo de produção. Nelas, conviveriam tanto os “dirigentes” quanto os “executores”, ou seja, tanto o dono da fábrica quanto Carlitos e seus companheiros.
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Rodolfo Buhrer/La Imagem/Fotoarena
Linha de produção de automóveis automatizada, São José dos Pinhais (PR), 2015. Quem são os operários de uniforme vermelho?
Fatos sociais
“Os fatos sociais são coisas.” Com essa afirmação, Durkheim apresenta no livro As regras do método sociológico um de seus mais conhecidos conceitos. Mas a que “coisas” esse conceito se refere? A qualquer “coisa”, própria da sociedade a que pertence um indivíduo, capaz de exercer algum tipo de coerção sobre ele. Isso significa que o fato social é independente e exterior ao indivíduo, e é capaz de condicionar ou mesmo determinar suas ações.
São fatos sociais, por exemplo, as regras jurídicas e morais de uma sociedade, seus dogmas religiosos, seu sistema financeiro e até mesmo seus costumes – ou seja, um conjunto de coisas aplicáveis a toda a sociedade, independentemente das vontades e ações de cada um. Na medida em que os fatos sociais moldam o comportamento de cada indivíduo com base em um modelo geral, a coerção que eles exercem garante, segundo Durkheim, o funcionamento do todo social.
Os fatos sociais podem, assim, ser definidos por três princípios básicos:
■ a coercitividade, ou a força que exercem sobre os indivíduos, obrigando-os, por meio do constrangimento, a se conformar com as regras, normas e valores sociais vigentes;
■ a exterioridade, ou o fato de serem padrões exteriores aos indivíduos e independentes de sua consciência;
■ a generalidade, ou o fato de serem coletivos e permearem toda a sociedade sobre a qual atuam.
Recapitulando
Todos nós sabemos que as sociedades são diferentes umas das outras sob muitos aspectos. Durkheim propôs refletir sobre essas diferenças com base no conceito de solidariedade, verificando como a relação entre os indivíduos e a coletividade se apresentava em diferentes contextos. Nas sociedades simples, em que a coesão social é de tal modo intensa que o coletivo (“nós”) prevalece sobre o individual (“eu”), Durkheim identifica o que ele chama de solidariedade mecânica. Nos contextos em que o “eu” tem certa autonomia, e os indivíduos se percebem como diferentes, embora continuem a ser dependentes uns dos outros, o que se tem é a solidariedade orgânica. Esse é o caso das sociedades industriais. Nelas, os indivíduos diferem muito do ponto de vista do trabalho, da classe social, das escolhas políticas, das religiões, e até mesmo das subculturas. Por essa razão, os valores coletivos e o respeito às normas precisam ser internalizados por eles, e a sociedade não perde a “liga”. Na situação extrema em que um indivíduo (ou um conjunto deles) não reconhece mais os valores e as normas sociais, ocorre a anomia moral.
A sociedade moderna contribuiu para promover a solidariedade orgânica, mas a lógica do mercado, segundo Durkheim, atentava contra suas bases morais ao priorizar o lucro e tratar com indiferença as necessidades dos trabalhadores. Foi no próprio mundo do trabalho que Durkheim buscou uma alternativa para o quadro de anomia. As corporações funcionariam como verdadeiras escolas de valores e regras sociais, mantendo a sociedade coesa.
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Leitura complementar
Prenoções e o método sociológico
[...] Os homens não esperaram o advento da ciência social para formar ideias sobre o direito, a moral, a família, o Estado, a própria sociedade; pois não podiam privar-se delas para viver.
[...] como os detalhes da vida social excedem por todos os lados a consciência, esta não tem uma percepção suficientemente forte desses detalhes para sentir a sua realidade. [...] Eis porque tantos pensadores não viram nos arranjos sociais senão combinações artificiais e mais ou menos arbitrárias. Mas, se os detalhes, se as formas concretas e particulares nos escapam, pelo menos nos representamos os aspectos mais gerais da existência coletiva de maneira genérica e aproximada, e são precisamente essas representações [...] que constituem as prenoções de que nos servimos para as práticas correntes da vida. [...] Elas não apenas estão em nós, como também, sendo um produto de experiências repetidas, obtêm da repetição – e do hábito resultante – uma espécie de ascendência quando buscamos libertar-nos delas. Ora, não podemos deixar de considerar como real o que se opõe a nós. Tudo contribui, portanto, para que vejamos nelas a verdadeira realidade social.
[...] É preciso descartar sistematicamente todas as prenoções. [...] A dúvida metódica de Descartes, o fundo, não é senão uma aplicação disso. Se, no momento em que vai fundar a ciência, Descartes impõe-se como lei por em dúvida todas as ideias que recebeu anteriormente, é que ele quer empregar apenas conceitos cientificamente elaborados, isto é, construídos de acordo com o método que ele institui; todos os que ele obtém de uma outra origem devem ser, portanto, rejeitados, ao menos provisoriamente. [...] é preciso, portanto, que o sociólogo, tanto no momento em que determina o objeto de suas pesquisas, como no curso de suas demonstrações, proíba-se resolutamente o emprego daqueles conceitos que se formaram fora da ciência e por necessidades que nada têm de científico. [...]
O que torna essa libertação [...] difícil em sociologia é que o sentimento com frequência se intromete. Apaixonamo-nos, com efeito, por nossas crenças políticas e religiosas, por nossas práticas morais, muito mais do que pelas coisas do mundo físico; em consequência, esse caráter passional transmite-se à maneira como concebemos e como nos explicamos as primeiras. As ideias que fazemos a seu respeito nos são muito caras, assim como seus objetos, e adquirem tamanha autoridade que não suportam contradição. Toda opinião que as perturba é tratada como inimiga.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999 [1895]. p. 18-19, 28-29, 32-33.
Fique atento!
Definição dos conceitos sociológicos estudados neste capítulo.
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