A baixa efectividade da resposta médica para modificar os factores determinantes do estado de saúde
Outro foco de discussão sobre a incapacidade de o SNS responder aos objectivos para que foi criado, é o da falta de efeito sobre o estado de saúde da população. Como já se apontou atrás, a fase final da transição demográfica e de saúde está em curso, em Portugal. Nas décadas de ’70 – ’80, o acesso a cuidados médicos básicos foi facilitado, por exemplo através da cobertura com os Centros de Saúde (chamados de “1.ª geração”) e da rede de consultas nos Serviços Médico – Sociais: não apenas foram atendidos os problemas de doença aguda, como os CS promoveram os hábitos de atenção preventiva em relação à Saúde Materna e Infantil. Estas intervenções foram adequadas para os problemas de saúde da altura, e reflectiram-se em indicadores como os de morbi – mortalidade materna e infantil. ( 66 )
Os problemas de saúde remanescentes têm causalidade predominantemente comportamental, e mesmo a exposição aos factores de risco ambientais depende de comportamentos e modos de vida. Apesar de a inovação tecnológica voltar a apresentar possibilidades inesperadas (como a genética aplicada ao rastreio de doenças, os avanços nos transplantes de órgãos, as técnicas de diagnóstico precoce e tratamento de neoplasias, a manutenção de qualidade de vida pelo tratamento de complicações graves em doenças de evolução prolongada), exige-se uma actuação totalmente diferente dos Sistemas de Saúde para que voltem a notar-se melhorias na saúde da população. E os actuais SSd., mesmo na vertente de Saúde Pública, prepararam-se em paradigmas já ultrapassados: afinal, a formação médica demora, em média, uns 10 anos, e é influenciada pelos paradigmas da geração anterior. Importa listar as potenciais desadequações.
A prevenção e controle das doenças crónicas – degenerativas exige tanto medidas de prevenção primária (promoção) como intervenções médicas para diagnóstico precoce. As últimas constituem parte do nosso objecto de estudo, por se passarem, estritamente, dentro dos SNS. Para se obter impacto na saúde da população, é necessário que as intervenções: a) sejam tecnicamente correctas (eficácia); b) cubram a maioria da população – alvo - através de uma rede prestadora razoavelmente disciplinada - (efectividade). De que modo pode este resultado ser atingido: um plano com normativas?; direccionamento (dos profissionais prestadores) através de incentivos; ou total discrição individual (dos prestadores)? O consenso parece apontar para a necessidade de: a) intervenções intersectoriais; b) prestações a todos os níveis do sistema médicos prestador, com incentivos adequados (diferenciados) para combinar “cooperação por objectivo comum” com “competição”.
No caso português, tirando as raras excepções de normatização tornada operacional para os clínicos (hipertensão, diabetes), a intervenção do SNS sobre as doenças crónicas de larga distribuição baseia-se na discrição individual de cada médico, na sua curiosidade pela epidemiologia destas patologias. Mesmo quando há orientações de intervenção definidas, ou até mesmo “metas de cobertura”, não há estimações dos custos adicionais, não é claro qual o financiamento extraordinário (num SNS sempre em déficit), nem o Ministério da Saúde altera a remuneração para incentivar os profissionais a prestar mais atenção aos actos profilácticos, ou de controlo de complicações: só a preparação individual do médico diferencia a atenção que merece uma consulta a uma doente “na idade de risco para cancro da mama” e qualquer caso de mal-estar agudo, ou insónia. Mesmo a hipertensão arterial e a diabetes mellitus continuam muito mal controladas (a atestar pelas estatísticas oficiais do nível primário). ( 67 ) xxxii
A iniciativa “Saúde no Virar do Século”, de 1999, constituiu a primeira tentativa recente de explicitar / sistematizar um conjunto de intervenções para Ganhos de Saúde: pelo menos, fazia uma selecção de problemas prioritários, descrevia, para cada patologia, as intervenções dos vários níveis do SNS, as intervenções ambientais – comunitárias, e propunha indicadores de monitorização. Infelizmente, a iniciativa não conseguiu esclarecer: a) que fontes de financiamento utilizaria para custear os cuidados médicos adicionais (por exemplo, a fotocoagulação com laser, nos casos de retinopatia diabética) num SNS que já é deficitário nas prestações actuais; b) se as patologias escolhidas para este conjunto de intervenções tinham sido submetidas a análise de custo / efectividade (o melhor resultado social, pelo custo aceite). O Relatório do Alto-comissário e Director Geral de Saúde “Ganhos em Saúde – 2002”, retoma a experiência do documento anterior (no início da nova legislatura PSD, sugerindo linhas direccionadoras para “Planos Anuais de Saúde” nos anos subsequentes do executivo em cargo) ( 68 ) . A mesma organização é apresentada pelo Plano Nacional de Saúde (2004). Estes últimos dois documentos, no entanto, continuam a não mencionar as fontes adicionais de financiamento nem seleccionam prioridades (e, consequentemente, também não explicitam os métodos de priorização). xxxiii Ao não seleccionarem prioridades, perdem o carácter “estratégico”, sugerem impreparação para a execução. Parafraseando o Relatório do OPSS / 2004, “o Plano Nacional de Saúde parece ser paralelo à agenda “dura” da direcção do Ministério da Saúde” (Hospitais SA, regulação, etc.). ( 69 )
Mesmo que se definam programas articulados de intervenção preventiva para doenças com boa relação custo / efectividade, e que se garanta financiamento, não é garantido que aqueles que mais necessitem das intervenções beneficiem delas. Recente avaliação de medidas para aumentar o consumo de medidas preventivas em comunidades mais carentes, no Reino Unido, demonstrou que os mediadores culturais (consumo de cuidados por mulheres, comunicação com os profissionais de saúde, etc.) reduziam o impacto esperado ( 70 ). Um estudo sobre a utilização de serviços de saúde por migrantes em Portugal, informou que estes contactam mais frequentemente as urgências hospitalares que os centros de saúde (ficando assim fora do alcance dos programas de saúde pública), e que o motivo mais importante para tal in-frequência eram os receios de conhecimento da (i) legalidade da sua permanência em Portugal ( 71 ) . A mensagem destes estudos é importante: os indicadores de estado de saúde duma comunidade são negativamente influenciados pela má saúde das franjas excluídas nessa comunidade. Se a saúde pública tradicional não as consegue atingir, a inovação tecnológica tem interesse limitado (e tem elevado custo de investimento para atingir essas franjas marginais).
Modificar os determinantes das patologias actuais implica intervenções de suporte às mudanças de comportamento (por exemplo, preços de produtos dietéticos ou de risco), que são mais efectivas que as campanhas de informação ( 72 ). Essas intervenções de suporte não são realizadas pelos profissionais do SNS. As manifestações de desagrado dos vinicultores, perante a nova legislação de trânsito, em 2000, mostram como os interesses económicos se podem contrapor à evidência epidemiológica. O mesmo é evidenciado na publicidade a “comportamentos responsáveis perante a ingestão de bebidas alcoólicas” denunciado no Relatório do OPSS / 2004. Entretanto, os comportamentos de risco continuam a ser cada vez mais frequentes e graves entre os jovens, fazendo prever aumento de doenças relacionadas com os mesmos. ( 73 )
E a lógica do investimento sectorial não favorece a promoção de saúde: a Avaliação Intercalar do “Saúde XXI” revelou que, mesmo nas áreas da Saúde Pública, o financiamento foi maioritariamente dirigido ao reforço da capacidade de diagnóstico e tratamento precoce (medicina) nos hospitais. ( 74 )
Outro motivo potencial para o reduzido impacto dos Sistemas Públicos de Saúde é a definição constitucional de igualdade de acesso financeiro aos serviços públicos. Face à incapacidade de o SNS responder à quantidade de serviços procurados, e à formação de listas de espera, os cidadãos dos estratos mais desafogados (com melhor estado de saúde e menor necessidade de serviços) são quem consegue melhor acesso aos serviços limitados, por via dos seus contactos privilegiados dentro dos círculos sociais que frequentam, e de utilizarem diversas fontes de financiamento ( 75 ).
Em resumo, os Serviços de Públicos de Saúde continuam a ser cada vez mais caros (por toda uma série de bons motivos), mas contêm vários factores contrariantes de obterem resultados positivos sobre o estado de saúde da população.
c) Baixa Resposta à Necessidade de Mudança: a Organização Das Instituições e da Administração Pública
Os cidadãos, reclamando da falta de resposta do SNS às suas necessidades, sugerem que o SNS se comporta como qualquer outra instituição burocrática estatal ( 76 ). Os profissionais reclamam da ausência de flexibilidade da administração central, da limitada autonomia que concede às instituições prestadoras, e do papel pouco relevante das administrações regionais ( 77, 78 ).
Essas reacções não surgem em vão. Pelo menos nos últimos momentos de mudança de orientação política do governo português (meados de ’90 e 2002), foram ensaiados conjuntos de movimentos de mudança organizativa que parecem confirmar a necessidade de alterar a organização das instituições e da administração ( 79 ) . Parte desses conjuntos de mudanças organizativas foram retomados pelos executivos seguintes, parecendo confirmar que se tratava de medidas consensuais e não de meras “modas importadas”.
Uma dessas mudanças organizativas consistiu na instalação, a nível regional, das Agências de Contratualização de Serviços de Saúde. Em face das muitas medidas ensaiadas, pode perguntar-se se era necessário por em funcionamento as Agências. Poder-se-ia argumentar que a administração do sector público de saúde já contém alguns dos mais importantes elementos de modernidade: a descentralização regional e a autonomia dos hospitais. É questionável seria necessária a mudança organizativa, ou se seriam necessárias as Agências de Contratualização. Pode admitir-se, por exemplo, que as Administrações Regionais de Saúde estivessem aptas a elaborar e monitorizar contratos com as instituições prestadoras autónomas.
Na parte do texto que se segue, introduzimos as manifestações mais notórias das diferentes organizações que compõem o SNS, bem como os limites da descentralização e da autonomia. Serão analisadas com mais detalhe e sistematização conceitual na Secção “2” do texto. Por outro lado, o Sistema Nacional de Saúde é composto pelos sectores público e privado, e importa também ter presente a necessidade de mudança organizativa nas relações com este último: formas alternativas para se obter a melhor participação possível dos prestadores não – públicos na prossecução das utilidades públicas.
A Organização Tradicional dos Hospitais
Até à 1ª crise dos SSd. públicos, na 2ª metade dos anos ‘70 (financiamento público e efectividade da medicina), as grandes organizações de saúde – os hospitais – eram exemplos de organização complexa mas apropriada para o contexto estável, e a reduzida exigência dos utentes. Os médicos exerciam a sua actividade sem questionamento dos utentes, sobre as decisões ou sobre os custos. O funcionamento do hospital, com financiamento suficiente, era assegurado pelos administradores, o que deixava os médicos ocupados apenas com a tarefa de tratar. Enquanto a actividade dos médicos é essencialmente feita de decisões discretas, a dos administradores baseia-se no cumprimento de procedimentos - definidos superiormente - e garantia de logística. Este primado do cumprimento das normas e da logística (o funcionamento de um sistema estável) na actividade dos administradores hospitalares é típico de uma organização centralizada, hierárquica e normatizada: uma burocracia quase ideal, para obter economias de escala, incluindo as compras grupadas. Resulta uma organização dominada pelos profissionais e cuja missão é determinada pela satisfação que a oferta apresenta aos profissionais: uma organização virada “para dentro”. Os médicos mantêm-se satisfeitos enquanto os administradores forem eficientes e mantiverem a instituição com logística regular, e com solvência suficiente para adquirir as inovações tecnológicas; os administradores mantêm-se satisfeitos enquanto os níveis superiores apreciarem o seu cumprimento das regras, mantiverem a regularidade de libertação de orçamentos, e os médicos derem prestígio à instituição com a sua capacidade técnica. Para os profissionais e para os estratos que se beneficiavam dos serviços, não se poria em causa este modelo enquanto houvesse financiamento suficiente.
A realidade das 2-3 últimas décadas veio pôr em causa este sonho de estabilidade. O ambiente tornou-se não apenas mais instável, como mais exigente: os efeitos sinérgicos do envelhecimento populacional, perfil de doença (e resistência dos seus determinantes às intervenções de saúde pública), das exigências de tecnologia da população beneficiada de 3º pagador (em súbita expansão de acesso), etc., juntaram-se à crise de financiamento público. Contemporaneamente, o modelo de gestão burocrática e centralizada revelou-se ineficaz para lidar com a discrição de qualidade dos profissionais médicos, e as irregularidades orçamentais levaram à insatisfação dos administradores. No entanto, a constatação da turbulência no ambiente e o assumir da necessidade de uma gestão diferente (mais rápida a reagir, mais capaz de prever) podem ser um processo lento, num sistema – e respectiva administração – protegido pelo compasso lento da vida política institucional, pela enorme capacidade do Tesouro público em assumir déficits, pela posição oligopólica do sistema hospitalar, e pela inércia dos interesses internos instalados (sejam os receios de instabilidade laboral, seja o parasitismo pelo sector privado). Em suma, apesar de a turbulência durar há umas 2 décadas, a administração do SNS ainda funciona segundo princípios lentos e reactivos.
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