Diz que deu, diz que dá Diz que Deus dará e se Deus não dá Como é que vai ficar, ô nega Diz que Deus diz que dá
(Partido Alto, Chico Buarque)
Na saída, hora de entrar na van e voltar para casa, um menininho miúdo chega com uma flauta doce e começa a tocar Noite Feliz, Noite Feliz, ó Senhor, Deus de Amor, pobrezinho nasceu em Belém...
Tínhamos falado tanto em flauta no caminho de ida. Descido a Contorno falando em flauta doce e lá vem esse menino, miúdo e com os olhos mais tristes do mundo tocar “Noite Feliz”. Tocar “Noite Feliz” com os olhos cheios d´água. Música que tinha aprendido a tocar na oficina de música do Projeto Axé.
As pessoas da equipe se entreolham enxergando em cada um a sensação de paradoxo. Mas a atitude possível naquele momento é bater as mãos.
Aplausos.
(Observações: todas as cenas são externas, com exceção da cena 9, são filmadas à noite. Estrelando: os meninos e meninas da Pituba e a equipe do Consultório de Rua. Participação Especial: uma estranheza que bem poderia se chamar alegria, se já não fosse sem nome de nascença).
Cena 1 – (prelúdio) É segunda-feira, dia quatro de agosto, e uma seqüência de atrasos impedem que essa narradora chegue à sede do Cetad para pegar a van do Consultório. A solução é seguir para a Pituba em meio de locomoção alternativo (leia-se ônibus) e acionar um telefone público para contactar Míriam.
(primeira cena de velocidade e tensão naqueles instantes carregados típicos de fins de tarde na grande maioria dos asfaltos de Salvador)
Cena 2 – A ordem do telefonema vem expressa: fique à paisana à nossa espera. Um ponto de ônibus em frente à praça me dá cobertura para observar o que os meninos fazem antes do Consultório estar presente (a prática se tornaria mais comum com o passar dos tempos). Ironicamente, é a primeira vez que volto à Pituba, depois de oito meses. Lá estavam eles: batucando um pandeiro, cheirando cola, esperando.
(trilha sonora ambiente: “Quando a Maré Encher”, cantada por Nação Zumbi e Cássia Eller):
Fui na rua pra brigar
Procurar o que fazer
Fui na rua cheirar cola
Arrumar o que comer
Fui na rua jogar bola
Ver os carros correr
Tomar banho de canal
Quando a maré encher
Quando a maré encher
Quando a maré encher
Tomar banho de canal
Quando a maré encher
É pedra que apóia tábua
Madeira que apóia telha
Saco plástico, prego, papelão.
Amarra saco, cava buraco, barraco.
Moradia popular em propagação
Cachorro, gato, galinha, bicho de pé
E a população real
Convive em harmonia normal
Faz parte do dia-a-dia
Banheiro, cama, cozinha no chão.
Esperança, fé em Deus, ilusão.
Quando a maré encher
Quando a maré encher
Tomar banho de canal
Quando a maré encher.
Cena 3 – Com um atraso de meia hora, a van desponta na esquina do outro lado da rua.
Hoje tem coisa nova: oficina de capoeira. (sonoplastia: toque de berimbau acionado logo após a palavra capoeira). Acontece assim: é só armar a roda e prestar atenção nas instruções de Mestre Jojó (alcunha capoeirística de Joselito, que obviamente em decorrência de um bom filme, está vestido a caráter).
(Preparem o berimbau, o caxixi, o pandeiro e a flexibilidade, meninos e meninas da Pituba! Vocês estão prestes a um teste de substituição da cola de sapateiro a qual estão mais do que habituados! Uma oficina de capoeira exige fôlego, está aí a estratégia, como explica Míriam. Para respirar melhor, nada do que mandar a garrafinha de plástico para o espaço, que tal?).
Ô segura esse nego
E joga no chão
Esse nego é valente
Esse nego é o cão
Quem puxa a cantiga na roda é Raimundo. Raimundo tem perto dos seus 40 anos, fica ali na pracinha com os meninos, mas se acha meio pai de todos eles. Acontece que Raimundo, como a equipe do Consultório vai mostrar em cenas seguintes, gosta de usá-los, exercer sobre eles um domínio muito forte.
Cena 4 – Já estão todos posicionados na meia lua inteira. As carinhas de antes ainda estão lá, ainda no estilo chapadão, mas parecem felizes com a novidade da luta. Vó, Renatinho, Pedro, Andresa (Anderson, travesti e irmão de Vó) e na equipe Luana Figueira, estudante de psicologia. Até que de repente, eis que...
...a cena tem o desprazer de ser interrompida pela personagem Vizinha Incompreensiva Que Atira Cascas de Frutas Podres (lembram dela, não?). Era maquiagem especial ou a senhora dessa vez tinha uma verruga descomunal na ponta do nariz?
Pois, os super poderes da Vizinha Incompreensiva Que Atira Cascas de Frutas Podres levam a roda a se deslocar para o outro lado da praça, mais afastado possível do seu raio de ação. Mas a roda continua. E a vilã volta para a torre do seu castelo mal assombrado resmungando, claro, palavras incompreensíveis.
Cena 5 – O movimento não pára, mesmo para quem não sabe dar aú nem nada, está valendo. O berimbau na mão de Pedro é ágil. Raimundo continua na cantoria e o pandeiro vai passando de uma mão para outra. O pontinho de Raimundo leva os passos:
Ô segura esse nego
E joga no chão
Esse nego é valente
Esse nego é o cão!
(a cena ganha velocidade)
E é numa dessas que Jaquison, um menino de 12 anos, da cor do azeviche, dá um passo em falso na ginga com Mestre Jojó e pimba! Ao que tudo indica, torceu o pé. E agora? Prontamente disposto a prestar-lhe auxílio, Mestre Jojó encarna o motorista e agente de saúde Joselito e na companhia de Míriam, psicóloga e coordenadora do projeto, pilota a van do Consultório até a clínica ortopédica mais próxima.
Cena 6 – enquanto isso, na mesma praça...
Lá longe, uma coadjuvante bonitinha, arrumadinha e loirinha (os diminutivos são por ela e por ele) pede a Renatinho que engraxe seu sapato. Depois ela confessa que só faz aquilo para puxar papo:
-Eu acho esse menino tão lindo. Queria que ele saísse da rua, que parasse de usar cola.
O alvo do carinho de uma moça que vai passando e mora ali perto (e olhe que isso é raro de acontecer) sorri meio sem graça, mas parece que ele mesmo não acredita que o que ela quer seja possível de acontecer. Não há indícios no olhar de Renatinho de que pelo menos por enquanto ele vá sair da rua.
Cena 7 – Quem não foi na odisséia do pé torcido de Jaquison resolveu parar a roda de capoeira. Metade rumou em instantâneo para a cola, a outra metade (formada por Raimundo e dois vendedores de bala, com seus tabuleiros no colo, mais velhos do que o resto dos meninos) resolveu usar o pandeiro para fazer música.
E com vocês, o grupo Asas Livres:
-Quem?
-Ôxe, tem certeza que você nunca ouviu esse grupo? Toca no rádio direto!
-Não
(então vamos apresentar de novo no filme)
Bom, e com vocês, mais uma canção do grupo Asas Livres:
(toca apaixonadamente, entre sorrisos e as caras chapadas que se afastam da cola, que está sendo cheirada não muito longe dali, e vem ajudar no coro)
No banco da praça
Estava a sonhaaaar
E a esperança de te encontrar
Mas te encontrei amor
Foi tão bom te conquistaaaaaaar
Tudo azul
Lindo como a flor do maaaaaar....
(do grupo Asas Livres)
Renatinho (protagonista da noite) está entre os que chegam doidões e assim, bem de mansinho canta Hey Jude, dos Beatles.
-Aêeeeee, esse é Renato Russo – brinca Raimundo.
- Renato Russo Chapado – é a resposta do menino.
E por falar em Renato Russo, a próxima cena, que é meio tensa, pode ser introduzida com a leveza de outra canção que acontece na rodinha da Praça Brasil:
Não tenho medo do escuro
Mas deixe as luzes acesas
Agora
E o que foi escondido
É o que se escondeu
E o que foi prometido
Ninguém prometeu
Nem foi tempo perdido
Somos tão jovens....
(Tempo Perdido – Legião Urbana)
Cena 8 – Depois da sessão musical, chega a vez de um burburinho. Motivo: a nova embalagem das camisinhas distribuídas pelo Consultório com o aval do Ministério da Saúde (que apóia e financia o projeto). Descrição da dita cuja: fundo amarelo recheado de palavras de efeito do tipo “agora”, “hoje”, “vamos?”.
O filme se prepara para o desfecho com um dilema. Jaquison volta à praça com a perna engessada. E ele precisa tomar um antiinflamatório. Acontece que o menino tem que escolher, entre o remédio e a cola, entre a cruz e a caldeirinha.
Cena 9 – (A seguir, diálogo meio triste, porém coalhado de realidade).
Cenário: Van do Consultório de Rua em movimento, dirigindo-se a uma farmácia próxima, ali perto da praça Brasil.
Protagonistas: Jaquison e Míriam
Míriam: (tom preocupado) Você quer cheirar ou quer tomar o remédio, Jaquison?
Jaquison: (tom de angústia e dúvida) A senhora vai guardar minha cola, tia?
Míriam: (tentando convencer) A cola pode ficar com você, mas você precisa se comprometer que não vai cheirar. O médico deixou bem claro que a cola atrapalha o efeito do remédio e pode te prejudicar.
(o diálogo é cortado ao meio para apresentar Carolina, estagiária de medicina. Papel da garota na cena: ajudar a convencer Jaquison)
Carol: (paciente, porém enérgica) Você quer cheirar ou quer o remédio, Jaquison?
Jaquison (pensa, pensa, meio nervoso) Quero a cola.
Míriam: E se depois sem o remédio a sua perna doer?
Jaquison: (desdém total) Doeu.
Míriam: É isso mesmo? Pense bem. (virando-se para a estudante de medicina) Carol, explique a ele o que pode acontecer...
Carol: (realista) Você pode ter dores fortes de noite sem o remédio. Só o gesso não adianta...
Jaquison: (meio convencido) Tá bom, então eu tomo o remédio.
Cena 10 - A van pára na farmácia. Carol compra o remédio, mas na volta o menino não aceita o frasco do remédio. Prefere garrafa de cola. Mas promete que não vai cheirar. Tudo bem, devolve-se o menino à rua da qual faz parte. O que mais poderia ser feito?
Renatinho aparece e tenta tranqüilizar:
-Pode deixar que eu tomo conta dele!
E apóia por sobre o seu pescoço o braço do amigo, que sai pulando igualzinho a um saci.
Fim do filme com créditos comuns, pessoas mais do que comuns em um elenco que os cineastas pouco ouviram falar. Mas os atores sociais desse pequeno documentário mostram recortes de realidades, mesmo que inconscientes dos seus papéis. Na conclusão das conclusões, uma frase do poeta Manoel Bandeira, retirada do Livro sobre o Nada:
“Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou”.
(Tabuleiro de acarajé lotado. Cara de veraneio, malemolência. Boemia, jeito tranqüilo. É esse mar, é? É o nome? Será que tem lenda? Noite tem cara de tudo. E às vezes não tem cara. Pedra de sereia Pedra de crack)
Vai ter roda de capoeira em Itapuã também. Mestre Jojó a postos assim como Leiliane, Carol, Patrícia e Nino (Honório). A noite está tranqüila, aos poucos se aprende alguns passos. Ter ginga não é coisa de se fazer em pouco tempo. Vai com calma, vai com paciência. Bota um pé aqui, agora a mão ali.
Até que um sujeito desloca o contexto e chega com a pergunta:
-Hei, o que você acha desse projeto?
Ele está vestido com uma camisa de botão, daquelas de usar depois de um banho bem caprichado, com uma bermuda branca de brim (que por nada o faz sentar no chão, obviamente) e um tênis preto com detalhes brancos. Do mesmo jeito que faz a pergunta, dá algumas dicas sobre capoeira enquanto espera a resposta. Então ele decide ser ainda mais objetivo no que quer saber:
-Você acha que esse projeto dá resultados? Que ele ajuda as pessoas a saírem das ruas?
-Acho que sim. Ele tem sua contribuição – respondo.
Então ele começa a fazer as críticas que quer desde o começo.
-É, mas ele não tira ninguém das ruas. É difícil, sabia? Esses meninos aqui não saem das ruas, eles continuam usando droga química.
-E qual seria a sua sugestão?
-Não sei. Às vezes eu penso em dizer a eles para fazer alguma coisa que funcione, mas não sei o que é...
-Mas pelo menos o projeto está tentando fazer com que essas pessoas abram a cabeça e tenham responsabilidade. Eles vão te dizer para usar camisinha e te explicar por quê. Vão te explicar o que pode acontecer com você se fizer certas coisas. Mas cabe a cada um decidir o que vai fazer ou não...
-Eu sei, mas eu te digo, as pessoas aqui não entendem essa mensagem. Não entendem mesmo, a maioria não está nem aí. Terça-feira passada quando vocês saíram, um moleque desses foi pegar uma pedra de crack para o outro. Aí, quando o cara abriu o papelote pensou que o amigo tinha ficado com metade para ele. Mas o bicho tomou tanta porrada, quase um mata o outro. Por isso eu te digo, acho que não funciona.
Então ele começa a falar de si. Diz que se chama Plínio, tem 26 anos, mora ali na região, chegou não tem muito tempo. Vinha de Cajazeiras, onde aos 17 anos engravidou uma menina de 13. Thalia, a filhinha do casal, está com seis anos, mas ele a vê pouco. Ela mora com a mãe.
Plínio fica à vontade e começa a falar de si sem receio. Em Cajazeiras conheceu o mundo das drogas químicas, aos 13 anos. Fez de tudo. Muita pedra de crack e muita cocaína, principalmente essa. Vendia e usava.
Quando descobriu que a namorada estava grávida (aos sete meses) os dois já estavam separados. E não era por causa da barriga que ele ia voltar. A menina, furiosa, nunca o perdoou. E até hoje faz de tudo para impedir que Plínio se encontre com a filha.
Plínio é pintor de parede, mas está desempregado. Mora com a mãe. O pai morreu há 15 dias. Os dois estavam separados, mas moravam juntos, eram amigos e se respeitavam. Plínio não acredita no projeto, mas ironicamente prega a sua reforma. Diz que por conta própria saiu das drogas, viu que não era mais aquilo que queria:
-Droga química pára a vida da pessoa. Eu larguei trabalho, namorada, tudo. Depois que você pára de usar é que volta a viver. Enquanto usa, fica parado, vazio. Na hora dá até uma excitação. Eu saia, queria brigar, mostrar a todo mundo que eu estava doidão, já arrumei briga com a polícia. Mas depois que passa a onda, é muito triste a depressão.
A tal droga “química” de que tanto fala vinha de Feira de Santana. Plínio esperava a mãe dormir e de madrugada pegava seu carro escondido e dirigia até a outra cidade para se abastecer. Vender a droga em Salvador então era dinheiro fácil. Em um dia dava para fazer mais de R$180.
Aliás, não era tão fácil assim. Briga de tráfico dá em muita morte. Plínio não confessa nenhuma, mas diz que tem amigos que já tiraram algumas vidas por aí. Um vizinho seu, “esse é bandido mesmo”, matou um cara que morava na vizinhança. Todo mundo sabe. Mas finge que nada aconteceu.
-E a polícia, Plínio, como é que fica a polícia nessas histórias?
-Polícia só funciona para quem passa por ali (aponta a orla de Itapuã). Na favela não. Eles entram sem respeito, tratam todo mundo que é pobre como marginal. É por isso que eles não têm moral na favela. Os caras (traficantes) não. Eles ajudam as pessoas que estão precisando, se quiser um carro para levar em um lugar eles dão, um remédio para o filho. Por isso que quando a polícia entra na boca muita gente da favela ajuda, fica quieto.
Ele mistura em seu discurso uma realidade muito dura com uma possibilidade muito fácil de sair dela. Plínio diz que acredita que não existe dificuldade em mudar se existe obstinação, como a que ele teve. Ainda tem três primos que continuam nessa, mas resolveu sair fora. Simplesmente parou de vender e usar drogas. Admite um baseado de manhã para relaxar, mas nada além.
Depois decide que não quer falar mais, já falou o suficiente. Encara com um olhar fixo, sério, de quem abriu passado para estranho. Mas não demonstra arrependimento. Talvez fosse dizer algo mais quando Ras Léo chega para se despedir. Mas não diz.
Com pinta de profeta
Ras Léo chega para dar aula de novo. Dessa vez o tema é a Bíblia. Tudo por causa de um provérbio escrito na camiseta branca com a qual estava vestido. Um rastafari sentado à sombra de um coqueiro contempla o provérbio 19-12.
Como o bramido do leão,
Assim é a indignação do rei;
Mas seu favor é como o orvalho
Sobre a erva.
Logo abaixo, destacado em letras maiores a frase “Jesus é Vida”. Nas costas Ele também é rei. Peço para copiar o provérbio, Léo espera. Depois, me chama num canto, abre sua pochete e tira uma sacola de plástico com uma camiseta do programa Redução de Danos. Troca uma pela outra e diz que a branca - com o rastafari sob a sombra do coqueiro e o provérbio destacado - é minha.
Fico sem graça de aceitar, então ele fala ainda mais sério: “Você crê que não sou eu que estou lhe dando essa camiseta? Hein? Crê que é Jah, Jah que quer assim?”. Limito-me a balançar a cabeça em afirmativo a aceitar o presente. Então ele continua: “Eu sou Deus porque sou sua imagem e semelhança e porque Ele está dentro de todo mundo, inclusive de você e de mim”.
Mais uma vez o rasta é pregador. Abre a Bíblia, fala dos mandamentos e aos poucos vai soltando os mandamentos de sua vida. Diz que já fez muita coisa, inclusive com a vida de pessoas. Andava armado, era cabuloso, mas isso passou. “Chegou a reforma”.
Ele conta que um dia estava com seus filhos e de repente aparece um cara armado gritando que ia lhe matar, matar aquele desgraçado que já tinha quase atentado contra sua vida uma vez. No meio do episódio que era para ser uma maldita e sangrenta vingança, o sujeito simplesmente desiste de tudo e deixa o rasta partir com seus meninos pequenos.
Por ter visto a morte assim tão de perto ou experimentado outros extremos, Léo decide que é hora de equilibrar essa idéia de reforma em sua vida. É assim que conta que perdoou o homem que deu um tiro na testa de seu irmão. Mais do que perdoá-lo, o rasta diz que o ama. Que Jah, essa força transformadora, operou nele o milagre do amor. E que estava tudo escrito ali, bastava saber interpretar.
Cidade de cartão postal esconde cidade que não sai na TV. Atrás das duas mãos gigantes da quarta-feira, quem passa para esperar seu ônibus, ou para tomar uma cervejinha no bar da esquina, ou ainda quem passa de carro atrás de ponto turístico não vê. Mas está lá.
O Consultório traz uma filmadora (ao contrário da minha filmagem, que foi imaginária, essa aconteceu de verdade). Tiveram meninos que se ofereceram para fazer papel de gângster. Uns falaram que ia arrumar uns revólveres (de brinquedo) para a história ficar mais real. A filmagem ia ser ali mesmo, na praça onde eles se reúnem. Uma mistura de documentário com um pouco de ficção
Mas o filme perde para a música ao redor. Não consegue ser mais do que a batucada, que a cadência de um sambinha no meio da noite. Lá na frente, um homem desarma a tenda do Acarajé da Arruda e Edmea. Um rato preto e grande passa ao lado.
Binho me encontra feliz. Fala mais sobre sua vida. Me diz que seu pai vende picolé na Ilha de Itaparica. E que trocou sua bicicleta por uma mobilete, que agora, nesse exato instante está na oficina de seu padrinho, que vai deixá-la novinha em folha, sem cobrar pelo serviço.
Fica a promessa de uma voltinha. Uma voltinha de mobilete.
-E por falar nisso, é seguro? Não tem perigo de acontecer um acidente?
-Não para quem tem as manhas, entendeu?
-Ah...
Um assunto puxa outro e falamos de futebol e do “Baêêêa”, seu time do coração. Binho lembra que uma vez foi com o pai para a Fonte Nova e sem prestar atenção, acabou pagando sete reais no ônibus.
Quando chegou no estádio, na hora de dar o dinheiro do ingresso foi que percebeu o que tinha feito O pai disse que deixasse aquilo para lá, ele ficou com vergonha de entrar, de fazer o pai gastar mais dinheiro. Mas acabou cedendo. E o “Baêêêa” empatou.
A Praça Conde dos Arcos tem as crianças mais novas de todos os lugares que o Consultório visita. E bem no dia da filmagem, na agitação da filmagem, acontece uma doçura, uma tranqüilidade. Umas três dessas meninas bem pequenas ficam despenteando meu cabelo e perguntam umas para as outras enquanto fazem seus desenhos:
-Como é que faz a cor do céu?
(Como é que se mistura som de capoeira com silencio de não ter mais o que dizer?).
Pois deve ter sido bem no céu que a equipe se sentiu quando Tarcyo voltou de um Congresso de Medicina em Brasília com a notícia de que o Consultório de Rua havia recebido Menção Honrosa.
Um telefone tocou distante e me fez saber Santa Efigênia. O catolicismo que nem tenho com tanta força, mas entrei na viagem de sair procurando por ela. Do outro lado da linha era Outro Preto, uma situação estranha e nova e tão boa me acontecendo. E eu não conhecia nada.
Dias atrás da santa, aqui em Salvador, descubro-a negra e linda (em papel). Chega trazida pela mão de minha avó. Vai ser curta essa história, para não soar nonsense. Mas depois de um dia com a sua imagem de papel em mãos, minha orientadora me diz que a imagem em gesso da mesma santa está nessa faculdade. A única santa dessa escola. Ouço:
- É a santa protetora dos sem teto.
Então não importa que não faça sentido. Ofereço sua energia aos Capitães do Asfalto. E a sua força para que fique com eles.
Outro encontro ao acaso com Michele Fáife sem a equipe do Consultório. Quase depois de um ano. Estamos no Pelourinho, em frente à Cantina da Lua. É sábado, dia 9 de agosto, mais ou menos dez da noite. Fico feliz em vê-la outra vez. Até porque ela não aparece mais no projeto. Está magra e com uma cara meio zonza, como se estivesse chapada.
- Michele! Há quanto tempo! E aí, como vão as coisas?
Ainda mais zonza, mas me reconhecendo, começa a disparar suas pérolas.
-Ah tia, psicologicamente falando (expressão usada de cinco em cinco minutos) três letrinhas estão me incomodando muito: HIV.
Fico batida. Estranho. (Como acreditar? O que dizer?).
Ela me pede que lhe compre uma caixa de leite. Atravessamos a rua, entramos em uma vendinha. Pede também um refrigerante. Fico muito frustrada, principalmente porque ela me diz que foi inconseqüente mesmo e não se cuidou em nenhum momento, não se preveniu de nada.
-Mas e o tanto de camisinha que você pegava lá no Consultório?
-Psicologicamente falando, eu não usava sempre não, né, mona? Acontece.
Está muito mais magra e com uma tosse seca e constante. Diz que quer fazer alguma coisa por si, mas o que fazer? Fica ali no Pelourinho zanzando, diz que vai procurar ajuda, vai tomar coquetel.
(Dias depois quando eu conto essa história a Míriam, ela não só me diz que já sabia como também sabia que Michele estava usando muito crack).
A Perine da Pituba. O mármore, o granito, o gueto escondido da reforma. Semáforo de metrópole. Carro de luxo na porta. Prédios comerciais pequenos de aluguéis caros. Praça com chafariz que canta e dança e junta gente.
Carros da polícia patrulham a orla. A brisa do mar vem suja, mas e daí? Exemplo de modernidade urbana. Pão a alguns reais. A praça tem uma livraria com nome sugestivo: Civilização Brasileira.
Logo acima, um outdoor imenso da Oi estampa um menino negro, com os braços abertos, vestindo uma camisa folgadona, como qualquer um dos outros meninos que estão embaixo, na realidade da praça. Será que os publicitários sabiam disso ou foi mais um jogo do politicamente correto?
Praça Brasil. Eles conversam num cantinho. Ou então guardam carros. Às vezes quando abre o sinal e os carros passam rápidos, eles ficam perdidos do outro lado. As luzes devem ficar manchadas depois da cola. E os pneus dos carros e ônibus que eles desafiam atravessando a rua sem prestar atenção, cantam alto no asfalto molhado.
Um cursinho pré-vestibular também junta meninos da mesma idade. Com outro presente e com certeza, outro futuro. Outros meninos, que estão mais para os alunos do cursinho do que para os meninos da praça Brasil, manobram seus skates atrás do ponto de ônibus.
A Pituba é o registro mais constante e presente que tenho.
Outra segunda-feira à paisana no ponto de ônibus, como no filme anterior, até a van chegar. A oficina de capoeira não está conseguindo ganhar para a cola. Jaquison, que torceu o pé, é fera na capoeira, mas ao invés de estar na roda está é com a cara atolada na garrafa. Depois dá calundu e diz que não vai jogar não porque está com fome.
A cola inibe a fome, mas depois traz toda ela de volta, me informaram. Na cartilha “Drogas, Isso lhe Interessa? Confira Aqui”, organizada pelo Cetad, está escrito sobre os inalantes: “sensação de euforia (inicial e passageira), sensação de estar flutuando, desinibição, vertigem, ilusões, tonturas e sonolência. Ocasionalmente pode ocorrer amnésia (esquecimento completo)”. É o que acontece com Jaquison e com a maioria dos meninos ali.
A idéia de arte de hoje é de criação em conjunto, trabalho coletivo. O espaço do papel metro é para ser um grande mural, cada um fazendo a sua parte. Míriam explica que quer vê-los trabalhando juntos, criando algo juntos. Depois de uma enquete, os meninos decidem por um casarão. Mas o que acontece de fato é que cada um desenha o seu, independente do outro. Apesar de estarem juntos...
Andresa, a “irmã” de Vó conta alguma coisa sobre Michele Fáife. Diz que desde março sabia que a amiga estava doente e que nunca procurou ajuda porque estava mesmo era atolada no crack. Andresa, que é Anderson, um menino de 17 anos, morador do Nordeste de Amaralina. Que há quatro anos, bem no dia das mães, contou a sua mãe que era gay e mais ainda, que se assumia como uma mulher.
A mãe disse que era melhor filho viado que ladrão. O pai parou de falar com ele. A vó que o criou e criou sua irmã (e emprestou a ela o apelido) era forte, era de candomblé e morreu aos 105 anos. Uma referência porque segurou a barra sozinha, quando a mãe dos meninos sumiu no mundo por uns tempos. Andresa desenha um menino e um coração. É o seu amor, Eliezer. Não dá para evitar a pergunta:
-Mas no ano passado você não disse que não tinha amor, que era profissional do sexo?
- Você está falando assim, se eu fiz vida? Nunca fiz não, juro por Deus. Ah, eu falava aquilo, mas era para pegar mais camisinha, boba.
Aos poucos ele vai explicando partes do que vive. De como o bairro onde vive é preconceituoso e como isso inibe a sua aceitação, mas não atrapalha Anderson de se sentir Andresa. É ela e não ele.
Andresa incrementa o vocabulário. Para quem quiser aprender mais um pouquinho sobre suas palavras:
- Mulher em língua de viadagem é amapor, que quer dizer rachada. Rachada é que tem exatamente aquilo que eu não tenho, percebeu, fofa?
Seu desenho vai ganhando mais cores, mas Andresa faz tudo com um olho na tela outro na garrafa de cola que escondeu na esquina da livraria. Enquanto está falando e desenhando parece tranqüila, mas basta algum dos meninos se aproximar do seu objeto que ela denuncia o plano secreto num berro:
- Hei, largue isso daí que é meu! Ôxe, de hoje que eu tô escoltando pra você vir e levar é? Nada disso.
Quando Andresa ou qualquer um dos meninos sustenta uma conversa como nesse caso, com o tubo de cola escondido é comum ouvir um: “Tia, dê uma licencinha que eu vou ali dar dois pau e volto”. Dizem que é respeito de não fazer na frente. Mas esse cheiro de realidade-ilusão-desinibição-vertigem-tontura às vezes enjoa. Depois eles voltam doidos e continuam a falar e ouvir, sem nem saber direito o que estão fazendo.
Mas ela não vai buscar o tubo. Só dá seu recado de longe e é respeitada. Fica no desenho e no papo, no desenho e no papo, abrindo sobre si, como outros já tinham feito. Está à vontade para falar. Diz que seu nome na identidade não era seu nome de verdade. Seu nome de verdade era seu nome de putaria. Se eu queria ouvir? Mas sendo de putaria, podia mesmo assim? Então lá vai:
- Andresa Pier da Silva Xavier. Trique-Trique. “Navaiada”. Ponta de faca. Três “fôia” de eucalipto. Quem tem, tem. Quem não tem, beleza. Conhecida como Bitete, ou seja, Andresa. Cu de chupeta. Que dá e deseja. Cu rápido, Cu Ligeiro, Cu de Treme -Treme. Meu telefone é 366 meia mole meia dura. Ligue pra mim e me diga como você é. E entre no site das bichas, dábliu, dábliu, dábliu ponto lacraia ponto com ponto bê erre.
(Artifício de rua. Outra vez liberdade de rua. Sonho. Tem dias em que deixo a rua com essa sensação).
Era só mais uma dura
Resquício de ditadura
Mostrando a mentalidade
De quem se sente autoridade
Nesse Tribunal de Rua
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