A van cinza de placa jnu 0839 estaciona na esquina da praça Brasil, na Pituba


O que chamam realidade, ainda que borrada



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O que chamam realidade, ainda que borrada

Nesse dia, tem pouca gente na praça. Imaginei outros chegando, o que não acontece. A áurea de magia-medo-ansiedade da primeira vez ganha corpo firme. Ou pelo menos um que fosse possível tocar. Piso no chão, sem divagar-adivinhando-matéria. Já não estou ali por nada, estou por mim.


Clima meio pesado: todos, com exceção de Jadson se aplicam muito na cola. Mas ainda assim, participam das atividades. Jogam peteca com uma mão, com a outra seguram a garrafa enfiada por dentro da camisa. Tentamos inventar uma regra para dispersar: só vale jogar com as duas mãos.
Nem sempre funciona.
Nesse dia conheço Renatinho, um menino tão bonito e esperto. Cabelo liso caído nos olhos cansados e muito expressivos. Aspecto de abatido, triste. Deve ter 14 anos. Briga com Jadson por causa de alguma coisa que ninguém entende, se estapeiam com raiva e cansaço.
Descubro que Jadson gosta de atenção toda voltada para ele. Não sabe dividir. Qualquer coisa que não seja só para ele não serve. Dá calundu. Diz que vai embora. Atenção é muito quando se tem tão pouco.
Superado o episódio, os meninos vão para junto de um papel metro que é colocado encostado no muro do prédio da vizinha das cascas de frutas podres. O muro ao lado de uma livraria. O papel metro serve ao mesmo tempo de tapete e tela para uma dinâmica que mostra como se expressam em palavras escritas e em desenhos.
Aparece Vanessa, uma menina magrinha, negra, andrógena, também perto dos 14. Talvez menos. Meio dentuça, com olhos perdidos, mas uma alegria zonza, de quem está sempre cheirada. É conhecida como “Vó”:
- Foi o finado marido de minha madrinha quem botou esse apelido. Acho que é porque eu demorei muito para andar e também porque eu fui criada com minha avó.
Ela esquematiza seu desenho. Uma casa de telhado cor-de-rosa, paredes azuis, três janelas laterais. Casa número 98, rodeada por diversos coraçõezinhos amarelos, dois deles contornados de verde.
-Tome, tia. Se gostou, leve para você.
Uma menina que não mora na rua, mas passa boa parte de seu dia assim. Ela e seu bando (na matéria, a gente batizou de Capitães do Asfalto) ficam grudados, brigando e tratando de se defender da cidade que não abre muita brecha. O cheiro da cola é de estampido na cabeça. Zuíiiiiimmmmm, para quem presta atenção, em gargalhada desconexa.
Ninguém acerta colocar a camisinha na prótese outra vez, mesmo com o jeito de Joselito de falar com eles, tão próximo. A cola dopa.
Chega Pedro, 17 anos, alto, bonito, moreno. Pedro, que depois iria contar como se envolveu com gangues no interior da Bahia e veio fugido para a capital. Pedro, que nesse dia específico não dizia nada pronunciável.
Renatinho coloca a camisinha até nos testículos. Todos rasgam a embalagem com os dentes e riem sem parar. Jadson, que parece muito mais velho do que é, pela maneira como se comporta, se aproxima criticando a cena.
Hora de ir. Fico lembrando de uma conversa com a coordenadora da UNAIDS (órgão que se dedica ao estudo e combate à epidemia do HIV), Vera da Ros, que disse uma coisa tão simples: “Se cada setor da sociedade fizesse seu trabalho, talvez a situação não chegasse a extremos”.


Lembro que um dia o Guina me falou.

Que não sabia bem o que era amor.

Falava que quando era criança.

Uma mistura de ódio, frustração e dor.

De como era humilhante ir pra escola.

Usando a roupa dada de esmola.

De ter um pai inútil, digno de dó.

Mais um bêbado, filho da puta e só.

Sempre a mesma merda, todo dia igual.

Sem feliz aniversário, Páscoa ou Natal.

Longe dos cadernos, bem depois.

(Eu tô ouvindo alguém me chamar – Racionais MC´s)
16 de dezembro. Duas semanas mais tarde. O Consultório prepara uma festinha de Natal e Ano Novo para os meninos. Eles tinham sugerido um amigo secreto, mas como iam comprar os presentes? É melhor uma reunião mais simples - até porque está perto do recesso de festas de fim de ano e os meninos só encontrariam o Consultório de novo em janeiro.
Na surpresa tem refrigerante, bolo de chocolate, pãozinho e bala. Extraordinariamente, pede-se que os meninos deixem a cola só um pouquinho e prestem atenção na dinâmica, na dinâmica da comemoração. Acontece uma auto-avaliação do trabalho que o Consultório estava fazendo até aquele dia.
O mesmo espaço do papel metro usado para desenhos vira um círculo com todos os olhos atentos. Patrícia, psicóloga e assistente social do Consultório, que coordena aquela atividade, pergunta:
-O que vocês estão achando da gente aqui? O que estamos fazendo? E qual o resultado disso?
As respostas vêm diferentes e aos poucos. Para Renatinho, “ajuda a gente a parar de usar droga”. Para “Michele Fáife”, 17, travesti e de longe, uma das personagens mais sui generis de todos os meninos que encontrei com as visitas com o Consultório, “vocês ajudam a gente a sair da rua”.
O discurso fica por aí. Um dos meninos conta como já tinha experimentado muita cola e rouphynol (tranqüilizante) e como tinha melhorado depois de um tratamento em uma casa de reabilitação. Agora continuava na rua, mas não usava mais nada. Michele contesta:
-É tudo mentira sua, seu cínico. Você vai dizer aqui que não usa mais nada não, é? Você está é a fim de mentir para as tias aqui do projeto, renegando seu passado!
Furiosa. Alta. Espalhafatosa. Faladeira. Michele não aceita que algum deles possa ter saído do vício e estar ali no relato do que aconteceu. Outra garota, Viviane, de 16 anos, chega com o marido a tiracolo. Ela, muito mais agressiva tenta explicar o que acontece:
- Droga é ilusão, gente. Eu poderia estar aqui com um baseadão e na hora ia ser irado, mas depois ó, ia ficar com a maior cara de idiota, sem ter o que fazer. Podia ganhar R$ 50 e ao invés de comprar uma roupinha para mim, uma saia, ia comprar era uma lata de cola e cheirar toda. E aí depois, quando eu ficasse com fome, como é que ia ser? Aliás, nesse ponto, a maconha ainda é melhor porque faz a gente comer, mas a cola não, você fica secando, e só fica naquela.
Fagulha acesa. E Michele acaba confessando. Isso entre os solfejos de músicas “eruditas” que ela mesma inventa ou sua história de sonho de fazer uma oficina de dança. Ela confessa que usa crack, que tinha o hábito de “ficar na Praça da Piedade se dopando de pedra”. Por isso tinha resolvido “se juntar com a barreira da Pituba, que aqui não tem isso não, pelo menos”. Lá era cola, maconha, cigarro e cachaça. Nem pedra nem pico.
A festa do Natal pára nela. Essa figura hilária vestida em um top vermelho e equilibrando brincos enormes, segurando uma bolsinha de propaganda, é perfumada e falante, mas tão falante, que toda hora tem que ser interrompida.
-Vou ficar quieta tia, pode deixar. Mas a senhora tem que ver, quem é que faz a alegria da barreira aqui se não sou eu?
Enquanto fala, ela parece nem ouvir os “cale a boca aí um pouquinho, Michele”. Ela canta, dança, faz performance. Outra vez a questão da atenção. Aproveita para justificar o apelido (o nome da identidade não fala de jeito nenhum): “porque você sabe... Michele Fáife foi a primeira atriz brasileira a fazer aquele filme Batman, o retorno. Fechação, mona!”.
Mais silencioso, discreto e quase imperceptível está Eduardo. O menino tem apenas 10 anos. Negro, caolho, doce. Ele pede a Leiliane para escrever uma carta para sua mãe, aproveitando que é Natal. Vai ditando o texto enquanto a psicóloga anota. A carta fica mais ou menos assim:
Mãe,

Queria dar um presente lindo à senhora, algo como uma jóia nesse Natal. Mãe, eu minto para as pessoas e digo que a senhora morreu e que foi seu Antônio quem te matou, mas é porque eu não quero voltar para casa. Te amo.

Um beijo,

Eduardo.


O momento pára diante do texto. E do olhar doce de Eduardo dizendo que queria muito ser adotado, sair da rua. Na verdade, ele queria “voltar para dentro da barriga da mãe e nascer de novo”.
(A imagem de Jadson vai e volta como referência de história. Por que será que Eduardo não podia voltar para casa, por que será que ele tinha que matar a mãe em uma mentira ou querer nascer dela outra vez?).
Só depois de falar, discutir, criticar, é que os meninos vão saber que há um lanche. “A ceia da Larica”, brinca Michele.
- Vocês querem fazer alguma coisa antes de comer?

- A gente quer rezar um Pai Nosso.


Brinde com coca-cola e fanta. Patrícia sugere que cada um faça um pedido. Sair da rua é unânime.
O lanche é divertido. Muita gente se amontoa atrás do estagiário de medicina que é o fotógrafo dessa noite. Jadson já está ausente há duas semanas. Miriam traduz o sentimento de saudade e alegria:
-É triste quando eles deixam de vir porque você cria vínculos, mas ao mesmo tempo é maravilhoso quando eles voltam para casa.
Vó escreve um texto sobre felicidade, amizade e amor. Michele desenha uma árvore de Natal e um anjo, que deseja força de vontade, paz, alegria e esperança. Um anjo gordo que sorri de olhos fechados. Mas é um sorriso triste. A cidade está toda iluminada. Em alguns apartamentos, meninos da idade de Eduardo pensam em papai Noel como uma certeza.

De qualquer sorte, como Michele diz, eles inventam alegria de algum lugar. Ela mesma chega folheando um livro de história para alegrar as pessoas. Um livro “da época em que me dopava no Balbininho”. São coisas da cultura negra, histórias de candomblé. Alguém já viu papai Noel negro?


Pois as vozes ultrateatrais de Michele criam um. Voz de narrador forçando a barra, mãos que inventam gestos para todas as palavras, se não for exagero, expressividade para todas as letras. E lá vai ela:
-Nos anos passados, quando os navios negreiros aportaram aqui trazendo os primeiros escravos para o Brasil, na época colonieza (sic)...
Despedida. Até o ano que vem. “Antes de ir, tia, aprenda aqui um truque de viado”, diz ela afobada e sorrindo. “É um cumprimento feito em etapas. Estenda a mão, que deve encontrar a minha e então: Bata, finja que bata depois se congele”.
(Congelada até esperar o momento de voltar?).
Organizando esse trabalho, acho uns versinhos de Drummond e lembro que daqui a pouco é Natal outra vez. E os meninos continuam lá.
Procuro uma alegria

uma mala vazia

do final de ano

e eis que tenho na mão

- flor do cotidiano -

é vôo de um pássaro

é uma canção.

(Poemas de Dezembro – Carlos Drummond de Andrade)
No olho da rua. Na mão, no pescoço, nas palavras. No tabuleiro da rua. Os carros que passam, os seres urbanos, os que ficam entre muros de concretos sem retina. A quarta parede de tantas representações. Um bairro, os mundos. As máscaras e os óculos para olhar para eles.
O esgoto aberto, um braço magro aberto, lascado de pedra por incompreensão. Mas ela vai dar risada com seu biquíni de coquinho. Gostou do truque hein, tia? Semáforo. O homem verdinho do sinal. Meu vocabulário aberto e verde.
Encontro Michele Fáife no Mercado do Peixe algumas noites depois da confraternização do Consultório, algumas noites depois do Natal. Na produção de uma lady, seios irreconhecíveis no truque do sutiã de enchimento.
- Sente na minha mesa, tome uma cerveja comigo, tia. Eu pago.
Sento. E sei bem que estou ali fora do guarda-chuva do Consultório.
Com ela, mais três meninas, também muito enfeitadas, mas que não passam dos onze anos.

Michele conta que os seus vizinhos lascaram seu braço com uma pedra, porque lá eles não gostam de viado. Diz que foi ao Hospital Geral do Estado e que no fundo não está nem aí para quem fez isso nela. O braço pode infeccionar. Ela não dá importância.
Quer dançar, cantar, as meninas fumando cigarros e bebendo cerveja, como umas quase adultas, independentes e livres. Contam que estão na escola. Michele eu sei que não está.

A noite não tem hora para acabar para elas, que não sabem o que vão fazer depois dali. Digo que quero voltar para o projeto, ela me promete uma lista de abaixo assinado caso seja preciso.
Sorrio.
Depois ela me sugere que eu vá ao mar, colocar umas flores para Imenajá, que estou em dívidas com ela.
-Tá bom, Michele, eu vou. E você, trate de se cuidar, menina.
Ela não me promete nada, pelo contrário. Sorri e fica triste, depois volta a sorrir de novo. Está dispersa. O machucado em seu braço é feio, ela nem liga. Tudo o que quer falar é sobre a oficina de dança, sobre a vontade de dançar imensa que mora dentro dela e que não sabe o que fazer.
Onde encontrar ajuda, daqui a pouco faz 18 anos e aí as coisas ficam mais difíceis. Diz que vai insistir, perseguir essa vontade que não passa. Uns meninos sentam-se à mesa, ela apresenta a todos, a cicerone da noite. São todos amigos. Demora um pouco e nos despedimos, na sua vontade de dança, na noite acabando quase de manhã.

Desde a primeira visita com o Consultório de Rua até o dia 13 de julho de 2003, mais um hiato. Novo dia da semana. Nova praça. É quarta-feira e o encontro dessa noite é na Praça Conde dos Arcos, no Comércio. Novas pessoas na equipe.


Na rota da van, um novo recorte da cidade. Desce pela avenida Contorno. Ao invés das praias da orla, a Baía de Todos os Santos. A praça com a escultura de duas mãos gigantes em material dourado, com o mapa do Brasil decalcado em suas palmas. É um dos bairros que o Consultório visita desde 1999, dos mais antigos.
Mas há um mês a equipe não vai ali. Por causa das chuvas, feriados, imprevistos. Marcão, que na rua é O Rasta, motorista e agente de saúde que trabalha naquele dia (mais antigo no serviço do que Joselito) explica: ao contrário da Pituba, a maioria dos meninos que está naquela praça tem uma família e está na escola, mais preocupada em usar preservativo, menos perto das drogas.
No bairro logo acima, o Pilar, de onde a maioria vêm, há os problemas de toda periferia. Mas, a sensação mais nítida é que as pessoas que se reúnem na Conde dos Arcos formam uma atmosfera de cidade do interior. Chegam pais e mães deles, tios, tias, todos próximos e vizinhos, senhores, senhoras, crianças bem pequenas, algumas até de colo.
Tarcyo, o estagiário de medicina que está no lugar de Adriano, explica que tem sido crescente o número de encaminhamentos que o Consultório faz para o Centro de Orientação e Apoio Sorológico (COAS) para que façam exames como o HIV e preventivos. O papel social do Consultório também é forte nesse local. Muita gente procura a equipe para ajudá-los a tirar documentos como certidão de nascimento ou carteira de identidade.
Ele conta também como a distribuição de camisinhas naquela e em outras áreas de atuação do Consultório, às vezes, é prejudicada pela maneira como as pessoas tratam o assunto. Curto e grosso: camisinha vale dinheiro e é moeda de troca para alguns que entram na fila. Nada generalizado, mas tem acontecido com mais freqüência. Tarcyo:
- Outro dia me espantei porque uns meninos de sete para oito anos queriam pegar camisinha e eu fiquei sabendo que eles vendiam todas depois. É que nem cigarro em presídio.”
Marcão lembra que há alguns anos, em um dia que ele tinha faltado às atividades, um sujeito chegou intimidando a equipe e acabou levando toda a caixa de preservativos. De assalto.
Mas há quem chega também pelo lápis de cor, pelo timbau, pelo cavaquinho de Marcão, pela conversa. Algumas meninas que fazem programa vêm cheias de batom, querem as camisinhas, mas também querem falar sobre suas angústias, seus clientes, suas vidas. Travestis, que quanto mais a experiência com o Consultório cresce, me fazem acreditar que são meninas que nasceram como meninos.
(Lembro de Michele, que, me disseram, voltou para o Centro Histórico e fica por lá guardando carro e usando muito do que disse já ter parado de usar)
Nessa quarta chega Binho, 13 anos. Montado em uma bicicleta, jeitinho bem adolescente. Mora com a mãe e mais três irmãos. Estava na escola, fazendo a sexta série. Binho, moreno, perfumadíssimo e com um cabelo meio VO, raspado em baixo e todo encaracolado e molhado de gel em cima. Sorriso de ficar girando na memória, por muito, muito tempo. Marcão o cumprimenta e não perde a deixa:
- Gostei do estilo!

- Ah, esse cabelo aqui... Aqui já foi de tudo. Topete, loiro, loiro e preto, espichado, careca...- responde meio tímido.


O menino vai contando suas histórias. Gosta muito de andar de bicicleta e jogar bola, aliás, para falar a verdade mesmo “está batendo um bolão”. O outro mimo é o pagode. A escola, bem... Perdeu de ano no ano passado, mas jura que esse ano as coisas vão melhorar:
- Ah, véi, você gasta com roupa, farda, caderno para perder. Aí é barril.
Do lado da bicicleta, Marcão organiza um pagode. Tem cavaquinho, percussão e voz. Os meninos mais velhos, incluindo os irmãos de Binho vão se chegando. André, um estudante de música de São Paulo, integra a equipe como monitor de oficinas de música. A muretinha lateral da praça vira arquibancada de samba.
A atmosfera de cidade de interior se desenha nos bares ao redor, no som mecânico e naquele sambinha-pagode-chorinho improvisado. Binho aproveita para contar a história de sua banda. Que começa assim: um amigo dele achou um dinheiro.
- Como assim achou?

- Bom, ele nunca me disse como conseguiu, então para mim ele achou.


Pois bem, esse amigo que achou o dinheiro foi em uma feirinha ali perto e comprou um celular usado. Depois vendeu o mesmo telefone na Feira do Rolo (Baixa do Fiscal) por R$40.
-Aí eu disse: ô véi, já que você tá com essa ponta aí, compre um instrumento.
O amigo seguiu seu conselho e com o dinheiro do celular vendido comprou um tamborim. Binho tratou de pedir à sua mãe um pandeiro. Depois outros amigos chegaram com a marcação, o cavaquinho, a caixa e a banda estava pronta. O microfone também veio da Feira do Rolo e assim aconteceu o primeiro ensaio da Banda Geração, na laje da casa de um dos integrantes.
Mas ter uma banda é um processo. Aos poucos, os meninos foram criando empecilhos para ensaiar. Continua, Binho:
- Pensei logo: ah também não vou ficar adulando ninguém não. Fui no ferro velho, vendi a marcação por cinco reais e quando os caras vieram com o papo de vamos ensaiar eu me fiz de besta e disse que nem sabia onde estavam as coisas...
E assim termina a incrível e meteórica história da Banda Geração. Que quer voltar. Mas não sabe a hora. Por enquanto, no coração do menino, o futebol está ganhando. Ele tem muitos sonhos.
A Praça Conde dos Arcos tem uma energia que em quase nada se parece com a da Pituba. São histórias de gente que têm referência. Prova disso é o papel metro (tapete e tela) que junta crianças de até dois anos de idade.
Roda de lápis de cor para os pequenos. No final da noite, um senhor de quase 70 anos chega perto. Se ele quer fazer algum curativo ou marcar uma consulta? Não, ele quer só pegar um preservativo. Simples: ele “continua amando”.
Segunda-feira, dia 28 de julho de 2003
Hoje não aconteceu a atividade do Consultório. Fui para a Perini da Pituba, esperando a carona da van (porque é interessante que cheguemos juntos, como equipe), mas a van não passou. Depois fiquei sabendo que tinha quebrado.
Encontrei Gina, uma estudante de Barcelona que estava visitando o projeto. Trocamos informações sobre o que estávamos fazendo e foi bem interessante. Ela já esteve com o Movimento Sem Terra e tem umas propostas legais de trabalhos sociais.
Resolvemos ir até a praça Brasil para ver se os meninos estariam lá. À espreita, já que não podíamos chegar sem os outros. E sim, eles estavam lá em um futebol organizado no meio da rua.
De longe dava para ver que a cola ia ser rainha daquela noite e não dava nem para avisar que o Consultório não ia. Eu sabia que outros dias da semana eles não se reúnem ali, não naquele número. Eles estavam esperando.
E a única coisa que pude fazer foi entrar num ônibus e ir para casa. Paciência.

Noite de terça-feira, o destino é Itapuã, bairro que também está entre os primeiros visitados pelo Consultório. A primeira visita à Itapuã acontece na van do projeto Redução de Danos (a van do Consultório ainda está quebrada). Esse projeto também é coordenado pelo Cetad, mas desenvolve um trabalho mais direto em relação a drogas em bairros da periferia de Salvador, lidando com traficantes e usuários inclusive de drogas injetáveis.


Um pouquinho depois da sereia, um pouquinho antes de Cira. Entre o orixá e a baiana. Lá o Consultório é família, pedra, corrente, coligado, parte, irmão, o escambau. As pessoas se conhecem pelo nome, suas histórias já são casos antigos. Lição do dia: sentar na calçada e ouvir.
O ponto de encontro é na frente de um shopping, mais precisamente no estacionamento desse shopping. E é lá, guardando carros, que aparece o primeiro personagem. Carlos Sérgio, vinte e poucos anos, lutando para segurar as vagas e os clientes enquanto conversa com a equipe do Consultório.
Ele exibe orgulhoso a sua invenção. Um mini robô, que funciona como uma máquina para vender queijo coalho. Ele super produziu o alumínio usado pelos outros vendedores para colocar a brasa. E é assim que Carlos Sérgio orgulha-se em ter cardápio, garfo, faca, prato e até guardanapo para vender esse queijinho. Itapuã também abriga figuras.
Chega um alto e magro, cujo apelido é Secão e diz que um amigo está preso porque tinha tentado roubar um toca-fitas de carro, ali na área mesmo. Flagrante. Diz o narrador:
- Sei bem como é na DP que ele está. Ladrão toma tanta porrada, mas tanta porrada que chega a cuspir sangue.
É com esse tipo de realidade que o Consultório trabalha em Itapuã.
A propósito, novo parêntese para apresentar outros membros da equipe: Norma (psicóloga), Fernanda e Honório (estudantes de psicologia) e Tereza (estudante de psicologia), que trabalham no clima marítimo logo ali à frente e no fervilhar do bairro à noite.


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