Voltando ao início do texto, com certeza termino esse projeto com a sensação de que vivo em uma cidade dividida em muitas outras, muitas das quais meus olhos ainda não viram, outras que já conseguem enxergar. A rua, a vida urbana, perdeu seu lado exótico para se transformar em circunstância palpável, com características bem próprias.
A Pituba é vizinha da imensidão do Nordeste de Amaralina, Aquidabã é colada ao cartão-postal do Pelourinho, o shopping onde os meninos costumavam se reunir em Itapuã é a sede de um curso de inglês, língua seleta para os que pagam.
Depois de quase um ano (interrompido, recomeçado) vejo a rua de olhos abertos. Como vejo também os que estão na rua (de passagem ou pouso fixo). Aprendi que não se pode dar ao outro aquilo que não se tem. Mas que a demanda existe e vai existir sempre. Descobri as pessoas através de suas histórias.
A mim também não interessa que drogas os meninos usam e do que se dopam, não tanto quanto como vivem, o que querem, com o que sonham. Vejo a sociedade em sua estranheza batendo as portas imaginárias na cara deles. Fechando rápidos os vidros dos carros. E ainda tem os capítulos da polícia (para quem precisa), que são tão difíceis de comentar...
Foi uma redescoberta do que julgava certeza. Aprender a olhar nos olhos dessas pessoas, que às vezes querem ouvir só um "bom dia, tudo bem com você?". Nada de alimento para ilusão, mas um gesto simples que pode dizer algo grande.
Quando hoje eu passo por esses lugares ou encontro essas pessoas em outros pontos da cidade, sinto que aos poucos se mexe um trilho. Há o que está estático, mas não há o imutável. E é nisso que acredito e aposto. No redirecionamento do olhar. Em uma ampliação da profundidade de campo.
Apesar de nossa referência aos “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, percebo como a distância entre a realidade atual e o relato do escritor baiano é abissal. Há uma banalização coletiva de tantos fatores sociais: violência, sexo, drogas, família. Mas, ainda assim, a convivência com esses meninos me mostrou que o desejo deles é o mesmo. De ter direito a ter um sonho, ainda que a realidade vire um monstro e o devore em poucos segundos.
Derrubei alguns dos meus tabus, medos e preconceitos. Acho que aprendi não só a ver o óbvio, mas a enxergar o que está atrás dele. Não quero que as pessoas se acostumem com o estado de miséria e sofrimento umas das outras. Nem vivam um faz de conta, com anestésicos físicos e psíquicos. É bom saber também que aprendi o que não quero mais fazer.
Não quero mais fingir que as coisas não estão acontecendo. Como também não quero comprar essa angústia de tentar resolver o mundo. Ela ficou lá atrás, no primeiro semestre da faculdade, nas aulas de redação de colégio. Quero sim, o exercício de uma profissão que tenha consciência de sua importância como agente transformadora. Que pode ajudar a situação a sair do lugar e se a maneira que escolhi para isso foi sem amarras burocráticas (e não utópicas) ainda melhor.
Guardo um verso dos Racionais MC´s, lembrando de Jadson e do começo dessa história:
Mesmo sendo o lado esquecido da cidade.
E bode expiatório de toda e qualquer mediocridade.
A sociedade já não sabe o que fazer.
Se vão interferir ou deixar acontecer.
Mas por sermos todos pobres os tachados somos nós.
Só por ser conveniente.
Hey, boy! - hey boy
(Hey, boy)
E, ainda acreditando no poder de transformação das palavras, escolhi uma passagem dos "Capitães da Areia", de Jorge Amado, uma história que se mostra ainda atual em Salvador e com certeza em outros cidades do Brasil.
“Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas”.
Comparando com os nossos Capitães do Asfalto, é claro que vez por outra há agressividade. A rua não é fácil. Mas há sim também doçura, poesia, uma mistura de falta com a sensação de que, quem sabe, pode ser possível sair dali. E eu quis que essas histórias mostrassem isso.
A van cinza de placa JNU 0839 estaciona na esquina da praça Brasil, na Pituba. É novembro de 2002 e o bairro de classe média de Salvador foi remodelado não faz muito tempo. Seu novo aspecto meio futurista quase que esconde o mesmo lugar na cidade onde meninos e meninas perambulam com uma garrafinha de cola na mão. Uns guardam carros, outros vão tentar a sorte no malabarismo das sinaleiras. Tem quem troca sexo por dinheiro.
E quem não come, quem cata lixo, quem dorme em papelão, apanha da polícia, é escorraçado de porta de loja. Tem quem experimenta gente atravessando a rua só para não passar perto. E eles, que também têm medo, também têm sonho. E arrumam filho antes do tempo e saem de casa para não apanhar mais, mas apanham na rua. Liberdade de rua. Solidão de rua. Utopia de escola.
O polêmico mármore da reforma e a fonte luminosa que toca música erudita na Manoel Dias da Silva não levaram esses meninos embora. Pelo menos não do pacto de segunda-feira, que está firmado entre eles e a equipe que vem dentro da van. Perto de oito da noite os meninos se juntam para esperar o carro que traz ouvido, conselho, música, papel, caneta, camisinha, mertiolate, band-aid, peteca, fantoche, fotografia. E que vem por causa deles.
(Qualquer pauta, entrevista, pesquisa ou suposição fica suspensa em um primeiro contato. Saltar da van e andar até ali é ver mais uma vez a cidade repartida chamada Salvador. Quantas realidades cabem em um nome?)
Aquele não é o primeiro encontro. Muita gente que senta na praça para esperar sabe que a van traz a equipe do Consultório de Rua, projeto do Centro de Estudo e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad/Ufba).
Um projeto com uma idéia simples: levar aos meninos e meninas em situação de rua da cidade informações sobre doenças sexualmente transmissíveis, incluindo a AIDS, e sobre o uso de drogas. Cada dia da semana, um bairro diferente. Os primeiros bairros começaram a ser visitados pela equipe do Consultório em 1999. Segunda-feira é o dia da Pituba. Mas esse é o aspecto mais primário de todos. Aos poucos percebo que a van leva e traz atenção, tempo para falar e ouvir, tempo em uma cidade que se acostumou a tratá-los como invisíveis. Sem assistencialismo.
Chegar até ali, me faz pensar naqueles momentos de vidro de carro fechado no semáforo. Mas justo pelo outro lado, o lado de fora. Um lado que tem tanta vida quanto qualquer motorista. Basta olhar. Só isso.
(Aqui vale uma pausa, na verdade um flash back e um comentário da história. O narrador é Antônio Nery Filho, médico, presidente do Cetad e idealizador da coisa toda)
Tudo começou com uma experiência que desenvolvi no final dos anos 80 chamada "Banco de Rua". Observava e interagia com crianças e adolescentes que viviam na Praça da Piedade. Mais tarde, vendo o ônibus do projeto "Medecins du Monde", em Paris, percebi que poderíamos juntar as duas experiências. Então com o apoio da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social, adaptamos a van, escolhemos quatro áreas onde ficavam mais meninos nas ruas e passamos a atendê-los, isso já no final dos anos 90.
Acho que o Consultório de Rua é hoje uma das melhores atividades do Cetad, na medida em que envolve clínica, educação para a saúde, antropologia, medicina, direito, etc. Nossa convivência com as crianças e adolescentes, sem preconceitos nem soluções mágicas, nos permite trocas valiosas: um curativo, uma carteira de identidade, uma pergunta respondida (por nós e por eles), a distribuição de preservativos, o tratamento de uma DST, a escuta de uma história nunca contada (por falta de orelhas competentes para ouvir).
Tudo isso fez o Consultório ter sido escolhido como Atividade Curricular em Comunidade (ACC), pela Pró-Reitoria de Extensão da Ufba, envolvendo dez diferentes estudantes por semestre, o que é também muito importante. Para mim a nossa conquista é o respeito das crianças e adolescentes de rua, nos tornamos referência para muitos deles. Dificuldades: falta de recursos permanentes. (atualmente, além do Ministério da Saúde, temos apoio da Secretaria de Combate à Pobreza).
Mas não é fácil. Porque a sociedade necessita de "culpados" para muitos dos fenômenos que ocorrem como resultado (complexo) das interações humanas. Atualmente o tráfico, drogas e drogados estão neste lugar. Por mais que proponhamos esclarecimentos, informações, a resposta é muito pequena: ninguém quer ouvir que o rei está nu.
(Podemos voltar à visita agora)
Tagarelice de anjo
O primeiro a chegar é um espoleta. Parece que engoliu a pílula de Emília. Cheio de ginga, magrelinho, boné enterrado na cabeça, um quilo de gíria em tudo o que diz. Menino dos trejeitos. Vai logo exibindo a tatuagem borrada no braço e se explicando:
-É uma mulher, mas eu queria fazer com asa. Queria um anjo.
As atividades do Consultório têm uma dinâmica definida, embora não engessem nenhum dos meninos ou dos profissionais que estão trabalhando. Pelo contrário. Aos poucos, cada um descobre o que fazer, mesmo que fuja do programado. E é com essa liberdade que Jadson, 13 anos, chega todo cheio para falar de si.
Começa meio na provocação, quer falar, mas ainda está cabreiro. O jeito é não forçar a barra, mesmo querendo muito ouvi-lo. Demora um bocado apontando as coisas, jogando peteca, até se aconchegar. Está na rua, fugindo da violência de dentro de casa.
-Mas a rua não é violenta?
-É, mas lá em casa é pior.
Veio do interior da Bahia ("a cidade não é longe daqui, eu é que não volto mais pra lá") para morar com a avó no Pau da Lima há menos de um mês. Deixou a mãe e o padrasto. Na casa da avó encontrou tios valentões, que por qualquer coisinha batiam nele.
-Eu não podia dizer nada, fazer nada que era um tapa, um murro. Tinha vezes que eles me batiam até sem motivo. Todo dia.
-E sua avó?
-Ah, ela ficava com pena de mim, né? Mas o quê que ela podia fazer, coitada?
De vez em quando, no meio da fala, ele se dispersa, critica alguma coisa, tira o boné e cobre o rosto, disfarçando a lágrima que fica entre cai e não cai. Depois continua. Como a avó não podia fazer nada, inventou uma mentira. Disse que ia voltar para a casa da mãe no interior e foi embora. Tinha saudade e sabia que ficar na rua era difícil, mas decidiu sair.
Conseguiu um bico como empacotador em um supermercado ali perto e foi assim que conheceu Dona Aparecida, uma senhora que trabalhava em um apartamento ali mesmo na Pituba e ouviu a história do menino enquanto ele ajeitava suas compras nas sacolas. Ela lhe deu espaço para dormir (um quartinho na portaria do prédio) e mais comida, roupa e um pouco de atenção.
-A avó da rua?
-É.
(Alguns silêncios são constrangedores)
-Na rua a gente vê muita coisa. Até no bairro que eu morava eu via. A polícia mesmo não considera a gente. Já entra atirando. Quando eu tinha nove anos vi um amigo morrer assim. Tomou um tiro da polícia. Eu também já tomei tiro, mas foi de raspão. Quer saber? Eu acho que está tudo errado.
(Menino convicto, mas não olha nos olhos)
Lá na frente, a psicóloga, a assistente social, o estagiário de medicina e o agente de saúde do projeto exercem suas funções. Um curativo aqui, um álbum seriado mostrando fotos de pessoas com doenças sexualmente transmissíveis ali. Explicar uma gonorréia com imagens é incentivo de camisinha, com certeza. Jadson olha ao redor.
Nesse primeiro dia eu ia descobrir que a Pituba, de todos os bairros visitados pelo Consultório de Rua, é o que mais tem problemas com a cola de sapateiro.
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