A voz do passado



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Uma das razões básicas logo se evidencia quando examina­mos o campo de ação da tradição oral nas sociedades pré-letra­das. Nesse estágio, toda a história era história-oral. Tudo mais, porém, também tinha que ser lembrado: destrezas e habilidades, o tempo e a estação, o céu, o território, a lei, as falas, as transa­ções, as negociações. E a própria tradição oral era muito variada. Jan Vansina, em seu clássico Oral Tradition: a study in historical methodology (1965),2 dividiu a tradição oral africana em cinco categorias. Em primeiro lugar, há as fórmulas - fórmulas de aprendizagem, rituais, gritos de guerra e outros, os títulos. A se­guir, há as listas de nomes de lugares e de nomes de pessoas. Vem, em seguida, a poesia oficial ou privada - histórica, reli­giosa ou pessoal. Em quarto lugar, há as narrativas - históricas, didáticas, artísticas ou pessoais. Finalmente, há as memórias, le­gais e de outros tipos. Nem todas essas categorias se encontram em todas as sociedades africanas. A poesia oficial e as narrativas históricas, por exemplo, só aparecem quando há um grau relati­vamente elevado de organização política. Não obstante, na maio­ria das sociedades, existe normalmente um leque muito amplo de evidência oral. A importância social de algumas dessas tradições orais resultou também em sistemas confiáveis para sua transmis­46

são de uma geração a outra, com um mínimo de distorção. Práti­cas tais como o testemunho grupal em ocasiões rituais, disputas, escolas para o ensino do saber tradicional e recitações ao assumir um posto podiam preservar por séculos padrões exatos, inclusive arcaísmos, mesmo quando não fossem mais compreendidos. Tra­dições desse tipo assemelham-se a documentos legais, ou livros sagrados, e seus detentores tomavam-se funcionários altamente especializados em muitas cortes africanas. Em Ruanda, por exemplo, genealogistas, memorialistas, rapsodos e abiiru, cada um deles era responsável pela preservação de um tipo diferente de tradição. Os genealogistas, abacurabwenge, tinham que se lembrar das listas dos reis e das rainhas-mãe; os memorialistas, abateekerezi, os acontecimentos mais importantes de cada rei­nado; os rapsodos, abasizi, preservavam os panegfricos aos reis; e os abiiru, os segredos da dinastia. “Sem nós, os nomes dos reis se desvaneceriam no esquecimento, nós somos a memória da humanidade”, proclamavam com razão os cantores de louvores:

‘Ensino aos reis a história de seus ancestrais, de modo que as vidas dos antigos possam servir de exemplo, pois o mundo é an­tigo, mas o futuro brota do passado”.3
Havia também os portadores-de-tradição das aldeias, que, mais freqüentemente do que os especialistas da corte, continua­ram a transmitir as tradições até hoje. Havia equivalentes a eles em muitas outras culturas, como no skald escandinavo ou no rajput indiano. Um dramático encontro com um desses griot da África ocidental foi descrito por Alex Haley no relato que fez da redescoberta de seus ancestrais - mais tarde amplamente divul­gado sob a forma semificcionalizada de Roots (1976). Sua famí­lia tinha uma tradição rara entre negros norte-americanos - a de como seu primeiro ancestral chegara às colônias como escravo
- que incluía alguns detalhes: como fora capturado quando es­tava cortando lenha, que seu nome africano fora Kintay, que cha­mava violão de “ko” e rio de “Kamby Bolongo”; como desem­barcara em “Naplis” e trabalhara com o nome inglês de Toby para seu dono William Waller. No tocante à linhagem dessa famí­47

lia negra nos Estados Unidos, Haley conseguiu obter provas a partir de pesquisas em arquivos, até chegar a um anúncio na Mary­land Gazette, de outubro de 1767, sobre “escravos recém-chega­dos à venda” do Lord Ligonier e sobre urna transferência reali­zada entre os irmãos John e William Waller de “um escravo negro chamado Toby”. Tudo isso, porém, foi posterior ao momento mais alto de sua busca, do outro lado do Atlântico - momento em que, agora nos parece, o entusiasmo talvez tenha ido além do que a evidência permitia. A língua de seu ancestral fora identificada como mandinga e “Kamby Bolongo” como o rio Gâmbia; então, em Gâmbia, ele ficou sabendo que existia um antigo clã familiar chamado Kinte. Até aí tudo bem. A seguir, depois de muito pro­curar, foi localizado, numa aldeia minúscula e distante do inte­rior, um portador-de-tradição do clã, ou griot. Acompanhado por intérpretes e músicos, Alex Haley finalmente chegou até ele: “E, a uma certa distância, pude ver aquele homenzinho de chapéu de copa arredondada e traje de um branco sujo e, mesmo á distância, havia uma atmosfera de ‘importância’ em tomo dele”. As pessoas se juntaram em semicfrculo em tomo de Alex Haley, para con­templar o primeiro negro norte-americano que viam. E depois voltaram-se para o velho:


O velho, o griot, o historiador oral, Kebba Kanga Fofana, de 73 chuvas de idade, começou então a contar-me a história ancestral do clã dos Kinte, do modo como ela tem sido contada através dos séculos, desde a época dos antepassados. Era como se um longo pergaminho esti­vesse sendo lido. Não era apenas uma conversa comum. A ocasião era muito formal. As pessoas ficaram absolutamente silenciosas, imóveis, O velho estava sentado numa cadeira e quando ia falar endireitava-se, seu corpo se enrijecia, os cordões de seu pescoço saltavam e ele emitia as palavras como se fossem objetos materiais que saíssem de sua boca. Falava uma sentença ou duas e relaxava, enquanto faziam a tradução. Da cabeça daquele homem jorravam detalhes sobre a sucessão das gerações, que parecia impossível guardar. De dois, três séculos atrás. Quem se casou com quem, quem teve que filhos, que filhos se casaram com quem e os filhos que tiveram, e assim por diante, simplesmente inacreditável. Fiquei perplexo não só com a profusão de detalhes, como também pelo padrão bíblico em que ele os expressava. Algo assim como: “e fulano

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tomou por esposa sicrana e gerou e gerou e gerou”, e nomeava os espo­sos e seus filhos, e assim por diante. Ao localizar as coisas no tempo, não o fazia com datas do calendário, mas datava as coisas com aconteci­mentos físicos, como... uma inundação.


Assim, passo a passo, o velho relatou a história do clã dos Kinte: como haviam chegado do Velho Mali, haviam sido ferreiros, ceramistas e tecelões, haviam se fixado na aldeia atual, até que, aproximadamente entre 1750 e 1760, o filho mais novo da famí­lia, Omoro Kinte, tomou por esposa Binta Kebba, de quem teve quatro filhos, cujos nomes eram Kunta, Lamin, Suwadu e Madi.
No momento em que chegou àquele nível da família, o griot já havia falado provavelmente durante cinco horas. Havia parado talvez umas cin4ücnta vezes no correr da narrativa... E aí foi feita uma tradu­ção como todas as demais, calmamente, e começava dizendo “Ao tempo em que chegaram os soldados do rei”. Essa era uma daquelas referências para marcar ‘o tempo. Mais tarde, na Inglaterra, procurei ansiosamente descobrir, nos registros parlamentares britânicos sobre o que falava ele, porque eu tinha que ter a data do calendário. Mas naquele momento, no interior da África, o griot Kcbba Kanga Fofana, o historiador oral, con­tava a história do modo como ela fora transmitida durantc séculos, desde a época dos longínquos antepassados do clã Kinte. “Ao tempo em que chegaram os soldados do rei, o mais velho desses quatro filhos, Kunta, saiu desta aldeia para cortar lenha e nunca mais foi visto.” E continuou com seu relato. Eu fiquei imóvel como se estivesse esculpido cm pedra...
Depois de alguns momentos, Alex tirou do bolso seu ca­derno de anotações e mostrou aos intérpretes que essa era a mesma história que, quando criança, ouvira de sua avó no al­pendre da casa dela no Tennessee; seguiu-se, então, uma cerimô­nia espontânea de reconciliação com seu povo, em que ele impôs as mãos sobre as crianças e eles o levaram para dentro da mesquita e oraram em árabe: “Louvado seja Alá, por um dos nossos há tanto tempo desaparecido de entre nós que Alá trouxe de volta “4.
Por inúmeras razões, a identificação de Kinte é muito mais duvidosa do que Alex Haley acreditou naquele momento. Seu griot, que carecia do treinamento tradicional completo, não era

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um portador-de-tradição ideal, mas, como bom griot, buscava no estoque genealógico de sua mente a evidência de que certo pú­blico precisava - e ele pode ter tido, antecipadamente, uma idéia do que Haley queria. Posteriormente, houve variações de detalhes, quando voltou a dar seu testemunho. E, mais importante ainda, as gerações africanas e norte-americanas se ajustam mal - embora isso possa dever-se a uma condensação não incomum em tradição oral - e a referência para a fixação da data é muito frágil para uma região onde os soldados europeus haviam estado presentes durante muito tempo. Porém, se procurarmos em outros lugares, será fácil encontrar outros casos de precisão da tradição oral em sociedades iletradas; na Grécia antiga, por exemplo, onde a exatidão da descrição de detalhes de armaduras obsoletas e listas de nomes de cidades abandonadas, preservadas oralmente por seiscentos anos, até que circulassem as primeiras versões es­critas da Ilíada, tem sido confirmada pelos estudos clássicos e pela arqueologia.


Não obstante, o relato de Haley prova, com grande vigor, o prestígio de que desfrutava o historiador oral, antes que a disseminação da documentação nas sociedades letradas tomasse su­pérfluos esses momentos públicos de revelação histórica. Não pode­mos mais distinguir, como os suaíles, entre os “mortos vivos”, cujos nomes ainda são relembrados na tradição oral, e os inteiramente esquecidos. O genealogista de hoje trabalha em reservado silên­cio no gabinete de um arquivo. A memória foi rebaixada do sta­tus de autoridade pública para o de um recurso auxiliar privado. As pessoas ainda se lembram de rituais, nomes, canções, histó­rias, habilidades; mas agora é o documento que se mantém como autoridade final e como garantia de transmissão para o futuro. Em conseqüência, exatamente aquelas tradições orais públicas e de longo prazo, outrora as de maior prestígio, é que se têm mos­trado mais vulneráveis. Em contraposição, a reminiscência pes­soal e as tradições particulares das famílias, que raramente são postas no papel - exatamente porque a maioria das pessoas não as considera muito importantes para os outros -, é que se toma50

ram o tipo padrão de evidência oral. E, em geral, apenas entre grupos de menor prestígio, tais como as crianças, os pobres da cidade, as pessoas isoladas no campo, é que hoje se coletam ou­tras tradições orais, tais como jogos, canções, baladas e narrativas históricas. E as mais vigorosas recordações comunais são as de minorias perseguidas. As comunidades de lavradores de fala gaélica do Noroeste da Grã-Bretanha lembram-se, como se tives­sem acontecido ontem, dos deslocamentos de rebanhos do século XVIII nas Highlands, que os compeliram a sair de suas antigas cidades para a beira do mar. Na França, as famílias realistas da Vendéia transmitiram durante 150 anos sua narrativa da resistên­cia â República. Ainda mais notável, nos vales protestantes das Cévennes de hoje, as tradições familiares ainda transmitem uma interpretação, mais precisa do que os documentos da época, da guerrilha sem precedentes - e por isso mal relatada - dos camisards (“camisas brancas”), em 1702-4, na qual seus ancestrais camponeses conseguiram deter na baía a armada real de Luís XIV e garantiram a sobrevivência de sua fé. Assim, a. mudança da condição social dos portadores-de-tradição oral está clara­mente relacionada com o prolongado declínio de seu prestígio e, inversamente, com seu radicalismo atual.


Na Europa ocidental isso se deu muito lentamente. Os pri­meiros textos históricos escritos remontam provavelmente a 3 mil anos. Eles fixavam a tradição oral existente sobre o passado distante e, gradualmente, passaram também a registrar as crôni­cas do presente. Exatamente por ter começado tão cedo na Eu­ropa, esse estágio é mais fácil de observar onde aconteceu mais recentemente: na coleta sistemática de tradições históricas dos plebeus pelo historiador real chinês do século III, Sima Qian, e das famílias nobres, determinada pelo imperador japonês no sé­culo VIII; a reunião das memórias dos profetas no mundo muçul­mano do século IX; ou a preciosa documentação sobre a história e a cultura asteca anterior á conquista, feita a partir da memória de velhos por Sahagun e pelos frades franciscanos espanhóis no México, em meados do século XVI. Sabemos, porém, que, a par51

tir de um estágio bastante precoce, houve uns poucos proeminen­tes escritores de história europeus que tentaram avaliar sua evi­dência. O método de Heródoto, por exemplo, no século V a.C., era procurar testemunhas oculares e interrogá-las rigorosa e nu­nuciosamente. No século III de nossa era, encontramos Luciano aconselhando os que tinham pretensões a historiador a buscarem os motivos de seus informantes; enquanto Herodiano cita muitas de suas fontes para indicar a ordem em que as classifica - auto­ridades em coisas antigas, informações palacianas, cartas, atas do Senado e outras testemunhas. E, no início do século VIII, Bede, no prefácio a sua History of the English Church and Peo pie dis­tinguia cuidadosamente entre suas fontes. Para a maior parte das províncias inglesas, teve que se basear em tradições orais a ele enviadas por outros clérigos, mas teve condições de recorrer aos registros de Canterbury, e conseguiu até cópias de cartas dos ar­quivos papais por meio de um sacerdote de Londres que visitou Roma. Porém estava mais seguro da evidência relativa a sua pró­pria Northumbria, onde ‘anão dependo de nenhum outro autor, mas apenas de um sem-número de testemunhas confiáveis que co­nhecem ou se lembram dos fatos, além daquilo que eu mesmo sei”.5


A atitude de Bede em relação à evidência, e seu pressuposto de que podia merecer mais confiança onde tivera a possibilidade de, ele mesmo, coletar evidência oral de testemunhas oculares, teria sido compartilhada por todos os historiadores mais críticos do século XVIII - para não falar nos muitos cronistas e hagió­grafos menos meticulosos que se encontravam entre eles. Nem a difusão da imprensa nem a racionalidade secular do Renasci­mento trouxeram qualquer mudança nesse modo de ser. Isso tal­vez seja menos surpreendente quando nos damos conta de que o estudioso típico antes ouvia do que lia, ele mesmo, os livros im­pressos que se tomavam acessíveis. E nos casos em que a ver­dade era o mais importante, ela tinha que ser falada. Os papas pronunciavam suas palavras finais sobre a doutrina católica ex cathedra: e, quer no inundo cristão quer no muçulmano, os tribu­nais - que muito rapidamente haviam descoberto quão fácil era

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forjar um documento - continuaram a insistir em que as testemunhas deviam ser ouvidas, pois só assim podiam ser interpela­das minuciosamente. Até mesmo registros contábeis deviam ser conferidos em voz alta, ou “auditados”, todo ano. E, na prática, c~ historiadores mais conhecidos continuaram a ser bem menos [Cuidadosos do que Bede. Guiccardini, na Itália do século XVI, por exemplo, evita a citação direta de documentos e tem por certo que sua participação pessoal na época que descreve é sufi­ciente garantia da verdade. A History of the Rebellion and Civil Wars in England (1704), de Clarendon, exibe um tom seme­lhante, embora apenas casualmente se refira à reminiscência, e se tenha dado ao trabalho de examinar as atas da Câmara dos Co­muns relativas aos dez anos em que não fazia parte dela. A history of His Own lIïme (1724), do bispo Burnet, é menos dogmá­fica, mas ainda assim considera fundamenta-lo valor da evidência oral, que manipula com excepcional cuidado. Menciona regularmente os autores de seus relatos e, quando suas testemunhas dis­cordam, coloca uma contra a outra. Em contraposição, considera que as autoridades impressas são inferiores: “Deixei de lado toda interação com os livros comuns. Se alguma vez digo coisas que ocorrem em qualquer livro, é em parte para manter o fio da narra­tiva de um modo menos complicado”.’


Mais surpreendente, talvez, seja encontrar pouca mudança imediata, pelo menos quanto à atitude diante da evidência em relação à história recente, entre os historiadores do Iluminismo do século XVIII. Voltaire era certamente bastante cínico em rela­ção aos mitos “absurdos” da tradição oral vinda do longínquo passado, recitada de uma geração para outra, que haviam sido, originalmente, os “fundamentos da história”: na verdade, quanto mais remota sua origem, menor seu valor, pois “elas perdem um vau de probabilidade a cada uma das sucessivas transmissões”. Rejubilava-se com o fato de que “os augúrios, os prodígios e as aparições estão sendo agora mandados de volta para as regiões da fábula. A história tem necessidade de ser iluminada pela filoso­fia. Dos historiadores modernos, exigia “mais pormenores, fatos

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mais bem comprovados”. Mas, muito embora para as próprias obras recolhesse evidência tanto oral quanto documental, rara­mente citava suas fontes, e seus comentários gerais indicam que não fazia diferença entre elas. Em sua História de Carlos XII (1731), por exemplo, vangloriava-se de não haver “ousado apre­sentar um único fato sem consultar testemunhas oculares de in­dubitável veracidade”. Depois da publicação dessa obra, mencio­nou como indicativa de sua confiabilidade unia carta de aprovação do rei da Polônia, que “fora, ele próprio, testemunha ocular” de alguns dos acontecimentos descritos. Defendeu-se, também, por não haver citado autoridades em A era de Luís XIV (1751), com base em que “os acontecimentos dos primeiros anos, por serem conhecidos por todos, só precisavam ser colocados de uma pers­pectiva correta; e quanto aos de data posterior, o autor fala sobre eles como testemunha ocular”. Em contraposição, sentiu necessi­dade, em sua História do império russo sob Pedro, o Grande (1759-63), de enumerar, pelo menos de início, “seus fiadores, dos quais o principal é o próprio Pedro, o Grande”.8 Para este tra­balho, teve a ajuda de documentos selecionados e copiados pelos funcionários russos e enviados para sua casa em Genebra. Embora mantendo uma consideração especial pelo testemunho pessoal, cu­riosamente Voltaire demonstra ter pouca consciência do possível viés, quer no julgamento de um monarca sobre o próprio reinado, quer num conjunto de documentos conservados e até mesmo se­lecionados pelos próprios funcionários do rei.


Além disso, Voltaire foi um historiador que possuía muitos admiradores eminentes. James Boswell registrou uma discussão, em um café da manhã em 1773, entre Samuel Johnson, que aban­donara o trabalho de codificação da língua inglesa e as delícias de Londres para buscar a experiência direta de unia sociedade primitiva nas ilhas da Escócia, e dois líderes do IIuminismo de Edimburgo, o advogado lorde Elibank e o historiador filósofo William Robertson, reitor da universidade. A conversa recaiu sobre a última grande revolta das Highlands escocesas contra a dominação inglesa, a rebelião de 1745. Jobnson concordava que

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isso “daria uma bela peça histórica”, mas discordou da dúvida de Elibank sobre “se alguém daquela época podia falar sobre ela imparcialmente”, citando o método de Voltaire em seu Luís XIV “Conversando com pessoas de lados diferentes, que tenham sido atores dela, e escrevendo tudo que ouvir, alguém poderá, antes que seja tarde, reunir o material para uma boa narrativa. Você deve considerar que, de início, toda história era oral”. E nisso foi vigorosamente apoiado pelo historiador escocês que também co­nhecia Voltaire: “É mais do que tempo, agora, de se fazer essa coleta sugerida pelo dr. Johnson; pois muitas das pessoas que, na ocasião, estavam em armas, estão desaparecendo; e tanto os whigs quanto os jacobitas teriam condições agora de falar com moderação” .


Não é por acaso que tão precoce convocação para um pro­jeto de “história oral” surgisse naquele momento. Eles estavam no limiar de um período de grande mudança na natureza dos es­tudos históricos. Atrás dele, estavam os efeitos cumulativos de dois séculos de imprensa: uma explosão de recursos históricos, tanto quantitativa, quanto qualitativa. Tomemos, por exemplo, A New Method of Studying History: recommending more easy and complete instructions for improvements in that science, publi­cado por Langlet du Fresnoy, bibliotecário do príncipe da Sabóia, em 1713, e posteriorrnente traduzido para o holandês, alemão e inglês. Acontece que não há nada de muito novo no método que Fresnoy apresenta - ele afirma até que os historiadores que as­sociam “estudo persistente e uma grande experiência de negó­cios” são consideravelmente superiores aos “que se trancam em seus gabinetes para ali estudar, confiando em outros, os fatos sobre os quais não foram capazes, eles próprios, de se infor­mar”.10 De muito maior importância é seu segundo volume, pois ele consiste inteiramente de bibliografia, relacionando ao todo cerca de 10 mil títulos de obras históricas nas línguas européias mais importantes. A produção de urna relação como essa indica a existência de enorme comunidade de estudiosos. Demonstra, também, o desenvolvimento de recursos profissionais básicos.

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Um historiador inglês, por exemplo, podia, naquela época, utili­zar uma série de histórias regionais e locais, biografias e coletâ­neas biográficas e relatos de viajantes. Estavam sendo publicados conjuntos impressos de assentamentos da Igreja, de crônicas ma­nuscritas e de anais públicos medievais. Na English Historical Libraiy do bispo William Nicolson, tinha acesso a uma bibliografia crítica. O equipamento para escrever história a partir do gabinete estava sendo montado: pelo menos para alguns historiadores, tor­nava-se possível dispensar o trabalho pessoal de campo e basear-se em documentos e evidência oral publicados por outros.


Não obstante, o efeito imediato da enorme expansão de fon­tes impressas, que continuou durante todo o século XVIII, foi um enriquecimento positivo da produção histórica. Voltaire insistiu, justificadamente, que um bom historiador moderno dá “mais atenção aos costumes, leis, práticas tradicionais, comércio, finan­ças, agricultura, população. Dá-se com a história o mesmo que com a matemática e a física. Seu campo de ação aumentou prodi­giosamente”.” O impacto da mudança a longo prazo pode ser observado especialmente em Macaulay, cuja História da Ingla­terra (1848-55) foi, provavelmente, em termos de vendas, o livro de história em língua inglesa mais popular do século XIX. Como político militante e mestre do estilo, Macaulay pode ser visto como um herdeiro de Guiccardini e de Clarendon. Mas talvez os trechos mais brilhantes de seu livro sejam aqueles em que apre­senta o ambiente social, desde o modo de vida do fidalgo fundiá­rio até a situação do pobre urbano e do rural. Utiliza como maté­ria-prima levantamentos de sua época, poesia e romances, diários e memórias publicadas. Faz, também, interessante uso da tradi­ção oral. Nas histórias sobre salteadores “que detêm uma posição aristocrática na comunidade dos ladrões”, nos relatos “de sua fe­rocidade e audácia, de seus atos ocasionais de generosidade e boa índole, de seus amores, de suas fugas miraculosas (...) há, sem dúvida, grande mescla de fábula; nem por isso, porém, deixam de ser dignas de registro, pois é um fato ao mesmo tempo autêntico e importante que essas narrativas, sejam elas falsas ou verdadei­56

ras, eram ouvidas por nossos antepassados com grande interesse e fé”. Ele cita por extenso uma canção popular injuriosa de rua que chama de “o brado veemente e amargo do trabalho contra o capital”, e afirma que evidência desse tipo deve ser utilizada na história social. “A gente comum daquela época não tinha o hábito de comícios para discussão pública, ou para fazer discursos de protesto, nem de fazer petições ao Parlamento. Nenhum jornal defendia sua causa... Grande parte de sua história só pode ser conhecida a partir das canções populares.”12


Como historiador geral, Macaulay não só recorreu a um leque muito mais amplo de fontes publicadas, mas também ao desenvolvimento de toda uma série de outras modalidades de produção histórica. Uma das autoridades que ele citava no uso da tradição oral era sir Walter Scott. Quando jovem, antes de come­çar a escrever romances, Scott foi advogado no interior, e uma de suas primeiras publicações foi Minstrelsy of the Scottish Border (1802), conjunto de canções populares que colheu entre os habi­tantes rurais, com seu amigo Robert Shortreed. Esse seu inte­resse, por sua vez, fora despertado em parte por uma coletânea ainda mais antiga, as Reliques ofAncient English Poetry (1765), do bispo Percy. Mas ele pode também ter tido conhecimento de outras. A mais conhecida talvez fosse Britannia (1586), de Wil­liam Camden, que contém capítulos sobre o desenvolvimento da língua inglesa, provérbios, nomes, e também poesia. Essa é urna das obras fundamentais do estudo histórico da língua e do fol­clore. Havia, também, o trabalho acentuadamente radical dos po­pulistas de Newcastle, John Brand e Joseph Ritson, que encara­vam o estudo da cultura popular como um dever dos “amigos do homem”, e associavam a coleta da tradição oral com esquemas para o estimulo da auto-expressão popular numa ortografia simplificada do inglês baseada na língua vernácula falada.13

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