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Mas o caráter processual da razão comunicativa encontra, no campo do direito, sérias dificuldades. As pretensões de validade do discurso jurídico parecem constituídas por âmbitos de ação estra- tégica. O processo civil tem em conta interesses econômicos e o processo penal serve à domesticação de conflitos que se alimentam da questão social. Ademais — e por razões que estão também rela- cionadas a essas constelações de poder — não se pode cogitar de uma situação de igualdade entre os sujeitos processuais, e tampouco da participação universal. Quanto ao primeiro aspecto, veja-se que os prazos, para as partes, são próprios, mas para o iuiz são impróprios. O iuiz pode voltar atrás em suas manifestações, ressalvada a coisa julgada, ao passo que às partes se aplica o princípio da estabilização

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(l 4) Habermas, Direito e democracia: entrefacticidade e validade, vol. 2,

Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, p. 307-310. (115) Idem, p. 308. )ll() Idem, p. 310.)71 Idem, p.312,313e316.

Idein, p.319e321.

119 (Idem, p. 320.

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

do processo (art. 264 do CPC). Quanto ao segundo aspecto, veja-se o que foi dito, a propósito da proteção dos interesses difusos e coletivos, sobre o controle da participação das massas no interior do Estado (seção 5.2). A sinceridade também não parece ser constitutiva de qualquer comunicação Iingüística e muito menos da comunicação processual. Fosse de outra forma, o iuiz, no processo penal, não poderia se comunicar com o réu, que tem direito de mentir.2 A propósito ainda da sinceridade, diga-se que mesmo a testemunha, em determinadas situações, como foi visto no final do terceiro capítulo, está dispensada do dever de dizer a verdade. Isto também se aplica às partes, no processo civil.

Enfim, ao sustentar a existência de pretensões de validade no processo judicial, a teoria da ação comunicativa parece desconsiderar não só a desigualdade dos sujeitos e as limitações impostas pelas regras institucionais, como também o fato de que as partes têm motivações nem sempre orientadas para a busca cooperativa da verdade. O que as anima é no mais das vezes não o julgamento justo ou correto, mas sim um resultado que lhes seja vantajoso.2 Além do resultado, os sujeitos processuais vislumbram muitas vezes consequências, que não se colocam na linha de argumentação das partes ou do juiz, e que vão além da simples produção de uma norma válida.22 Quando os sujeitos processuais se sentem à vontade para enunciar essas conseqüências (ainda que efetivamente não o façam), isto é sinal de que o argumento conseqüencialista está fundado em

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(120) Otaweinberger, LogischeAnalyse als Basis derjuristchenArgumentation, in Krawietz & Alexy (org.), Metatheorie juristcher Argumentation, Berlim, Duncker-Humblot, 1983, p. 195, apud Manuel Atienza, op. cit., p.272e273.

(121) Ver, nesse sentido, a crítica de Manuel Atienza (op. cit., p. 291).

(122) As elaborações desenvolvidas nesse parágrafo inspiraram-se na distinção feita pr Neil MacCormick, entre resultado da ação e conseqüências da ação (MacCormick, On legal decisions and their consequences; fron Dewey to Dworkin, New York, New York University Iaw Review, vol. 58, ed. 2, p. 239-258, apud Manuel Atienza, op. cit., p. 1 93-203). Para MacCormick, são os argumentos conseqüencialistas, ao lado dos princípios, que permitem estabelecer o contato entre o sistema e o mundo.

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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

valores aglutinadores (justiça, moralidade pública, interesse social etc). É o que ocorre quando se fala dos efeitos danosos da decretação da falência ou da condenação à pena privativa da liberdade. Embora se possa cogitar aqui de uma orientação utilitarista, certo é que o sentido difere daquele que se pode encontrar na tradição do utilitarismo. A propósito, colhem os fundamentos da decisão do Supremo Tribunal Federal, na ação direta de constitucionalidade relativa à medida provisória que dispôs sobre o racionamento de energia elétrica, mencionados no capítulo anterior (seção 4.2). A dogmática jurídica também se utiliza de argumentos conseqüencialistas, quer na tentativa de temperar o rigor da lei, quer com o objetivo de alcançar um fim social. Disso é exemplo a chamada terceira fase metodológica do processo civil (seção 5.2). Mas nem sempre os argulnentos conseqiiencialistas podem ser apresentados. A questão do abuso dos direitos processuais pode ser localizada exatamente aqui. A força do argumento das partes está em nunca dizer aquilo que não pode ser dito até o fim.

Habermas sai em defesa da teoria de Robert Alexy, dizendo que ela não deve levar à errônea suposição de que todos os discursos efetivamente preencham as regras da argumentação racional, pois estas não são constitutivas no mesmo sentido em que as regras do xadrez determinam uma prática de jogo fatual. A situação ideal de fala pode ou não ser contrafática, pois representa pressuposições pragmáticas de uma prática discursiva privilegiada. Habermas admite que os discursos da vida real estão submetidos a limitações de espaço e de tempo, a injunções sociais e a motivações estranhas à busca cooperativa da verdade. As limitações empíricas, as influências internas e externas devem ser neutralizadas por dispositivos institucionais, de tal sorte que as condições idealizadas, já pressupostas pelos participantes, possam ser preenchidas pelo menos numa aproximação suficiente.23 O próprio Alexy, no posfácio da sua obra, respondendo às críticas que lhe foram dirigidas, admite que a relação

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(123) Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, Rio de Janeiro,

Tempo Brasileiro, 1 989 (Biblioteca Tempo Universitário, 84, Série

Estudos Alemães), p.1 14 e 1 15.

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

entre as partes processuais nem sempre é simétrica. Além disso, há limitações de ordem institucional (tempo, pressão etc.) e o que conta, no mais das vezes, é ganhar a causa. Sustenta, entretanto, que isso não desqualifica sua teoria. O ponto decisivo é que os interessados exijam argumentar de forma racional. Ao menos devem fingir que seus argumentos são constituídos de tal forma, que se encontram em condições ideais para obter o acordo de todos.24 As partes têm de sustentar suas pretensões de correção, ainda que por outras razões entendam necessária e conveniente uma decisão que lhes seja favorável. Se não o fizerem, não terão observado a condição do jogo. Isso mostra — arremata Alexy — que a argumentação em juízo não só deve ser interpretada no sentido de uma teoria do discurso, mas também precisa ser interpretada dessa maneira.25

A interpretação sugerida por Habermas e por Robert Alexy levanta pretensões de validade que não se sustentam. A situação ideal defala, que leva a um acordo válido para todos os sujeitos racionais, é sabidamente um conceito não contrastável com a realidade empírica. Mas essa idealização acaba cumprindo uma função ideológica, pois, em certas circunstâncias, permite justificar um modelo de democracia meramente formal, onde as reais barreiras de comunicação são simplesmente desconsideradas.26 Uma coisa é argumentar diante de um auditório crítico, que esteja em condições de rejeitar pretensões engendradas no contexto da ação estratégica; outra, consiste em falar para um auditório cuja atitude passiva e não contestadora qualifica-o muito mais como assistência. Universalidade da comunicação sem igualdade de oportunidades para o diálogo é pura retórica. Por outro lado, o processo judicial revela limitações quando se trata de trabalhar com códigos mais inclusivos, a exemplo daqueles que compõem a esfera política, do que são mostra os problemas enfrentados pelo processo civil, na sua chamada terceirafase inetodológica, que interferem com ajudicialização da

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(124) Robert Alexy, op. cit., p. 324.

(125) Idein ibidem.

(126) Ver, também nesse sentido, a crítica de Manuel Atienza (op. cit., p. 273 e 274).

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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

política e com a politização do jurídico. Conflitos de classe, movimentos grevistas e outras formas de mobilização social não podem ser relegados ao campo das decisões e atitudes emocionais cegas. Porém, a racionalidade da decisão também tem de ser avaliada na base da decisão possível, o que pressupõe controle. Esse é o grande desafio de uma teoria do discurso racional, quer no nível prático da argumentação jurídica (dogmática jurídica, processo judicial), quer no nível de uma teoria argumentativa da argumentação (teoria do direito).

Por último, se é certo, como sustenta Robert Alexy, que as partes têm de fingir que seus argumentos atendem às condições do discurso racional, há de se indagar, então, acerca do sentido de uma teoria do abuso dos direitos processuais. Se a insinceridade faz parte da ação comunicativa, subsiste aparentemente insolúvel a questão da existência de limites e dos critérios para estabelecer um mau uso, um uso excessivo, impróprio ou injusto do processo. Por outro lado, admitindo-se que já não se possa mais falar de um agir comunicativo, mas apenas de um agir estratégico, ainda assim subsistiria a dúvida, pois a vontade humana não conhece limites senão na própria razão ou na razão do mais forte. A conclusão do presente trabalho será uma tentativa de apontar caminhos para resolver este dilema.

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CONCLUSÃO

É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda razão pode opor-se outra: nunca mais se acabava. A força, pelo con- trário, resolve tudo. Levou tempo, mas conseguimos compreendê- lo. Por exemplo, deve tê-Io notado a nossa velha Europa filósofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingê- nuos: Eu penso assim. Quais são suas objeções? Tornamo-nos Iúci- dos. Substituímos o diálogo pelo comunicado. Esta é a verdade, dizemos. Podem ainda discuti-la, isso não nos interessa. Mas, den- tro de alguns anos lá estará a polícia para lhes mostrar que tenho razão. Albert Camus via o homem como um sol diferente daque- le que aparece na fábula de Esopo. Violento, o sol vai projetando na terra o esplendor da luz. Mas sua trajetória deixa também na paisa- gem uma geografia de sombras. Como no Mito de Sísfo, onde Camus expõe a contradição entre o homem e sua situação irracional no mundo, é preciso enfrentar a tragédia, romper o dilema entre uma razão comunicativa aparente e uma razão abertamente estratégica, na qual a ação orientada para o êxito acena sempre com a ameaça de sanção. Enfrentar o dilema não significa resolvê-lo, mas apenas não ser devorado por ele.

O projeto de uma teoria do discursojurídico como discurso racional não é senão uma tentativa de fugir ao impasse entre racio- nalidade e irracionalidade. Porém, tem-se de reconhecer que uma teoria crítica do processo judicial ainda está por ser construída. As elaborações até agora desenvolvidas não foram capazes de estabe- lecer o consenso em torno das pretensões de verdade (campo cog- nitivo), correção (campo prático) e sinceridade (campo subjetivo)

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Albert Camus, A queda, Lisboa, Edição Livros do Brasil (ColeçãoAutores de sempre), s.d., p. 75 e 76.

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ABUSO DE DJREITO PROCESSUAL

levantadas pelos juristas. Ordinariamente, essas pretensões não são questionadas. O que importa, considerado o pragmatismo dos operadores do direito, é resolver o conflito. E aqui os juristas seguem produzindo uma forma de saber que se pretende descritiva e prescritiva, na qual se orientam e se legitimam as decisões judiciais. Mas o direito não se esgota no sistema. Ele somente ganha sentido em contato com o mundo. Há situações limite, tanto na esfera da subsunção do fato à norma, como no âmbito da interpretação e da prova. Por isso, se um dos sujeitos do processo problematiza as pretensões de validade levantadas pelo outro, se a comunidadejurídica passa a questionar as pretensões de validade suscitadas pela dogmática, tem- se de passar para o discurso, para o campo dajustificação.

Quando a dogmática jurídica ou os sujeitos do processo buscam estabelecer o sentido do abuso processual, pode se dizer, para fraseando Robert Alexy, que eles fingem argumentar no plano da racionalidade, naquelas três esferas de pretensão de validade. A verdade é simples aparência, verossimilhança. No plano da sinceridade, é difícil estabelecer uma distinção clara entre saber e querer sobre tudo quando a igualdade entre os participantes, pressuposta pelas regras institucionais do debate (correção), nem sempre se verifica na situação comunicativa concreta. Se é certo que nisto se consente do ângulo do discurso prático, como Alexy deixou claro no posfácio da sua obra, certo também é que não se pode admitir tal impostura no plano de uma teoria que se pretenda científica. Mas uma coisa é o ethos científico e outra a prática científica, um fazer persuasivo.2 Ao admitir que o processo não é uma disputa de cavalheiros, cheia de flores e mesuras, já que nele se refletem as mesmas tensões do resto da sociedade, a teoria processual, assumindo aqui o papel de uma teoria crítica, acaba desvelando essa faceta ideológica da argumentação jurídica, que consiste em

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(2) A expressão foi tomada de empréstimo de Maria José Coracini (Um fazer

Persuasivo: o discurso subjetivo da ciência, Campinas, Pontes-Educ, 1991). Calsamiglia, num sentido bem próximo daquele sustentado por Alexy, diz que a dogmática inventa teorias que servem para resolver conflitos sociais. Os juízes, juristas e legisladores so educados nesse contexto e se vêem fortemente influenciados por ele (op. cit., p. 252).

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CONCLUSÃO

ocultar o uso performativo da linguagem jurídica, em esconder o contexto pragmático.

A concepção subjetivista do abuso dos direitos processuais, ao postular que a qualificação do ato praticado no processo está vinculada ao exame da intenção da parte, levanta pretensões de validade que não se justificam. Verdade subjetiva e verdade objetiva são questões que até hoje não alcançaram consenso, muito menos no campo praxeológico, onde se impõe decidir. A disputa em tomo da verdade processual desenvolve-se, assim, num contexto retórico, que busca acudir esta ou aquela decisão. Como diz Alexy, as partes têm de fingir que as movem o ideal de justiça, objetivos nobres, para que possam ser admitidas ao jogo processual. A máxima segundo a qual não se pode alegar a própria torpeza em juízo vale aqui, analogamente, em um sentido muito próximo. Assim como na política ninguém fala em nome da autocracia, admitindo interesses inconfessáveis, também no processo judicial há situações que fogem às regras do debate, podendo sugerir uma contradição pragmática. E o caso daquele que opõe embargos de declaração, orientado por uma ação estratégica, apenas para ganhar tempo na elaboração do recurso de apelação. Claro está que as razões dos embargos não poderão ser estas. Tanto quanto improvável se mostra uma regulação normativa da publicidade enganosa no campo da política, também na esfera judicial é difícil confrontar o abuso com o direito na base das intenções da parte.

O controle judicial do abuso dá se sempre no contexto da justificação da conduta da parte, da força dos argumentos por ela apresentados em abono ao seu procedimento, e também da repercussão que a conduta possa ter para a decisão da causa. Dependerá, outro sim, da reação do ex adverso diante da falta, ou dito de outro modo, da importância que a parte contrária possa dar àquela conduta. Enfim, a alteração do eixo do debate em torno do abuso dos direitos processuais, que se desloca do campo semântico para o campo pragmático, permite entender que importam não tanto os motivos da ação ou uma escala de valores absolutos nos quais possa ela se inspirar, mas sim a justificação da conduta da parte, que deve ser razoável. Essa justificação é dialógica. Por isso, além da razão

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

compreensiva, como vislumbrada por Recásens Siches,3 interessa considerar a razão discursiva.

Sob esse enfoque, perde sentido a discussão acerca de uma verdade real ou formal, de um princípio inquisitivo ou dispositivo, tanto quanto de uma respectiva e suposta relação entre estes conceitos e um regime autoritário ou democrático, totalitário ou liberal. Todos os participantes do processo podem tudo, desde que se conformem às regras da argumentação racional, que se pressupõe editadas de acordo com um procedimento democrático. Mas claro está, como já se adiantou, que esse paradigma da razão comunicativa encontra problemas de justificação. O pressuposto democrático é um deles. As críticas feitas à instituição do tribunal do júri revelam, numa microescala, o circulo vicioso ou a petição de princípio a que pode conduzir a idéia de democracia. A comunicação presume capacidade para o diálogo, que é pressuposta pela lei. Mas o pressuposto nem sempre condiz com a realidade política e social, o que torna o homem refém do populismo e das decisões emocionais, que nem mesmo têm de ser justificadas (nem o eleitor nem ojurado fundamentam seu voto). Nesse contexto, não há um paradigma racional para estabelecer o sentido do abuso. Contudo, o aprendizado do diálogo só é possível no ambiente democrático. Talvez esse seja o legado da teoria da ação comunicativa, revelar por detrás daquela petição de princípio um círculo virtuoso.

Mas não se confundem o discurso político e o discurso processual. Numa situação perversa, em que o eleitor e o político estejam mancomunados para fraudar a lei, não se pode falar em ação comunicativa. O discurso desenvolvido no processo judicial é, entretanto, como consideram Jürgen Habermas e Robert Alexy, um caso especial do discurso prático, pois a sinceridade aqui deve ser entendida num sentido muito específico, como já se disse. Esse enfoque, consideradas as regras de transição do discurso prático em geral,4 que permitem a passagem de um discurso prático para um

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(3) Recaséns Siches, Introducción al e.studio del derecho, Buenos Aires, Editorjal Porruá, S.A., p. 254-260.

(4) A propósito das regras do discurso prático em geral, ver o que foi dito na nota 1 1 1 do quinto capítulo.

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CONCLUSÃO

discurso teórico, coloca a dogmática jurídica numa posição incômoda, ao ter de aceitar a colusão como agir comunicativo. Assim, convencendo-se o juiz dos argumentos que as partes simulam, adrede combinadas para ludibriá-lo, estará consumado o logro, o embuste. Por isso, Habermas inicialmente sugeria a possibilidade de um agir estratégico parasitário do agir comunicativo, do que o abuso do direito processual parece ser um bom exemplo.5 Mas aqui

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(5) Tercio Sampaio Ferraz Jr. também vê momentos irracionais na discussão jurídica. No processo judicial, a discussão dialética revela-se como discussão contra, onde as partes não são homólogas, o que é próprio dos discursos que envolvem o problema da decisão, e mais, onde predomina a regra do dever de prova, diante da reação questionadora do ouvinte, como visto em Perelman (e também em Habermas, acrescenta-se). O dever de prova faz do processo judicial um discurso racional, uma forma de contornar as dificuldades do recurso a uma justificação óltima, contida em princípios ou num ideal romântico da verdade como eterna discussão. A liberdade processual pressupõe que as partes tenham interesse em buscar a verdade, mas pressupõe também que elas possam mentir. Se o processo fosse discussão com (homologia entre as partes), o discurso judicial seria um procedimento de busca da verdade, conforme orientação da dogmática processual, que aproxima a noção de verdade da noção de justiça. Mas não é isso que ocorre e, assim, a noção de verdade tem de ser relativizada, institucionalizada por regras, o que simplifica a estratégia do discurso judicial, permitindo conciliar premissas por vezes incompativeis. O controle discursivo da decisão dá se através de um conjunto de prescrições interpretativas de natureza tópica. Na tentativa de influenciar o receptor da mensagem, os participantes mostram-se convincentes e confiantes. Com astúcia tática, eles procuram esconder o modo de sua comunicação. Na dis- cussão contra judicial, portanto, os participes perdem a sua eventual ingenuidade. O advogado deve aparecer como defensor de um interesse Iegítimo, o iuiz como figura neutra e imparcial, enquanto as partes têm de se mostrar como homens de bem, pessoas de boa fé, tudo isto permeado por uma tópica formal, que impõe a observância de certas regras à atividade probatória, orientada por uma retórica ciceriana. Considerado, porém, o sentido partidário das ações, as partes nem sempre buscam uma decisão ótima (verdadeira), mas apenas satisfatória, aquela possível para colocar termo ao processo. E precisamente o caráter ambíguo da verdade que explica o aparecimento do juiz como terceiro comunicador nesse processo dialógico. E ele quem garante a

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

ainda subsiste a questão dos limites para distinguir o agir comunicativo do agir estratégico.

Não se pode, do prisma de uma teoria pragmática do abuso dos direitos processuais, buscar um critério a prioridos limites entre a trapaça e o regular exercício, nem mesmo um critério empírico. A razão discursiva, orientada por valores sociais relevantes, permitirá aos sujeitos processuais orientar-se em cada situação concreta. No agir estratégico, seja ele manifestou ou parasitário, sempre ha- verá vestígios do mundo da vida, como diz Habermas, aquele resto de lembrança do que foi um dia um mundo orientado pelos valores, aos quais não se pode sobrepor qualquer interesse, numa forma de utilitarismo perverso. Se a dogmática jurídica e o processo judicial atendem às expectativas de certeza, igualdade e justiça, tem se de reconhecer que ambos são elementos de integração social, não se confundindo com a irracionalidade de uma vontade arbitrária.6 Muito além de uma justificação interna, da coerência de seus princípios, conceitos e procedimentos, a razão prática tem de prestar contas à humanidade. Dela se espera que seja capaz não só de compreender o homem e suas circunstâncias, como também de interferir para a solução dos conflitos sociais, com o que se dá um sentido à vida. Mas ainda que a verdade e o sentido da vida sejam coisas muito graves para serem confiadas à pesquisa

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seriedade do discurso. Enquanto a autoridade está argumentando, mantém-se o caráter racional do discurso jurídico, já que a persuasão implica a idéia de fundamentação e critica. A autoridade fica, por assim dizer, suspensa. Mas essa homologia — que se dá quando as partes são racionais, dotadas de iguais condições de verificar intersubjetivamente suas ações lingüísticas, e mais, quando o discurso fundamentado está aberto à critica — vê-se rompida pela fundamentação monológica da norma posta, que implica uma atitude passiva do ouvinte. A heterologia é artificialmente desconsiderada, através de uma série de ficções comunicativas, o que coloca em pauta o momento ideológico do direito (Tercio Sampaio Ferraz Jr., Direito, retórica e comunicação: subsídiospara uma pragmática do discurso jurídico, São Paulo, Saraiva, 1 973, p. xii, xiii, 31-37, 61-95, 159-189).

(6) Calsamiglia, op. cit., p. 273 e 274.

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CONCLUSÃO

da melhor argumentação, como sustenta Barcellona,7 há de se reconhecer que o discurso é sempre preferível à brutalidade do comando, que não deixa espaço para o dissenso. Daí porque mesmo nos contextos de agir manifestamente estratégico, como são as guerras civis, os conflitos bélicos, procura-se apelar para uma instância normativa, como lembra Habermas.8 E o mundo contemporâneo vem dando testemunho disto.


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