E. P. Sanders Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus



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Por fim, João atribui um lugar especial a Natanael, que não é mencionado senão aqui. Em Jo 1, 45-59, Filipe leva Natanael a Jesus e o conhecimento que este tem daquilo que ele estava a fazer (estava sentado debaixo de uma figueira) leva Natanael a exclamar: «Rabi, tu és o Filho de Deus! Tu és o Rei de Israell» Jesus declara que aquilo que fez é insignificante, mas promete: «Hás-de ver coisas maiores do que esta!» Esta profecia também se cumprirá e João menciona subsequentemente Natanael como um dos sete discípulos aos quais Jesus apareceu junto ao mar da Galileia (Jo 21, 2).

É óbvio que temos mais de doze nomes, sendo igualmente claro que João dispõe de uma lista especial, assim como de histórias que não são atestadas por ele. Além disso, o quarto Evangelho dá importância a discípulos que não desempenham senão papéis menores (André, Filipe

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e Tomé), assim como atribui um papel importante a um discípulo (Natanael) que as outras fontes desconhecem. De resto, João confirma Lucas e os Atos dos Apóstolos, ao referir-se a um segundo Judas no círculo mais restrito dos discípulos.



Algumas destas discrepâncias foram resolvidas tradicionalmente através da suposição de que alguns discípulos tinham dois nomes. Assume-se frequentemente que Tadeu (Mateus e Marcos) é a mesma pessoa que Judas, o filho do Tiago (Lucas e Atos dos Apóstolos), e que Judas (não Iscariotes) (João). Pensa-se, também frequentemente, que Levi é apenas um outro nome para Mateus. Estas equações baseiam-se no desejo de fazer com que a totalidade dos nomes perfaça precisamente doze, como se este número não fosse apenas simbólico, mas também exato do ponto de vista literal, devendo ser utilizado automaticamente. É muito mais provável que o número doze possua um outro tipo de historicidade: a utilização simbólica que o próprio Jesus fez do número. Não é que Jesus tivesse só doze discípulos. Parece que tinha mais, mas falou dos Doze a fim de indicar que a sua missão se dirigia a todo o Israel e que Israel seria plenamente restaurado no Reino que havia de vir.

Na realidade, Jesus tinha um grupo de seguidores e o seu número foi, por vezes, maior ou menor de doze. Alguns dos seguidores menos importantes abandonaram o grupo, de modo que, mais tarde, os primeiros cristãos não sabiam exatamente quem pertencia aos Doze. No entanto, o próprio Jesus utilizava o número como um símbolo da sua missão e da sua esperança. Os Evangelhos inseriram a história de Jesus no contexto da história judaica de salvação: Deus tinha chamado o povo de Israel e salvá-lo-ia no fim dos tempos. Jesus compreendeu a sua própria vida pública no mesmo contexto. A sua mensagem era, em parte, que as doze tribos de Israel teriam um lugar no Reino futuro.


Discípulos, seguidores e simpatizantes

Agora que examinámos as tradições sobre os Doze, podemos regressar com proveito aos «seguidores» e «simpatizantes», a fim de procedermos a distinções mais exatas: «Um movimento itinerante»). Queremos saber o papel que desempenham nos Evangelhos, tal como os temos hoje, mas também que posição histórica assumiram na missão de Jesus. Gostaria de antecipar a ideia fundamental. Jesus anunciou o Reino de Deus a um número muito maior de

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pessoas do que aquelas que «chamou» para o «seguirem». Tinha (1) discípulos íntimos; (2) seguidores um pouco mais afastados e (3) simpatizantes ou interessados ainda mais afastados. Ele teria gostado que todos fossem apoiantes, mas, ao que parece, chamou intencionalmente apenas alguns para o seguirem no sentido estrito da palavra.



(1) Os discípulos íntimos (os Doze) não desempenham um papel muito importante no relato de Marcos. O seu papel é negativo em muitos aspetos. Há outros que respondem a Jesus com uma fé profunda, mas os discípulos ficam confusos e céticos. Quando viram Jesus caminhar sobre a água, depois de ter alimentado cinco mil pessoas, «ficaram abismados». Marcos comenta que «não tinham entendido o que se dera com os pães, mas tinham o coração endurecido» (Mc 6, 47-52). Os discípulos do Evangelho de Marcos servem como contraste para outros (a mulher de origem sirofenícia, o centurião na crucificação) e para o próprio Jesus, sendo o retrato da sua imprecisão e da sua falta de sensibilidade exagerado.

Em Mateus e Lucas, os discípulos fazem uma figura um pouco melhor, mas a impressão geral continua a ser de que não eram perspicazes e de que não constituíam uma grande ajuda para o seu mestre. Existe, no entanto, nos três Evangelhos sinópticos, uma passagem que lhes atribui um papel positivo no anúncio do Reino de Deus, como uma extensão da vida pública do próprio Jesus. Jesus chamou os Doze e enviou-os, dizendo-lhe para não seguirem «pelo caminho dos gentios», nem entrarem «nas cidades dos samaritanos», mas irem, primeiramente, «às ovelhas perdidas da casa de Israel». Na sua missão, deveriam proclamar que «o Reino dos Céus está perto», curar os enfermos e fazer exorcismos (Mt 10, 5-15; comparar com missão um pouco diferente, em Mc 6, 7-13; Lc 9, 1-6).

Os discípulos que não tivessem compreendido Jesus ou a sua missão não poderiam ter cumprido o mandato de Mt 10,5-15 e par. Suponho que, durante a vida de Jesus, os discípulos não eram nem de compreensão tão lenta como são habitualmente descritos por Marcos, nem descrentes. No entanto, também duvido que os discípulos desempenhassem uma missão completamente independente antes da crucificação. A sua falta de compreensão e de fé serviam como contraste com outros e a missão independente, como modelo para os missionários cristãos posteriores. A verdade histórica deve estar no meio: eles compreenderam Jesus melhor do que Marcos quer fazer crer ao leitor, mas ainda não eram capazes de agir por conta própria.

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É interessante perguntar-se por que motivo quis Jesus discípulos. Suponho que a resposta é, em parte, simplesmente, que as pessoas que se sentem chamadas a ensinar e a liderar necessitam de discípulos e de seguidores. Apesar do retrato de Marcos, os discípulos aprenderam realmente algumas coisas com Jesus e, quando ele já não estava com eles (exceto em espírito), utilizaram bem aquilo que aprenderam. Eles também tinham um grande valor simbólico. Jesus falou dos Doze a fim de simbolizar a futura restauração de Israel e os seus seguidores mais próximos também simbolizavam a sua convicção de que o Reino de Deus abrangeria sobretudo os pobres, os fracos e os oprimidos. Se ele tivesse tido discípulos cuja superioridade fosse óbvia para todos, a sua mensagem poderia ter sido mal interpretada. Por fim, suponho que Jesus pensava que os seus seguidores iriam desempenhar um papel muito concreto no futuro Reino, mas, sobre este tema, falaremos mais pormenorizadamente no capítulo 11.

(2) Já conhecemos alguns dos seus «seguidores». Segundo Marcos e Lucas, um cobrador de impostos, chamado Levi, seguia Jesus, sem, no entanto, fazer parte dos Doze. (Mateus, porém, equipara o cobrador de impostos ao discípulo Mateus.) Também havia mulheres que seguiam Jesus (ver mais acima, pp. 109-111). Duas delas eram mães de discípulos (a mãe dos filhos de Zebedeu e Maria, a mãe de Tiago e de José - presumivelmente Tiago, o filho de Alfeu). Lucas menciona a mulher de Cuza, administrador de Herodes, e Susana (8, 3), como vimos. Marcos também menciona Salomé (15, 40) e os Evangelhos sinópticos falam todos de outras mulheres. No entanto, a mulher que está melhor testemunhada é Maria Madalena, cuja figura é proemi­ nente em todos os quatro Evangelhos.

As mulheres que seguiam Jesus desempenham um papel absolutamente essencial nos relatos dos Evangelhos. Quando Jesus foi preso, os discípulos varões fugiram (Mc 15, 40 e par.). Foram as mulheres que assistiram à morte de Jesus, que viram em que túmulo foi sepultado, que viram que o túmulo estava vazio e que viram o Senhor ressuscitado. Isto é, a identificação do túmulo vazio com o túmulo de Jesus depende do seu testemunho. Os autores dos Evangelhos estavam interessados nas mulheres porque estas desempenharam este papel crucial. É difícil avaliar com segurança a importância que elas tiveram para Jesus durante a sua vida, mas penso que o seu apoio foi importante (ver, atrás, pp. 148-149).

Foram, provavelmente, estas mulheres que se reuniram com os discípulos, em oração, na «sala de cima», antes do primeiro sermão de

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Pedro (Act 1, 14). Não sabemos mais nada sobre elas: a história era, então, tal como nos séculos anteriores e posteriores, uma história de homens e a maioria das mulheres desempenhava apenas um papel de apoio. Durante este período breve, crucial para o cristianismo, as mulheres que seguiram Jesus estiveram na ribalta.



Segundo Lucas, Jesus tinha um grande grupo de outros seguidores: depois da missão dos Doze (Lc 9, 1-11), Jesus enviou setenta para irem, dois a dois, à sua frente, no seu caminho para Jerusalém (10, 1-16). Lucas introduz aqui uma parte do material que, em Mateus, se encontra na entrega da missão aos Doze (Mt 10, 5-15). Os setenta regressam, relatando sucessos nos exorcismos (Lc 10, 17). É difícil compreender isto. Por um lado, a história reflete corretamente facto de Jesus ter tido mais do que doze seguidores. Por outro lado, o relato de Lucas depende da missão dos Doze em Mateus: Lucas parece não ter tido acesso a informações novas no seu relato sobre a missão dos setenta. É possível que Lucas, reconhecendo que Jesus tinha mais seguidores, quisesse atribuir-lhes um papel concreto durante a vida de Jesus.

Há uma outra passagem que parece lançar um pouco de luz sobre a questão do número de seguidores de Jesus. De acordo com uma tradição citada por Paulo, depois da morte de Jesus, este apareceu «a mais de quinhentos irmãos e irmãs de uma só vez (1 Cor, 15,6). Isto aponta para um grande número de pessoas que confiavam e acreditavam na missão de Jesus enquanto ele ainda era vivo. É possível que estes quinhentos devam ser classificados numa categoria inferior, como «simpatizantes».

É de notar que a família de Jesus não fazia parte dos seguidores. José não aparece depois das narrativas sobre o nascimento, mas a maior parte do material nos Evangelhos que se refere à mãe de Jesus e aos seus irmãos é negativa. A dada altura, a família de Jesus quer apanhá-lo, dizendo que ele «está fora de si» (Mc 3, 21). Segundo Marcos 3,

31-35, a mãe e os irmãos de Jesus ficaram do lado de fora do local onde ele se encontrava, e mandaram-no chamar. Ele respondeu: «Quem são minha mãe e meus irmãos?» e, olhando à sua volta para os seus seguidores, acrescentou: «Eis a minha mãe e os meus irmãos! Aquele que faz

a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe.» Outras afirmações atribuídas a Jesus refletem esta atitude crítica em relação à família. Assim, por exemplo, Mateus 10, 35-37: «Eu vim colocar um homem contra o seu pai ... Quem amar o pai ou a mãe mais do

que a mim, não é digno de mim.» Porém, depois da ressurreição de

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Jesus, a sua mãe e os seus irmãos juntaram-se em oração aos discípulos e às mulheres que o seguiam (Act 1, 14) e alguns dos irmãos de Jesus, nomeadamente Tiago, assumiram a liderança nos primeiros tempos da Igreja.4 A sua perplexidade perante o comportamento de Jesus e a sua



pretensão de ser enviado de Deus acabou por ser superada.

(3) Por fim, encontramos ainda «simpatizantes». Jesus e os seus discípulos atraíram algum apoio de pessoas que não o seguiam, como já mostrámos. As referências dos Evangelhos aos seus nomes não são senão ocasionais. Um deles é Simão, o fariseu, com quem ele jantou, um outro é Zaqueu, cobrador de impostos (Lc 7, 36-50; 19, l-la). José de Arimateia, um membro do Conselho, que discordou abertamente da execução de Jesus, ofereceu um túmulo e sepultou o corpo (Mc 15,42-47). Dignas de nota são, novamente, as mulheres. Existe um complexo interessante de passagens nas quais as mulheres aparecem, em parte, como seguidoras que ajudaram Jesus (como foi referido, pp. 148-149), mas sobretudo como simpatizantes.

Comecemos pela história de Maria e de Marta de Betânia, em João 12, 1-8, recuando, a partir desta história, para o fundamento histórico provável. A narrativa de João desenrola-se do seguinte modo: Jesus visitou a casa de Maria e de Marta, em Betânia, na Judeia, onde tinha ressuscitado Lázaro, o irmão delas. Marta servia o jantar, enquanto Lázaro e outros estavam reclinados à mesa. Maria entrou com um jarro de perfume de nardo, um perfume caro. Derramou-o sobre os pés de Jesus, que enxugou com os seus cabelos. Judas Iscariotes protesta, afirmando que o dinheiro teria sido melhor empregue se tivesse sido dado aos pobres. Mas Jesus

responde que o unguento era para a sua sepultura e acrescenta: «Pobres sempre os tereis convosco, mas a mim não me tereis sempre.»

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Parece que estamos confrontados com um relato que associa três histórias separadas, existentes nos Evangelhos sinópticos." Uma delas é a história do jantar de Jesus em casa de Simão, o fariseu. Uma mulher, que era «pecadora», entrou, banhou os pés de Jesus com as suas lágrimas, enxugou-os com os cabelos, beijou-os e ungiu-os com óleo (Lc 7, 36-50). Numa segunda história (Lc 10, 39-42), Jesus estava numa casa, com Maria e Marta, a caminho da Judeia, mas ainda na Galileia ou na Samaria. Maria sentou-se, a ouvir o mestre, enquanto Marta estava ocupada com a preparação da refeição. Quando Marta se queixou do comportamento da sua irmã, Jesus apoiou Maria, respondendo que ela tinha escolhido a melhor parte.



A terceira história, que se encontra tanto em Mateus 26, 6-13, como em Marcos 14, 3-9, é muito parecida com a narrativa de João, mas desenrola-se numa casa diferente. Jesus está em Betânia, em casa de Simão, o Leproso, quando se aproxima dele uma mulher com um frasco de alabas­ tro com um perfume caro, que derramou sobre a cabeça dele. Os discípulos ficaram indignados, tal como na história de João, protestaram, dizendo que o perfume podia ter sido vendido e o dinheiro dado aos pobres. Também aqui Jesus responde, tal como relata o Evangelho de João, mas acrescenta: «Onde quer que este Evangelho seja anunciado pelo mundo, há-de narrar-se também o que ela fez, em memória dela.»

Se analisarmos os componentes da história de Maria e de Marta de Betânia, em João, e atribuirmos às outras histórias os números 1 e 3, verificamos as seguintes concordâncias:


João -----------------------------------------------------------------Sinópticos Número da história

Nomes: Maria e Marta ------------------------------------------------------------------------------2

Lugar: Betânia ---------------------------------------------------------------------------------------3

Marta serviu -----------------------------------------------------------------------------------------2

Maria ungiu --------------------------------------------------------------------- cf. 2: Maria ouviu

Os pés de Jesus são ungidos com óleo ----------------------------------------cf. 3: a sua cabeça

Os pés enxugados com o cabelo da mulher ------------------------------------------------------1

Protesto contra a extravagância -------------------------------------------------------------------3

«Pobres sempre os tereis convosco» -------------------------------------------------------------3

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Estas histórias baseiam-se, provavelmente, em memórias, apesar de alguns pormenores terem sido alterados e, possivelmente, confundidos. De qualquer modo, é evidente que Jesus atraía mulheres que, embora não fossem «seguidoras», o admiravam, escutavam com prazer e deseja­ vam servir. Não sabemos quantas mais existiam, mas podemos ver por de trás das histórias uma grande atração humana. Os Evangelhos descrevem sobretudo Jesus em público, viajando de um lado para o outro, ou falando a uma multidão. As histórias referidas mostram-no dentro de casa, apresentando-o como uma visita agradável e um homem atraente.
Resumo de Marcos do período inicial do ministério de Jesus

Vamos, agora, seguir Marcos na história da atividade inicial de Jesus na Galileia, depois do chamamento dos primeiros discípulos. O desenvolvimento é rápido, já que narrativas breves se seguem umas às outras e o foco de atenção centra-se, em grande parte, nos milagres de Jesus, prestando-se menos atenção ao conteúdo do seu ensinamento.

Jesus e os seus discípulos foram para Cafarnaum, na margem do mar, onde Jesus ensinou na sinagoga. Marcos não nos diz o que Jesus ensinou, o que é típico do seu Evangelho. Ele diz frequentemente que Jesus ensinava, mas apresenta relativamente pouco sobre o conteúdo. No caso presente, descreve apenas a reação: «E maravilhavam-se com o seu ensinamento, pois ensinava-os como alguém que tinha autoridade e não como os escribas» (Mc 1, 22). Enquanto Jesus ainda se encontrava na sinagoga, um homem possuído por um «espírito maligno» começou a gritar: «Que tens a ver connosco, Jesus de Nazaré? Vieste para nos destruir? Sei quem Tu és: o Santo de Deus.» Jesus repreendeu o espírito, ordenando-lhe que saísse do homem. O exorcismo foi bem sucedido. O espírito saiu, sacudindo o homem e gritando. A fama

de Jesus espalhou-se rapidamente (Mc 1, 23-28).

Jesus foi, então, para casa de Simão e André, onde a sogra do primeiro estava de cama, com febre. Jesus pegou-lhe na mão, levantou-a e ela ficou curada (Mc 1, 29-31). Ao fim do dia, trouxeram-lhe muitos doentes. Ele curou-os, sobretudo através de exorcismos (Me 1,23-24).

De manhã, Jesus retirou-se. Simão e os outros encontraram-no e disseram-lhe que estavam «todos» à sua procura. Ele decidiu ir para as cidades seguintes, «a fim de pregar também aí, pois foi para isso que

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eu vim» (Mc 1, 35-38). Depois, temos outro sumário: ele foi por toda a Galileia, pregando nas sinagogas e expulsando demónios. Era seguido por uma grande multidão (Mc 1,39).



Em seguida, um leproso veio com ele e foi curado. A multidão que o seguia tornou-se ainda maior, a ponto de Jesus «já não poder entrar abertamente numa cidade, ficando fora, no campo. E as pessoas vinham ter com Ele de todas as partes». (Mc 1, 40-45).

A história do leproso toca uma das questões mais importantes relacionadas com Jesus, a da sua posição em relação ao judaísmo «oficial»: a nação de Israel como entidade política, o Templo, o sacerdócio, a Lei, as festas e o jejum, as sinagogas. Vimos que alguns dos ensinamentos e curas iniciais de Jesus ocorreram em sinagogas. A história do leproso esclarece um pouco a visão que Jesus tinha do Templo e dos seus sacrifícios. O leproso pede a Jesus para ser «purificado». Jesus toca-o, dizendo: «fica purificado» e exige-lhe que ele não diga a ninguém, mas que vá mostrar-se ao sacerdote, oferecendo um sacrifício, tal como estabelecido no Livro do Levítico (duas aves, uma das quais era sacrificada e a outra, libertada - Lv 14, '2-9, seguido outros sacrifícios).

A história do leproso é o exemplo mais claro e inequívoco no qual Jesus é apresentado como defensor do Templo, dos sacerdotes e das prescrições relativas à pureza. Jesus mostra-se aqui em concordância com as leis relativas aos sacrifícios e à pureza, assim como disposto a obedecer-lhes.

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Marcos relata, depois, uma série de histórias de conflitos, alguns deles relacionados com curas. Enquanto estava «em casa», em Cafarnaum, juntou-se uma grande multidão. Quatro homens, trazendo um catre com um paralítico, não conseguiam romper a multidão, por isso, subiram ao telhado, tiraram algumas das telhas e desceram o catre com o paralítico. Jesus curou-o, dizendo-lhe: «Meu filho, os teus pecados estão perdoados.» Alguns escribas ali presentes perguntaram-se o que estava ele a fazer, perdoando pecados por sua própria autoridade (Mc 2, 1-12).

Seguiram-se outros conflitos: Jesus comia com cobradores de impostos e foi criticado por causa disso (Mc 2, 13-17); foi também alvo de crítica porque os seus discípulos não guardavam jejum, quando os discípulos de João Baptista e dos fariseus jejuavam (Mc 2, 18-22); os seus discípulos colheram espigas ao sábado, o que levou a uma crítica por parte dos fariseus (Mc 2, 23-28). Por fim, Jesus curou num sábado um homem com uma mão paralisada, dizendo-lhe: «Estende a mão.» Este facto (de acordo com Marcos) levou os fariseus e os herodianos a conspirar sobre a maneira de o matar (Mc 3, 1-6).

Esta sequência rápida parece ter ocorrido em poucos dias, durante os quais a fama de Jesus se espalhou por toda a parte, e os fariseus, entre outros, decidiram que ele tinha de morrer. O autor concentrou os acontecimentos, para alcançar um efeito dramático. As histórias são extremamente curtas. Jesus diz ou faz alguma coisa e há uma reação imediata: ou fica famoso e é adulado ou é hostilizado. Em Me 2, 1-3, 6, uma coleção de histórias de oposição, os escribas e os fariseus parecem surgir do nada, para se confrontarem com Jesus. Ele faz algo, eles dizem algo, ele responde e o episódio termina. Na vida real, as coisas evoluíram um pouco mais devagar, as conversas foram um pouco mais longas do que algumas linhas, as discussões acerca das suas pretensões e da sua pessoa foram mais exaustivas, a oposição evoluiu gradualmente e a sua fama demorou mais do que um ou dois dias a espalhar-se. Os parágrafos iniciais de Marcos são sumários dramatizados que mostram a vida de Jesus como uma sequência de desafios rápidos e de respostas breves e notáveis. Não estamos a ler um diário circunstanciado que nos proporcionasse acesso ao quotidiano da vida de Jesus.

Gostaria, por uma questão de ênfase e de clareza, de voltar a comentar a natureza do material incorporado nos Evangelhos, assim como a forma de utilização do mesmo pelos autores. Quando Marcos

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escreveu o seu Evangelho, tinha diante dos olhos uma série de perícopes dispersas que juntou numa narrativa, sem, no entanto, destruir a forma básica das perícopes. Já vimos as breves expressões de ligação que Marcos utiliza: «imediatamente», «outra vez» e outras indicações vagas (pp. 103 e segs.). O rápido encadeamento das perícopes permitiu a Marcos iniciar o seu Evangelho de uma forma dramaticamente enérgica, percorrendo uma série de relatos breves sobre curas e conflitos, até chegar à conclusão de que algumas pessoas conspiravam contra a vida de Jesus. Mateus e Lucas nem sempre mantêm a sequência de Marcos, transferindo algumas das histórias para outras passagens dos seus Evangelhos. Assim, por exemplo, Mateus não situou a história da cura do paralítico no capítulo 4, onde esta deveria encontrar-se, se ele tivesse seguido a ordem de Marcos, preferindo juntá-la a outras histórias acerca de milagres, no capítulo 9. As perícopes podiam ser deslocadas, de acordo com as intenções do respetivo autor. Isto recorda-nos, mais uma vez, que os Evangelhos não são biografias no sentido atual da palavra.



É possível que Marcos não tenha sido o primeiro a transformar as perícopes numa história completa. Muitos investigadores pensam que a sequência de cenas de conflito, em 2,1-3,6, já lhe chegou às mãos pronta. Note-se que a conclusão (os fariseus e os herodianos planeiam matar Jesus) aparece demasiado cedo, tendo em conta a estrutura global do Evangelho. Os fariseus e os partidários de Herodes aparecem novamente nove capítulos mais a frente (Mc 12, 13), onde se diz que tentaram armar uma cilada a Jesus. É improvável sob o ponto de vista histórico que os conflitos insignificantes em Me 2,1-3,5 tivessem provocado, de facto, uma conspiração com a intenção de matar Jesus (3, 6), assim como é improvável em termos editoriais que o próprio Marcos tivesse criado a conspiração no lugar onde esta se encontra agora (3, 6), só para reintroduzir uma versão mais suave da oposição destes dois partidos em 12, 13. A explicação mais provável para 3, 6 é que as histórias de conflitos em 2, 1-3, 5 já existissem como conjunto e precedessem imediatamente a história da prisão, da condenação e da execução de Jesus. Isto é, talvez houvesse uma coleção anterior, um protoevangelho, composta por histórias de conflitos, uma conspiração contra Jesus e a execução bem sucedida da conspiração.

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Neste momento, é importante constatar que, ao lermos os primeiros capítulos de Marcos, não estamos a ler um diário em primeira-mão da «vida com Jesus na Galileia», mas sim uma coleção editada de acontecimentos dispersos cujo contexto original talvez tenha sido outro.

Neste capítulo e no anterior debruçámo-nos sobre o ambiente físico e social no qual Jesus operou (aldeias, cidades e espaços abertos, mas não grandes cidades), sobre o facto de ele ter começado por utilizar as sinagogas, para ganhar audiência, sobre as pessoas que encaravam favoravelmente a sua missão (discípulos, seguidores e simpatizantes), assim como sobre as primeiras passagens dos Evangelhos. Isto permitiu-nos ver como podemos regressar, partindo dos Evangelhos, ao Jesus histórico. Propus, por exemplo, que as narrativas sobre a tentação são, em parte, lendárias e mitológicas, mas que é razoável pensar que Jesus se retirou realmente para rezar e jejuar, antes de iniciar o seu ministério público. Vimos que as histórias do chamamento dos discípulos estão concentradas e dramatizadas, mas que ele chamou, realmente, discípulos nas aldeias e pequenas cidades à volta do mar da Galileia. O estudo relativo ao número dos discípulos íntimos e aos seus nomes permitiu-nos compreender que o próprio Jesus utilizou simbolicamente o número doze. Procurámos a história subjacente às afirmações aparentemente contraditórias de que os discípulos não entenderam Jesus e de que realizaram uma missão independente durante a vida de Jesus. As diversas histórias sobre mulheres existentes nos Evangelhos (incluindo João), também se baseiam num substrato factual. A abordagem da passagem de Me 1, 21-3, 6 e paralelos esclareceu a forma como os autores dos Evangelhos e, possivelmente, os autores ou editores anteriores, juntaram e interligaram as perícopes, a fim de produzir uma narrativa.


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