E. P. Sanders Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus



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Ele chegou ao nariz do homem possesso um anel que tinha por baixo do selo uma das raizes prescritas por Salomão e, quando o homem o cheirou, o demónio saiu através das suas narinas ... De seguida, para convencer os presentes e para lhes provar que possuía este poder, Eleazar colocou no chão, a uma certa distância, um copo ou uma bacia para lavar os pés cheia de água e ordenou ao demónio, quando este saiu do homem, que virasse o copo ou a bacia, demonstrando, assim, aos espectadores que tinha abandonado o homem.

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O demónio fez o que lhe foi exigido, revelando-se assim, claramente, a sapiência de Salomão (Josefo, Antiguidades 8, 46-49).



O demónio nesta história, tal como o demónio expulso por Apolónio, demonstrou, através de um sinal, que tinha sido expulso. Mas o exorcismo era completamente diferente. Apolónio limitou-se a ordenar ao espírito que saísse; Eleazar utilizou um segredo transmitido desde o tempo de Salomão. Apolónio era autónomo: seguiu as suas próprias regras e utilizou o seu próprio poder espiritual, «carismático». Eleazar tinha aprendido quais as raízes que deviam ser utilizadas no exorcismo.

Estas histórias (curas realizadas por Deus ou por um deus, milagres levados a cabo por indivíduos carismáticos e por mágicos) revelam todas que a maioria das pessoas da Antiguidade não estabelecia a separação rígida entre o «mundo natural» e o «sobrenatural» habitual (ainda que não universal) hoje em dia. Na perspetiva destes, o universo estava povoado de bons e maus espíritos que podem entrar quando quiserem no mundo dos sentidos. Algumas pessoas eram capazes de controlar estes espíritos. A fé generalizada num mundo povoado de poderes espirituais pode ser ilustrada facilmente citando São Paulo: «para que, ao nome de Jesus, se dobrem todos os joelhos no céu, na terra e debaixo da terra e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor» (FI 2, 10-11). Existiam seres com joelhos acima da terra e debaixo da terra, assim como na terra. O cruzamento entre «sobrenatural» e «natural» vê-se de uma forma muitíssimo clara se considerarmos os termos ruali e pneuma. Ruali é uma palavra hebraica, que tanto significa «vento» como «espírito» (dependendo do contexto), enquanto pneuma é o termo grego correspondente. Atualmente, encaramos o «vento» como algo natural e o «espírito» como algo sobrenatural. Porém, o facto de ser possível usar a mesma palavra em ambos os sentidos, tanto no mundo de língua grega, como no mundo de língua hebraica ou aramaica, demonstra que as pessoas da Antiguidade não viam a realidade como nós a vemos. O «espírito» e o «vento» eram forças invisíveis e, na perspetiva da maioria, um espírito era algo tão «natural» como o vento. No terceiro capítulo de João, joga-se com o duplo sentido da palavra pneuma: «o pneuma sopra onde quer ... Assim acontece com todo aquele que nasceu do pneuma». A tradução é a seguinte: «o vento sopra onde quer ... Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito». No século I, nem aqueles que falavam grego, nem aqueles que falavam hebraico ou aramaico pensavam que o

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vento fosse a mesma coisa que o espírito. O jogo com a palavra pneuma demonstra que as pessoas sabiam distinguir entre os significados, conforme o contexto. Mesmo assim, a ausência de uma distinção verbal demonstra que, nos primórdios da formação de ambas as línguas, o espírito era algo tão natural como o vento. Esta visão da «natureza» manteve-se no século I, em parte, devido à perpetuação do uso do vocabulário antigo, mas também porque o movimento do vento era misterioso, não sendo encarado como um fenómeno resultante de condições físicas.



A passagem que acabámos de citar da Carta aos Filipenses (« ... se dobre todo o joelho») além de evidenciar a fé comum em poderes espirituais, também revela a ideia de que alguns nomes tinham poder («toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor»). A questão do nome no qual determinada coisa era feita revestia-se de importância. Vemo-lo claramente nos Evangelhos e em muitos outros lugares. João, o filho de Zebedeu, disse a Jesus que ele próprio e os outros discípulos tinham visto um homem «expulsar demónios em teu nome» e que o tinham proibido. Jesus respondeu: «Não o proibais, porque não há ninguém que faça um milagre em meu nome e vá logo dizer mal de mim.» (Mc 9, 38-41.) Numa outra ocasião, alguns adversários de Jesus acusaram-no de expulsar demónios utilizando o nome de «Belzebu», o príncipe dos demónios. Jesus negou esta acusação e voltou a questão contra os seus críticos: «Se Eu expulso os demónios por Belzebu, por quem os expulsam, então, os vossos filhos?» E prosseguiu afirmando que exorcizava pelo Espírito de Deus (Mt 12, 27-29). Portanto, ele admitiu que outros também podiam fazer exorcismos. A questão era: com que poder? Em nome de quem?

Embora a fé em espíritos e demónios estivesse muito difundida e embora a maioria das pessoas, quer judeus, quer gentios, acreditasse que os agentes humanos podiam encorajar os poderes espirituais a intervirem no curso normal dos acontecimentos, havia protestos racionalistas. Cícero (106-43 a.e.c.) formulou-o desta maneira:

Pois nada pode acontecer sem causa; nada acontece que não pudesse acontecer e quando aquilo que era possível acontecer, aconteceu, não pode ser interpretado como um milagre. Por conseguinte, não há milagres ... Sendo assim, tira-se esta conclusão: aquilo que não podia ter acontecido, nunca aconteceu, e aquilo que podia ter acontecido não é um milagre (De Divinatione 2,28).

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A opinião expressa por Cícero tornou-se dominante no mundo moderno; e eu partilho-a inteiramente. Alguns relatos de «milagres» são fantasiosos ou exagerados; os «milagres» que acontecem de facto são coisas que nós ainda não conseguimos explicar, devido a ignorância no domínio das causas naturais. Porém, no tempo de Cícero, eram pouquíssimas as pessoas que aceitavam este racionalismo rigoroso. A grande maioria das pessoas acreditava em poderes espirituais e pensava que humanos escolhidos especialmente podiam contestar o poder das mesmas, controlá-las ou manipulá-las. O próprio Jesus tinha esta convicção.

No estudo dos milagres do próprio Jesus não levantarei repetidamente a questão de saber se a ocorrência relatada podia ou não ter, realmente, acontecido. Pelo contrário, desejo assumir temporariamente a perspetiva da maioria dos contemporâneos de Jesus e dos primeiros leitores dos Evangelhos, para que possamos ver como os milagres são apresentados nas nossas fontes e qual era a importância que tinham num contexto no qual as pessoas, em geral, acreditavam na possibilidade de milagres. No entanto, regressaremos à questão das respostas modernas às histórias de milagres.

Jesus realizou dois tipos de milagres, de acordo com os Evangelhos: curas milagrosas e milagres «naturais» (envolvendo comida e o mar). Os exorcismos constituem uma subcategoria de curas tão vasta que lhes dedicarei uma secção separada.
Curas milagrosas (exceto exorcismos)

Nas curas milagrosas, a ênfase é colocada frequentemente na fé. No caso do paralítico que fizeram descer através do telhado, Marcos escreve que Jesus curou o homem «quando viu a fé daqueles homens» ­ isto é, a fé daqueles que o trouxeram. Também vemos este motivo

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numa das narrativas de cura mais interessantes - Me 5, 21-43 -, onde uma história de um milagre está inserida numa outra história. Um dos chefes da sinagoga, Jairo, diz a Jesus que a sua filha está a morrer, suplicando-lhe que venha e lhe imponha as mãos. No caminho, uma multidão começou a apertá-lo, incluindo uma mulher que sofria de um fluxo de sangue havia doze anos; era uma mulher que «sofrera muito nas mãos de muitos médicos», mas que se sentia cada vez pior. Ela tocou no manto de Jesus e a hemorragia parou. Jesus, apercebendo-se de que alguma coisa tinha acontecido, virou-se e perguntou quem lhe tinha tocado. A mulher apareceu, com medo, e explicou-lhe o que tinha feito. Jesus respondeu: «Filha, a tua fé curou-te.» Isto parece uma declaração contra a magia: o seu manto não possuía poder mágico; pelo contrário, o milagre era o resultado da fé da mulher.



Jesus continua o seu caminho para casa de Jairo, mas alguém vem ao seu encontro dizendo que a rapariga já tinha morrido. Jesus exorta Jairo: «Não tenhas receio; crê somente.» Quando chegaram a casa, perguntou às pessoas que estavam a chorar: «Porquê todo este tumulto e choro? A menina não morreu, está a dormir.» Eles riram-se dele, mas ele entrou, tomou a rapariga pela mão, dizendo-lhe: «talitha qüm», e levantou-a. Ela ergueu-se e começou a andar.

A história da filha de Jairo levanta duas questões interessantes. Uma delas é se o narrador queria ou não que o leitor pensasse que a rapariga estava morta. Que valor atribuir à afirmação de Jesus de que a rapariga não estava morta, mas apenas inconsciente? Não existe uma resposta clara para esta questão, mas parece que o autor de Marcos se inibe de dizer que a rapariga estava morta.

A segunda questão diz respeito à função da exortação talitha qüm. Trata-se de uma expressão aramaica que quer dizer, simplesmente: «rapariga, levanta-te». Será que a expressão se conservou apenas por ter sido aquilo que Jesus disse de facto? Ou será que o autor de Marcos a introduziu no seu Evangelho escrito em grego como uma palavra estrangeira de poder, como uma espécie de feitiço mágico? Também não existe uma resposta clara para isto. Jesus falava realmente aramaico, mas este facto não explica por que motivo há alguns casos - pouquíssimos - em que aparecem expressões aramaicas nos Evangelhos escritos em grego, enquanto na maioria dos casos, não. Por conseguinte, o autor queria dizer algo com isso, mas nós não sabemos o quê. As palavras estrangeiras focam a atenção naquele que fala e, portanto, no seu poder, mas não podemos afirmar muito mais do que isso.

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Há dois casos em Marcos nos quais Jesus leva a cabo uma ação física, para além de se dirigir à pessoa, tocando-lhe. Num caso, trouxeram a Jesus um homem surdo que também sofria de mudez. Jesus tomou-o à parte, meteu-lhe os dedos nos ouvidos, fez saliva e tocou-lhe a língua. Depois, olhou para o céu e disse iftathá, «abre-te», em aramaico, e o homem ficou curado (Mc 7, 31-37). Em Betsaida, trouxeram-lhe um cego. Jesus levou-o para fora da aldeia, deitou-lhe saliva nos olhos e impôs-lhe as mãos. O homem recuperou parcialmente a vista: conseguia ver as pessoas, mas via-as «como árvores a andar». Jesus voltou a colocar-lhe as mãos sobre os olhos e ele recuperou completamente a vista (Mc 8, 22-26).

Aqui temos algumas técnicas que lembram «magia». A palavra aramaica em Marcos 7, 34 encontra-se num contexto de manipulação física que a faz soar como um feitiço. É de notar que nenhuma destas histórias se encontra em Mateus ou em Lucas, embora estes contenham a maior parte das histórias de milagres de Marcos. É possível que os autores posteriores se tivessem apercebido de que as histórias de Marcos tendiam para o mágico e, por isso, as tenham omitido. Consideraremos com um pouco mais de detalhe a forma como os vários Evangelhos utilizam histórias de cura.

Em Marcos, existem dois temas quase contraditórios no que diz respeito ao impacto das curas de Jesus. O primeiro é que elas atraíam multidões e eram responsáveis pela fama de Jesus. A cura de um possesso na sinagoga de Cafarnaum levou a que «a sua fama logo se espalhasse por toda a parte, em toda a região da Galileia» (Mc 1, 28). Mais tarde, «a cidade inteira estava reunida» e Jesus curou muitos (Mc 1, 33-34). Em consequência da cura do leproso, Jesus não podia «entrar abertamente numa cidade; ficava fora, em lugares despovoados. E de todas as partes iam ter com Ele» (Mc 1,45). Este modelo repete-se até o autor escrever finalmente que Jesus atraía multidões não só da Galileia, mas também da Judeia, de Jerusalém e da ldumeia (a Sul da Judeia), de além-Jordão, de Tiro e de Sídon (na Síria) (Mc 3, 7 e segs.).

Em contraponto com isto, Marcos insiste que Jesus tinha procurado não atrair a atenção com os seus milagres, ordenando aos curados que não contassem a ninguém (Mc 1,44). Ordenou ao cego de Betsaida que fosse para casa, sem entrar novamente na aldeia, ao que parece, para manter a cura em segredo (Mc 8, 26). Jesus ordenou àqueles que assistiram à cura do surdo-mudo que não revelassem a ninguém o sucedido (Mc 7, 36). Contudo, o autor acrescenta que, apesar da ordem

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de silêncio, as pessoas curadas contaram as suas histórias, de modo que a fama de Jesus continuou a espalhar-se (por exemplo, Me 1,45; 7,36).



Parece que Marcos quer levar o leitor a pensar que Jesus podia ter continuado a sua carreira, muito popular, como curandeiro, mas que preferia não procurar a fama. Em vez disso, aspirava a tornar-se um líder espiritual de outro tipo: as curas podiam ter trazido grande fama a Jesus, assim como bastante dinheiro, mas ele «não veio para ser servido, mas sim para servir e dar a sua vida em resgate por muitos» (Mc 10,45). Na opinião de Marcos, a popularidade junto das multidões não era o objetivo da vida pública de Jesus.

A forma como Mateus trata as histórias de milagres é claramente diferente da maneira como Marcos o faz. Em geral, o autor desenfatiza os milagres. Em Mateus, a vida pública de Jesus não começa com uma série de acontecimentos rápidos nos quais os milagres desempenham um papel proeminente, mas sim com três capítulos de ensinamento ético: o sermão da montanha. Os milagres vêm mais tarde. Mateus encarava Jesus, em parte, como um segundo Moisés, mais importante do que o primeiro, como vimos. (A sua narrativa de nascimento baseia-se na história do nascimento de Moisés e o sermão da montanha é a contraparte da entrega da Lei a Moisés, no monte de Sinai.) Portanto, não é de surpreender que Mateus agrupe dez histórias de milagres nos capítulos 8 e 9, talvez evocando os dez sinais de Moisés (as dez pragas: Ex 7, 14-12, 50). É certo que os dez milagres não são paralelos aos realizados por Moisés, mas o número pode ser um indício da influência das histórias sobre Moisés.

Mateus sugere frequentemente ao leitor que Jesus cumpriu uma profecia. Várias citações da Escritura judaica são introduzidas com as palavras: «Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta ... » (Mt 1,22; 2, 5; 2, 15; 2, 17; 4, 14; etc.) A respeito das curas de Jesus, Mateus cita Isaías 53, 4: «para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta Isaías: "Ele tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores."» (Mt 8, 17) Outros cristãos recorreriam a este versículo para explicar a morte de Jesus: ele tomou a fraqueza e o sofrimento humanos sobre si mesmo. Mas Mateus interpreta a citação no sentido de ela se referir à libertação das doenças e, por isso, encara os milagres de Jesus como o cumprimento da profecia.

Já vimos que Mateus omite as duas histórias de milagres que poderiam sugerir algo mágico (a história do homem surdo-mudo, Me 7, 31-37, e a história do cego de Betsaida, Me 8, 22-26). Elimina ainda

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outros milagres, como, por exemplo, o exorcismo em Cafarnaum (Mc 1, 23-28), e encurta, normalmente, as histórias de Marcos, sobretudo eliminando alguns pormenores. Um bom exemplo disto mesmo é o tratamento que ele dá à história do paralítico que foi trazido a Jesus num catre. Marcos tinha escrito que ele foi trazido por quatro homens, que estes não podiam aproximar-se de Jesus por causa da multidão e que tiveram de o descer através da abertura no telhado. Mateus não se refere a nada disto. Escreve apenas que as pessoas trouxeram um para­ lítico a Jesus e que este o curou, dizendo: «os teus pecados estão perdoados». Mateus regista a controvérsia com aqueles que protestam contra a sua aparente reivindicação de poder perdoar pecados: mas o colorido de Marcos desapareceu da história (Mt 9, 1-8).



Em Mateus existem, porém, algumas curas que não se encontram em Marcos. Uma delas introduz-nos num dos temas fundamentais de Mateus e num dos aspetos decisivos do início do cristianismo: a admissão de gentios. Terá Jesus procurado seguidores entre os gentios? Retomaremos esta questão no capítulo seguinte. Aqui, limitamo-nos a registar a história do servo de um centurião pagão que se encontra em Mateus. O centurião aproximou-se de Jesus, pedindo-lhe que curasse o seu servo. Jesus oferece-se para o acompanhar até sua casa, mas o centurião responde-lhe: «"Senhor, eu não sou digno de que entres debaixo do meu teto; mas diz uma só palavra e o meu servo será curado. Porque eu, que não passo de um subordinado, tenho soldados às minhas ordens e digo a um: vai, e ele vai ... " Jesus respondeu: "Em verdade vos digo: Não encontrei ninguém em Israel com tão grande fé."» Ele mandou o centurião para casa onde este encontrou o seu servo curado (Mt 8, 5-13; também em Lc 7, 1-10). Mateus, Marcos e Lucas eram todos favoráveis à missão cristã aos gentios, mas Mateus dá-lhe uma ênfase particular. Ele desejava, naturalmente, que Jesus se tivesse pronunciado favoravelmente em relação aos gentios, pelo que o comentário de Jesus sobre a fé do centurião e a falta de fé em Israel era muito importante.

O principal contributo de Lucas para o tema das curas milagrosas consistiu no aumento do número que ilustra alguns dos temas já existentes em Marcos. Lucas acrescenta duas curas ao sábado, uma cura de leprosos e uma ressuscitação. A história da ressuscitação é particularmente

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interessante. Em Naim, Jesus vê um morto a ser levado para fora da cidade. O homem era o único filho da sua mãe, que, além disso, era viúva; assim, ela ficou sem apoio. Jesus, movido pela compaixão, mandou parar o cortejo. Ordenou ao homem que se levantasse e ele levantou-se. A multidão louvou Deus, exclamando: «Surgiu entre nós um grande profeta!»; «Deus visitou o seu povo» (Lc 7, 11-17). A aclamação de Jesus como um «grande profeta» é bastante apropriada. A história recorda um dos milagres de Elias: ele também ressuscitou o filho de uma viúva (1 Rs 17,9.17-24). Tal como vimos, os autores dos Evangelhos encaravam todos Jesus como o cumprimento de uma profecia e é isso mesmo que temos aqui em Lucas.



A história também ilustra a tendência de Lucas para contar histórias cheias de interesse humano. O estatuto social das pessoas interessa-o e ele faz frequentemente menção ao facto de uma pessoa ser rica ou pobre. Zaqueu, por exemplo, era «chefe dos cobradores de impostos e um homem rico» (Lc 19, 2). Na segunda parte da sua obra, nos Atos dos Apóstolos, Lucas menciona por vezes convertidos que eram personalidades socialmente importantes. No entanto, ele preocupava-se especialmente com os pobres. Onde Mateus diz «felizes os pobres em espírito», Lucas diz «felizes vós, os pobres», e acrescenta «ai de vós, os ricos» (Lc 6, 20.24). O seu Evangelho também contém várias histórias em que se adverte contra os perigos da riqueza e se louvam os pobres: o rico insensato (Lc 12, 13-21); o homem rico e Lázaro (Lc 16, 19-31); a oferta da viúva ( Lc 21, 1-4). As mulheres também desempenham um papel mais importante em Lucas do que nos outros Evangelhos. Lucas conta a história de uma mulher pecadora que servia Jesus (Lc 7, 36-50). Como já vimos, Lucas também diz que havia algumas mulheres que seguiam Jesus, que o apoiavam financeiramente a ele e aos seus discípulos (Lc 8, 1-3). A situação difícil das viúvas preocupava-o especialmente. Lucas conta a parábola de uma viúva que teve de se tornar importuna com o juiz para obter justiça (Lc 18, 1-8). A história da ressuscitação do filho de uma viúva permitiu a Lucas aprofundar o tema da capacidade de Jesus para ressuscitar os mortos, ao mesmo tempo que conta uma história interessante do ponto de vista humano na qual Jesus devolve a uma viúva pobre o seu único apoio.

Uma outra cura milagrosa que se encontra unicamente em Lucas concentra-se numa mulher. Enquanto Jesus estava a ensinar numa sinagoga, num sábado, viu uma mulher que não era capaz de se endireitar

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havia dezoito anos. Jesus impôs-lhe as mãos e ela ficou curada. O chefe da sinagoga repreendeu-o por causa de ele ter curado ao sábado, mas ele defendeu com sucesso o seu direito a fazer o bem (Lc 13, 10-17). Esta história é muito parecida com a história da cura de um homem com uma mão paralisada, contada por Marcos e que Lucas já tinha incluído no seu Evangelho (Lc 6,6-11; Mc 3, 1-6). A sua segunda história permite-lhe salientar o tema da cura ao sábado, relatando, simultaneamente, uma história de simpatia humana por uma mulher em sofrimento. Há outros elementos de Mc 3, 1-6 que são repetidos ainda numa outra história de uma cura ao sábado: o caso da cura de um homem que era hidrópico. Antes de curar o homem, Jesus pergunta: «É permitido ou não curar ao sábado?» Trata-se, praticamente, da mesma questão da história do homem com uma mão paralisada.



Enquanto Mateus reuniu o seu material em blocos, processo que lhe permitiu enfatizar determinado tema, associando todo o material que se lhe referia, Lucas procura uma alternância mais rápida entre ensinamentos e histórias de curas. Consegue enfatizar os temas repetindo-os em secções diversas do seu Evangelho. Mateus e Marcos têm apenas um caso de cura ao sábado, mas Lucas tem três: o homem com a mão paralisada (Lc 6, 6-11); a mulher que andava curvada (13, 10-17); o homem hidrópico (14, 1-6). A repetição não só enfatiza a questão da observância do sábado, como vimos, como oferece igualmente a Lucas a oportunidade de acrescentar narrativas cheias de interesse do ponto de vista humano, e isto é uma das características principais do seu Evangelho.

Como último exemplo para esta tendência de Lucas podemos acrescentar a cura de dez leprosos (Lc 17, 11-14), que repete, em parte, a história da cura de um leproso (5, 12-16) e que também acrescenta uma nota interessante: apenas um dos dez regressou para agradecer.


Exorcismos

Os exorcismos, uma importante subcategoria das curas, merecem uma discussão mais exaustiva. Eles eram muito importantes no ambiente cultural de Jesus, assim como o foram na sua própria atividade. A importância da demonologia no judaísmo tinha crescido desde os dias da Bíblia Hebraica, que atribui numerosos milagres aos profetas (como Elias e Eliseu), mas não contém quaisquer histórias de exorcismo.

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O exorcismo é, contudo, o tipo de cura mais proeminente nos Evangelhos sinópticos. O volume de testemunhos torna extremamente provável que Jesus tivesse tido, de facto, reputação de exorcista. Apresento aqui um catálogo completo das histórias de possessão demoníaca existentes nos sinópticos


1. Exorcismos realizados por Jesus
a) Mc 1, 23-28 I I Lc 4, 31-37 --------------------Jesus cura um homem na sinagoga de Cafarnaum

b) Mc 1,32-34 I I Mt 8, 16 I I Lc 4, 41 -----------------------sumário: ele expulsa muitos demónios

c) Mc 1,39 -------sumário (também em Mateus e Lucas, embora eles não mencionem demónios)

d) Mc 3, 11 I I Lc 6, 18 ---------------------------------------------------------------------------sumário

e) Mc 3, 20-30 I I Mt 12,22-37 I I Lc 11, 14-23 e outras passagens --controvérsia sobre Belzebu

f) Mc 5, 1-20 I I Mt 8, 28-34 I I Lc 8, 26-39 ------------------------------------o possesso de Gerasa

g) Mc 7, 24-30 I I Mt 15,21-28 ---------------------------------------------------a mulher siro-fenícia

h) Mc 9, 25 Ii Mt 17, 18 Ii Lc 9, 42 ---------------------------------------------------criança epilética

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i) Mt 4,24 ------------------------------------------sumário; «demoníacos» faltam em Marcos e Lucas



j) Mt 9,32-34 -------------------------------------------------------------------------------mudo possesso

k) Lc 8, 2 --------------------------------------------Jesus expulsa sete demónios de Maria Madalena

1) Lc 13, 32 -----------------------------------------------Ide dizer a Antipas: «Eu expulso demónios»
2. Exorcismos atribuídos a outros

m) Me 3, 15; 6, 7; 6, 13; Mt 10, 1; 10, 8; Lc 9, 1 discípulos recebem autoridade para expulsar demónios (ou espíritos impuros)

n) Mc 9, 38 I I Lc 9, 49 ---------------------------------------------------o exorcista exterior ao grupo


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