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fariseus a desejar matá-lo. Isto é intrinsecamente improvável e é refutado pela história subsequente: quando o momento decisivo chegou realmente, os fariseus não tiveram nada a ver com a morte de Jesus.
No entanto, mais uma vez se vê que a tradição cristã não era tremendamente criativa. Tirou-se uma afirmação daqui, um contexto dali e acrescentou-se uma conclusão. Estas modificações, pelo menos em Marcos, resultam numa descrição de disputas legais sérias entre Jesus e outros intérpretes.
Discrepâncias a propósito de tradições (Mc 7 / / Mt 15)
Vamos agora debruçar-nos sobre a terceira secção dos Evangelhos que descreve conflitos sobre a Lei entre Jesus e outros na Galileia. Segundo Me 7, os fariseus criticaram Jesus porque os seus discípulos comiam com as mãos por lavar. Ele respondeu com uma crítica a uma das suas outras tradições, segundo a qual uma pessoa podia declarar uma propriedade ou dinheiro qorban (dedicado ao Templo), sem que, no entanto, os entregasse. Jesus acusou-os de poderem utilizar isto para privar os seus pais da ajuda necessária. (Embora não conheçamos tal tradição de qualquer outra fonte, é intrinsecamente provável que os fariseus tivessem tido tradições relativas a coisas dedicadas ao Templo.) A passagem continua: de seguida, Jesus reuniu a multidão e disse: «Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro; mas o que sai do homem, isso é que o torna impuro» (Me 7, 14 e segs.). Mais tarde, explicou, em privado, aos seus discípulos que a comida entra numa pessoa mas sai. O autor faz aqui um comentário na terceira pessoa: «assim, declarava todos os alimentos puros» (Mc 7, 15). A explicação de Jesus prossegue: os pensamentos que levam a ações más, como a imoralidade sexual e os roubos, são, de facto, impuros (Mc 7, 17-23).
Voltemos à situação inicial, para analisar esta secção: os fariseus criticam os discípulos de Jesus (não o próprio Jesus) pelo facto de estes não lavarem as mãos antes das refeições. A lavagem das mãos era uma tradição dos fariseus, não uma norma legal. No tempo de Jesus, nem sequer se tratava de uma tradição uniforme. A maioria dos judeus não purificava as mãos antes das refeições. Entre os fariseus, havia alguns que consideravam a lavagem das mãos facultativa; muitos deles só
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lavavam as mãos antes da refeição do sábado; existia uma discordância entre eles no que dizia respeito à necessidade ou não de lavar as mãos antes ou depois da preparação do cálice do sábado. Penso que a existência de uma inimizade mortal por causa da lavagem das mãos é his toricamente impossível. 10 Me 7 passa da questão da lavagem das mãos para o ataque de Jesus à visão que os fariseus tinham do qorban: eles declaravam que a sua propriedade ou o seu dinheiro estavam dedicados ao Templo, para não precisarem de ajudar os seus pais necessita dos. Mas isto é um ataque àquilo que qualquer um - especialmente os fariseus - teria considerado um abuso. Nenhum fariseu teria justificado a utilização de um instrumento sem ilegal para prejudicar os seus pais. É óbvio que é possível que alguns fariseus o tivessem feito de vez em quando. Nesse caso, e se Jesus os tivesse acusado, os fariseus decentes, tementes a Deus e respeitadores dos pais - 99,8% do partido - teriam concordado com ele.
A terceira secção de Me 7 é constituída pela questão daquilo que entra e sai das pessoas. Fora do seu contexto atual, a afirmação em Me 7, 14 e segs. («não há nada fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem, isso é que o torna impuro»), pode significar várias coisas. A utilização judaica da construção «não» ... «mas» implica que esta significa frequentemente: «não só isto, mas muito mais aquilo». Quando o autor da Carta de Aristeias escreveu que os judeus não veneravam Deus «com dádivas e sacrifícios, mas com a pureza de coração e uma atitude devota», não se opunha aos sacrifícios. Pelo contrário, era-lhes favorável. 11 A frase significa «não só com sacrifícios, mas ainda mais com pureza de coração». Por conseguinte, a afirmação de Jesus, em si, não é contra a Lei. No entanto, na interpretação privada, apenas para os discípulos, Jesus nega a validade das leis judaicas relativas aos alimentos: «Nada do que, de fora, entra no homem o pode tornar impuro» (Mc 7, 18). Se estas foram as palavras exactas de Jesus, então a interpretação de Marcos seria correta: «Declarava todos os alimentos puros.» Mas Mateus não coincide com
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Marcos. Na versão de Mateus, não existe nenhuma declaração negativa sobre as leis relativas aos alimentos. Jesus explica que aquilo que entra numa pessoa sai, mas não diz que «aquilo que entra não pode tornar impuro». Mateus não inclui o comentário de Marcos, segundo o qual Jesus tinha declarado todos os alimentos puros. (Mt 15, 10-20.)
Jesus transgrediu deliberadamente a Lei? Ensinou aos seus seguidores que a transgressão era aceitável ou que algumas partes da Lei seriam revogadas? Segundo Mateus ou qualquer das tradições em Mateus, não. As antíteses de Mateus tornam a Lei mais rigorosa, como vimos, mas não pretendem levar ninguém a transgredi-la. A versão dos conflitos sobre os alimentos e sobre o sábado em Mateus também não contém nenhum exemplo de transgressão.
No entanto, Marcos pensava que Jesus tinha dito aos seus seguidores que eles não tinham de observar as leis relativas aos alimentos e é possível que pensasse o mesmo sobre a lei relativa ao sábado. É possível que Lucas concordasse com Marcos no que diz respeito à lei relativa ao sábado, mas não incluiu o debate sobre «aquilo que entra». Veremos mais adiante, ao discutir Act 10, 11-17, que o autor de Lucas situou a rejeição das leis relativas aos alimentos num período posterior, não no tempo de Jesus.
Existe uma discrepância entre os autores dos Evangelhos. Podmos chegar a uma conclusão? Penso que sim: Jesus não ensinou aos seus discípulos que estes poderiam transgredir a lei relativa ao sábado ou as normas relativas aos alimentos. Se ele tivesse andado pela Galileia a ensinar às pessoas que não havia problema em trabalhar ao sábado e em comer porco, teria havido um clamor enorme. Um homem que reivindicava falar em nome de Deus, mas que ensinava que partes importantes da Lei de Deus não eram válidas? Que horror! É possível que, hoje em dia, os leitores não judeus não compreendam até que ponto isto teria sido terrível. A partir de segunda metade do século I, a maioria dos cristãos era de origem pagã. A igreja cristã, composta na sua maioria por gentios, aceita algumas partes da Lei judaica, rejeitando outras desde há mais de 1900 anos. Por conseguinte, as pessoas não sentem, hoje, o choque que esta posição causou, no início, quando emergiu, provavelmente, nos anos cinquenta, nos debates de Paulo com outros cristãos de origem judaica. Paulo pensava que os gentios podiam tornar-se «filhos de Abraão» sem serem circuncidados. O conflito por causa desta questão foi amargo. Os judeus devotos - e a
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maioria dos judeus era devota - estavam convencidos de que existia, realmente, um Deus, que Ele tinha entregue a Sua Lei a Moisés, que esta estava registada nas Escrituras e que devia ser observada. Como é que alguém poderia afirmar que havia partes da Lei que eram inválidas? Ou eram todas ou não era nenhuma. Se Deus tinha entregue a Lei, ela devia ser observada. Se Deus não o tivesse feito e se não existisse, não fazia sentido observar qualquer parte que fosse da Lei. Existe uma diferença enorme entre a Carta de Paulo aos Gálatas e a Carta aos Romanos, por um lado, e Marcos, por outro lado. Marcos atira calmamente com a frase: «Ele declarava todos os alimentos puros.» As cartas de Paulo crepitam de cólera e hostilidade provocadas pela sua posição sobre as normas relativas à circuncisão e aos alimentos. Paulo viveu o debate sobre a Lei em primeira-mão. Marcos (um cristão da segunda geração), não, visto que a discussão já tinha praticamente terminado. Jesus também não viveu este debate, visto que ele ainda não tinha surgido. Os Evangelhos não contêm o tipo de material que se teria gerado se Jesus tivesse ensinado aos seus seguidores que estes podiam ignorar uma parte da Lei divina.
Além disso, os seguidores de Jesus observavam o descanso ao sábado, como pode ver-se na história do seu enterro. Jesus morreu pouco antes do pôr-do-sol de uma sexta-feira, e José de Arimateia sepultou-o imediatamente. As mulheres esperaram até à manhã de domingo, quando o sábado tinha acabado, antes de ungirem o corpo (Mc 15, 42-16, '2 & par.). Isto é, não trabalhavam ao sábado. Os Atos dos Apóstolos descrevem a perseguição dos cristãos após a morte e a ressurreição de Jesus. Eles são acusados de vários crimes, mas nunca de terem desrespeitado o sábado.
O caso das normas relativas aos alimentos é ainda mais claro. De acordo com os Atos dos Apóstolos (escritos pelo autor de Lucas), Pedro teve uma visão pouco depois da morte e ressurreição de Jesus:
Viu o céu aberto e um objeto, como uma grande toalha atada pelas quatro pontas, a descer para a terra. Estava cheia de todos os tipos de quadrúpedes e de répteis da terra e de todas as aves do céu. Então, ouviu uma voz dizer-lhe: «Levanta-te, Pedro, mata e come» (Act 10, 11-14.)
Pedro recusou e a voz repetiu a ordem mais duas vezes. De seguida, a toalha e o seu conteúdo foram levados para o céu e Pedro ficou sem saber «o que poderia significar a visão que acabara de ter»
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(Act 10, 15-17). Acabou por concluir que os gentios podiam ser admitidos no novo movimento, independentemente daquilo que comiam. Mas a História mostra que, na opinião de Lucas, Jesus não tinha ensinado aos seus discípulos que todos os alimentos eram puros.
As cartas de Paulo também mostram indiretamente que os discípulos não pensavam que Jesus se opusesse às normas relativas aos alimentos e ao sábado. A dado momento, Paulo criticou Pedro
severamente por causa de ele ter deixado de comer com gentios (Gl 2, 11-14). Não sabemos qual era a objeção de Pedro - se a comida ou a companhia - mas se Paulo tivesse sabido que o próprio Jesus tinha dito a Pedro que todos os alimentos são puros, podia ter incluído isto na sua argumentação. Paulo manifesta igualmente a sua discordância em relação ao facto de os gentios da Galácia, que ele tinha convertido, terem começado a observar o sábado (Gl 4, 10), mas não argumenta que o próprio Jesus o tivesse transgredido.
Em resumo, nem as mulheres que ungiram o corpo de Jesus, nem Pedro e os outros apóstolos de Jerusalém, nem Paulo, nem os adversários de Paulo na Galácia pensavam que Jesus tivesse dito aos seus discípulos que eles não necessitavam de respeitar as normas relativas ao sábado e aos alimentos. Isto leva-me a concluir que o próprio Jesus observava estas normas, assim como as outras partes da Lei de Moisés, e que nunca recomendou a transgressão como uma prática gene
ralizada (embora, em algumas ocasiões especiais, possa ter sentido que esta se justificava).
As histórias que sugerem que o próprio Jesus transgrediu a Lei e autorizou os seus seguidores a fazerem o mesmo constituem (como sugeri anteriormente) retrojeções da situação da igreja primitiva para o tempo de Jesus. Quero explicar um pouco melhor a questão de retrojeção. Havia três pontos fundamentais de discórdia quanto à Lei no interior da igreja primitiva, assim como entre esta e a sinagoga judaica: a circuncisão, o sábado e os alimentos. Estes são os temas relativos à Lei que geram desentendimentos nas cartas de Paulo, assim como nos Atos dos Apóstolos. Estes três temas possuem um denominador comum: distinguem os judeus dos gentios, em termos sociais. Por isso, constituíam as áreas fundamentais que tinham de ser resolvidas sempre que judeus e gentios se juntavam numa comunidade ou numa causa comum. Dois deles nunca levantaram realmente problemas dentro de uma comunidade judaica. Numa aldeia, habitada praticamente só por judeus, por exemplo, a questão do consumo da carne de porco nem
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sequer se colocava. Não existiam porcos. O mesmo se passava com a circuncisão dos filhos: era uma questão de rotina. O sábado é mais complicado, visto que a Bíblia é menos clara e específica no que diz respeito àquilo que é considerado como trabalho do que em relação aos alimentos que são proibidos. Por isso, era possível haver discussões sobre o sábado mesmo em locais onde não havia gentios. No entanto, não havia discordâncias em relação à necessidade ou não de observar o sábado, mas apenas sobre pormenores, como, por exemplo, até que distância era possível afastar-se em relação à propriedade do próprio. Ninguém trabalhava no campo, nem abria uma loja, nem cozinhava ao sábado, visto que todos concordavam que isto eram formas de trabalho. Portanto, era possível haver debates sobre coisas como curas insignificantes, mas a única coisa que se discutia era a interpretação e havia muitos judeus que discordavam entre si quanto à interpretação, sem que decidissem matar-se uns aos outros. Existiam diferenças na prática do sábado dentro de quase todas as comunidades judaicas.
Destes três pontos que, como sabemos, eram cruciais nos primeiros tempos do cristianismo, depois da morte de Jesus, dois - o sábado e os alimentos - dominam as disputas entre Jesus e os escribas, e os fariseus, nos Evangelhos. Para voltar à questão do fumo e do fogo: temos a certeza de que as igrejas cristãs compostas total ou parcialmente por gentios se preocupavam muito com as normas relativas aos alimentos e ao sábado, enquanto estas teriam sido muito menos con troversas nas aldeias da Galileia no tempo de Jesus. É muito provável que o fumo (as passagens nos Evangelhos) tenha origem em fogo real (disputas nas igrejas cristãs depois do tempo de Jesus). Considero quase certo que a importância das disputas sobre o sábado e os versículos sobre as normas relativas aos alimentos (Mc 7) reflitam a situação das igrejas cristãs depois de os gentios terem começado a ser admitidos no movimento. Creio que a interpretação que Marcos faz da afirmação «não é aquilo que entra» é uma retrojecção que pretende assegurar aos seus leitores gentios que eles podem ignorar as normas relativas aos alimentos. A história sobre a colheita de espigas também é uma retrojecção (embora Jesus pudesse ter afirmado, em alguma ocasião, que o sábado tinha sido feito para beneficiar os seres humanos).
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Além disso, a importância das disputas sobre o sábado em Mc 2, 1-3, 6 resulta dos interesses do próprio Marcos (ou de um editor anterior).
Não quero negar que Jesus tenha debatido alguma vez a prática do sábado. É bem possível que o tenha feito. Mas não agiu de forma a levar as pessoas - quer fossem os seus contemporâneos na Palestina, quer fossem os primeiros cristãos - a acreditar que ele negasse a validade das normas relativas ao sábado, o que significaria negar a origem divina das mesmas. Jesus viveu, de maneira geral, como um bom judeu e não é possível encontrar qualquer traço da atitude atribuída a Elisha ben Avuyah (ver p. 262).
Tradições positivas
São muitas as passagens em que Jesus é descrito como alguém que corroborava vários aspectos da Lei. Quando lhe perguntaram qual era o maior mandamento, ele respondeu:
«Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente.» Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo.» Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas. (Mt 22, 37-40)
O mandamento do amor a Deus é uma citação do Deuteronómio (6,4 e segs.), uma passagem que todos os judeus devotos repetiam duas vezes por dia. O mandamento do amor ao próximo é citado do Levítico J 9, 18. Muitos judeus do tempo de Jesus consideravam que estes dois mandamentos resumiam as duas «tábuas» da Lei judaica: os mandamentos que regulavam as relações com Deus (encabeçado pelo mandamento do «amor a Deus») e os mandamentos que regulavam as relações com outros seres humanos (resumidos no mandamento do «amor ao próximo). A resposta de Jesus não se limita a ser correta do ponto de vista acadêmico, ele cita estas leis, aprovando-as. Numa outra passagem, recomenda aos seus seguidores: «o que quiserdes que as pessoas vos façam, fazei-o também a elas», caracterizando esta declaração como «a Lei e os profetas» (Mt 7, 12). Isto constitui uma
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forma epigramática de dizer «amarás o teu próximo como a ti mesmo». O epigrama é muito parecido com um outro, conhecido dos mestres judeus, que eles também consideravam um resumo da Lei.
Além destes indícios de uma aprovação incondicional da Lei e dos seus mandamentos fundamentais, existem outras passagens que demonstram concordância com os mesmos. Já nos referimos ao facto de Jesus, depois da cura de um leproso, ter dito ao homem curado para ele se mostrar aos sacerdotes e para apresentar um sacrifício como Moisés tinha mandado (Me 1, 40-45, anteriormente, pp.I68 e segs.). Jesus disse aos seus seguidores que, quando fossem ao Templo, deviam ter a certeza de estarem reconciliados com as pessoas que podiam ter ofendido, antes de apresentarem o sacrifício (M5 5, '23 e segs.) - mais uma vez, um conselho habitual do judaísmo, o que reflete a adesão ao sistema sacrificial. Jesus estava manifestamente convencido de que Isaías e os outros profetas eram realmente profetas de Deus, visto que os citava com aprovação (por exemplo, Mt 11, '2-6). O facto indiscutível de Jesus pensar que as escrituras dos judeus continham a palavra que Deus tinha revelado e que Moisés tinha emitido mandamentos que deviam ser seguidos, deveria levar-nos a hesitar muito na aceitação da opinião comum dos exegetas do Novo Testamento de que ele se opunha, realmente, à Lei judaica. Isto é tanto mais verdade, obviamente, quanto as passagens em que existem discórdias sobre a Lei não revelam uma oposição direta à mesma.
Outras questões legais e possíveis temas de conflito
Acabei de propor que Jesus concordava e aprovava a Escritura judaica na sua totalidade (<
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outros Evangelhos sinópticos mostra que Jesus não disse, de facto, aos seus discípulos que eles não necessitavam de observar as normas da Lei relativas aos alimentos.
Se voltarmos à nossa lista de níveis possíveis de discórdia, apresentada anteriormente (pp. 260 e segs.), veremos que a posição de Jesus em relação à Lei não se insere na categoria (a) ou (b). Quer isto dizer que Jesus não pensava que a Lei escrita estivesse errada e devesse ser revoga da, nem dizia aos seus seguidores que deveriam desobedecer a alguns aspetos da mesma. É neste contexto geral que temos de considerar o conflito na Galileia. Jesus não estava envolvido num combate mortal com os defensores da Lei por uma questão de princípio. Todos, incluindo Jesus e os seus seguidores, estavam convencidos de que Deus tinha dado a Lei a Moisés e de que também tinha inspirado as outras Escrituras. Se Jesus discordou de outros intérpretes em questões de pormenor, as disputas não foram mais importantes do que as disputas entre os partidos judaicos e até dentro de cada partido.
Existem, contudo, dois pontos em que Jesus afirmou a sua própria autoridade de formas que eram ou podiam ser questionáveis. Nestes dois tópicos, trata-se, provavelmente, mais de questões semilegais do que de questões legais. O primeiro diz respeito à ordem que Jesus dá para que «deixem que os mortos enterrem os mortos». O segundo consiste no seu chamamento de «pecadores».
Um homem que queria ser discípulo disse que seguiria Jesus, mas quis enterrar primeiro o seu pai morto. Jesus respondeu: «Segue-me e deixa os mortos sepultar os seus mortos» (M t 8, 21-22). Há muitos leitores que consideram esta resposta um aforismo: deixa os mortos (no sentido espiritual) enterrar os mortos (no sentido espiritual). Mas um aforismo deste tipo é tão ofensivo que é improvável. A ideia de não enterrar os mortos ainda era mais repugnante para a moral antiga do que para a nossa. A realidade era tão ofensiva que uma metáfora que se baseasse nela não seria apelativa. Os judeus partilhavam a aversão dos gregos a deixar o corpo por sepultar. Segundo os rabis, mesmo
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um sacerdote - aos quais era normalmente proibido enterrar os mortos ou entrar, sequer, num cemitério, para não contraírem a impureza do cadáver, ficando incapacitados de servir no Templo - deveria enterrar um cadáver se não existisse ninguém para o fazer. A ordem de «deixar os mortos sepultar os mortos» não só era contrária à sensibilidade humana normal, como também era contrária a qualquer interpretação razoável da Lei judaica, que manda honrar pai e mãe. O carácter ofensivo da afirmação torna improvável que «enterrar os mortos» seja uma metáfora. O pai do homem candidato a seguidor tinha morrido, provavelmente, e Jesus disse-lhe: «Deixa os mortos (no sentido espiritual) sepultar os mortos (no sentido físico).» Nesse caso, Jesus pensava que segui-lo deveria ser mais importante do que qualquer outra coisa.
Estamos perante um caso que apresenta alguma analogia com o do homem rico que desejava ser «perfeito» e a quem foi dito que deveria vender tudo para seguir Jesus. Jesus não colocou este tipo de exigência a todos, mas a alguns exigiu uma abnegação total. A diferença no caso do homem a quem o pai tinha morrido reside no facto de a abnegação implicar uma transgressão do mandamento de honrar os próprios pais. Jesus ordena aqui uma exceção à regra, que, em termos
legais, deve ser vista, provavelmente, como um apelo a uma circunstância atenuante: a necessidade de o seguir era tão grande que devia ser mais importante do que as obrigações normais da piedade.
No entanto, isto parece ter sido um incidente único que não representa a prática geral de Jesus. Se os fariseus ou outros devotos da Lei tivessem ouvido esta afirmação de Jesus, teriam ficado escandalizados. Mas parece que não aconteceu nada. A passagem não nos diz que Jesus se opunha ao mandamento de honrar pai e mãe, mas que tinha uma atitude em relação à sua própria missão que poderia levar a ignorar a Lei, se fosse necessário. O seu chamamento era mais importante do que sepultar os mortos. É possível que algo desta atitude tenha sido transmitido ao público e que muitos tenham ficado profundamente ofendidos. Apesar de este incidente particular não ter tido quaisquer consequências, a atitude de Jesus teve-as, como vamos ver agora.
A convicção de Jesus de que a sua missão tinha prioridade sobre qualquer outra coisa exprime-se mais claramente na passagem sobre os «pecadores». Jesus chamou um cobrador de impostos (Levi, em Marcos e Lucas, Mateus, em Mateus), para que este o seguisse, e o homem aceitou o chamamento. Jesus foi acusado, subsequentemente,
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de comer com cobradores de impostos e com pecadores (Mc 2, 14-17 & par.). Isto parece ter sido uma verdadeira ofensa: ele fez de facto algo que ofendeu realmente as pessoas. As passagens mais fidedignas sobre os pecadores são aquelas em que Jesus discute sobre João Bap tista e se coloca a si próprio em contraste com ele. João «veio até vós, ensinando-vos o caminho da justiça» (Mt 21, 32) e era um asceta «que não comia, nem bebia» (Mt 11, 18). Veio Jesus (<também foi rejeitado: «Aí está um glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos e de pecadores!» (Mt 11, 19.)
Porque é que a associação de Jesus com cobradores de impostos e pecadores constituía uma razão para o rejeitar? O termo «pecadores», na Bíblia Hebraica, quando utilizado em termos gerais, refere-se a uma classe de pessoas, não àqueles que transgridem ocasionalmente a Lei, mas àqueles que estão à margem da Lei de alguma maneira fundamental. Para podermos compreender o significado do termo «pecadores», deveríamos ter em conta a descrição dos «ímpios» nos Salmos. Eles são colocados em contraste com os «pobres». Os ímpios atormentam
os pobres e dizem nos seus corações que Deus não existe ou que, se existe, não os chamará à responsabilidade (SI 10, 4.8-13). As traduções inglesas modernas dos Salmos Hebraicos utilizam, de uma forma bastante correta, a palavra «ímpios», nesta passagem, o que constitui a melhor tradução para a palavra hebraica resha'im. No entanto, os judeus que traduziram a Bíblia Hebraica para grego utilizaram a palavra «pecadores» hamartoloi" e este tornou-se o termo que os judeus que falavam grego utilizavam para designar pessoas que estavam fundamentalmente fora da aliança com Deus porque não observavam a Sua Lei. A palavra «pecadores» no grego dos judeus podia referir-se a gentios (que, por definição, não observavam a Lei judaica) ou a judeus verdadeiramente ímpios. A força do termo pode ser observada na censura que Paulo faz a Pedro: «Nós, que, por nascimento, somos judeus, e não pecadores gentios ... » (GI 2, 15); isto é, «não somos gentios, que são completamente ímpios porque vivem totalmente fora da Lei». Nos Evangelhos, a palavra grega hamartoloi refere-se a judeus que transgridem sistemática ou flagrantemente a Lei e que, por isso,
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